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Capitalismo, guerra e violência: emergência de um agenciamento emancipatório e revolucionário

LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: N-1 Edições, 2019. 208 p.

Maurizio Lazzarato é um sociólogo italiano que tem se dedicado a pensar temas como capitalismo contemporâneo, trabalho imaterial e biopolítica. Em seu mais recente livro, Fascismo ou revolução?, afirma a necessidade de se ‘pensar no limite’1 1 Para pensar no limite, Lazzarato mobiliza Louis Althusser. A epígrafe da introdução é uma citação da obra do filósofo francês intitulada “A única tradição materialista”: “Hors de la pensée de la limite, il n’est nulle stratégie, donc nulle tactique, donc nulle action, donc nulle pensée ou initiative véritable, donc nulle écriture, nulle musique, nulle peinture, nulle sculpture, nul cinéma, etc., possible” (Althusser, 1993, p. 102). (os possíveis não realizados) para a superação do capitalismo e de sua máquina de guerra, que opera sob o signo da violência, marca indelével dos processos de acumulação.

A alternativa ‘fascismo ou revolução?’ que dá título à obra é assimétrica, pois já estamos inseridos em uma sequência de ‘rupturas políticas’ praticadas por forças fascistas, sexistas e racistas (FSR). Hoje, a ideia de revolução não passa de mera hipótese, estabelecida pela urgência de pautar o que o neoliberalismo conseguiu apagar da memória e da ação coletiva. O presente nos faz ver que neofascismo é, sobretudo, a outra face do neoliberalismo.

O livro está estruturado em três partes. Na primeira, “A máquina do capital e os novos fascismos”, o autor aborda uma multiplicidade de aspectos que atravessam o tema dos fascismos contemporâneos e da Máquina de Guerra do Capital (MGC). Na segunda, o grande tema será um esforço de definição acerca da máquina técnica e da máquina de guerra (MG). Na terceira parte, o autor apresenta algumas hipóteses. Busca um novo olhar sobre a derrota de 1960 e o desaparecimento da palavra revolução, mediante a mobilização de quatro autores: Fanon, Tronti, Carla Lonzi e Hans-Junger Krahl.

Na primeira parte, Lazzarato inclui uma discussão a respeito do caso brasileiro como marca da recente onda FSR, presente em vários países e que remete ao nascimento do neoliberalismo no Chile. Nesse sentido, a obra explicita a possibilidade latente de compatibilização entre ditadura e neoliberalismo.

O autor analisa como a MGC opera transformando o adversário político em vencido, disciplina os governados e, com as subjetividades devastadas, o neoliberalismo pode livremente se impor. É somente após promover a ‘tábula rasa subjetiva’ que se edifica o aparato neoliberal, cuja exemplificação operativa é a governança financeirizada (via crédito) dos governos petistas no Brasil, que transformou os pobres e assalariados em homens endividados e acabou servindo à MGC por meio da mobilização dos sentimentos de tristeza.

Considerando que o capital quer se tornar independente da classe trabalhadora, o neoliberalismo rompe com o pacto do emprego e da universalidade de direitos. No contexto norte-americano, i.e, Trump mobiliza o medo e a angústia do homem endividado, tornando-o disponível às aventuras neofascistas para proporcionar o gozo da volta do poder que as camadas brancas proprietárias perderam (Brown, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo. Editora Politéia, 2019.). O neofascismo seria, portanto, uma forma de se resgatar a democracia dos proprietários, fissurada pelas revoluções sociais que conquistaram direitos para todos.

É neste panorama que o autor realiza uma crítica às teorias do pós-68, enfatizando que estes movimentos teriam deixado de problematizar a guerra e a revolução. Quando os ‘vencidos’ abandonam a ideia de guerra e quando reduzem a revolução a termos tecnológicos, perdem de vista os meios pelos quais certas conquistas foram possíveis e permitiram a captura de direitos já alcançados.

Em contrapartida, a matriz do capitalismo contemporâneo tem sua origem na mundialização da guerra e na mobilização das forças sociais para a produção da destruição. Ao contrário da posição tomada no pós-68, o argumento do livro é que a relação inseparável entre capital e guerra suprime qualquer suposição de paz.

A ampliação da produção pela circulação encontra, entretanto, resistências nas lutas coletivas e individuais, de modo que a noção de governamentalidade implica uma relação com o imprevisível. No entanto, no capitalismo essa relação com a aleatoriedade do evento passa necessariamente pelas técnicas de guerra (contra a população).

É na derrota da revolução onde é essencial buscar as razões das transformações da guerra que levaram às duas guerras totais. Uma das mudanças fundamentais aconteceu depois desses conflitos: o Estado e a guerra se tornando funções da MGC. O Estado perde o monopólio da violência e a ideia de ‘conquista’ deixa de ser prerrogativa sua para se tornar do capital.

Outra crítica diz respeito à transformação da guerra civil mundial em biopolítica, criando uma guerra sem ‘inimigo’. Com a dissolução da classe no conceito biopolítico de população, o poder enxerga por todo lado como perigo o terrorista, e não mais a revolução. Não há mais inimigos a vencer, apenas vencidos a governar e terroristas a anular.

Desse modo, o poder como “produção” (Foucault, 1976FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. Paris: Gallimard, 1976, p. 167. [Ed. bras.: História da Sexualidade 1: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015., p. 167) não corresponde à experiência do neoliberalismo. Desde o fim do último século, a guerra, os fascismos, o racismo e o sexismo manifestaram a natureza ‘negativa’ e destrutiva do poder. Guerra e governamentalidade são técnicas que funcionam concomitantemente, sem passar pela paz. Não passamos historicamente de um poder soberano ao biopoder, pois, da perspectiva do ‘mercado mundial’, o poder de morte nunca deixou de se exercer.

Na segunda parte do livro, o grande tema será um esforço de definição acerca da máquina técnica e da máquina de guerra (MG). Para que tal seja possível, é crucial abandonar as utopias tecnocibers, que enxergam a ruptura a partir das máquinas e não da política. Imperioso é entender a máquina técnica como submetida à estratégia colocada em prática pela MGC.

Com base em Lewis Mumford, o autor de Fascismo ou revolução? aponta que a própria sociedade é uma megamáquina que agencia humanos e máquinas técnicas. Contudo, é preciso ir além e perceber, como fizeram Deleuze e Guattari, que a máquina social é uma máquina de guerra.

Lazzarato defende a necessidade de abandonar a definição de máquina social porque esta produz de maneira impessoal as normas e os habitus; e adotar a máquina de guerra, que implica dominante/dominado, relações de força para a produção normativa, do fazer morrer e da violência. É a MG a produtora das técnicas e das subjetividades humanas a ela adequadas.

As grandes empresas de tecnologia, criadoras das condições para a instauração da máquina supremacista trumpista, não são detentoras de tanto poder quando confrontadas pelos afetos organizados pela MG midiática do ressentimento nos Estados Unidos. O Vale do Silício dobrou-se aos novos arcaísmos da extrema-direita, o que desencadeou batalhas políticas no interior das elites, que optaram pelo jogo do neofascismo.

Nesse sentido, para o enfrentamento político é essencial desenvolver uma máquina de guerra revolucionária, o que exige enfrentar a maior vitória do neoliberalismo: a inscrição no cérebro coletivo de uma amnésia quanto às sucessivas revoluções anticapitalistas do século XX.

Quem apagou a revolução da memória foi a máquina social e não a técnica, pois quem impõe a relação credor/devedor e a sujeição do endividado é a MG, por meio da técnica, assim como submete o humano à ‘civilização do rendimento’.

A relação humano-máquina no seio da MGC necessita de órgãos sociais de decisão, chamados de tecnocracia e burocracia. Em tempos de crise, a gestão não se dá por dispositivo automático, mas pela ação desses órgãos decisórios. Tais crises, não apenas econômicas, criam a chance de guerra civil, cujas intervenções estão abertas à tecnocracia e à burocracia, mas também aos fascistas.

A MGC nunca tem funcionamento impessoal, são relações de poder. Elas instauram e reinstauram os grandes fluxos de moedas, tecnologias, capitais, bem como as hierarquias de raça, sexo e classe (RSC). As subjetividades até escolhem, mas estão ‘destinadas’ a restabelecerem o funcionamento desta máquina.

A MG revolucionária, por sua vez, tem como desafio suspender a distribuição do possível e do impossível na ordem da MGC. Ou seja, para que se realize a conversão da subjetividade e a superação do capitalismo, essa máquina deve promover a ‘guerra’ contra o capital.

Em “Devir revolucionário e revolução”, terceira e última parte, o autor apresenta algumas hipóteses, partindo da crítica da separação realizada no pós-68 entre revolução social e revolução política. O ‘devir revolucionário’ (crítica das sujeições, produção diferencial de subjetividade etc.) que determinadas transformações subjetivas instauram não pode ser dissociado da ‘revolução’, sob o alto pedágio não apenas de se converter em um componente do capital, mas precisamente de servir à (auto)destruição, manifestada atualmente na forma do neofascismo.

Seguindo neste raciocínio, mesmo com o fracasso da Revolução de 1917, a guerra civil mundial prosseguiu, mas tal guerra pode ser vista de duas maneiras: pelo Estado (biopolítica) ou pela revolução, sendo a última a única capaz de enxergar a subordinação do Estado e suas instituições ao capital. Não há autonomia e a MGC é um soberano sui generis.

As estratégias revolucionárias da ‘socialização’ e ‘comunicação’ são inconciliáveis, porque a emergência dos movimentos das mulheres e colonizados deslocaram os processos revolucionários, pois os enfrentamentos destes são outros, não apenas tomada e gestão de poder.

Lazzarato introduz, partindo de Lonzi e Fanon, uma crítica à dialética, sob o argumento de que ela só funcionaria no contexto de conflitos que se dão no interior do “modelo majoritário” (p. 190) (branco, masculino, adulto). O processo revolucionário é ruptura não dialética da história que deve ser aberta para a invenção e a descoberta do inusitado. No entanto, o sujeito revolucionário não pode ser antecipado por imaginação e projeto.

Nesse sentido, a classe operária não incorpora mais a universalidade do sujeito revolucionário. A partir do pós-guerra, nem todos os explorados e dominados vão se identificar com o operariado, os pontos de resistência são muitos e eles afirmam ‘verdades’ heterogêneas e frequentemente incompatíveis.

O que Lazzarato reivindica, em suma, é uma reconciliação com a ideia de revolução. A ruptura é urgente e algumas teorias, como os estudos pós-coloniais, suprimem a atualização necessária desta forma precisa de insurreição. O ponto de vista pós-colonial seria o de dominados enclausurados na dominação, que deixaram de observar o que os colonizados do século XX, partindo de sua ‘escravidão’, afirmavam reiteradamente: a revolução.

Enfim, é necessário integrar os possíveis não realizados da revolução dos anos 1960 para então pensá-los em sua realização prática. Tais possíveis, segundo o autor, bem como a série de sublevações efervescentes desde a derrocada financeira de 2008, têm eclodido em um vazio político sem a dimensão da revolução e correm o risco de serem capturados pelos novos fascismos.

Referências

  • ALTHUSSER, Louis. L’unique tradition matérialiste. Lignes, n. 8, p. 72-119, 1993. Paris: Editions Hazan. Directeurs: Michel Surya.
  • BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo. Editora Politéia, 2019.
  • FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. Paris: Gallimard, 1976, p. 167. [Ed. bras.: História da Sexualidade 1: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
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    Para pensar no limite, Lazzarato mobiliza Louis Althusser. A epígrafe da introdução é uma citação da obra do filósofo francês intitulada “A única tradição materialista”: “Hors de la pensée de la limite, il n’est nulle stratégie, donc nulle tactique, donc nulle action, donc nulle pensée ou initiative véritable, donc nulle écriture, nulle musique, nulle peinture, nulle sculpture, nul cinéma, etc., possible” (Althusser, 1993ALTHUSSER, Louis. L’unique tradition matérialiste. Lignes, n. 8, p. 72-119, 1993. Paris: Editions Hazan. Directeurs: Michel Surya. , p. 102).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2021
  • Aceito
    09 Jul 2021
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