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Tensões e contradições da proteção social na fronteira da assistência com a saúde

Tensions and contradictions of the social protection at the frontier between assistance and health

Tensiones y contradiciones de la protección social en la frontera entre la asistencia y la salud

Resumo

Neste artigo propomos uma reflexão acerca das transformações operadas na proteção social brasileira, em que pesem avanços e desafios da interlocução do Programa Bolsa Família com a saúde. Para tal, explora-se a dimensão simbólica dos discursos de beneficiários e gestores do Programa Bolsa Família, além de trabalhadores da atenção primária. O artigo tem como base um estudo de caso de abordagem qualitativa desenvolvido em um município da região sudoeste da Bahia, em 2015, por meio de 26 entrevistas e três grupos focais (29 participantes). As falas materializam avanços do Programa Bolsa Família no enfrentamento da pobreza, sobretudo em situações de penúria material, além de efeitos no reconhecimento social e na dignidade de mulheres beneficiárias. Constataram-se limites em aprimorar a dimensão estruturante do programa via sua interlocução com o setor saúde. Estigmas e incompreensões ligados ao Programa Bolsa Família permeiam as relações entre beneficiários e trabalhadores da atenção primária à saúde. Tais questões limitam a assunção de vulnerabilidades vividas cotidianamente pelas famílias do Programa Bolsa Família como determinantes do processo de trabalho na atenção primária à saúde, ainda restrito ao acompanhamento de condicionalidades da saúde.

pobreza; Estratégia Saúde da Família; assistência social; estigma social

Abstract

In this article we propose a reflection regarding the transformations that occurred in Brazilian social protection, in spite of the advances and challenges of the dialogue between health and the Family Support Grant Program. In order to do so, we explored the symbolic dimension of the discourses of the beneficiaries and managers of the Family Support Grant Program, as well as of the primary health care workers. The article is based on a case study with a qualitative approach conducted in a municipality in the Southwestern region of the state of Bahia, Brazil, in 2015, through 26 interviews and three focus groups (29 participants). The statements described the advances of the Family Support Grant Program in fighting poverty, especially in situations of material poverty, as well as the effects on social recognition and dignity of the female beneficiaries. We verified limits to improve the structuring dimension of the program via its dialogue with the health sector. Stigmas and incomprehension connected to the Family Support Grant Program permeate the relationships between beneficiaries and primary health care workers. These issues hinder the acceptance of the vulnerabilities experienced on a daily basis by the families of the Family Support Grant Program as determinants of the work process in primary health care, which is still restricted to the follow-up of health conditionalities.

poverty; Health of the Family Strategy; social assistance; social stigma

Resumen

En este artículo proponemos una reflexión sobre las transformaciones operadas en la protección social brasileña, a pesar de los progresos y retos de la interlocución del Programa de Subvención a la Familia con la salud. Para eso, se explora la dimensión simbólica de los discursos de los beneficiarios y gestores del Programa de Subvención a la Familia, y la de los trabajadores de la atención primaria. El artículo está basado en un estudio de caso de abordaje cualitativo desarrollado en un municipio de la región Suroeste del estado de Bahía, Brasil, en 2015, por medio de 26 entrevistas y tres grupos focales (29 participantes). Las declaraciones materializan los progresos del Programa de Subvención a la Familia en la lucha contra la pobreza, sobretodo en situaciones de penuria material, más allá de los efectos en el reconocimiento social y en la dignidad de las mujeres beneficiarias. Se constataron límites para mejorar la dimensión estructurante del programa por medio de su interlocución con el sector de salud. Estigmas e incomprensiones relacionadas al Programa de Subvención a la Familia permean las relaciones entre beneficiarios y trabajadores de la atención primaria de salud. Esas cuestiones limitan la asunción de las vulnerabilidades vividas cotidianamente por las familias del Programa de Subvención a la Familia como determinantes del proceso de trabajo en la atención primaria de salud, aún restringido al seguimiento de condicionalidades de la salud.

pobreza; Estrategia Salud de la Familia; asistencia social; estigma social

Introdução

A noção de direito social edificada pelos Estados de Bem-Estar alargou o enunciado da seguridade social em todo o mundo. Ainda assim, a polissemia do conceito e a diversidade de experiências produziram, mesmo nos países centrais e de alta renda, complexas trajetórias de Estados de Bem-Estar que resultaram do entrelaçamento das ações estatais, mercado e sociedade para provisão universal das políticas sociais guiadas por diferentes concepções de justiça e ideais de igualdade (Fiori, 1997FIORI, José L. Estado de bem-estar social: padrões e crise. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p.129-147, 1997.).

Nos países latino-americanos e na periferia do capitalismo global, o Estado de Bem-Estar é considerado controverso pela seletividade, fragmentação e descontinuidade das políticas sociais, caracterizando-se pelo caráter residual, em contraposição à dimensão universal (Draibe, 1989DRAIBE, Sônia M. Há tendências e tendências: com que estado de bem estar social haveremos de conviver neste fim de século? São Paulo: Unicamp, 1989.). Em contraposição, no Brasil, o padrão universalista e redistributivo da proteção social e a garantia de direitos universais de cidadania intrinsecamente relacionados à noção de justiça social foram pavimentados a partir da Constituição de 1988, no bojo da redemocratização do país com intensa mobilização e lutas pela universalização de direitos sociais (Senna e Santos, 2017SENNA, Mônica C. M.; SANTOS, Marta A. Atenção primária à saúde na agenda pública brasileira: dilemas entre focalização e universalismo. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 21, n. 1, p. 403-424, 2017.; Menicucci e Gomes, 2018MENICUCCI, Telma; GOMES, Sandra. Política sociais: conceitos, trajetórias e a experiência brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018.).

Mesmo assim, um crescente processo de ameaças de desmantelamento desse legado configura um desafio permanente, com rebatimentos no reconhecimento público do direito à proteção social e ao seu usufruto. As mudanças institucionais e arenas de disputa que seguiram o processo de implementação dos direitos proclamados por meio de políticas públicas acabaram por afastá-los do ideário do Estado de Bem-Estar, assim como das noções de direito e cidadania que figuram no texto constitucional (Menicucci e Gomes, 2018MENICUCCI, Telma; GOMES, Sandra. Política sociais: conceitos, trajetórias e a experiência brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018.). Nesse aspecto, a matriz conservadora, punitiva e desigual impregnada na sociedade brasileira, grosso modo, contribui para a inconformidade daqueles que querem manter privilégios e, por conseguinte, boicotam as políticas de inclusão social da parcela mais pobre da população (Gallego, 2016GALLEGO, Esther S. Brasil: la caída del PT y el ascenso conservador. Nueva Sociedad, Buenos Aires, n. 266, p. 147-155, 2016.).

Não obstante a desigualdade social que marca historicamente o Brasil, a política social, de modo geral, tem se afinado cada vez mais com as tendências reformistas – as quais distribuem recursos, mas não conseguem incidir efetiva e permanentemente sobre a desigualdade persistente, operando mais como políticas compensatórias, focalizadas e de legitimação de projetos dos governos – que, além de tensionar o padrão universalista e redistributivo da proteção social, torna-se subordinada à política econômica (Behring e Boschetti, 2011BEHRING, Elaine R.; BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2011.). Cada vez mais identificada aos marcos de um projeto neoliberal, a política social passa a ser enunciada como política de combate à pobreza, o que implica o seu deslocamento da noção universalizada de ‘direito’ à individualização para o tratamento da questão social e “à supressão da ideia e da realidade da cidadania social” (Ugá, 2004UGÁ, Vivian D. A categoria ‘pobreza’ nas formulações de política social do Banco Mundial. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 23, p. 55-62, 2004., p. 55). Nesse sentido, adquirem magnitude e cada vez mais permeabilidade propostas de caráter recessivo, seletivo e focalizado da proteção que solapam a noção de direito social e cidadania (Fleury, 2018FLEURY, Sônia. Revisitar a teoria e a utopia da reforma sanitária. In: FLEURY, Sônia (org.). Teoria da reforma sanitária: diálogos críticos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2018. p. 31-48.).

A proteção social, anteriormente determinada pela lógica welfare – modelo amplo de provisão e justiça social –, passa a ser gradativamente substituída pela lógica do workfare – modelo de regulação estatal, assentado no direito social atrelado ao trabalho, com diminuição relativa da responsabilidade do Estado ante as desigualdades sociais. O princípio de ativação – que visa garantir aos mais pobres o trabalho e, para tanto, acena com a precarização do trabalho e abre as portas definitivamente para o emprego desprotegido e a terceirização, subordinando o Estado às pressões do capital financeiro – torna-se preponderante, o que significa que a política social adquiriu a tarefa de promover a inclusão dos indivíduos no mercado de trabalho, ainda que dissimulando críticas à sua precariedade, instabilidade e desproteção (Moser, 2011MOSER, Liliane. A nova geração de políticas sociais no contexto europeu: workfare e medidas de ativação. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 68-77, 2011.). De anteparo às mazelas sociais, a política social adquire status de investimento social ‘economicamente orientado’ (Kerstenetzky, 2012KERSTENETZKY, Célia L. O Estado de Bem-Estar Social na idade da razão: a reinvenção do Estado de Bem-Estar Social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.), produtor de capital humano e funcional para a inclusão dos indivíduos no mercado de ‘trabalho’ e, sobretudo, de consumo (Moser, 2011MOSER, Liliane. A nova geração de políticas sociais no contexto europeu: workfare e medidas de ativação. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 68-77, 2011.).

A despeito de esse processo formalizar desigualdades em diferentes perspectivas, tais elementos foram capitaneados pelas políticas de combate à pobreza a partir dos anos 2000, traduzindo as mudanças operadas na proteção social dos que ‘vivem por um fio’, os trabalhadores vulneráveis e os pobres da assistência (Ivo, 2008IVO, Anete B. L. Viver por um fio: pobreza e política social. São Paulo: Annablume; Salvador: CRH/UFBA, 2008.).

Com o argumento econômico da crise fiscal do Estado, deflagrou-se uma flexibilização da proteção social, que exige o desenvolvimento de políticas focalizadas sob o signo da ‘eficiência’. Operacionalmente, isso foi traduzido por meio da criação de programas que demandam a estratificação dos pobres com base em testes de meios para eleição de beneficiários (linhas de pobreza), além de condicionalidades (contrapartidas ou obrigatoriedades) opostas à concepção clássica do direito de cidadania (Vaitsman, Andrade e Farias, 2009).

O debate atual sobre os opostos que marcam a política de combate à pobreza – ‘universalismo versus focalização’ (Vaitsman, Andrade e Farias, 2009), ‘direito incondicional versus condicionalidade do direito’ (Monnerat et al., 2007MONNERAT, Giselle L. et al. Do direito incondicional à condicionalidade do direito: as contrapartidas do Programa Bolsa Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 6, p. 1.453-1.462, 2007.) – influencia novas concepções de proteção social. Tal dualidade se expressa também nas formas de integração dessa política a outras políticas de seguridade social, como ocorre com os campos da assistência social e saúde. Nesse caminho, o desenho institucional das políticas de enfrentamento à pobreza reforça o discurso sobre a necessidade de acesso e utilização de políticas universais como pilares estruturantes. Ou ainda as políticas sociais são assumidas como estratégia potencializadora e incremental de articulação intersetorial e, por conseguinte, como necessárias à inserção produtiva das famílias, à autonomização e independência em relação ao benefício (Vaitsman, Andrade e Farias, 2009; Monnerat et al., 2007MONNERAT, Giselle L. et al. Do direito incondicional à condicionalidade do direito: as contrapartidas do Programa Bolsa Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 6, p. 1.453-1.462, 2007.).

Essa inclinação, supostamente moderna, das políticas sociais emerge matizada por sentidos e discursos signatários das primeiras intervenções estatais de combate à pobreza do século XVII. Reaviva argumentos morais de primórdios do desenvolvimento do sistema capitalista para o enfrentamento do pauperismo entre os trabalhadores ‘livres’ da ordem feudal, o que demandava eleger o ‘pobre merecedor’ da assistência. Pode-se citar a Speenhamland Law (Polanyi, 2000POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.) inglesa de 1601, ao reconhecer o direito dos pobres a uma renda mínima. Esta e outras medidas foram embrionárias de estigmas que relacionam a pobreza ao paternalismo e à tutela estatal (Monnerat et al., 2007MONNERAT, Giselle L. et al. Do direito incondicional à condicionalidade do direito: as contrapartidas do Programa Bolsa Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 6, p. 1.453-1.462, 2007.).

Apesar de datados historicamente, esses elementos corporificam, na atualidade, concepções e práticas da política social no âmbito do maior programa social de combate à pobreza da América Latina: o Programa Bolsa Família (PBF), núcleo central da política social dirigida aos mais vulneráveis.

A amálgama entre a história e as tendências atuais reflete elementos que edificam discursos de usuários e trabalhadores das políticas de proteção social e indicam, também, sentidos de ordem simbólica que afetam as condições objetivas de sobrevivência, os quais são exercidos prioritariamente pelo Estado e naturalizados por meio de práticas e instituições (Bourdieu, 2014BOURDIEU, Pierre. Sobre o estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.).

Como um elo importante da seguridade social, as políticas de combate à pobreza sustentam e difundem valores permeados de conteúdo moral que afetam a condição de cidadania dos seus usuários, categorizados pelo Estado como beneficiários certificados com o estatuto de pobre (Marins, 2017MARINS, Mani T. A. Bolsa Família: questões de gênero e moralidades. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Faperj, 2017.). Essa condição de pobre da assistência, sujeito das práticas estatais, endereça e ‘modela’ as práticas dos beneficiários do PBF como usuários de políticas de seguridade social para além das ações diretas de controle que o Estado exerce – como o acompanhamento cadastral, o controle de contrapartidas etc. Da mesma forma, as instituições e os sujeitos que dela fazem parte (como os trabalhadores da saúde e da assistência) também produzem e exprimem sentidos simbólicos (e morais) acerca do que é ser um beneficiário e como esse sujeito deve acessar seus direitos de cidadania, o que implica determinados ‘usos aceitáveis’ da proteção social. Esse debate desvela ideologias (Chauí, 2008CHAUÍ, Marilene. O que é ideologia? 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.) emergentes acerca das políticas sociais que se expressam por meio dos sujeitos e das práticas construídas cotidianamente vis-à-vis o processo de implementação de políticas e programas.

Apesar dos atravessamentos teóricos apontados, é importante reconhecer que, nas duas últimas décadas, as políticas de proteção social – incluindo os programas de transferência de renda condicionada, como o PBF, e o compromisso com a cobertura universal de saúde, via expansão da Estratégia Saúde da Família – lograram avanços importantes em termos de mobilização de recursos, desenvolvimento de engenharia institucional, cobertura populacional e resultados no enfrentamento de iniquidades (Rasella et al., 2013RASELLA, Davide et al. Effect of a conditional cash transfer programme on childhood mortality: a nationwide analysis of Brazilian municipalities. Lancet, London, v. 382, p. 57-64, 2013.; Hone et al., 2017HONE, Thomas et al. Association between expansion of primary healthcare and racial inequalities in mortality amenable to primary care in Brazil: a national longitudinal analysis. PLoS Med, San Francisco, v. 14, n. 5, e1002306, 2017.). Contudo, há pouca compreensão sobre os efeitos do PBF no que tange à sua capacidade indutora de outras políticas de proteção, em que pese assegurar o direito à saúde no escopo das ações da atenção primária à saúde (APS).

O estudo que deu origem a este artigo visou mapear os sentidos associados ao PBF na fronteira com o setor saúde. Para explorar essa perspectiva analítica, foram interpretados discursos de beneficiários do PBF, trabalhadores da APS e gestores do PBF.

Integração entre o Programa Bolsa Família e a atenção primária à saúde

O PBF é o maior programa latino-americano de transferência de renda condicionada que beneficiou, em dezembro de 2018, mais de 14 milhões de famílias, com benefícios médios de R$ 186,78 (Brasil, 2019). Possui três eixos de atuação: alívio imediato da pobreza pela transferência de renda; direitos sociais básicos na área da saúde, educação e assistência social; ações e programas que objetivam o desenvolvimento da família saindo da situação de vulnerabilidade (Brasil, 2004BRASIL. Portaria interministerial n. 2.509, de 18 de novembro de 2004. Dispõe sobre as atribuições e normas para a oferta e o monitoramento das ações de saúde relativas às condicionalidades das famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. Diário Oficial da União, Brasília, n. 223, seção 1, 22 nov. 2004.).

A inscrição no PBF ocorre mediante o registro das famílias no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), operacionalizado pelos municípios e processado no âmbito federal. A tipificação dos benefícios depende da composição (número de pessoas, idades, presença de gestantes etc.) e da renda da família beneficiária (Quadro 1).

Quadro 1
– Benefícios do Programa Bolsa Família, Brasil, 2018.

O PBF prevê uma articulação intersetorial com outras políticas de proteção social desde sua criação (lei n. 10.386/2004), expressa nos próprios objetivos: promover o acesso à rede de serviços públicos, em especial saúde; estimular a emancipação sustentada das famílias e promover a intersetorialidade, a complementaridade e a sinergia das ações sociais do poder público.

A manutenção do benefício está condicionada ao cumprimento de determinadas contrapartidas. As famílias devem manter a vacinação das crianças atualizada conforme calendário nacional, além de realizar o acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento das crianças menores de sete anos, da saúde das mulheres na faixa de 14 a 44 anos e de gestantes e nutrizes. Um destaque importante assenta uma visão de gênero que estabelece um lugar para a mulher na sociedade, buscando inclusive o controle dos seus corpos, expressando o próprio limite da política para incluir os homens na dimensão do cuidado. Todas as crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos devem apresentar ainda a frequência escolar mensal mínima exigida (85% e 75%, respectivamente, para crianças e adolescentes de 6 a 15 anos e 16 a 17 anos). Também os menores de 15 anos e em risco ou retirados do trabalho infantil devem frequentar serviços socioeducativos.

A concessão dos benefícios tem caráter temporário e não gera direito adquirido, sendo que a elegibilidade das famílias deve ser obrigatoriamente revista a cada dois anos (Brasil, 2004BRASIL. Portaria interministerial n. 2.509, de 18 de novembro de 2004. Dispõe sobre as atribuições e normas para a oferta e o monitoramento das ações de saúde relativas às condicionalidades das famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. Diário Oficial da União, Brasília, n. 223, seção 1, 22 nov. 2004.).

As condicionalidades representam a ponte do PBF entre o eixo compensatório (transferência monetária) e o eixo estruturante (acesso a outros programas e serviços) (Silva e Carneiro, 2016SILVA, Maria O. S.; CARNEIRO, Annova M. F. Condicionalidades no Bolsa Família: controvérsias e realidades. In: SILVA, Maria O. S. (Org.). O Bolsa Família: verso e reverso. Campinas: Papel Social, 2016. p. 101-116.). No setor saúde, elas são operacionalizadas nos serviços de APS, ou seja, pressupõe-se uma capacidade estrutural e técnica para a articulação da APS com o PBF como mecanismo para combater a transmissão intergeracional da pobreza.

Contudo, ameaças como o histórico subfinanciamento e elevadas perdas de recursos para o Sistema Único de Saúde (aprofundadas em anos recentes com medidas decorrentes da definição de teto para gastos em saúde como a emenda constitucional n. 95/2006, que congela as despesas por vinte anos, reajustadas apenas pela inflação); a pressão crescente sobre os municípios; a precarização dos processos de trabalho; as dificuldades para coordenação de cuidados; as alterações nas diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica 2017, que relativizam a cobertura universal, entre outros parâmetros ligados ao processo de trabalho e à oferta de serviços na lógica da APS, colocam em xeque a concepção abrangente da APS (Morosini, Fonseca e Lima, 2018; Melo et al., 2018MELO, Eduardo A. et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, supl. 1, p. 38-51, 2018.).

Tal cenário demonstra os desafios da APS para desenvolver a articulação intersetorial com o PBF. Aprofundam-se, portanto, tensões e contradições contidas na pauta do universalismo versus a focalização em meio a um quadro de regressão de importantes conquistas da seguridade social (Senna e Santos, 2017SENNA, Mônica C. M.; SANTOS, Marta A. Atenção primária à saúde na agenda pública brasileira: dilemas entre focalização e universalismo. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 21, n. 1, p. 403-424, 2017.).

No que tange às críticas à focalização, as contrapartidas, também denominadas condicionalidades ou compromissos no âmbito do PBF, constituem um campo fundamental para o debate e, possivelmente, um dos mais controversos (Cohn, 2012COHN, Amélia. Cartas ao presidente Lula: bolsa família e direitos sociais. Rio de Janeiro: Pensamento Brasileiro, 2012.; Silva e Carneiro, 2016SILVA, Maria O. S.; CARNEIRO, Annova M. F. Condicionalidades no Bolsa Família: controvérsias e realidades. In: SILVA, Maria O. S. (Org.). O Bolsa Família: verso e reverso. Campinas: Papel Social, 2016. p. 101-116.). Enquanto há um consenso sobre a importância de serviços sociais universais em quantidade e qualidade apropriadas para a população pobre, as condicionalidades impostas como estratégias de mediação intersetorial transitam em um debate sobre ampliação e negação de direitos.

Apesar de não se configurar como um direito, a penetração e o enraizamento do PBF na sociedade o elevam a um ‘quase direito’ mais próximo da lógica das políticas estruturantes que sustentam suas condicionalidades, como a política de saúde. Por outro lado, ele constitui-se também como um programa meramente transversal de alívio imediato de pobreza, na medida em que sua capacidade indutora ou como eixo norteador de outras políticas sociais é questionável. Ao incluir a intersetorialidade com outras políticas de proteção no seu desenho via contrapartidas, o PBF tende a expressar limites e insuficiências destas (Cohn, 2012COHN, Amélia. Cartas ao presidente Lula: bolsa família e direitos sociais. Rio de Janeiro: Pensamento Brasileiro, 2012.).

Percurso metodológico

Tratou-se de um estudo de caso (Yin, 2005YIN, Robert. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.) de abordagem qualitativa (Minayo, 2014MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.), desenvolvido em um município da região sudoeste da Bahia (aproximadamente 350 mil habitantes).

O trabalho de campo ocorreu entre abril e julho de 2015, por meio de 26 entrevistas semiestruturadas e três grupos focais (respectivamente com treze, cinco e onze participantes por grupo). Elegeram-se duas equipes de saúde da família (EqSFs) e uma equipe de APS tradicional selecionadas, pois possuíam o maior número de famílias cadastradas no PBF daquela localidade. Para tanto, participaram da pesquisa: beneficiários do PBF, gestor/técnico do PBF e trabalhadores da APS (enfermeiras e ACSs) que atuavam na fronteira do PBF com o setor saúde (Quadro 2). O critério utilizado para identificar os entrevistados seguiu a seguinte lógica: representação do participante seguida de algarismo arábico.

Quadro 2
– Descrição dos participantes, critérios de inclusão e estratégias de produção de dados do estudo.

Como critério de seleção dos beneficiários do PBF, contou-se com o auxílio dos ACSs. Cada ACS indicou apenas um beneficiário de sua respectiva microárea. Não obstante haver 29 ACSs, somente vinte beneficiários foram entrevistados, por haver suficiência da amostra, valendo-se do critério de saturação dos dados. A saturação foi usada para encerrar a captação de mais beneficiários do PBF para a pesquisa, uma vez que as informações coletadas não traziam informações novas para o estudo.

Por sua vez, foram eleitas as duas enfermeiras e os 29 ACSs que atuavam nas unidades de saúde selecionadas. Para contemplar o grupo de gestores/técnicos, compuseram o escopo da amostra aqueles considerados fundamentais na burocracia administrativa para gestão do PBF no âmbito local.

A interpretação dos resultados foi orientada pela análise de ‘conteúdo temática’ (Minayo, 2014MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.). Os resultados estão apresentados em quadros-sínteses conforme a categoria temática (CT) emergente dos dados empíricos. A pesquisa foi aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia (Parecer nº 1.001.227), em 26 de março de 2015.

Desafios cotidianos na operacionalização do Bolsa Família

Os ‘efeitos da transferência de renda do PBF para o alívio imediato da pobreza’ (CT-1) é destacado em falas de gestores, trabalhadores de saúde e beneficiários. Entretanto, há um reconhecimento de que isso ocorre de forma parcial, e os casos tomados como exemplo referem-se a situações-limites de precariedade material – como os ‘pobres da assistência’, que, além de excluídos do trabalho formal e seguro (Ivo, 2008IVO, Anete B. L. Viver por um fio: pobreza e política social. São Paulo: Annablume; Salvador: CRH/UFBA, 2008.), vivenciam diferentes vulnerabilidades, especialmente econômico-ocupacionais e de proteção social, as quais aprofundam ainda mais essa condição.

[...] tem famílias que não têm renda nenhuma, então [o PBF] acaba colaborando e intensificando um pouquinho na alimentação das crianças, no vestuário, nas necessidades básicas daquelas crianças (Gestor 1).

A despeito dos importantes efeitos econômicos gerados a partir do PBF (Alves e Escorel, 2013ALVES, Hayda; ESCOREL, Sara. Processos de exclusão social e iniquidades em saúde: um estudo de caso a partir do Programa Bolsa Família, Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, São Paulo, v. 34, n. 6, p. 429-436, 2013.), as famílias continuam formando enormes contingentes de ‘trabalhadores sem trabalho’ cada vez mais vulnerabilizados por um processo que não se encerra na precarização econômica.

Outrossim, as formas de integração que emergem dos discursos de enfermeiros, gestores e beneficiários estão distantes de qualquer referência à proteção social; revelam adaptação das famílias ao contexto de precariedade. Essa adaptação, em vez de proclamar a necessidade de autonomização via emprego estrutural, corporifica-se nas falas sobre melhorias pontuais advindas do PBF na vida das famílias beneficiárias, aspectos muito distantes da inclusão produtiva. Em lugar desse debate, aspirações como ‘mudanças de comportamento e modos de vestir’, ‘usos do recurso com a família’, ‘emancipação sem trabalho’, ‘aquecimento da economia local’, entre outras expressões vocalizadas, foram empregadas para indicar efeitos positivos do PBF.

Elas [famílias] utilizam o benefício aqui no próprio município e aquecem o comércio local lá dos bairros, da comunidade, da zona rural, da área urbana, então a relevância de um programa desse porte, desse nível, é essa de transferir renda e ter condicionalidade e as famílias terem a possibilidade, oportunidade, de se emanciparem, socioeconomicamente falando (Gestor 2).

A partir desse prisma, o bem-estar social vislumbrado para as famílias pobres passa a limitar-se ao alívio imediato da pobreza (o que não requer um esforço institucional para impulsionar a mudança social) e sua inclusão na esfera do consumo. Esse efeito, importante e alarmado na literatura técnica (Neri, Vaz e Souza, 2013), também é comemorado nos espaços institucionais dos serviços de proteção por gerar uma percepção positiva de que as famílias do PBF ‘aquecem a economia’ e sua inclusão na esfera do consumo gera um sentido de ‘dignidade’, impossibilitado pelo sonhado acesso ao mundo do trabalho.

Intervenções nesse quadro exigem ações e programas complementares e intersetoriais, de modo a instrumentalizar as famílias para o rompimento da pobreza intergeracional, formação de capital humano, autonomização, ‘portas de saída’, enfim, formas das diferentes denominações vinculadas aos benefícios não monetários advindos da inscrição no PBF. Sobre tais iniciativas, destacam-se, entre outras, Bolsa Estiagem, Tarifa Social de Energia Elétrica, Passe Livre para Pessoas com Deficiência, Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).

Por outro lado, verificaram-se ‘experiências potenciais na direção da inclusão produtiva’ (CT-2), marcando uma capilaridade do programa a esse tipo de política setorial. Nesse caminho, a educação profissionalizante de usuários do PBF, operacionalizada por meio do Programa Nacional de Promoção do Acesso ao Mundo do Trabalho (Acessuas Trabalho) – resolução do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) n. 18/2012 –, figura como uma das ações destacadas em falas de gestor e beneficiário. Por meio desse dispositivo, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) realizam um trabalho de mapear cursos e oportunidades de trabalho.

Ele [Acessuas Trabalho] é quem mobiliza para que o beneficiário, o público prioritário, tenha acesso ao curso do Pronatec, que é a quem ele foi destinado. Essa mobilização faz principalmente com todos os Cras; faz o Cras mobilizar todo o território dele com os Creas e todas as ferramentas da assistência social (Gestor 4).

Nessa perspectiva, o ‘Acessuas Trabalho’ mobilizava, encaminhava e acompanhava pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social cadastradas no CadÚnico, com idades entre 14 e 59 anos, para acessar essas oportunidades a partir de um ranking de prioridades estabelecidas no âmbito do PBF. No caso dos cursos de formação, os alunos vinculados ao ‘Acessuas Trabalho’ recebiam material didático, uniforme, auxílio-transporte e alimentação, com vistas a possibilitar a permanência e a conclusão do curso, bem como assessoria pós-curso. Por meio desse mecanismo, os equipamentos da assistência reconheciam e potencializavam o beneficiário do PBF como trabalhador – um valor social legitimado e desejado para alçar o status de cidadania (Alves e Escorel, 2013ALVES, Hayda; ESCOREL, Sara. Processos de exclusão social e iniquidades em saúde: um estudo de caso a partir do Programa Bolsa Família, Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, São Paulo, v. 34, n. 6, p. 429-436, 2013.; Rego e Pinzani, 2013REGO, Walquíria L.; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Editora Unesp, 2013.).

Porém, a literatura revela críticas ao limite quantitativo e qualitativo desse tipo de programa, bem como da sua capacidade de impulsionar emprego formal e protegido para além de uma inserção precária ao mundo do trabalho, ou que venha ao encontro de possibilidades reais de inclusão das famílias em perfil local de empregabilidade (Silva e Carneiro, 2016SILVA, Maria O. S.; CARNEIRO, Annova M. F. Condicionalidades no Bolsa Família: controvérsias e realidades. In: SILVA, Maria O. S. (Org.). O Bolsa Família: verso e reverso. Campinas: Papel Social, 2016. p. 101-116.).

Embora o ‘Acessuas Trabalho’ tenha parceria com outras secretarias, gestores e ACSs sinalizavam ‘falhas no processo de comunicação com setores da proteção social, como a Saúde da Família’ (CT-3), uma vez que esses trabalhadores desconheciam tal tipo de programa. Esse desconhecimento, além de indicar limites à sua disseminação, mostrava lacunas importantes da articulação intersetorial e do papel desses equipamentos no debate e na proposição de ações partilhadas com trabalhadores e usuários da proteção social, visando fomentar o acesso a fontes sustentadas de renda, como: combater os estigmas de beneficiário – os quais dificultam a busca de trabalho (Rego e Pinzani, 2013REGO, Walquíria L.; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Editora Unesp, 2013.)–, os efeitos psicológicos e sociais advindos dos sentimentos de humilhação e vergonha que a pobreza material impõe (Marins, 2017MARINS, Mani T. A. Bolsa Família: questões de gênero e moralidades. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Faperj, 2017.), a existência de eventos da saúde e doença que impedem a busca ou a permanência no trabalho (Cohn, 2012COHN, Amélia. Cartas ao presidente Lula: bolsa família e direitos sociais. Rio de Janeiro: Pensamento Brasileiro, 2012.) (Quadro 3).

Quadro 3
– Categorias temáticas segundo dados empíricos de gestores/técnicos do Programa Bolsa Família, trabalhadores da atenção primária à saúde e beneficiários.

Os contextos de vulnerabilidade e vivência de processos de exclusão social interferem diretamente no acesso ao trabalho, no itinerário do beneficiário na seguridade social e na assunção dos trabalhadores da saúde e da assistência às políticas de proteção social (Alves e Escorel, 2013ALVES, Hayda; ESCOREL, Sara. Processos de exclusão social e iniquidades em saúde: um estudo de caso a partir do Programa Bolsa Família, Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, São Paulo, v. 34, n. 6, p. 429-436, 2013.; Marins, 2017MARINS, Mani T. A. Bolsa Família: questões de gênero e moralidades. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Faperj, 2017.; Rego e Pinzani, 2013REGO, Walquíria L.; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Editora Unesp, 2013.). São lacunas que, como as falas do ACS, ainda precisam ser exploradas e problematizadas no sentido de enfrentar a ‘falta de integralidade e de ações coordenadas e convergentes à assistência social’ (GT-4).

Eu me nego completamente a me envolver com qualquer caso que envolva o Bolsa Família, porque a minha função é ACS, pois já fazemos, já trabalhamos nessa questão do peso do Bolsa Família pra um órgão que não tem a menor responsabilidade de saber qual a situação que a gente se encontra (Grupo Focal 1).

Os limites apontados interferem no poder de agenciamento do Estado em favor dos direitos de cidadania. Da mesma forma, acabam por reforçar discursos/estratégias que se encerram no acesso a programas e políticas transversais, sem considerar a capacidade indutora do Estado em direção à autonomização das famílias por meio do trabalho e da renda, bem como de outras políticas estruturais caras a esse campo, como educação e saúde.

Assim, o poder integrador do Estado torna-se cada vez mais questionável à medida que se revela uma atuação marginal nas dinâmicas que regulam a economia e a condição salarial, uma vez que a proteção social limita-se à assistência aos incapazes de se integrarem por si mesmos (Castel, 2008CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica dos salários. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.).

Na fala de ACSs e de beneficiários, o recurso advindo do PBF é importante para ‘cuidar da família’, livrar-se de uma situação humilhante de penúria material ou, ainda, possibilitar ‘pagar uma conta [...] manter um compromisso’, ‘símbolo de autonomia, respeito e dignidade’ (CT-5), especialmente nos setores populares (Rego e Pinzani, 2013REGO, Walquíria L.; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Editora Unesp, 2013.).

Na minha área, também tem pessoas que já mobiliaram casas, os filhos se vestem melhor, se alimentam melhor, tem pessoas que realmente destinam essa renda do Bolsa Família justamente pra cuidar da família (Grupo Focal 2).

Contraditoriamente, o uso do benefício para fins não identificados na categoria ‘cuidar da família’ revelou repreensão e descontentamento por parte dos ACSs em relação aos comportamentos assumidos pelas famílias pobres na condição de beneficiárias. Nessa perspectiva, tais comportamentos, para os ACSs, exigiriam vigilância e punição. O discurso desses trabalhadores e de alguns gestores sugere que a ‘conduta adequada do beneficiário exige um pertencimento a valores herdados de uma sociedade conservadora e patriarcal’ (CT-6). Nesse caso, o beneficiário ideal é uma mulher, mãe e que utiliza os recursos para manutenção do lar e para atender às necessidades de seus filhos, o que marca a institucionalidade do PBF com repertórios de conteúdo moralizante ao inscrever determinado papel feminino na proteção da família, especialmente quando o Estado foi ineficaz para tal. É inegável que, ao priorizar a titularidade feminina, as mulheres tornam-se protagonistas, dada a sua vulnerabilidade à pobreza, com efeitos na autoestima e na autonomia financeira (Alves e Escorel, 2013ALVES, Hayda; ESCOREL, Sara. Processos de exclusão social e iniquidades em saúde: um estudo de caso a partir do Programa Bolsa Família, Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, São Paulo, v. 34, n. 6, p. 429-436, 2013.; Rego e Pinzani, 2013REGO, Walquíria L.; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Editora Unesp, 2013.; Marins, 2017MARINS, Mani T. A. Bolsa Família: questões de gênero e moralidades. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Faperj, 2017.).

Entretanto, há um descompasso desses efeitos em relação aos discursos vocalizados pelos trabalhadores, os quais reproduzem padrões tradicionais de gênero e família para afirmar a importância dessa titularidade. Estes, por sua vez, são pouco promissores ao enfrentamento das assimetrias de poder, ampliação da cidadania e direitos sociais das mulheres (Marins, 2017MARINS, Mani T. A. Bolsa Família: questões de gênero e moralidades. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Faperj, 2017.).

[...] o Bolsa [Família] tem que ter mais deveres à mãe, tem que ter consciência, e explicar e ter uma vigilância maior em torno do benefício para a família. Porque tem mães que bebem, vão comprar roupa pra si, vão beber, vão pro salão (Grupo Focal 1).

Ademais, a fala dos ACSs reforça ‘repertórios morais conformados na ideia do pobre merecedor’ (CT-7), que é aquele que não está ‘estragado’ pelo ‘uso de álcool e drogas’, o qual endereça um destino ‘digno’ na utilização do recurso, pois tem ‘consciência’ sobre as formas socialmente adequadas para sua utilização. Os repertórios morais contidos nos sentidos de mérito e honra tomam lugar de repertórios cívicos pautados no usufruto de direitos sociais (Marins, 2014MARINS, Mani T. A. Repertórios morais e estratégias individuais de beneficiários e cadastradores do Bolsa Família. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 543-562, 2014.). Tais questões revelam ainda o não reconhecimento da autonomia do sujeito que recebe o Bolsa Família. Além disso, aponta uma ideia moral – uma espécie de ascetismo religioso – contrária à busca pelo prazer e diversão.

O sentido moral nas práticas provavelmente limita a capacidade de atuação dos ACSs entre outros agentes públicos para a mobilização social dessa população submetida a intensos processos de exclusão social, de assimetrias de gênero e raça e de outras desigualdades contidas em quadro de retração de direitos. Além disso, o ACS é pertencente à mesma comunidade que o beneficiário do PBF e, em certa medida, compartilha ou presencia em proximidade os dramas da precariedade das políticas públicas (Menegussi, Ogata e Rosaline, 2014). Ainda assim, contraditoriamente, “a luta pela igualdade é substituída pela luta pela diferença [...] e a desigualdade só é relevante em relação ao próprio grupo, e não ao conjunto da sociedade” (Sorj, 2004SORJ, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2004., p. 51). Por esta razão, contaminado pelo individualismo, o ACS, por vezes, reforça os estigmas e atua com discriminação (Bastos e Faerstein, 2012BASTOS, João L.; FAERSTEIN, Eduardo. Discriminação e saúde: perspectivas e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012.), agindo na contramão da produção do cuidado em saúde. Desse modo, “pertencer à comunidade não assegura o reconhecimento da dinâmica social, nem traz ferramentas para reconhecer um problema que requer a desconstrução de paradigmas, tanto no âmbito da sociedade como no âmbito institucional” (Oliveira, McCallum e Costa, 2010, p. 617).

Assim, no discurso técnico dos trabalhadores da saúde, o caráter punitivo associado ao não cumprimento de contrapartidas ganha mais força do que outras intervenções que potencializariam a dimensão estruturante do PBF, a ampliação de direitos sociais e, por conseguinte, a autonomização das famílias. Nessas falas, emerge uma perspectiva individualizante sobre a responsabilização pelo cumprimento ou descumprimento, a qual recai sobre o titular do benefício ou, ainda, está centrada no ACS, em que pese um suposto papel de vigilância – não apenas de condições sociais e de saúde das famílias em dado território, mas também acerca desse (des)cumprimento.

Nesse contexto, aspectos ligados à garantia de serviços de saúde em quantidade e qualidade tornam-se secundários, assim como outras estratégias positivas advindas desse contato do ACS com famílias em situação de vulnerabilidade social, como a mobilização comunitária para melhoria das condições de acesso e utilização dos serviços de saúde e dos serviços socioassistenciais, o desenvolvimento de ações educativas, o encaminhamento e acompanhamento de famílias em situação de risco etc.

Tenho meus motivos, uma vez que todo mundo que pega [o benefício] só faz mais é estragar, é bebendo, usando drogas [...]. Eu conheço um rapaz que tem cartão pra usar drogas, paga as drogas com o cartão do Bolsa Família, e acho isso errado (Grupo Focal 1).

Não obstante, as mesmas mulheres que logram efetivar o cuidado familiar por conta do PBF são acusadas de terem cada vez mais filhos para manter o benefício. Destaca-se que o PBF abrange cerca de um quarto da população brasileira, e a literatura não aponta qualquer relação do programa com manutenção ou aumento da taxa de natalidade das famílias pobres (Ribeiro, Shikida e Hillbrecht, 2017).

Ainda assim, na experiência dos beneficiários, é inegável a importância dos efeitos do PBF no que tange ao ‘cuidado com a família’, os quais vão além da subsistência material – ainda que limitada.

Com esse dinheiro, posso cuidar melhor dos meus filhos, porque antes era mais apertado; mal, mal dava pra comer, hoje posso comprar um remédio se precisar, um brinquedinho pros meninos [...] (Beneficiário 10).

Por esse prisma, os depoimentos expressam uma espécie de ‘necessidade social relacionada à dignidade humana’ (CT-8), uma vez que se trata da aquisição de bens materiais básicos e fundamentais para uma vida digna em sociedade. Entende-se que o desejo do consumo é a base da sociedade capitalista e é algo estimulado permanentemente, logo não seria possível que os beneficiários do PBF estivessem fora desse desejo. Todavia, os modos de construção de felicidade atrelados à dimensão do consumo tornam os sujeitos homogêneos, independentemente de sua posição social e capacidade de aquisição de bens, porquanto compartilham de desejos semelhantes, ainda que tenham necessidades muito díspares (Baudrillard, 2009BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. 2. ed. São Paulo: Edições 70, 2009.).

Tal questão tem levado as pessoas a aceitarem a troca da cidadania e, por conseguinte, de ampliação dos direitos sociais e das políticas públicas, pela capacidade de consumo, numa captura mercadológica que acentua assimetrias e reproduz iniquidades. Além disso, determinam-se arbitrariamente os que podem ser beneficiários de uma política de combate à pobreza e logo definem-se moralmente critérios de cidadania (Stotz, 2005STOTZ, Eduardo N. Pobreza e capitalismo. In: VALLA, Victor V.; STOTZ, Eduardo N.; ALGEBAILÉ, Eveline B. (Orgs.). Para compreender a pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p. 53-72.). Não por acaso, a lógica welfare é substituída, sem contestação, pela lógica do workfare (Moser, 2011MOSER, Liliane. A nova geração de políticas sociais no contexto europeu: workfare e medidas de ativação. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 68-77, 2011.); prontamente, transfere-se a responsabilidade do Estado para o mercado e tem-se, antagonicamente, uma ‘sociedade contra o social’ (Ribeiro, 2000RIBEIRO, Renato J. A sociedade contra o social. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.) (Quadro 4).

Quadro 4
– Categorias temáticas segundo dados empíricos de gestores/técnicos do Programa Bolsa Família, trabalhadores da atenção primária à saúde e beneficiários.

Nota-se, por outro lado, um ‘esforço das equipes de saúde da família para o cumprimento das condicionalidades do setor saúde’ (CT-9), o que favorece o acesso e a utilização dos serviços de saúde por essa população. Entretanto, esse esforço também é convertido em práticas de controle e coerção, o que distancia o programa dos seus objetivos, como igualmente dos princípios de cidadania plasmados constitucionalmente.

Algumas vezes, a gente utiliza o PBF como moeda de troca com as famílias. A gente tem que manter o cartão de vacina em dia, aí a gente fala: “se você não vier, vou mandar cortar seu Bolsa Família!” Mesmo a gente sabendo que a unidade não tem esse poder de mandar cortar o benefício, cessar o benefício, mas a gente falando isso, ela [mãe beneficiária] acaba trazendo [a criança], então a gente consegue acompanhar essas famílias por conta do Bolsa Família (Enfermeira 1).

O ‘ACS tem legitimidade reconhecida na comunidade’ no que concerne ao seu papel de mediador do acesso e utilização dos serviços de saúde (CT-10). No que se refere ao PBF, esse profissional tem realizado a tarefa de informar e orientar sobre os mecanismos e recursos disponibilizados na unidade para o cumprimento das condicionalidades. Constata-se, ainda, a satisfação de beneficiários do PBF acerca do trabalho executado pelos ACSs e o seu destaque por meio de acompanhamento atento e ao longo do tempo, bem como promotor de saúde e segurança alimentar. O fato de o ACS residir na comunidade é importante para a construção de confiança com os moradores para partilhar de seus problemas (Menegussi, Ogata e Rosaline, 2014; Riquinho et al., 2018RIQUINHO, Deise L. et al. O cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde: entre a dificuldade e a potência. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 163-182, 2018.; Morosini e Fonseca, 2018MOROSINI, Márcia V. G. C.; FONSECA, Angélica F. Os agentes comunitários na atenção primária à saúde no Brasil: inventário de conquistas e desafios. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 261-274, 2018.), pois está em contato permanente com a comunidade e compartilha da mesma realidade, ajudando assim no trabalho de vigilância e vínculo com o serviço de saúde.

Famílias muito carentes de tudo precisam desse apoio do ACS muito mais do que outras. O ACS é muito importante para ajudar essas famílias nesse acesso; orientando, repassando informações, acompanhando. Eles conhecem todas as famílias da sua área (Gestor 1).

O acompanhamento de condicionalidades do PBF é uma atribuição dos profissionais da saúde prevista na Política Nacional de Atenção Básica à Saúde. Todavia, a falta de suporte dos equipamentos socioassistenciais do território ou da gestão do PBF para esse trabalho no âmbito da saúde da família, bem como a descontinuidade desse cuidado, causa ruídos e descontentamentos por parte dos ACSs, que acabam por desempenhar um ‘trabalho ritualístico e um tanto alienado’ (CT-11). A verificação do peso, por exemplo, torna-se mera informação para registro; a condição de beneficiário do PBF não adquire status como dado concreto das condições de saúde de uma família com potencial de reorientar o trabalho das equipes de saúde da família para grupos vulneráveis; enfim, nesse cenário, as contrapartidas não logram ampliar direitos sociais.

Assim, os ACSs reconhecem a ausência de familiaridade com as normas do PBF e até com o próprio funcionamento do PBF, o que dificulta sua atuação junto às famílias beneficiárias. Além disso, manifestam insegurança para lidar com suas dúvidas, distanciando-se do esperado pelas normas ministeriais, que preveem o ACS como um profissional preparado para orientar as famílias em diferentes situações.

A gente não tem uma assistência realmente do Bolsa Família, nem na hora de fazer o peso que a gente tá fazendo pra eles [gestores]. Porque, já que não é uma parceria, me sinto como se eu tivesse trabalhando particular para o Bolsa Família (Grupo Focal 1).

A despeito de alguns gestores do PBF e trabalhadores da equipe de saúde da família relatarem iniciativas visando ao suporte ao trabalho das equipes e do ACS para o acompanhamento de famílias beneficiárias do PBF, tais atividades eram pontuais e as estratégias questionáveis, visto que, na melhor das hipóteses, esses trabalhadores recebiam comunicados escritos sobre normas de funcionamento do programa sem uma agenda para diálogo ou reflexão sobre as tarefas na rotina de trabalho, o que poderia imprimir outro significado e alcance das contrapartidas.

Outros elementos foram vocalizados como ‘fatores que dificultam o trabalho do ACS junto a famílias beneficiárias’ (CT-12): o acompanhamento de mais de 150 famílias por ACS; a associação da figura do ACS com um possível cancelamento do benefício, especialmente em áreas com diferentes expressões de violência; a falta de acompanhamento sistemático de gestores do PBF em cada uma das microáreas dos ACSs; e a necessidade de viabilizar o cumprimento de contrapartidas para famílias beneficiárias que vivem em áreas circunzinhas ao território, mas que não são adscritas à unidade (Quadro 5).

Quadro 5
– Categorias temáticas segundo dados empíricos de gestores e técnicos do Programa Bolsa Família, trabalhadores da atenção primária à saúde e beneficiários.

Houve casos mesmo de pessoas perderem o benefício e, às vezes, até culpar o ACS por a gente ter acesso à casa, ter o contato pessoal com eles. A gente corre esse grande risco, por isso que a gente nem mexe nesse tema do Bolsa Família (Grupo Focal 3).

Portanto, a complexidade do trabalho dos agentes é preocupante, uma vez que eles estão expostos, no cotidiano, às situações de risco decorrentes das distintas formas de manifestações da violência sem, contudo, terem acesso a ferramentas de enfrentamento ou mesmo apoio institucional para minimizar tais situações (Riquinho et al., 2018RIQUINHO, Deise L. et al. O cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde: entre a dificuldade e a potência. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 163-182, 2018.).

Não só a violência é um desafio encontrado. Os ACSs ressaltam, ainda, que as ferramentas de trabalho utilizadas não são apropriadas para coletar os dados na pesagem, pois não possuem, entre outros equipamentos, estadiômetro nem balança para pesar crianças menores de dois anos. Outra insatisfação destacada apontou que o material enviado pelos gestores do PBF, como as fichas de coleta, por exemplo, não é suficiente para a demanda, o que requer dos ACSs complementação financeira para realizarem seu trabalho.

A gente leva nossa balança, o próprio ACS tira do bolso para xerocar material, porque senão não tem planilha pra trabalhar, então se você quer fazer cartaz, você mesmo que compra material pra fazer cartaz pra pregar aqui nos locais. A gente se sente só realmente em relação ao Bolsa Família (Grupo Focal 1).

O distanciamento entre o trabalho da gestão do PBF e a realidade vivida pelas equipes de saúde da família também marca os desafios encontrados. Mas a empatia, a reciprocidade e o vínculo das equipes de saúde da família em seus territórios mostraram-se como motores de mudança e aprendizagem institucional, aspectos que deveriam penetrar na relação do setor saúde com a assistência. Nesse sentido, “o trabalho pode ser tanto produtor de saúde como de mal-estar e adoecimento, para si – trabalhadores – e para os outros” (Hennington, 2008HENNINGTON, Élida A. Gestão dos processos de trabalho e humanização em saúde: reflexões a partir da ergologia. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 555-561, 2008., p. 559), requerendo valorização do trabalho criativo e afetivo para suportar a “irremediável implicação com o universo da saúde e da doença, da vida e da morte e as inevitáveis repercussões no corpo e na mente” (Hennington, 2008HENNINGTON, Élida A. Gestão dos processos de trabalho e humanização em saúde: reflexões a partir da ergologia. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 555-561, 2008., p. 560).

Considerações finais

Apesar das dificuldades apontadas, reconhece-se que as práticas de seguridade social no Brasil lograram avanços no enfrentamento da pobreza e de vulnerabilidades; tanto a APS quando o PBF contribuíram decisivamente para tais conquistas. Todavia, a seguridade social envolve ainda o sistema previdenciário, especialmente porque o Benefício de Prestação Continuada (BPC) é uma política fundamental na luta contra a pobreza, tem grande relação com o PBF e também está em risco com a reforma da previdência.

Em um cenário de retrocessos dos direitos, necessita-se da permanente defesa dos avanços e da luta pela continuidade ou aperfeiçoamento dessas políticas. Além disso, entende-se que a forma como o Estado constrói políticas é justamente um dos elementos que edificam estigmas, posto que estes, assim com as ideologias, se constroem mediante as práticas sociais, estando intrinsecamente ligados à forma de se produzir (residual, de cunho neoliberal e com receituário dos organismos internacionais) e operacionalizar a política.

Ademais, as ameaças às políticas sociais têm como base um conteúdo moralista, capitaneado por contextos de crises econômicas e movimentos ideológicos conservadores. Entretanto, a base simbólica sobre a qual vêm se assentando os valores conservadores e moralizantes está presente e difundida na sociedade há muito tempo, tendo sido apenas mobilizada e canalizada num sentido nos últimos tempos. Nesse cenário, os interesses de mercado e, sobretudo, do sistema financeiro canalizam as pautas e dão direcionalidade às demandas sociais, ocupando as agendas midiáticas com temas marcados pelo individualismo e pela lógica da competição como um modelo a ser incorporado e defendido pela população.

Não por acaso, no momento de descenso e retração do ciclo econômico, a camada popular passou a reagir informada por horizontes menos associativistas e comunitaristas e mais por diretrizes marcadas pelo individualismo e pela lógica da competição, com uma tônica acentuada do mérito nos discursos (Fundação Perseu Abramo, 2017FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/percepcoes-e-valores-politicos-nas-periferias-de-sao-paulo/>. Acesso em: 14 out. 2019.
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). Assim, a incorporação de valores conservadores ganhou respaldo, inclusive, no âmbito dos próprios trabalhadores públicos com repercussão na condução de suas atividades cotidianas. Desse modo, os ACSs apontaram aspectos morais para justificar a legitimidade dos beneficiários do PBF e questionar sua autonomia no modo de agir e, sobretudo, utilizar o benefício.

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  • Considerações éticas
    A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia (Parecer nº 1.001.227), em 26 de março de 2015.
  • Financiamento
    Não houve financiamento para a pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2019
  • Aceito
    22 Nov 2019
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