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Duas críticas às normativas dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família

Two criticisms of the Family Health Support Centers regulations

Dos críticas a las normativas de los Núcleos de Apoyo a la Salud de la Familia

Resumo

Estudos empíricos identificaram insuficiências e precariedades na atuação de apoio matricial dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Este artigo, baseado em experiências assistemáticas diversas e literatura selecionada, defende duas teses interligadas que criticam aspectos das normativas federais originais para atuação desses Núcleos: uma concepção − implícita nas normativas − de atenção primária à saúde como cenário de ações situadas apenas em campos de competência compartilháveis, por um lado; e a opção de inserção desses Núcleos relativamente fora do fluxo assistencial dos usuários, por outro. Argumenta-se que ambas, provavelmente, geraram efeitos adversos envolvidos nos problemas de atuação desses Núcleos: contribuíram para a superestimação dos seus resultados esperados, para o seu subaproveitamento e subdesenvolvimento institucional e para a precarização da sua legitimidade, dificultada com a Política Nacional de Atenção Básica de 2017 e atingida gravemente com o desfinanciamento federal em 2019. Defende-se o aperfeiçoamento dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família e sugere-se sua inserção no fluxo assistencial entre a atenção primária à saúde e a atenção secundária, para reduzir o isolamento entre ambas e aperfeiçoar a coordenação personalizada do cuidado, facilitar a legitimidade dos ‘matriciadores’, o apoio matricial e a educação permanente dos profissionais.

Palavras-chave:
atenção primária à saúde; atenção secundária à saúde; Estratégia Saúde da Família; Núcleos de Apoio à Saúde da Família; apoio matricial

Abstract

Empirical studies have identified shortcomings and precariousness in the matrix support activities of the Family Health Support Centers. This article, based on diverse unsystematic experiences and selected literature, defends two interconnected theses that criticize aspects of the original federal regulations for the performance of these Nuclei: a conception - implicit in the regulations - of primary health care as a scenario for actions located only in fields of shareable competences, on the one hand; and the option of inserting these Centers relatively outside the care flow of users, on the other. It is argued that both, probably, generated adverse effects involved in the problems of operation of these Nuclei: they contributed to the overestimation of their expected results, to their underutilization and institutional underdevelopment and to the precariousness of their legitimacy, hampered by the 2017 National Primary Care Policy and seriously affected by the federal underfunding in 2019. The improvement of the Family Health Support Centers is defended and their insertion in the care flow between primary health care and the secondary care, to reduce the isolation between the two and improve the personalized coordination of care, facilitate the legitimacy of collaborative care, matrix support and the continuing education of professionals in Brazil.

Keywords:
primary health care; secondary health care; Family Health Strategy; Family Health Support Centers; matrix support

Resumen

Estudios empíricos identificaron carencias y precariedades en las actividades de apoyo matricial de los Núcleos de Apoyo a la Salud de la Familia. Este artículo, basado en diversas experiencias asistemáticas y literatura seleccionada, defiende dos tesis interconectadas que critican aspectos de las normativas federales originales para el funcionamiento de estos Núcleos: una concepción - implícita en las normativas - de la atención primaria de salud como escenario de acciones ubicadas únicamente en campos de competencia compartibles, por un lado; y la opción de inserción de estos Núcleos relativamente fuera del flujo de atención a los usuarios, por el otro. Se argumenta que ambas, probablemente, generaron efectos adversos involucrados en los problemas de funcionamiento de estos Núcleos: contribuyeron a la sobreestimación de sus resultados esperados, a su subutilización y subdesarrollo institucional y a la precariedad de su legitimidad, obstaculizada por la Política Nacional de Atención Primaria de 2017 y gravemente afectada por la falta de financiación federal en 2019. Se defiende el perfeccionamiento de los Núcleos de Apoyo a la Salud de la Familia y se sugiere su inserción en el flujo asistencial entre la atención primaria a la salud y secundaria, para reducir el aislamiento entre ambas y mejorar la coordinación personalizada de la atención, facilitar la legitimación de los ‘matriciadores’, el apoyo matricial y la formación permanente de los profesionales en Brasil.

Palabras clave:
atención primaria de salud; atención secundaria de salud; Estrategia de Salud de la Familia; Núcleos de Apoyo a la Salud de la Familia; soporte matricial

Introdução

A partir de 2008, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF (Brasil, 2008) atuaram no Sistema Único e Saúde (SUS) por uma década sob as mesmas normativas. Os NASF agregaram às equipes de Saúde da Família (eSF) uma outra equipe multiprofissional para atuar como apoio matricial àquelas (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: MS, 2009. (Cadernos de Atenção Básica, n. 27).; 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Núcleo de apoio à saúde da família. Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. v. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. (Caderno de Atenção Básica, n. 39). ). Tal apoio pretendia ter uma função assistencial e de educação permanente, em que os profissionais desses núcleos − doravante designados ‘nasfianos’ socializam conhecimento e competência do seu núcleo e campo profissional (Campos, Chakour e Santos, 1997CAMPOS, Gastão W.S.; CHAKOUR, Maurício; SANTOS, Rogério C. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n.1, p. 141-144, 1997. 10.1590/S0102-311X1997000100025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/96CygTzrs4cdg6YbvGssVTG/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Campos, 1999CAMPOS, Gastão W. S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 393-403, 1999. 10.1590/S1413-81231999000200013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVLbQRcZCzgFGyyD/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; 2000CAMPOS, Gastão W. S. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 219-230, 2000. 10.1590/S1413-81232000000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/mvLNphZL64hdTPL4VBjnrLh/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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) na atuação junto às eSF.

As normativas federais dos NASF e textos acadêmicos sobre ‘matriciamento’ discutem democratização institucional, gestão democrática e participativa e cogestão; e propõem a criação de espaços de discussões de casos e de cuidado compartilhado entre ‘nasfianos’ e as eSF, para superar o isolamento entre profissões e especialidades e sua relação hierarquizada. Com isso, viabilizar-se-ia a concretização de trabalho colaborativo e troca de saberes entre ‘nasfianos’ e eSF, educação permanente, horizontalização das relações interprofissionais e consequente melhoria da resolubilidade das eSF (Oliveira e Campos, 2015OLIVEIRA, Mônica M.; CAMPOS, Gastão W. S. Apoios matricial e institucional: analisando suas construções. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 229-38, 2015. 10.1590/1413- 81232014201.21152013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/XBVyRj8fpzcc3q6GtXDGCpQ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

A Política Nacional de Atenção Básica de 2017 (PNAB/2017) alterou os NASF, denominando-os ‘Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica’ (Nasf-AB) (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da AB, no âmbito do SUS. 2017.Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bcs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html . Acesso em: 14 ago. 2020.
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) e eliminando o apoio matricial como diretriz da organização do seu trabalho. Todavia, o ‘matriciamento’ é compatível com a atuação prevista na PNAB/2017 e um Nasf-AB que realizasse o apoio matricial estaria de acordo com ela. A supressão do ‘matriciamento’ do texto da PNAB/2017 provavelmente desestimulou seu exercício, mas, independentemente do impacto da PNAB/2017 na atuação desses núcleos, o presente artigo trata das normativas originais dos NASF, motivo pelo qual é usado o acrônimo NASF.

Os NASF atuaram nos serviços de saúde da atenção primária à saúde (APS), ou atenção básica, e sua tarefa era apoiar matricialmente as eSF (Campos, 1999CAMPOS, Gastão W. S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 393-403, 1999. 10.1590/S1413-81231999000200013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVLbQRcZCzgFGyyD/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Campos e Domitti, 2007CAMPOS, Gastão W. S.; DOMITTI, Ana C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-408, 2007. 10.1590/S0102-311X2007000200016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/VkBG59Yh4g3t6n8ydjMRCQj/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Cunha e Campos, 2011CUNHA, Gustavo T.; CAMPOS, Gastão W. S. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011. 10.1590/S0104-12902011000400013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/JFWjx7YnMz7mcDjFNDpxRcc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Campos et al., 2014CAMPOS, Gastão W. S. et al. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v.18, p. 983-995, 2014. Supl. 1. 10.1590/1807-57622013.0324. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/DTWSYxgyjHpg9tJfGD5yVkk/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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); isto é, prestar a elas “tanto retaguarda assistencial quanto suporte técnico-pedagógico” (Cunha e Campos, 2011CUNHA, Gustavo T.; CAMPOS, Gastão W. S. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011. 10.1590/S0104-12902011000400013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/JFWjx7YnMz7mcDjFNDpxRcc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 964).

As pesquisas empíricas sobre os NASF tomaram como referência para análise dos dados as normativas federais publicadas em 2009 e 2014 (Cadernos de Atenção Básica n. 37 [Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: MS, 2009. (Cadernos de Atenção Básica, n. 27).] e n. 39 [Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Núcleo de apoio à saúde da família. Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. v. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. (Caderno de Atenção Básica, n. 39). ], respectivamente) e artigos sobre apoio matricial do grupo de Gastão Campos (Campos, 1999CAMPOS, Gastão W. S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 393-403, 1999. 10.1590/S1413-81231999000200013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVLbQRcZCzgFGyyD/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Campos e Domitti, 2007CAMPOS, Gastão W. S.; DOMITTI, Ana C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-408, 2007. 10.1590/S0102-311X2007000200016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/VkBG59Yh4g3t6n8ydjMRCQj/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Cunha e Campos, 2011CUNHA, Gustavo T.; CAMPOS, Gastão W. S. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011. 10.1590/S0104-12902011000400013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/JFWjx7YnMz7mcDjFNDpxRcc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Campos et al., 2014CAMPOS, Gastão W. S. et al. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v.18, p. 983-995, 2014. Supl. 1. 10.1590/1807-57622013.0324. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/DTWSYxgyjHpg9tJfGD5yVkk/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

A extensão continental do país e a diversidade das gestões municipais da APS implicaram grande diversidade de configurações de gestão e de trabalho dos NASF. Todavia, não parece necessário listar os muitos estudos que analisaram NASF de diversos locais e regiões e mostraram problemas comuns na sua atuação, sintetizados em um insuficiente e precário ‘matriciamento’ realizado pelos seus profissionais (Iacabo e Furtado, 2020IACABO, Patrícia; FURTADO, Juarez P. Núcleos de apoio à saúde da família: análises estratégica e lógica. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 44, n. 126, p. 666-677, 2020. 10.1590/0103-1104202012606. Disponível em: https://www.readcube.com/articles/10.1590%2F0103-1104202012606 . Acesso em: 17 mar. 2022.
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); como no caso do apoio matricial em saúde mental (Morais e Tanaka, 2012MORAIS, Ana P. P.; TANAKA, Oswaldo Y. Apoio matricial em saúde mental: alcances e limites na atenção básica. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 21, n. 1, p. 161-170, 2012. 10.1590/S0104-12902012000100016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/s689bYQrRW4nrhsvykpBJHx/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Gama et al., 2021GAMA, Carlos A. P. et al. Os profissionais da Atenção Primária à Saúde diante das demandas de Saúde Mental: perspectivas e desafios. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 25, e200438, 2021. 10.1590/interface.200438. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/ngR3KBLS6xBNvHGNGjscJ9S/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/icse/a/ngR3KBLS6...
; Treichel, Campos, R. e Campos, G., 2019TREICHEL, Carlos A. S.; CAMPOS, Rosana T. O.; CAMPOS, Gastão W. S. Impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial em saúde mental no Brasil. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 23, e180617, 2019. 10.1590/interface.180617. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/SMsPCj46yzmmjWJd83Vqx7J/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Klein e d’Oliveira, 2017KLEIN, Ana P.; D’OLIVEIRA, Ana F. P. L. O “cabo de força” da assistência: concepção e prática de psicólogos sobre o apoio matricial no núcleo de apoio à saúde da família. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, e00158815, 2017. 10.1590/0102-311x00158815. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2017.v33n1/e00158815 /. Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielosp.org/article/csp/201...
; Vieira et al., 2020VIEIRA, Silvia M. et al. Rede de atenção psicossocial: os desafios da articulação e integração. Revista Psicologia Política, Florianópolis, v.20, n. 47, p. 76-86, 2020. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2020000100007&lng=pt&tlng=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

Uma revisão de literatura elencou problemas identificados na atuação dos NASF, envolvidos nessa insuficiência e precariedade do seu ‘matriciamento’: dúvidas sobre atribuições e papéis dos ‘nasfianos’, sobrecarga de trabalho, grande quantidade e diversidade de atribuições, normativas oficiais consideradas genéricas, definição das ações com base estritamente empírica ou contingente, dificuldades de articulação entre profissionais das eSF e dos NASF, ações intersetoriais restritas ou inexistentes, rara consideração da discussão de casos ou dos atendimentos compartilhados como estratégia de educação permanente; para além da comum precariedade estrutural (transporte, instabilidade dos vínculos empregatícios, espaço físico inadequado, equipes incompletas etc.) (Correia, Goulart e Furtado, 2017CORREIA, Patrícia C. I.; GOULART, Patrícia M.; FURTADO, Juarez P. A avaliabilidade dos núcleos de apoio à saúde da família. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, p. 345-359, 2017. Número especial. 10.1590/0103-11042017S25. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/9SNQTMvGQG3mQS9vhFFSMHv/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Também ocorreu frequente e conflituoso desvio excessivo das práticas dos ‘nasfianos’ para atuação clínica especializada isolada, sem ou com poucas ações de apoio e educação permanente; ou desvio para o apoio às eSF sem ou com pouco exercício de cuidado especializado (Tesser, 2017TESSER, Charles D. Núcleos de apoio à saúde da família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 21, n. 62, p. 565-578, 2017. 10.1590/1807-57622015.0939. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/zBhWdfDtYq67F3874K6KY8F/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; Melo et al., 2018 MELO, Eduardo A. et al. Dez anos dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF): problematizando alguns desafios. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 328-340, 2018. Núm. esp. 1. 10.1590/0103-11042018S122. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/SskhD8q88hvTkv3wgvvG5Tc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

Esses estudos e outros mostram que fatores estruturais, históricos e políticos estão envolvidos nas dificuldades de atuação do NASF: subdimensionamento da APS e dos próprios NASF, precária estrutura física dos serviços, insuficiência de recursos humanos, formação inadequada dos profissionais, desinvestimento no ‘matriciamento’ pela PNAB/2017 e desmonte federal dos NASF em 2019. Porém, tais fatores não serão aqui discutidos. Este trabalho trata de outra ordem de razões possíveis e adicionais para algumas das dificuldades detectadas na atuação dos NASF: a existência de inconsistências, equívocos conceituais, teóricos ou estratégicos (implícitos ou explícitos) nas suas normativas originais.

Poucos estudos exploraram problemas dessa ordem. Para Souza e Calvo (2016SOUZA, Thaís T.; CALVO, Maria C. M. Resultados esperados dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família: revisão de literatura. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 25, n. 4, p. 976-987, 2016. 10.1590/ s0104-12902016163089. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/KsM7krQMMJb3sBZq4wGPvYJ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 979), em revisão de literatura até 2015, os resultados esperados da implantação dos NASF “não estão explícitos nos documentos encontrados sobre o tema”. Em uma síntese da literatura, propõem como resultados esperados melhorias na resolubilidade, na coordenação de cuidado e na integralidade das eSF ‘matriciadas’, concluindo que são “amplos e dependentes de outros fatores não gerenciáveis pelo NASF” (Souza e Calvo, 2016SOUZA, Thaís T.; CALVO, Maria C. M. Resultados esperados dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família: revisão de literatura. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 25, n. 4, p. 976-987, 2016. 10.1590/ s0104-12902016163089. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/KsM7krQMMJb3sBZq4wGPvYJ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/sausoc/a/KsM7krQ...
, p. 984-985).

Para Correia, Goulart e Furtado (2017CORREIA, Patrícia C. I.; GOULART, Patrícia M.; FURTADO, Juarez P. A avaliabilidade dos núcleos de apoio à saúde da família. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, p. 345-359, 2017. Número especial. 10.1590/0103-11042017S25. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/9SNQTMvGQG3mQS9vhFFSMHv/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/9SNQTMvGQ...
, p. 346), os NASF “têm por objetivo ampliar a resolutividade da AB” [atenção básica]. Sua revisão de literatura, que cobriu publicações de 2008 a 2016, constatou haver “dissensos, tanto sobre a concepção quanto em relação às maneiras mais adequadas de operacionalizar a proposta” (p. 355). Tesser (2017TESSER, Charles D. Núcleos de apoio à saúde da família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 21, n. 62, p. 565-578, 2017. 10.1590/1807-57622015.0939. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/zBhWdfDtYq67F3874K6KY8F/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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) abordou pontos que considerou problemáticos nas normativas federais: “ênfase normativa na assunção de papéis generalistas” (p. 565) pelos ‘nasfianos’ e a sua identificação como pertencentes à APS; “subvalorização da assistência especializada pelos NASF” (p. 565); ênfase excessiva na ‘interdisciplinaridade presencial’ (atuação simultânea de profissionais no mesmo problema ou ação); e consideração da APS apenas “como um campo comum interprofissional de cuidado” (p. 573).

Iacabo e Furtado (2020IACABO, Patrícia; FURTADO, Juarez P. Núcleos de apoio à saúde da família: análises estratégica e lógica. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 44, n. 126, p. 666-677, 2020. 10.1590/0103-1104202012606. Disponível em: https://www.readcube.com/articles/10.1590%2F0103-1104202012606 . Acesso em: 17 mar. 2022.
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) também apontam fragilidades na concepção estratégica dos NASF: “detêm baixa governabilidade sobre as eSF e acumulam poucos instrumentos, tanto na formação individual de seus integrantes quanto nos modelos tecnoassistenciais da RAS” (p. 673); seu formato dá margem a certo isolamento da pressão assistencial e o privilégio “de não serem requisitados pela intensa demanda” (p. 673), em que “a lógica profissional da diferenciação acaba prevalecendo em detrimento da colaboração” (p. 673); e são orientados a “desenvolver atividades de caráter generalista...[, o que] pode ocasionar superposição entre as duas equipes e distanciar os ‘matriciadores’ de seu núcleo de competência” (p. 673).

Como os Nasf-AB foram recentemente desfinanciados pelo Ministério da Saúde - MS (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.979, de 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da AB no âmbito do SUS, por meio da alteração da portaria n. 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017. Diário Oficial da União: Seção: 1, Brasília, DF, 2019, p. 97, 13 nov. 2019. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.979-de-12-de-novembro-de-2019-227652180 . Acesso em: 24 jun. 2021.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
); como a implantação dos NASF gerou resultados não tão valorizados institucionalmente, persistindo “indagações acerca dos efeitos das intervenções para os desfechos em saúde no nível populacional” (Seus et al., 2019SEUS, Thamires L. C. et al. Núcleo de Apoio à Saúde da Família: promoção da saúde, atividade física e doenças crônicas no Brasil: inquérito nacional PMAQ 2013. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, v. 28, n. 2, e2018308, 2019. 10.5123/s1679-49742019000200009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ress/a/SS9dDqxyYRC4gpVZq8w3HkG/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 12); e como o tema merece ser desenvolvido para seu aperfeiçoamento; é justificada a discussão crítica sobre a fundamentação das suas normativas.

O objetivo desse artigo é defender duas teses interligadas sobre as normativas federais dos NASF. A primeira é que há nas normativas uma concepção problemática e implícita de APS como apenas um cenário de atuação interprofissional, desconsiderando em grande medida os núcleos de competência (dos profissionais) das eSF. A segunda é que a opção dessas normativas pela inserção dos ‘nasfianos’ relativamente fora do fluxo assistencial dos usuários dificultou a construção da legitimidade desses núcleos, necessária ao trabalho colaborativo.

Do ponto de vista metodológico, este artigo é baseado em fontes empíricas e teóricas. Houve participação prática do autor em ‘matriciamentos’ na época pré-NASF em dois municípios paulistas. Depois de 2008, houve próximo contato com experiências de vários NASF e eSF, via docência em Residências Multiprofissional em Saúde da Família e em Medicina de Família e Comunidade (MFC), além de pesquisas empíricas na APS. Estudos empíricos sobre os NASF também informaram o artigo. Do ponto de vista teórico, são fornecidas brevemente bases conceituais fundamentando as teses. O artigo inicia com uma apresentação da primeira tese, seguida de seu embasamento conceitual. Esse esquema se repete para a segunda tese, após a qual vem um curto comentário sobre o pertencimento (oficial) desses núcleos à APS, tópico envolvido centralmente em ambas as teses.

A APS como cenário para ações situadas em campos de competência compartilhados

As normativas federais estabeleceram grande diversidade, abrangência e generalidade para as ações dos ‘nasfianos’: o apoio matricial às eSF devia “auxiliá-las no manejo ou resolução de problemas clínicos e sanitários” (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Núcleo de apoio à saúde da família. Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. v. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. (Caderno de Atenção Básica, n. 39). , p. 17), envolvendo inúmeras atividades (...), [de] dimensão clínica, (...) sanitária (...) [e] pedagógica (...): discussões de casos, atendimento conjunto (...), atendimentos individuais e posteriormente compartilhados com as equipes, construção conjunta de Projetos Terapêuticos Singulares [PTS], educação permanente, intervenções no território e em outros espaços da comunidade (...), visitas domiciliares, ações intersetoriais, ações de prevenção e promoção da saúde, discussão do processo de trabalho das equipes etc. (...); reunião de equipe [de SF]; (...) atendimento em grupo; atendimento domiciliar; apoio às ações do PSE; ações de educação em saúde; apoio matricial do CAPS à AB” (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Núcleo de apoio à saúde da família. Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. v. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. (Caderno de Atenção Básica, n. 39). , p. 22-3); [além de] ações sobre os riscos e vulnerabilidades populacionais (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Núcleo de apoio à saúde da família. Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. v. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. (Caderno de Atenção Básica, n. 39). , p. 18).

Os NASF foram relativamente inibidos na sua atuação clínica especializada: “apoio especializado na própria atenção básica, mas não [...] ambulatório de especialidades” (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Núcleo de apoio à saúde da família. Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. v. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. (Caderno de Atenção Básica, n. 39). , p. 18). Por outro lado, não foram inibidos de entrar em ou apoiar quase toda a atuação das eSF, como se as ações das eSF não fossem situadas em seus núcleos de competência próprios, em que os NASF não entrariam − com exceção do atendimento clínico individual de acesso direto, vetado aos ‘nasfianos’. Essa afirmação demanda revisitar os conceitos de campo e núcleo de competência.

Campos, Chakour e Santos (1997CAMPOS, Gastão W.S.; CHAKOUR, Maurício; SANTOS, Rogério C. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n.1, p. 141-144, 1997. 10.1590/S0102-311X1997000100025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/96CygTzrs4cdg6YbvGssVTG/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 143) propuseram os conceitos de núcleo e campo de competência com o objetivo de regramento institucional da proliferação de especialidades médicas. O ‘núcleo de competência’ é proposto para distinguir dentro da “área de competência de cada especialidade” um núcleo duro de competências, em geral mais rigidamente definido, de um campo de competência compartilhado por outras especialidades vizinhas e ou mais gerais, ou especialidades-raiz. O campo de competência incluiria os principais saberes da especialidade-raiz e que, portanto, teria um espaço de sobreposição de exercício profissional com outras especialidades (...) [e] não caracterizaria monopólio profissional da especialidade; ao contrário, seria um campo de intersecção com outras áreas (Campos, Chakour e Santos, 1997CAMPOS, Gastão W.S.; CHAKOUR, Maurício; SANTOS, Rogério C. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n.1, p. 141-144, 1997. 10.1590/S0102-311X1997000100025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/96CygTzrs4cdg6YbvGssVTG/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 143).

Já o núcleo de competência “incluiria as atribuições exclusivas daquela especialidade”. Não há nesse artigo pioneiro menção a outras profissões ou a ambientes institucionais específicos. Os conceitos são propostos para uso pela “AMB e órgãos públicos” (Campos, Chakour e Santos, 1997CAMPOS, Gastão W.S.; CHAKOUR, Maurício; SANTOS, Rogério C. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n.1, p. 141-144, 1997. 10.1590/S0102-311X1997000100025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/96CygTzrs4cdg6YbvGssVTG/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 143) e Ministério da Saúde, visando evitar consequências deletérias derivadas da proliferação desregulada de especialidades.

Logo após, Campos (1999CAMPOS, Gastão W. S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 393-403, 1999. 10.1590/S1413-81231999000200013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVLbQRcZCzgFGyyD/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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) propõe o ‘apoio matricial’ e aplica os conceitos de campo e núcleo de competência a distintas profissões e ambientes institucionais, de hospitais até a APS. Para o autor, o uso do apoio matricial permite que “a equipe explore ao máximo as possibilidades dos campos e núcleos de competência de todos” (Campos, 1999CAMPOS, Gastão W. S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 393-403, 1999. 10.1590/S1413-81231999000200013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVLbQRcZCzgFGyyD/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVL...
, p. 398), freando a tendência das profissões e especialistas de reduzirem seu campo de responsabilidade ao [seu] núcleo restrito de saberes e competências (...). São enfermeiros que não fazem clínica, motoristas que não enxergam os pacientes transportados, médicos que não cuidam, clínicos que não sabem prevenção (Campos, 1999CAMPOS, Gastão W. S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 393-403, 1999. 10.1590/S1413-81231999000200013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVLbQRcZCzgFGyyD/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 402).

Desde então, o uso dos conceitos de campo e núcleo de competência tem sido aplicado sem alteração conceitual significativa, de forma suficientemente coerente com o significado inicial.

Em raras passagens, Gastão Campos dá a entender que um núcleo de competência dos profissionais da APS existe ou deveria existir. Cunha e Campos (2011CUNHA, Gustavo T.; CAMPOS, Gastão W. S. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011. 10.1590/S0104-12902011000400013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/JFWjx7YnMz7mcDjFNDpxRcc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 964) afirmam que no ‘matriciamento’ “um especialista com determinado núcleo apoia especialistas com outro núcleo de formação, objetivando a ampliação da eficácia de sua atuação”. Todavia, o tema de haver ou dever ser considerado um núcleo de competência dos generalistas da APS, especificamente, não é abordado. No artigo pioneiro de Campos, Chakour e Santos (1997)CAMPOS, Gastão W.S.; CHAKOUR, Maurício; SANTOS, Rogério C. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n.1, p. 141-144, 1997. 10.1590/S0102-311X1997000100025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/96CygTzrs4cdg6YbvGssVTG/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, que menciona algumas especialidades médicas, a MFC, especialidade ‘nascida’ na APS e com ela totalmente identificada, não é mencionada.

O cenário dos serviços de saúde da APS tem peculiaridades incidentes nos conceitos de campo e núcleo. Pois todo conceito remete a um problema, problema sem o qual não teria sentido” (Deleuze e Guatarri, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: ed. 34, 1992. , p. 27); e os problemas são geralmente situados. Os conceitos de campo e núcleo de competência devem ser entendidos e usados conforme as circunstâncias, contextos sociais e ambientes institucionais a que se aplicam. Se os saberes e práticas situadas nos núcleos de competência tendem a ser mais rigidamente disputados e definidos, mesmo assim eles não são monopolizados completamente na sociedade, e sim renegociados nos contextos diversos de atuação profissional. Doutra parte, o fato de os campos serem compartilháveis e mais porosos e flexíveis não significa que eles não existam para cada profissão e especialidade, ainda que se interseccionem, por vezes em grande parte.

Ao mesmo tempo em que a APS tem a peculiaridade de envolver campos de competência diversos, os problemas clínico-sanitários mais comuns nas populações devem integrar o núcleo de competência dos profissionais generalistas, praticantes na APS de um cuidado caracterizado pelos atributos propostos por Starfield (2002STARFIELD, Barbara. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. 1. ed. Brasília: Unesco; Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001308/130805por.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
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): acesso facilitado, longitudinalidade, integralidade, coordenação de cuidado, abordagem familiar e comunitária e competência cultural.

Na integralidade, em sua dimensão imanente à APS, está implícito o ‘generalismo’ e uma grande abrangência das ações dos seus profissionais. Isso demanda uma compreensão dos conceitos de campo e núcleo que valorize as performances (sociais, institucionais, políticas e profissionais) associadas ao seu uso, perspectiva assumida por Campos (1997CAMPOS, Gastão W.S.; CHAKOUR, Maurício; SANTOS, Rogério C. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n.1, p. 141-144, 1997. 10.1590/S0102-311X1997000100025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/96CygTzrs4cdg6YbvGssVTG/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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) na sua proposição inicial, pois o que pertence ao campo e ao núcleo de competência é de natureza cambiante, variável e dependente do contexto.

Há muitos fatores contextuais influenciando o que é considerado campo e o que fica no núcleo das profissões ou especialidades. Quando um problema tem prevalência ou incidência muito grande, o núcleo de competência dos profissionais da APS precisa incorporar os saberes e habilidades para o seu manuseio com excelência, no contexto comunitário ambulatorial, aproximando-se em expertise de outros profissionais ou especialistas centrados nesse problema atuantes em outros ambientes institucionais. Talvez a hipertensão arterial sistêmica seja um exemplo: os clínicos das eSF devem saber muito dela, quase tanto quanto os cardiologistas, já que a manejam cotidianamente em grande número de pessoas. Nesses casos, a natureza da APS exige essa incorporação, ou então demanda e possibilita o acesso direto ao especialista, conforme negociações e opções institucionais negociadas social e politicamente.

Essa característica da APS facilita a compreensão da presença não rara de especialistas ou profissionais não generalistas atuando em acesso direto na APS. Isso ocorre com as parteiras na APS inglesa (Norman e Tesser, 2015NORMAN, Armando H.; TESSER, Charles D. Obstetrizes e enfermeiras obstetras no Sistema Único de Saúde e na atenção primária à saúde: por uma incorporação sistêmica e progressiva. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade , Rio de Janeiro, v. 10, n. 34, p. 1-7, 2015. 10.5712/rbmfc10(34)1106. Disponível em: https://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1106/670 . Acesso em: 17 mar. 2022.
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), os dentistas na APS brasileira e os pediatras na APS de alguns países europeus (van Esso et al., 2010VAN ESSO, Diego et al. Paediatric primary care in Europe: variation between countries. Archives of Disease in Childhood, v. 95, n. 10, p. 791-5, 2010. 10.1136/adc.2009.178459. Disponível em: https://adc.bmj.com/content/95/10/791.long . Acesso em: 17 mar. 2022.
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), como a Itália (Corsello et al., 2016CORSELLO, Giovanni et al. The child health care system in Italy. The Journal of Pediatrics, v. 177S, p. S116-S126, 2016. 10.1016/j.jpeds.2016.04.048.
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). Quando se está sozinho em um serviço de APS de zona rural mais isolado, o núcleo e o campo dos seus profissionais se expandem, pela distância de outros profissionais e serviços.

Assim, a crítica é que deveria ter sido considerada na atuação dos NASF a presença de um núcleo de competência dos profissionais da APS ou das eSF, para além do cuidado clínico de acesso direto. Obviamente, a APS não é uma profissão nem uma especialidade, mas a atuação profissional nela pode e deve ser vista à luz dos conceitos de campo e núcleo de competência. Isso tem ocorrido sistemática e extensivamente, porém de forma unilateral e restrita, já que focado apenas nos campos compartilháveis envolvidos na atuação em serviços da APS, quase sem menção ao núcleo de competência das eSF.

O reconhecimento e a valorização desses campos comuns de competências são justificados pela sua tendência de, com a especialização progressiva, ficarem esvaziados em meio à proliferação dos núcleos (Campos, 1997CAMPOS, Gastão W.S.; CHAKOUR, Maurício; SANTOS, Rogério C. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n.1, p. 141-144, 1997. 10.1590/S0102-311X1997000100025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/96CygTzrs4cdg6YbvGssVTG/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Por outro lado, a consideração unilateral da relevância dos campos de competências tem o efeito adverso de obscurecer a validade, a necessidade e a importância do reconhecimento de que a APS contém ou deve conter muitas ações situadas em núcleos de competência dos profissionais (ou equipes) da Estratégia Saúde da Família (ESF), que são pouco reconhecidos e precisam ser valorizados social e academicamente. Sua tradição é fraca, recente ou inexistente, e precisa ser construída no Brasil.

Tais núcleos de competências (dos profissionais) das eSF (contextualizados na APS e com ela identificados) poderiam ser descritos com base nas atribuições ou funções dos seus profissionais e das ações correspondentes, dado serem as eSF o padrão-ouro de equipes de APS no Brasil (Tesser, Norman e Vidal, 2018TESSER, Charles D.; NORMAN, Armando H.; VIDAL, Tiago B. Acesso ao cuidado na Atenção Primária à Saúde brasileira: situação, problemas e estratégias de superação. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 361-378, 2018. Número especial 1. 10.1590/0103-11042018S125. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/cLcqmxhpPLWJjJMWrq9fL4K/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Em um cenário nacional de escassez de profissionais especialistas cujos núcleos de competência sejam adequados e identificados com as características desejáveis da atuação clínico-sanitária na APS, obscurecer ou desprezar tais núcleos significa enfraquecer a já precária qualidade do cuidado nas eSF, performar a favor da continuidade dessa precariedade qualitativa e quantitativa. Por exemplo, apenas pouco mais de 10% dos médicos da APS brasileira são especialistas em MFC, e só aproximadamente metade deles tem residência em MFC (Scheffer, 2018 SCHEFFER, Mário (coord.). Demografia médica no Brasil 2018. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; Conselho Federal de Medicina, 2018. Disponível em: https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/DemografiaMedica2018.pdf . Acesso em: 29 ago. 2021.
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; Augusto et al., 2018AUGUSTO, Daniel K. et al. Quantos médicos de família e comunidade temos no Brasil? Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 13, n. 40, p. 1-4, 2018. 10.5712/rbmfc13(40)1695.Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1695 . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

Assim, a amplidão das ações esperadas dos NASF nas normativas federais pode ser interpretada como um não reconhecimento dos núcleos de competência (dos profissionais) das eSF. Isso parece decorrer de uma concepção implícita da APS como apenas uma arena de trabalho interprofissional, em que múltiplas profissões e especialidades atuam com ações situadas em campos de competências compartilháveis, sem que categorias profissionais ou especialidades exercessem ou devessem exercer ali ações situadas em seus núcleos de competência, que deveriam ser respeitados e imporiam limites à atuação dos NASF.

Klein e d’Oliveira (2017KLEIN, Ana P.; D’OLIVEIRA, Ana F. P. L. O “cabo de força” da assistência: concepção e prática de psicólogos sobre o apoio matricial no núcleo de apoio à saúde da família. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, e00158815, 2017. 10.1590/0102-311x00158815. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2017.v33n1/e00158815 /. Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 2) explicitaram essa ideia, que parece subjazer às normativas federais, ao afirmarem que consideram “por analogia a atenção primária à saúde como análoga a um campo [de competências]”. Isso é coerente com a não delimitação de um núcleo de atuação dos profissionais das eSF em que o NASF não entraria, salvo o atendimento clínico individual de acesso direto.

Porque a ESF não seria ‘habitada’ por equipes cujos núcleos de competências são respeitáveis, seria coerente cogitar, nessa concepção, que os problemas de resolubilidade e abrangência das ações das eSF seriam (implicitamente todos ou sua maior parte) resolvidos via aprendizado em serviço de saberes de especialidades e profissões com os quais as eSF têm interface via NASF; ou seja, por meio de educação permanente via NASF. Nessa lógica, não haveria problema em incluir os NASF na APS. Porém, isso tem o corolário de afastar vários ‘nasfianos’ do exercício de ações de seu núcleo de competência (da atenção secundária), levando-os a atuar na parte de seu campo e núcleo de competências que pode ser socializado com as eSF.

Essa concepção implícita parece ter se associado, coerentemente, com a grande diversidade de ações que os ‘nasfianos’ deveriam apoiar, e parece também ter contribuído para a construção da identidade institucional que reconhece os NASF como parte ‘da APS’. As normativas e essa identificação facilitaram e podem ter induzido a realização substitutiva de ações típicas da APS, sobretudo atividades coletivas (grupos), que não estão relacionadas especificamente com as profissões dos ‘nasfianos’. Isso pode também ter se associado à sobrecarga dos ‘nasfianos’ com ações assistenciais, administrativas, de planejamento, preventivas, promocionais, grupais, territoriais e intersetoriais, quando os mesmos tentam apoiar as eSF no que se espera deles. Por fim, há nessa concepção e nas normativas a suposição, provavelmente quimérica, de que existe competência difusa nos ‘nasfianos’ para atuação eficaz nesse abrangente apoio matricial.

Entretanto, há importante reconhecimento científico de que existe ou deve existir um núcleo de competências próprio das equipes de APS, variável conforme as circunstâncias nacionais, institucionais e contextuais. Embora a atenção generalista da APS esteja associada a cuidados de menor qualidade para doenças específicas do que os cuidados prestados por especialistas, robustos estudos ecológicos e epidemiológicos mostraram que os sistemas de saúde com APS forte e cuidado generalista têm melhor qualidade de atendimento no nível da pessoa e das populações, melhor saúde da população, maior equidade e menor custo (Homa et al., 2015HOMA, Laura et al. A participatory model of the paradox of primary care. Annals of Family Medicine , v. 13, n. 5, p. 456-465, 2015. 10.1370/afm.1841. Disponível em: https://www.annfammed.org/content/annalsfm/13/5/456.full.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Esta discrepância foi chamada de ‘paradoxo da atenção primária’ (Stange e Ferrer, 2009 STANGE, Kurt C.; FERRER, Robert L. The paradox of primary care. Annals of Family Medicine , v. 7, n. 4, p. 293-299, 2009. 10.1370/afm.1023.
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).

Para compreender esse paradoxo, deve-se considerar que a qualidade da atenção à saúde é comumente avaliada por indicadores e pelo grau de cumprimento de diretrizes clínicas orientadas para doenças específicas (baseados em ensaios clínicos com populações altamente selecionadas, que excluem pacientes com comorbidades, idosos etc.); um tipo de avaliação chamada ‘vertical’, referida a uma ou várias doenças nas pessoas. Mas a APS envolve também cuidados chamados horizontais: a integração dos vários cuidados em torno das necessidades dos indivíduos, centrados na pessoa e contextualizados em sua família, por meio do que Stange (2009STANGE, Kurt C. The generalist approach. Annals of Family Medicine , v. 7, n. 3, p. 198-203, 2009. 10.1370/afm.1003.
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) chamou de abordagem generalista [generalist approach], e das necessidades mais amplas da comunidade e da população, incluindo aspectos de saúde pública e intersetoriais (Muldoon, Hogg e Levitt, 2007MULDOON, Laura K.; HOGG, William E.; LEVITT, Miriam. Primary care (PC) and primary health care (PHC). What is the difference? Canadian Journal of Public Health, v. 97, n. 5, p. 409-411, 2006. 10.1007/BF03405354.
https://doi.org/10.1007/BF03405354...
). Ambas as dimensões (vertical e horizontal) são importantes para os resultados da APS (Heath et al., 2009HEATH, Iona et al. Quality in primary health care: a multidimensional approach to complexity. BMJ, v. 338, b1242, 2009. 10.1136/bmj.b1242. Disponível em: https://www.bmj.com/content/338/bmj.b1242.long . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.bmj.com/content/338/bmj.b124...
). É uma falácia reducionista extrapolar apenas os resultados verticais para pessoas, sistemas de saúde ou populações inteiras (Stange e Ferrer, 2009 STANGE, Kurt C.; FERRER, Robert L. The paradox of primary care. Annals of Family Medicine , v. 7, n. 4, p. 293-299, 2009. 10.1370/afm.1023.
https://doi.org/10.1370/afm.1023...
). Adicionalmente, consideráveis esforços realizados para qualificar e melhorar a APS em cuidados específicos para doenças não produziram os resultados esperados (Etz, Miller e Stange, 2021ETZ, Rebecca; MILLER, William L; STANGE, Kurt C. Simple rules that guide generalist and specialist care. Family Medicine, v. 53, n. 8, p. 697-700, 2021. 10.22454/FamMed.2021.463594. Disponível em: https://journals.stfm.org/media/4265/stange-2020-0588.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://journals.stfm.org/media/4265/sta...
).

Abordagens inspiradas na ciência da complexidade vêm sendo aplicadas no cuidado clínico generalista (Wilson, Holt e Greenhalgh, 2001WILSON, Tim; HOLT, Tim; GREENHALGH, Trisha. Complexity science: complexity and clinical care. BMJ, v. 323, n. 7.314, p. 685-688, 2001. 10.1136/bmj.323.7314.685. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1121241 /. Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
; Sturmberg, Martin e Katerndahl, 2014STURMBERG, Joachim P.; MARTIN, Carmel M.; KATERNDAHL, David A. Systems and complexity thinking in the general practice literature: an integrative, historical narrative review. Annals of Family Medicine , v. 12, n. 1, p. 66-74, 2014. 10.1370/afm.1593. Disponível em: https://www.annfammed.org/content/annalsfm/12/1/66.full.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.annfammed.org/content/annals...
; Stolper et al., 2021STOLPER, Erik et al. Embracing complexity with systems thinking in general practitioners’ clinical reasoning helps handling uncertainty. Journal of Evaluation in Clinical Practice, v. 27, p. 1.175-1.181, 2021. 10.1111/jep.13549. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33592677/ . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33592677...
), especialmente nas situações clínicas mais complexas como a multimorbidade (Sturmberg et al., 2021 STURMBERG, Joachim P. et al. Beyond multimorbidity: what can we learn from complexity science? Journal of Evaluation in Clinical Practice , v. 27, n. 5, p.1.187-1.193, 2021. 10.1111/jep.13521. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33588522/ . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33588522...
), bem como no entendimento da APS e do sistema de saúde como um todo (Greenhalgh e Papoutsi, 2018GREENHALGH, Trisha; PAPOUTSI, Chrysanthi. Studying complexity in health services research: desperately seeking an overdue paradigm shift. BMC Medicine, v. 16, n. 1, p. 95, 2018. 10.1186/ s12916-018-1089-4. Disponível em: https://bmcmedicine.biomedcentral.com/track/pdf/10.1186/s12916-018-1089-4.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://bmcmedicine.biomedcentral.com/tr...
). Para Etz, Miller e Stange (2021ETZ, Rebecca; MILLER, William L; STANGE, Kurt C. Simple rules that guide generalist and specialist care. Family Medicine, v. 53, n. 8, p. 697-700, 2021. 10.22454/FamMed.2021.463594. Disponível em: https://journals.stfm.org/media/4265/stange-2020-0588.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://journals.stfm.org/media/4265/sta...
), propriedades e resultados favoráveis emergem da complexidade do cuidado na APS, gerados pela interação, ao longo do tempo, entre três regras simples seguidas pelos generalistas na atenção às pessoas como um todo, que é mais do que a soma dos cuidados orientados para as doenças (associadas a outras regras seguidas pelos especialistas de outros ambientes do sistema de saúde, coordenados pelos primeiros): reconheça uma ampla gama de problemas e oportunidades; priorize atenção e ação com o intuito de promover saúde, cura e vínculo; e personalize o atendimento com base nas particularidades do indivíduo e sua família no contexto local. Para os autores, isso fornece valor agregado aos pacientes e às populações com resultados melhores.

Portanto, a ampla interface das ações realizadas na APS com profissões e especialidades não deve obscurecer o reconhecimento do núcleo de competência (dos profissionais) das eSF, cujas ações são responsáveis pela maior parte da resolubilidade da sua atuação. Não é outro o motivo pelo qual em vários países se exige especialização em MFC para atuação na APS, indicando reconhecimento da necessidade de formação específica (e, assim, de um núcleo de competências específico) para ali atuar.

A concepção aqui assumida de APS, nesse ponto, converge com a visão de Starfield (2002STARFIELD, Barbara. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. 1. ed. Brasília: Unesco; Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001308/130805por.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00...
) que valoriza o efeito complexo da abordagem clínico-sanitária longitudinal generalista centrada nos usuários territorializados, viabilizado no Brasil pelas eSF. O ‘generalismo’ das eSF e sua atuação longitudinal no cuidado clínico em acesso direto facilitado são incomparáveis com a presença episódica e a atuação pós-filtragem dos ‘nasfianos’.

Com base nessa perspectiva, é fácil deduzir (e perceber na prática assistencial) que o ‘matriciamento’ dos ‘nasfianos’, como regra geral, provavelmente só conseguiria melhorar a resolubilidade das eSF quanto a ações situadas em partes do campo e do núcleo de competências das eSF com o qual tinham interface. Como consequência, o aumento de resolubilidade possível decorrente do ‘matriciamento’ via NASF era previsivelmente pequeno no conjunto geral das ações das eSF, e dependente da interface dos ‘nasfianos’ com os problemas mais complexos e mais encaminhados da APS para o cuidado especializado.

Nessa lógica, os serviços de saúde da APS são pensados, no seu aspecto de locus de cuidado clínico, como constituídos por equipes generalistas atuando longitudinalmente como curadores de uma coorte de usuários. Logo, não é coerente os ‘nasfianos’ se confundirem ou se identificarem com os profissionais da APS, nem substituí-los em ações clínicas ou de saúde pública tipicamente generalistas. Assim, as eSF deveriam ter a responsabilidade e certo monopólio na ESF sobre as ações dos seus núcleos de competência. Seria indefensável e indesejável um pediatra ‘nasfiano’ fazer puericultura de crianças saudáveis, um ginecologista fazer pré-natal de risco habitual, um ‘nasfiano’ coordenar um grupo apenas porque os profissionais das eSF não o fazem, supondo a rede de APS ser organizada via ESF e as pactuações institucionais e realidades locais corroborarem isso.

Além disso, a identificação total dos ‘nasfianos’ com a APS gera problemas de certa incompatibilidade de agenda (Lancman e Barros, 2011LANCMAN, Selma; BARROS, Juliana O. Estratégia de Saúde da Família (ESF), Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e terapia ocupacional: problematizando as interfaces. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 263-269, 2011. 10.11606/issn.2238-6149.v22i3p263-269. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rto/article/view/46444/50200 . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.revistas.usp.br/rto/article/...
; Belotti, Iglesias e Avellar, 2019 BELOTTI, Meyrielle; IGLESIAS, Alexandra; AVELLAR, Luziane Z . Análise documental sobre as normativas do trabalho no núcleo ampliado de saúde da família. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 39, e185025, 2019. 10.1590/1982-3703003185025.Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/vQ5cgsBLngpvhhWBqvyrNLh/?format=pdf⟨=PT . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). A maior parte do tempo de trabalho das eSF é feito em ritmo próprio, em que reuniões são rápidas, ágeis e sob comum pressão assistencial; a maior parte das ações é clínica e realizada individualmente com pacientes ou suas famílias, e atividades grupais constumam ser conduzidas com um ou dois profissionais, geralmente (na experiência do autor). E talvez deva ser assim enquanto houver o grande subdimensionamento atual da APS.

Por outro lado, uma crítica quanto à educação permanente das eSF, derivada dessa argumentação, é que nunca foi promovida uma indução financeira federal para construção de equipes ou redes de educação permanente voltadas para as eSF em seus núcleos de competência, compostas por profissionais com expertise nesses núcleos, com objetivo de melhorar a resolubilidade e a amplitude das suas ações.

A inserção fora do fluxo assistencial

Há nas normativas federais dos NASF uma opção implícita na potência de uma equipe matriciadora composta por profissionais inseridos relativamente fora do fluxo do cuidado dos usuários e da pressão assistencial. Elas orientam os ‘nasfianos’ a não atuarem como atenção secundária - ou que o façam “apenas em situações extremamente necessárias” (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: MS, 2009. (Cadernos de Atenção Básica, n. 27)., p. 8). Ou seja, os ‘nasfianos’ foram posicionados como apendiculares ou paralelos ao fluxo do cuidado clínico.

Melo et al. (2018 MELO, Eduardo A. et al. Dez anos dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF): problematizando alguns desafios. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 328-340, 2018. Núm. esp. 1. 10.1590/0103-11042018S122. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/SskhD8q88hvTkv3wgvvG5Tc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, p. 332) chamam essa inserção sui generis de um “lugar intersticial: entre a equipe e a gestão, entre a gestão da área programática/distrito de saúde e a gestão da unidade básica, entre a equipe e o território, entre a equipe e o usuário”. Curiosamente, os autores não consideraram os NASF como intermediários entre a APS e a atenção secundária, uma inserção normatizada oficialmente (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Núcleo de apoio à saúde da família. Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. v. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. (Caderno de Atenção Básica, n. 39). ) e reconhecida empiricamente (Vendruscolo et al., 2019VENDRUSCOLO, Carine et al. Family health support center: an intersection between primary and secondary health care. Texto & Contexto: Enfermagem, Florianópolis, v. 28, e20170560, 2019. 10.1590/1980-265x-tce-2017-0560. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tce/a/hRmwHb8H73bBh9N6ybTr7qs/?lang=en . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Além disso, não parece sustentável dizer que os NASF estavam entre a equipe e o território ou entre a equipe e o usuário, pois era (deveria ser) a eSF quem geralmente viabilizava e demandava o contato dos ‘nasfianos’ com o território e com os usuários, conforme as normativas federais. Melo et al. (2018) MELO, Eduardo A. et al. Dez anos dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF): problematizando alguns desafios. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 328-340, 2018. Núm. esp. 1. 10.1590/0103-11042018S122. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/SskhD8q88hvTkv3wgvvG5Tc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/SskhD8q88...
, embora avaliem positivamente esse lugar ‘intersticial’, convergiram com a intepretação de que os NASF estavam inseridos relativamente fora do fluxo assistencial.

Tal inserção parece também não ter levado em consideração o efeito do subdimensionamento da APS e da atenção especializada no SUS sobre os profissionais e gestores, frente ao ‘aparecimento’ dos ‘nasfianos’. Isto gera para as eSF sobrecarga assistencial comumente grande (Tesser, Norman e Vidal, 2018TESSER, Charles D.; NORMAN, Armando H.; VIDAL, Tiago B. Acesso ao cuidado na Atenção Primária à Saúde brasileira: situação, problemas e estratégias de superação. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 361-378, 2018. Número especial 1. 10.1590/0103-11042018S125. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/cLcqmxhpPLWJjJMWrq9fL4K/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Devido à insuficiência da atenção secundária, há geralmente grandes filas para cuidados especializados de vários tipos, médicos e não médicos (Tesser e Poli Neto, 2017TESSER, Charles D.; POLI-NETO, Paulo. Atenção especializada ambulatorial no Sistema Único de Saúde: para superar um vazio. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 941-951, 2017. 10.1590/1413-81232017223.18842016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/8cJkgnzmkvGCFPVXQwxPdgf/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Era previsível que a indução federal financeira da criação dos NASF fosse considerada por profissionais das eSF e gestores municipais como uma atenuação desse subdimensionamento, o que é compreensível dos pontos de vista administrativo e ético.

Frente à existência de um grupo multiprofissional matriciando as eSF para quase tudo, exceto a demanda clínica individual de acesso direto, a tendência previsível das eSF (sobrecarregadas) era demandar dos ‘nasfianos’ apoio tanto para atividades nucleares dos generalistas como para atividades de cuidado especializado (atenção secundária). Isso parece ter fomentado ruídos, problemas e desencontros nas relações dos ‘nasfianos’ com as eSF e gestores municipais.

Os profissionais dos NASF foram comumente pressionados para se inserirem no fluxo assistencial da APS (mais nas atividades coletivas com usuários, reuniões de eSF e ações territoriais) e do cuidado especializado, provavelmente mais nesse último, à revelia das normativas federais. Já que esses dois tipos de ações cabem no matriciamento, conforme a literatura acadêmica (Campos, 1999CAMPOS, Gastão W. S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 393-403, 1999. 10.1590/S1413-81231999000200013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVLbQRcZCzgFGyyD/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVL...
; Campos e Domitti, 2007CAMPOS, Gastão W. S.; DOMITTI, Ana C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-408, 2007. 10.1590/S0102-311X2007000200016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/VkBG59Yh4g3t6n8ydjMRCQj/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/csp/a/VkBG59Yh4g...
; Cunha e Campos, 2011CUNHA, Gustavo T.; CAMPOS, Gastão W. S. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011. 10.1590/S0104-12902011000400013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/JFWjx7YnMz7mcDjFNDpxRcc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/sausoc/a/JFWjx7Y...
; Campos et al., 2014CAMPOS, Gastão W. S. et al. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v.18, p. 983-995, 2014. Supl. 1. 10.1590/1807-57622013.0324. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/DTWSYxgyjHpg9tJfGD5yVkk/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/icse/a/DTWSYxgyj...
; Oliveira e Campos, 2015OLIVEIRA, Mônica M.; CAMPOS, Gastão W. S. Apoios matricial e institucional: analisando suas construções. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 229-38, 2015. 10.1590/1413- 81232014201.21152013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/XBVyRj8fpzcc3q6GtXDGCpQ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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), os ‘nasfianos’ dificilmente conseguiam bem desempenhar toda a sua tarefa. Se considerados pertencentes à APS, por um lado, e se valorizados na sua clínica especializada, por outro lado, era previsível que tendessem a estar em posição difícil, também por não estarem oficalmente imersos no fluxo de cuidado, como as eSF e a atenção secundária.

O eventual pouco exercício do cuidado especializado, alimentado pelas diretrizes federais, pode ter dificultado a construção da legitimidade dos ‘nasfianos’ frente às eSF e gestores. É crucial destacar que essa legitimidade é pré-requisito para a educação permanente e o trabalho colaborativo pretendidos (Tesser, 2017TESSER, Charles D. Núcleos de apoio à saúde da família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 21, n. 62, p. 565-578, 2017. 10.1590/1807-57622015.0939. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/zBhWdfDtYq67F3874K6KY8F/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Esse aspecto merece mais atenção.

Para D’Amour et al. (2008)D’AMOUR, Danielle et al. A model and typology of collaboration between professionals in healthcare organizations. BMC Health Services Research, v. 8, n. 188, 2008. 10.1186/1472-6963-8-188. Disponível em: https://bmchealthservres.biomedcentral.com/track/pdf/10.1186/1472-6963-8-188.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
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, a ação colaborativa entre profissionais de saúde pode ser analisada em quatro dimensões: existência de objetivos comuns e sua apropriação pelos profissionais, reconhecimento de possíveis divergências e expectativas em relação à colaboração; conscientização dos profissionais sobre suas interdependências e a importância de gerenciá-las, traduzida em pertencimento, reconhecimento dos valores e disciplina de cada um e confiança mútua; alinhamento do atendimento clínico, esclarecendo expectativas e responsabilidades; e governança: funções de liderança apoiadoras da colaboração e implementação de práticas interprofissionais e interorganizacionais. Essas dimensões e sua interação mútua englobariam os processos inerentes à colaboração interprofissional.

Com exceção em parte da governança (que tem função de melhorar as condições contextuais dos processos de trabalho), as três primeiras dimensões constituem e caracterizam a colaboração propriamente dita. Elas implicam fácil e fluida comunicação, conhecimento, legitimação e confiança mútuas entre os profissionais, com convergência de expectativas e mínimo consenso quanto a papéis e responsabilidades, para uma atuação clínica articulada, azeitada e convergente. Coerentemente, isso depende das possibilidades e pactuações de comunicação fácil, conhecimento recíproco e trabalho conjunto articulado, geradores de conhecimento e confiança mútuos, o que é muito distinto nos vários ambientes institucionais. Não há por que o matriciamento dos NASF fugir a essa lógica.

O sucesso da colaboração pretendida depende crucialmente da presença e confluência harmônica desses elementos, que pressupõem e, ao mesmo tempo, constroem legitimidade mútua entre os profissionais no exercício das ações assistenciais e de apoio.

A legitimidade é facilitadora ou viabilizadora da confiança, do conhecimento mútuo, das expectativas comuns e da produção de consenso sobre papéis e responsabilidades. Ela não é obtida por normativas administrativas, sobretudo no caso de inovações institucionais originais e inserção de novas equipes ou profissionais com funções inéditas em serviços já estabelecidos. Precisa ser construída. Uma reflexão sobre o exercício de cuidados colaborativos em serviços da APS, e entre esta e a atenção secundária, facilita o entendimento das dificuldades dessa construção no caso dos NASF.

Os profissionais das eSF e da atenção secundária têm seus lugares já relativamente reconhecidos e legitimados dentro do fluxo de cuidado clínico no SUS. O acesso é direto na APS e referenciado nos serviços especializados. Os profissionais da APS trabalham no mesmo serviço, já se conhecem e é relativamente mais fácil haver cuidado colaborativo entre eles, conforme as dimensões da colaboração mencionadas. Se um profissional é um generalista e independentemente de seu colega ser generalista ou um especialista atuante na APS (como um dentista no Brasil ou uma parteira na Inglaterra), um pode acionar o outro solicitando alguma colaboração a respeito de um usuário, sem o segundo conhecer ou estar no momento atendendo a pessoa, o que caracteriza um apoio fornecido em parte similar ao matricial, que pode ocorrer na ausência do paciente ou demandar um contato com ele, em atendimento conjunto ou não. Exemplos seriam o apoio presencial ou via digital de um médico ao enfermeiro ou ao técnico de sua eSF que está acolhendo um paciente e tem uma dúvida clínica; ou ao dentista de sua eSF sobre um usuário em atendimento.

No caso da relação dos profissionais da APS com os da atenção secundária, o usuário é comum a ambos e eles devem se comunicar e agir de modo sinérgico, articulado e azeitado, com conhecimento e confiança mútuos, de preferência com contato pessoal periódico, se necessário (D´Amour et al., 2008D’AMOUR, Danielle et al. A model and typology of collaboration between professionals in healthcare organizations. BMC Health Services Research, v. 8, n. 188, 2008. 10.1186/1472-6963-8-188. Disponível em: https://bmchealthservres.biomedcentral.com/track/pdf/10.1186/1472-6963-8-188.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). O desafio do cuidado colaborativo se os profissionais atuam em serviços diferentes e por vezes distantes envolve propiciar não só contato e comunicação ágil, mas também conhecimento, confiança e educação permanente mútuas. Para isso, todavia, alguma legitimidade e sua inserção no fluxo assistencial já estão estabelecidas; e um apoio matricial pode ocorrer de um especialista da atenção secundária a um profissional da eSF, embora haja maiores dificuldades estruturais, institucionais e culturais.

Com a criação dos NASF, os ‘nasfianos’ não tinham lugar prévio reconhecido e legitimado nos serviços de saúde. Tais núcleos foram criados ‘administrativamente’ dentro da APS, mas com acesso filtrado. Os ‘nasfianos’ não deviam atuar como membros das eSF (não podiam atender qualquer usuário em acesso direto com qualquer problema) e também não deviam atuar como atenção secundária. Pressupôs-se nas diretrizes federais que os generalistas reconheceriam a legitimidade dos ‘nasfianos’ para discutir casos e trabalhar colaborativamente, e que as eSF teriam tempo para receber o apoio dos ‘nasfianos’. O tempo dos ‘nasfianos’ era dedicado ao apoio a várias eSF. Talvez a opção por deixar os matriciadores fora do fluxo assistencial visasse protegê-los da grande pressão assistencial, na suposição de que ela inviabilizaria ou dificultaria muito o apoio.

Entretanto, a identidade profissional prévia dos ‘nasfianos’ e a sua atuação em casos filtrados tornavam os ‘nasfianos’ semelhantes aos profissionais da atenção secundária. Logo, era previsível que sua legitimidade fosse tendencialmente construída de modo semelhante à dos profissionais da atenção secundária. Era também razoável supor que os ‘nasfianos’, se seguissem as normativas federais (e se quisessem se proteger da pressão assistencial - autoproteção do estresse), dirigiriam sua atividade para momentos de discussão, reuniões de construção de projetos terapêuticos e atividades coletivas, para os quais as eSF têm não raramente pouco tempo, se tentam manter o acesso facilitado, devido à grande pressão assistencial. Isso seria coerente com as normativas, mas afastaria os ‘nasfianos’ do cuidado clínico especializado.

Por outro lado, o ‘nasfiano’ poderia exercer mais seu cuidado especializado, se valorizasse menos as normativas federais, legitimando-se como especialista frente às eSF e aos gestores, de modo semelhante à atenção secundária. O perigo disso seria criar uma atividade ambulatorial especializada que poderia se isolar das eSF, mesmo atuando dentro dos serviços de APS (similarmente à atenção secundária existente), com redução ou nulidade do apoio técnico-pedagógico e da educação permanente das eSF. Tais possibilidades parecem ter ocorrido (Tesser, 2017TESSER, Charles D. Núcleos de apoio à saúde da família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 21, n. 62, p. 565-578, 2017. 10.1590/1807-57622015.0939. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/zBhWdfDtYq67F3874K6KY8F/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/icse/a/zBhWdfDtY...
; Melo et al., 2018 MELO, Eduardo A. et al. Dez anos dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF): problematizando alguns desafios. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 328-340, 2018. Núm. esp. 1. 10.1590/0103-11042018S122. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/SskhD8q88hvTkv3wgvvG5Tc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/SskhD8q88...
).

Era relativamente previsível que se os ‘nasfianos’ não atuassem de modo ao menos parcialmente semelhante aos profissionais da atenção secundária, exercendo sua clínica nuclear na assistência, provavelmente angariariam pouca legitimidade para matriciar e assim aumentar a resolubilidade da APS. A opção de colocar os ‘nasfianos’ relativamente fora do fluxo do cuidado clínico tinha o potencial efeito adverso de que profissionais das eSF e gestores municipais não valorizassem os NASF, por considerarem que só fazem grupos e reuniões, sem exercerem rotineiramente cuidado especializado, para o qual dispunham de prévia legitimidade e reconhecimento pela formação profissional, além de isso ser necessário ou justificável pelo subdimencionamento da atenção secundária. A eliminação do matriciamento da normativa dos Nasf-AB na PNAB/2017 parece ter sido um indicativo dessa subvalorização pelos gestores, para além de opções e forças políticas opostas ao SUS universal e integral ali envolvidas (Morosini, Fonseca e Lima, 2018MOROSINI, Márcia V. G. C.; FONSECA, Angélica F.; LIMA, Luciana D. Política nacional de atenção básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, n. 116, p. 11-24, 2018. 10.1590/0103-1104201811601. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/7PPB5Bj8W46G3s95GFctzJx/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

Além disso, outro problema de inserir os ‘nasfianos’ fora do fluxo assistencial é que desse modo eles não conhecem a inteira situação da atenção secundária e dos encaminhamentos realizados na APS, ficando prejudicados na tarefa de educação permanente e apoio, porque acessam uma realidade selecionada e pequena dos usuários referenciados. Por outro lado, no caso do fluxo de referenciamento não existir previamente, os ‘nasfianos’ foram provavelmente e previsivelmente forçados a constituí-lo e atuar como referência especializada para as eSF. Vale relembrar que o exercício da clínica especializada pelos ‘nasfianos’ não contraria o apoio matricial academicamente (Campos e Domitti, 2007CAMPOS, Gastão W. S.; DOMITTI, Ana C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-408, 2007. 10.1590/S0102-311X2007000200016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/VkBG59Yh4g3t6n8ydjMRCQj/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/csp/a/VkBG59Yh4g...
; Cunha e Campos, 2011CUNHA, Gustavo T.; CAMPOS, Gastão W. S. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011. 10.1590/S0104-12902011000400013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/JFWjx7YnMz7mcDjFNDpxRcc/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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), embora seja relativamente contrário às diretrizes federais (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. 2008.Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/prt0154_24_01_2008.html . Acesso em: 17 mar. 2022.
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; 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Núcleo de apoio à saúde da família. Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. v. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. (Caderno de Atenção Básica, n. 39). ). Quando proposto, o matriciamento era praticado por profissionais inseridos geralmente na atenção secundária (Campos, 1999CAMPOS, Gastão W. S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 393-403, 1999. 10.1590/S1413-81231999000200013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/BLy9snvLVLbQRcZCzgFGyyD/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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), conforme testemunhado pelo autor em Campinas, São Paulo, e município próximo no início dos anos 2000.

Assim, ao desviar os ‘nasfianos’ do fluxo assistencial, privilegiar o apoio no sentido técnico-pedagógico e subvalorizar o efeito legitimador da sua atuação assistencial (bem como esta última em si mesma), as normativas federais parecem ter tido um efeito adverso sabotador da construção da legitimidade necessária para a educação permanente, objetivo centralmente envolvido na ampliação da resolubilidade da APS (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família - ESF e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PACS. 2011. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

Os ‘nasfianos’ talvez não fossem tão diferentes dos profissionais atuantes na atenção secundária quanto ao entendimento e prática do matriciamento. Como sugestão derivada dessa argumentação, uma possibilidade seria que os profissionais da atenção secundária poderiam ter mais colegas no seu serviço e todos dedicarem uma parte do seu tempo de trabalho ao matriciamento, de modo a vincular personalizadamente a atenção secundária com as eSF, sempre que possível. Eles conheceriam a situação da atenção secundária e desfrutariam da legitimidade de atuação ali. Seu matriciamento seria mais restrito, já que não se envolveriam na grande maioria das ações da APS, mas poderiam contribuir quando chamados em situações específicas relacionadas à sua especialidade. Isso poderia facilitar a legitimação e concretização da colaboração e da educação permamente mútuas via apoio matricial. Nessa lógica, se os ‘nasfianos’ fossem (ou no futuro forem) novos profissionais nos serviços, eles poderiam ser inseridos no fluxo assistencial entre a APS e a atenção secundária ou na própria atenção secundária. Compartilhariam dificuldades de agenda e pressão assistencial dali; matriciariam as eSF que lhes referenciam pacientes, melhorando um pouco sua resolubilidade; contribuiriam para a reforma e ampliação do cuidado especializado ambulatorial, para que seja coordenado personalizadamente pelas eSF (Tesser e Poli Neto, 2017TESSER, Charles D. Núcleos de apoio à saúde da família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 21, n. 62, p. 565-578, 2017. 10.1590/1807-57622015.0939. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/zBhWdfDtYq67F3874K6KY8F/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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); e teriam suas expertises colocadas a serviço dos usuários filtrados, usufruindo da legitimidade desse exercício clínico para realizar o apoio matricial, a ser estendido, quando possível, a todas as profissões e especialidades (médicas e outras) ambulatoriais.

Deviam ser os NASF pertencentes à APS?

O pertencimento dos NASF à APS merece uma breve consideração, pois parece ter tido uma dimensão simbólica relevante. Os ‘nasfianos’ não deviam ser acessíveis diretamente aos usuários, mas esse acesso é regra para os profissionais da APS, mesmo para os especialistas ali atuantes (dentistas na ESF), o que é um dos definidores conceituais da APS (Starfield, 2002STARFIELD, Barbara. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. 1. ed. Brasília: Unesco; Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001308/130805por.pdf . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Os ‘nasfianos’ deviam ser coordenados pelas eSF, mediante referenciamento discutido, e eram especialistas ou profissionais não generalistas. Isso os deixava semelhantes a equipes de atenção secundária atuando colaborativamente dentro dos serviços de saúde da APS. Tal aproximação e colaboração, especialmente nos problemas crônicos, têm sido buscadas em sistemas públicos universais baseados na APS (Oliveira e Campos, 2015OLIVEIRA, Mônica M.; CAMPOS, Gastão W. S. Apoios matricial e institucional: analisando suas construções. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 229-38, 2015. 10.1590/1413- 81232014201.21152013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/XBVyRj8fpzcc3q6GtXDGCpQ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

Essas características dos NASF questionam fortemente o seu pertencimento à APS, se é que não o refutam. Por outro lado, pelo menos três fatores interligados facilitam a compreensão desse estranho pertencimento ‘oficializado’.

O primeiro é a subvalorização do aspecto generalista das eSF no Brasil e na Saúde Coletiva. A APS mostrou-se um arranjo assistencial satisfatório para universalizar de forma sustentável, equânime e com bons resultados o cuidado biomédico clínico-sanitário em vários países. Quanto ao cuidado clínico, a abordagem generalista é potente e, em tese, poderia ser integrada com prevenção, promoção, atuação territorial e comunitária, de modo a concretizar o antigo conceito de “integração sanitária” (Campos, 1992CAMPOS, Gastão W. S. Reforma da reforma. São Paulo: Hucitec, 1992., p. 148-150; Capistrano Filho, 1999CAPISTRANO-FILHO, David. O programa de saúde da família em São Paulo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 13, n. 35, p. 89-100, 1999. 10.1590/S0103-40141999000100008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/y46dHVrHryJhPFJqjPVgjYy/?lang=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Todavia, essa ideia não foi defendida por parte importante da Saúde Coletiva durante a expansão das eSF, que se impuseram pela exitosa indução financeira federal e depois por seus melhores resultados (Tesser, Norman e Vidal, 2018TESSER, Charles D.; NORMAN, Armando H.; VIDAL, Tiago B. Acesso ao cuidado na Atenção Primária à Saúde brasileira: situação, problemas e estratégias de superação. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 361-378, 2018. Número especial 1. 10.1590/0103-11042018S125. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/cLcqmxhpPLWJjJMWrq9fL4K/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

O caráter generalista das equipes da APS tem sido relativamente subvalorizado na Saúde Coletiva, com certo déficit de convicção (pouco assumido, discutido e investigado) quanto à desejabilidade da função filtro por equipes generalistas (Campos, 2005CAMPOS, Gastão W.S. El filo de la navaja de la función filtro: reflexiones sobre la función clínica en el Sistema Único de Salud en Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 8, n. 4, p. 477-483, 2005. 10.1590/S1415-790X2005000400018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbepid/a/k6r6JQqsNxBTnfRyVTnDKKM/abstract/?lang=es . Acesso em: 17 mar. 2022.
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). Um indício disso é a persistência de serviços de APS baseados em quatro áreas assistenciais - clínica geral, pediatria, gineco-obstetrícia e saúde mental, com respectivos profissionais na APS em grandes cidades e capitais do Sudeste, inclusive em centros de saúde-escola, muitos anos após a expansão das eSF. Vale lembrar que esse déficit de convicção é coerente com a concepção de APS apenas como campo de atuação interprofissional e talvez seja uma ‘outra face dessa moeda’.

Por outro ângulo, o acesso direto a médicos especialistas via planos privados de saúde com subsídio estatal é usado massivamente por servidores públicos, do SUS e da Saúde Coletiva, sem propostas claras e específicas de acabar com esse privilégio, o que é outro indício indireto da subvalorização do ‘generalismo’ (Tesser e Serapioni, 2021TESSER, Charles D.; SERAPIONI, Mauro. Obstáculos à universalização do SUS: Gastos tributários, demandas sindicais e subsídio estatal de planos privados. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 26, n. 6, p. 2.323-2.333, 2021. 10.1590/1413-81232021266.22602019.Disponível em: Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/csc/2021.v26n6/2323-2333/pt . Acesso em: 17 mar. 2022.
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).

O segundo fator consiste na história da construção dos NASF. Dentro do MS, essa história foi influenciada por demandas de corporações profissionais que atuaram para ampliar o seu espaço de trabalho no SUS: obviamente, pertencer à APS era vantajoso (Almeida, 2016ALMEIDA, Erika R. A gênese dos núcleos de apoio à saúde da família. 2016. 198f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/21633 . Acesso em: 24 jun. 2021.
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).

O terceiro fator é a valorização da interprofissionalidade e da interdisciplinaridade associadas à busca da integralidade na Saúde Coletiva. Valores importantes do SUS e inatacáveis, como a busca da integralidade e a interprofissionalidade, podem ter atuado sinergicamente aos interesses corporativos e se associado ao déficit de aposta no ‘generalismo’. Tudo isso parece ter contribuído para a definição dos ‘nasfianos’ como pertencentes à APS, embora tal definição não pareça adequada nem sob a ótica da empiria (Vendruscolo et al., 2019VENDRUSCOLO, Carine et al. Family health support center: an intersection between primary and secondary health care. Texto & Contexto: Enfermagem, Florianópolis, v. 28, e20170560, 2019. 10.1590/1980-265x-tce-2017-0560. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tce/a/hRmwHb8H73bBh9N6ybTr7qs/?lang=en . Acesso em: 17 mar. 2022.
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) nem da teoria, além de ser desnecessária para concretizar o matriciamento.

Considerações finais

As duas teses apresentadas defendem que as normativas federais provavelmente produziram efeitos adversos não desprezíveis, ao orientarem a atuação dos NASF desconsiderando os núcleos de competência das eSF, como se a APS fosse apenas um campo de atuação interprofissional quase inteiramente compartilhável; e ao orientarem a inserção dos NASF fora do fluxo assistencial dos usuários.

Elas são críticas construtivas ao desenho institucional do ‘matriciamento’ dos NASF na APS brasileira e devem ser consideradas em necessários esforços para o aperfeiçoamento das orientações para sua atuação. Sugerimos a inserção clara dos ‘matriciadores’ no fluxo assistencial dos usuários, entre a APS e a atenção secundária ou dentro desta última. Além de facilitar a plena exploração e desenvolvimento do apoio matricial à APS, isso facilitaria a expansão e a reforma da atenção secundária, um maior relacionamento e trabalho colaborativo entre ambas, e o aperfeiçoamento e personalização da coordenação do cuidado no SUS pela APS.

Referências

  • Financiamento

    Bolsa de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de acordo com o processo n. 313822/2021-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2021
  • Aceito
    15 Dez 2021
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