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Atividade de trabalho e saúde dos professores: o programa de formação como estratégia de intervenção nas escolas

Work activity and teachers' health: the training programme as a strategy of intervention in schools

Resumos

A proposta deste artigo é apresentar alguns resultados de uma pesquisa que analisou as relações entre saúde e trabalho nas escolas da Grande Vitória (ES), articulando pesquisa e programa de formação, com base numa perspectiva epistemológica centrada na atividade de trabalho. Buscou-se um modo de produção de conhecimento que se efetivou a partir da construção de um espaço de diálogo entre os saberes advindos da experiência dos professores e o conhecimento produzido pelos pesquisadores. Com esse objetivo, foi criado um plano de trabalho que incluiu, numa primeira fase, a aplicação do questionário SRQ e, a partir dos resultados obtidos, a construção de um Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas Escolas da Grande Vitória para os docentes. Como resultado da pesquisa-formação, destacam-se o início da construção de uma rede em cada escola e entre as escolas da Grande Vitória para o debate sobre as relações saúde-trabalho, que está se efetivando por meio de um site, e o desdobramento do processo de pesquisa-formação para outros municípios do estado. Os resultados da pesquisa indicam a urgência da construção de métodos de pesquisa que privilegiem a experiência dos professores como um saber indispensável para a compreensão das articulações saúde e trabalho nas escolas.

atividade de trabalho; saúde; escola


The purpose of this article is to present some results of a research that, by articulating the research and a training programme, analysed the relationship between health and work in the schools of Great Vitória (State of Espírito Santo). The epistemological perspective underlying the research was centred on the activity of work. Our method for the production of knowledge was implemented by building a space for a dialogue between the knowledge that results from the teachers' experience and that produced by the researchers themselves. With this objective in mind, we designed a work plan that included, in its first stage, the application of the questionnaire SRQ and, on the basis of the results obtained, the construction of a Training-Investigation Programme on Health and Work in the Schools of Great Vitória for the teachers. One of the major results of the latter was the beginning of the construction, in each school, and between the Great Vitória schools, of a network to debate about the health-work relations (being implemented through a web site) and the expansion of the research-training process to other municipalities of the State. The research results indicate the urgent need for research methods that will give priority to the teachers' experiences as indispensable knowledge for understanding the relationship health and work in schools.

work activity; health; school


ARTIGO ARTICLE

Atividade de trabalho e saúde dos professores: o programa de formação como estratégia de intervenção nas escolas

Work activity and teachers' health: the training programme as a strategy of intervention in schools

Flavia Marchiori1 1 Psicóloga. Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. < flaviamarchiori@bol.com.br> ; Maria Elizabeth Barros de Barros2 2 Professora da Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. < betebarros@uol.com.br> ; Sonia Pinto de Oliveira3 3 Professora da Universidade Federal do Espírito Santo. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. < soniapdo@bol.com.br>

RESUMO

A proposta deste artigo é apresentar alguns resultados de uma pesquisa que analisou as relações entre saúde e trabalho nas escolas da Grande Vitória (ES), articulando pesquisa e programa de formação, com base numa perspectiva epistemológica centrada na atividade de trabalho. Buscou-se um modo de produção de conhecimento que se efetivou a partir da construção de um espaço de diálogo entre os saberes advindos da experiência dos professores e o conhecimento produzido pelos pesquisadores. Com esse objetivo, foi criado um plano de trabalho que incluiu, numa primeira fase, a aplicação do questionário SRQ e, a partir dos resultados obtidos, a construção de um Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas Escolas da Grande Vitória para os docentes. Como resultado da pesquisa-formação, destacam-se o início da construção de uma rede em cada escola e entre as escolas da Grande Vitória para o debate sobre as relações saúde-trabalho, que está se efetivando por meio de um site, e o desdobramento do processo de pesquisa-formação para outros municípios do estado. Os resultados da pesquisa indicam a urgência da construção de métodos de pesquisa que privilegiem a experiência dos professores como um saber indispensável para a compreensão das articulações saúde e trabalho nas escolas.

Palavras-chave: atividade de trabalho; saúde; escola

ABSTRACT

The purpose of this article is to present some results of a research that, by articulating the research and a training programme, analysed the relationship between health and work in the schools of Great Vitória (State of Espírito Santo). The epistemological perspective underlying the research was centred on the activity of work. Our method for the production of knowledge was implemented by building a space for a dialogue between the knowledge that results from the teachers' experience and that produced by the researchers themselves. With this objective in mind, we designed a work plan that included, in its first stage, the application of the questionnaire SRQ and, on the basis of the results obtained, the construction of a Training-Investigation Programme on Health and Work in the Schools of Great Vitória for the teachers. One of the major results of the latter was the beginning of the construction, in each school, and between the Great Vitória schools, of a network to debate about the health-work relations (being implemented through a web site) and the expansion of the research-training process to other municipalities of the State. The research results indicate the urgent need for research methods that will give priority to the teachers' experiences as indispensable knowledge for understanding the relationship health and work in schools.

Key words: work activity; health; school

Introdução

Este artigo foi elaborado com a finalidade de apresentar alguns resultados da pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Políticas (Nepesp), do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), sobre as relações entre saúde e trabalho nas escolas da Grande Vitória, articulando pesquisa e programa de formação. Procuramos, inicialmente, traçar um quadro teórico do qual pretendemos derivar as questões para essa discussão. Esse quadro é, na verdade, a explicitação do modo como entendemos estar colocada hoje a questão das articulações saúde e trabalho nas escolas e os efeitos produzidos nos planos político e subjetivo, dada a indissociabilidade desses planos. Oferecemos, como é inevitável, nosso ponto de vista sobre o problema da promoção de saúde nos locais de trabalho, tentando esclarecer de que lugar teórico falamos. Com este objetivo, trazemos algumas referências conceituais e metodológicas que sustentam nossa contribuição.

Nosso ponto de vista é também, em certa medida, produzido no diálogo com vários interlocutores que partilham de uma perspectiva ético-política acerca do trabalho nas escolas e seus efeitos na saúde dos professores. Esses diálogos estão pautados numa perspectiva segundo a qual o que nos interessa na pesquisa é sua contribuição para a transformação da sociedade, no sentido "emancipador desta transformação" (Zarifian, 1995, p. 58). O movimento do real é indicador desta transformação e de modalidades de relações que não só prefiguram uma sociedade alternativa, mas também a configuram. Segundo Zarifian:

"Não se trata de pensar uma sociedade futura, sobre o modo de utopia, nem mesmo da revolta, mas de pensar o que é a sociedade na sociedade, o que é não da ordem do futuro, mas da construção. Trata-se de levar a sério a idéia de Marx segundo a qual a transformação social reside no movimento do real" (Zarifian, 1995, p. 58).

O que nos interessa é conhecer mais de perto o que é vivido na escola hoje em frente às novas configurações do capitalismo, além de avaliar quais as novas relações ou que modalidades de relações existentes fazem frente a essa situação, mesmo que de forma pouco expressiva - ou seja, relações que indicam outras possíveis4 4 É importante destacar que, quando usamos a expressão 'possíveis', não estamos nos referindo a possibilidades, ou seja, à disponibilidade atual de um projeto ser realizado. A palavra possível não está designando, aqui, "a série de alternativas reais e imaginárias (ou... ou...), é preciso entendê-la como emergência dinâmica do novo" (Zourabichvili, 2000, p. 337). Não se tem o possível antes de tê-lo criado. Assim, o campo dos possíveis não se confunde com a delimitação do realizável em um determinado momento. . Existe um mundo a ser conhecido nas escolas, um mundo de problemas, de conceitos, de tentativas práticas. É isso o que priorizamos. O que é fundamental nessa estratégia de pesquisa, portanto, é criar esses possíveis, acreditando que grande parte do sofrimento, assim como do potencial de revolta contra o que está instituído e a criação de outras formas de trabalhar, vem desses possíveis. Esse potencial existe e ele constitui o real, está no saber da experiência, "não é uma invenção de pesquisador otimista" (Zarifian, 1995, p. 59).

Consideramos que é necessário e urgente criar estratégias metodológicas que dêem conta da especificidade desse objeto de investigação, que são as questões dos mundos do trabalho, uma vez que as limitações do conhecimento científico sobre saúde e trabalho só podem ser superadas se partirem dos "desafios e das indagações advindas da experiência daqueles que vivem as relações que investigamos" (Athayde e Brito, 2003, p. 240).

Esse processo se desenvolve na busca de linhas teóricas, no estudo de determinados autores, enfim, num mergulho em algumas linhagens filosóficas e metodológicas que estaremos indicando ao longo do texto, as quais contribuem para pensarmos essas questões. Para lograr nosso intento, apresentamos um breve quadro conceitual no qual serão indicadas as concepções de saúde e trabalho que utilizamos como operadores na nossa investigação.

O trabalho do ponto de vista da atividade

Tendo como ponto de partida o trabalho para entendermos os processos de saúde-doença nas escolas, compreendemos, com Marx, que o trabalho é:

"(...) um processo de que participam homem e natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo - braços, pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza" (Marx, 2002, p.211).

Os humanos instituem formas de relacionamento quando trabalham e, nesse movimento, transformam a si mesmos e criam mundos. Afirmando a complexidade do trabalho e focalizando um dos aspectos integrantes do processo de trabalho, que é "a atividade adequada a um fim, isto é o próprio trabalho" (Marx, 2002, p. 212), encontramos as disciplinas da Ergonomia Situada e da Abordagem Ergológica. Ambas têm como ponto central a análise da atividade de trabalho e das relações que se estabelecem entre seus elementos.

Ao analisar a atividade em situação real de trabalho, a Ergonomia Situada contribuiu para evidenciar que o trabalho prescrito é distante do trabalho real, e que, para a realização da tarefa, os trabalhadores utilizam recursos cognitivos inerentes ao trabalho humano. Segundo Leplat e Hoc (1998), a tarefa indica o que se deve fazer; a atividade, o que se faz. A noção de tarefa se relaciona com a idéia de prescrição, de obrigação; a noção de atividade se associa ao que um sujeito põe em jogo para executar o trabalho prescrito e cumprir suas obrigações.

Assim, os trabalhadores ocupam um lugar original no desenvolvimento da atividade, no conhecimento sobre seu trabalho e na sua transformação. Esses recursos implicam dimensões subjetivas, mobilizadas pelo trabalhador, no sentido de cumprir a tarefa, uma vez que os sujeitos deparam-se cotidianamente com as prescrições e com as falhas e os imprevistos do dia-a-dia. Diante desse impasse, vêem-se obrigados a fazer escolhas e usos de procedimentos que não são prescritos, ou seja, são da ordem da invenção, da criação.

Segundo Leplat e Hoc (1998, p. 172), "uma situação de trabalho pode ser considerada como um sistema tarefa-sujeito. Analisar essa situação será analisar esse sistema, seu funcionamento e a relação existente entre os seus âmbitos. A atividade é a expressão dessa interação". Os mesmos autores lembram que a atividade é sempre guiada por uma prescrição, mas nunca se restringe a ela, sendo sempre modificada por um sujeito no curso da ação.

As contribuições da Abordagem Ergológica para o estudo da atividade ampliam essa conquista da Ergonomia. De acordo com Schwartz, a Abordagem Ergológica:

"(...) não é uma disciplina no sentido de um novo domínio do saber, mas, sobretudo, uma disciplina de pensamento. Essa disciplina ergológica é própria das atividades humanas e distinta da disciplina epistêmica que, para produzir saber e conceito no campo das ciências experimentais, deve, ao contrário, neutralizar os aspectos históricos. A démarche ergológica, mesmo tendo como objetivo construir conceitos rigorosos, deve indicar nesses conceitos como e onde se situa o espaço das (re)singularizações parciais, inerentes às atividades de trabalho" (Schwartz, 2000a, p. 45).

A Ergologia é um conjunto de normas de produção de conhecimento sobre a atividade humana. Constitui-se como um instrumental regulador da maneira de pesquisar a atividade de trabalho que é realizada por um ser vivente, por uma pessoa que carrega consigo valores e regras, mas que, acima de tudo, inventa a todo instante sua relação com o meio em que vive e recria esse meio de acordo com suas necessidades. Nessa perspectiva, o trabalho, em sua historicidade, está sendo considerado como uma atividade viva, um conceito circunscrito no espaço, no tempo, nos coletivos e no corpo.

A partir da idéia de prescrição, que, segundo a análise ergonômica, baseia-se em um conjunto de modos operatórios prescritos e na tarefa a ser realizada, a Abordagem Ergológica desenvolveu a noção de 'normas antecedentes', que podem ser consideradas mais abrangentes do que a idéia de prescrição da Ergonomia, pois são constituídas por um patrimônio histórico e social e se baseiam em valores de bem comum que estão presentes na sociedade e, portanto, no trabalho.

É possível, a partir dessa noção, tecer outras idéias sobre o trabalho real, considerando que as convocações que os humanos realizam para dar conta do que é prescrito sempre estão ligadas a um conjunto de normas e valores sociais e, dessa forma, a atividade de trabalho sempre ultrapassa o que está limitado pela prescrição. Para o trabalhador, é preciso viver o trabalho recriando novos meios e novas normas para operar.

A Abordagem Ergológica, portanto, aprofunda a distinção entre o trabalho prescrito e o trabalho real quando desenvolve a idéia de que é preciso 'viver o trabalho' e, assim, ficar na prescrição é também 'invivível' para os humanos. Propõe, então, o conceito de renormatização. Segundo este conceito, o sujeito da atividade de trabalho não se adapta ao meio, mas inventa normas para tornar o trabalho vivível. Nesse sentido, as regras de trabalho são a todo tempo recriadas a partir das normas de cada trabalhador. Conforme Telles (2002), as normas antecedentes jamais serão suficientes para 'dar conta' da situação presente. São retrabalhadas ou colocadas à prova por um ser vivente, em busca de reconstruir 'seu' meio em função do complexo de valores que local e singularmente é o seu.

Dessa forma, Schwartz (2000b) afirma que, no interior da atividade de trabalho e das condições que a cercam, sempre há uma possibilidade de gestão diferenciada de si mesmo, o que supõe um esforço e uma capacidade industriosa dos seres humanos infinitamente maiores do que as explicitadas na simples observação da atividade de trabalho. Para o autor,

"(...) no interior das coerções materiais e sociais e trabalhando-as, se abre espaço para uma gestão diferenciada de si mesmo. Carga de trabalho, fadiga deixam de ser dados objetivos que agridem do exterior o indivíduo; eles se negociam em uma alquimia sutil onde tudo depende da maneira pela qual o indivíduo, nas suas virtualidades singulares e seus limites, encontra o objetivo a realizar como ponto de apoio, ao contrário, como restrição de seus possíveis particulares" (Schwartz, 2000b, p. 4).

Assim, trabalhar é gerir a si próprio. E gerir a atividade - colocar à prova os próprios limites, as próprias capacidades - é arriscar-se. Trabalhar é fazer "uso de si":

"(...) quando se diz que o trabalho é uso de si, isto quer então dizer que ele é o lugar de um problema, de uma tensão problemática, de um espaço de possíveis sempre a se negociar: há não execução, mas uso, e isto supõe um espectro contínuo de modalidades" (Schwartz, 2000b, p. 13).

Para compreender o uso de si nessa abordagem, que considera o sujeito da atividade de trabalho como capaz de atos industriosos, criadores, inventivos, sempre em processo de 'renormatizar as normas' que o antecedem, o autor se aproxima da concepção de saúde de Canguilhem (2000), na qual o sujeito é abordado em sua capacidade instituinte, em sua capacidade de transformação das normas em torno de um mundo possível para si mesmo, na medida em que a vida lhe exige novos movimentos.

A saúde como capacidade normativa

Canguilhem (1971) postula que saúde e doença se implicam em um confronto e em uma superação permanentes das tendências mórbidas. O vitalismo afirmado por Canguilhem convida a biologia a repensar alguns conceitos filosóficos fundamentais, como o conceito de vida. Ao recusar os diferentes reducionismos físico-químicos, tanto nas abordagens sobre o meio quanto sobre o organismo, apresenta uma abordagem do vivo que contemple seu aspecto fundamentalmente imprevisível, criacionista e normativo. Ou seja, busca afirmar a vida no seu aspecto de criação e expansão permanentes.

Em seu texto Aspects du vitalisme (1971), o autor mostra que o essencial de uma máquina é ser mediação, uma vez que um mecanismo não cria nada, caracterizando sua inércia. Reconhece a originalidade da vida reconhecendo a atividade do vivente, não o reduzindo a seus aspectos físico-químicos. A posição de um vivente se refere à experiência que ele vive e que dá ao meio o sentido de condições de existência. Somente um ser vivo pode coordenar um meio. O renascimento do vitalismo traduz a desconfiança permanente da vida frente à sua mecanização. Desse ponto de vista, o vitalismo, mais do que uma doutrina é uma exigência que explica a vitalidade, a vida como criação.

O reconhecimento da originalidade do fato vital leva Canguilhem a considerar que um gênero vivo só é viável na medida em que se revela 'fecundo', isto é, produtor de novidades, mesmo se imperceptíveis à primeira vista. Portanto, em um ser vivo não há propriamente faltas se admitirmos que existem mil maneiras de se viver. Também na vida não há sucesso que desvalorize radicalmente outras tentativas que lhe façam parecer faltoso. "Todos os sucessos são fracassos retardados, os fracassos dos sucessos abortados" (Canguilhem, 1971, p. 160). É o futuro das formas que decide o seu valor.

Nesse contexto, o termo normal não tem qualquer sentido propriamente absoluto ou essencial. O vivo e o meio não são considerados normais separadamente, mas somente numa relação. Para Canguilhem (1971), normal deve ser dito instituidor da norma ou normativo. A história que construímos modifica as múltiplas situações experimentadas; homens e mulheres podem criar novos meios, logo não se pode supor uma passividade frente às modificações experimentadas, na medida em que o ser humano é um vivente capaz de existência e de '(re)sistência'.

As contribuições de Canguilhem (2001) são fundamentais para nosso propósito de analisar os processos de trabalho, uma vez que o meio de trabalho se estrutura em torno das questões relativas às relações pautadas na determinação e significação das normas humanas. Os trabalhadores entendem e produzem sentidos do seu trabalho e de sua situação no seu meio. Ainda segundo o autor, Taylor considerou ser possível a assimilação do trabalho humano a um jogo de mecanismos inanimados, de forma que os movimentos do trabalho dependessem inteira e unicamente do movimento da máquina, regido segundo as exigências de maior rendimento econômico. Tal concepção das relações entre o indivíduo e o meio de trabalho é um contra-senso, pois o que existe é um meio complexo. Assim, as reações dos trabalhadores à racionalização taylorista revelam a resistência do trabalhador às medidas que lhe são impostas e, portanto, devem ser compreendidas como reações de defesa, como reações saudáveis.

Saúde e trabalho nas escolas

A marca que imprimimos na pesquisa realizada na rede pública de ensino da Grande Vitória segue essa orientação que busca o conhecimento do cotidiano das escolas e da realidade dos docentes, que não desistem de lutar pela transformação das condições que geram adoecimento. Nesse sentido, pesquisar implica conceber qualquer escola como inacabada, não fechada em si mesma, mas como um campo em construção permanente. Estamos todos imersos em intrincadas redes de relações com a natureza, com outros homens e com suas invenções. Ou seja, os humanos não produzem isoladamente sua existência; esta se produz e se reproduz numa tessitura movente de múltiplas conexões em que se efetiva a produção da vida material (Neves, 2002).

Portanto, não estamos negando as condições que produzem adoecimento, mas pretendemos explorar a abertura dessa processualidade em meio às regulações e às regras sociais instituídas (uma vez que a criação de outras formas de trabalhar é gerida no âmbito dessas regulações), o que supõe a demarcação de uma orientação de pesquisa que não se limita a descrever a realidade ou fornecer um quadro exaustivo sobre a situação vivida na escola (o que também é muito importante), mas, sim, "identificar os pontos de tensão, os nós onde as relações contraditórias se efetivam" (Zarifian, 1995, p. 58).

Sendo assim, nesta análise, o trabalho na escola não se limita à obediência às prescrições, até porque isso seria invivível. Os professores que ali desenvolvem suas atividades inventam a todo instante estratégias e saídas para driblar as dificuldades cotidianas e as condições deficitárias de trabalho.

Se considerarmos que a todo tempo os professores desenvolvem novas normas para o seu trabalho, criando caminhos singulares que fazem a escola 'pulsar', manter-se em atividade, é preciso conhecer as estratégias inventadas no cotidiano de suas atividades para garantir e produzir saúde no trabalho.

Por meio do Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas Escolas da Grande Vitória, fomos buscar conhecer o saber que os professores constroem no curso de suas atividades, afirmando o trabalho como atividade criadora, inventiva. Visamos a construir uma lente que nos auxilie a enxergar a teimosia, as apostas individuais e coletivas desses professores. Queremos amplificar os sons, conhecer os ruídos e silêncios, que sejam gritos ou sussurros, mas que nos ajudem a também mapear os sinais de luta contínua pela vida, que nos ajudem a acompanhar os movimentos instituintes da saúde no trabalho dos professores.

As escolas da Grande Vitória: como anda a saúde dos docentes?

Seu prefeito me dá licença

pra minha história contar

sou um educador

não posso me conformar

não posso me reciclar

nem tampouco estudar

como poderei então

saber ensinar

o meu salário não dá

não consigo me conformar

não tenho plano de saúde

sem saúde não vou trabalhar

na escola tá faltando tudo

a merenda vai acabar

a luz a Escelsa vai cortar

Eu vou é tudo abandonar...

Professor Zé Carioca,

Creche das Paneleiras, Vitória (ES)

Buscando conhecer as condições de trabalho e suas relações com a saúde dos professores na Grande Vitória, iniciamos a primeira fase do processo investigativo do Programa de Formação com uma pesquisa que envolveu os pesquisadores do Nepesp-Ufes e o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do Espírito Santo (CRST-ES).

O CRST contribuiu na elaboração do questionário que foi o principal instrumento de pesquisa nesta primeira fase5 5 Essa primeira fase do processo investigativo foi realizada apenas no município de Vitória. A partir dos resultados obtidos foi implementado o Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas Escolas da Grande Vitória que se estendeu para as escolas da Grande Vitória, que inclui também os municípios da Serra, Cariacica, Viana e Vila Velha, o qual será apresentado posteriormente. , e que teve como referência o SRQ-20 (Self-Reporting Questionnaire), instrumento adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para detecção de transtornos mentais menores, composto de 20 itens sobre a ocorrência de sintomas relacionados com alterações psicoemocionais ocasionadas pelo trabalho.

Esse questionário foi aplicado em 27 das 44 escolas da rede municipal de Vitória num total de 607 questionários respondidos. Os resultados da primeira fase nos forneceram dados sobre os aspectos sociodemográficos, a organização do trabalho e as condições de saúde-trabalho da população de professores de Vitória.

A distribuição por sexo dos 607 professores que responderam ao questionário mostrou que 82,15% são do sexo feminino e 17,85%, do sexo masculino. Os resultados apresentam uma população majoritariamente feminina: dos 607 professores apenas 106 são homens. Esse dado vai ao encontro de outros estudos (Gomes, 2002; Neves, 1999; Nunes, 2000) que apontam a grande presença das mulheres nessa profissão, fato que se relaciona com uma atribuição da atividade docente como um prolongamento das atividades culturalmente ligadas ao 'papel feminino' de cuidar e educar.

A distribuição por faixa etária apontou que 11,37% dos professores possuem entre 20 e 30 anos; 45,15%, entre 30 e 40 anos; e 43,48%, mais de 40 anos. Cerca de 60% são casados ou vivem maritalmente.

Em relação às condições de habitação, 98% moram em bairros que possuem rede de esgoto e calçamento. Destes, 80,7% gastam menos de uma hora para se deslocar de casa até o trabalho; 18,2%, entre uma e duas horas; e 1,2%, mais de duas horas. Quanto à formação, 68% possuem ou estão concluindo curso superior e 16,30% destes têm especialização.

Dos professores entrevistados, 30,6% possuem mais de dez anos de trabalho, como mostra a Tabela 1:

Em relação à carga horária, temos uma variação de acordo com o número de matrículas ou vínculos de trabalho em escolas municipais, estaduais e particulares da região (Gráfico 1).


Como podemos observar no Gráfico 1, cerca de 47% dos professores exercem uma carga horária de trabalho maior do que 40 horas semanais. Desses, 7% afirmam trabalhar mais de 60 horas ministrando aulas. O tempo diário que esses professores dedicam ao trabalho nas escolas indica que assumem duas ou três matrículas, na maioria das vezes em escolas diferentes, o que significa ministrar aulas nos três turnos, exercendo uma carga horária muito alta e dedicando tempo em excesso às atividades laborais. Não podemos deixar de considerar que trabalhar mais de 40 horas por semana, assumir diversas jornadas de trabalho e ter pouco tempo de repouso são situações que interferem na atividade cotidiana de trabalho dos professores na escola, produzindo desgaste e cansaço.

Em aspectos específicos da organização de trabalho, 61,2% dos docentes afirmam nunca ou quase nunca realizarem pausas durante a jornada de trabalho, 30,7% realizam pausas algumas vezes e 8,1% sempre realizam pausas. Dentre os docentes, 83,2% consideram que as pausas durante a jornada de trabalho são insuficientes para a recuperação do cansaço (Gráfico 2).


Em relação ao tempo necessário para realizar as tarefas de trabalho, 40,8% dos professores o classificam como insuficiente; 48,7% consideram o tempo corrido e 9,5% julgam o tempo suficiente para realizar adequadamente o trabalho.

Questionando os professores sobre a participação de outros colegas na realização de sua atividade, 76,5% consideram que dependem de outras pessoas para conseguir trabalhar adequadamente, o que aponta uma dimensão coletiva presente e necessária para a realização do trabalho entre os professores.

Já em relação à diversidade das tarefas, 24,4% consideram que as tarefas variam muito, 29,9% afirmam que variam de acordo com o dia da semana, 34,4% relatam que variam pouco e 11,3% respondem que as tarefas no trabalho são sempre as mesmas.

Quanto à informação que possuem sobre os riscos da atividade de trabalho que realizam, 76,6% dos professores entrevistados afirmam nunca terem sido informados pelo empregador dos riscos existentes no trabalho e cerca de 90% desconheciam os riscos da atividade de trabalho durante a formação profissional.

No que se refere às fontes de tensão e cansaço, a tabela a seguir mostra o que foi apontado com uma freqüência superior a 20% nos questionários aplicados.

Entre os entrevistados, 44% afirmam já ter se afastado do trabalho por motivo de acidente ou doença do trabalho. Nos últimos seis meses, os problemas relacionados com saúde que necessitaram de atendimento médico mais apontados pelos professores estão especificados na Tabela 3.

A análise do perfil epidemiológico desta população composta de 607 professores da rede pública municipal de Vitória permite apontar questões que falam da dinâmica existente entre o processo de trabalho e a produção de saúde-doença nessa categoria profissional, dando visibilidade aos fatores de desgaste no trabalho.

Em seus depoimentos, os professores destacam que a má remuneração é a principal fonte de tensão, com 83,03% de indicações, seguida pelo ritmo intenso de trabalho, com 74,46%, e pelo excesso de alunos em sala de aula, com 69,85%. Os entrevistados relatam, ainda, que não se sentem valorizados pelo trabalho que executam, o que também é uma fonte de desgaste com 65,24% de indicações. A forma de gestão-administração das escolas foi apontada por 64,91% dos entrevistados como um fator de desgaste e tensão no trabalho.

Fatores relacionados com as condições e o ambiente de trabalho, como o calor, o "estado psicológico dos alunos", o ruído presente em sala e as posturas penosas e fatigantes, também foram destacados.

As condições de trabalho nas escolas, a falta de diálogo com a Secretaria Municipal de Educação e a sobrecarga acumulada de trabalho, devido, principalmente, à necessidade de complementar o salário, são fatores que atualmente caracterizam as condições precárias vivenciadas pelos professores:

"Não há material para trabalhar. As escolas estão completamente desorganizadas, sem profissionais suficientes. A carga de trabalho é excessiva e a remuneração baixa, o que nos obriga a ter três ou quatro empregos para nos sustentar. Estes são os principais fatores que provocam mal-estar e cansaço. Penso que a maneira como os alunos chegam nas escolas (rebeldes, agressivos, sem limites, sem famílias estruturadas etc.) sobrecarregam os profissionais da educação que precisam tentar ser um pouco de tudo, e isto é humanamente impossível" (professora a).

"Preciso urgentemente mudar de profissão antes que eu enlouqueça. Fui preparada para dar aulas e não para ficar brigando com aluno o tempo todo" (professora b).

"O grande problema dos professores, além da má remuneração, do excesso de trabalho e da falta de lazer, é o problema de garganta. Não temos atendimento gratuito, por parte da prefeitura, com um fonoaudiólogo" (professora a).

"Sofremos desvalorização financeira, desrespeito patrão-cliente, desgastes referentes às condições inadequadas de trabalho relacionadas ao espaço versus alunos, quantidade e qualidade de equipamentos e materiais necessários para o bom desenvolvimento do trabalho, insalubridade ambiental (barulho, poeira, calor e sol), heterogeneidade da clientela (saúde cronológica, motora, afetiva e cognitiva) e conflitos com alunos e alguns pais em razão de comportamentos inadequados ao bom andamento das aulas" (professora c).

"Há um desencanto com a educação que aumenta a cada dia, graças à falta de respeito cada vez mais acirrada tanto por parte do governo quanto da sociedade" (professora b).

"Com os baixos salários pagos ao professor, faz-se necessário procurar variar escolas para manter um padrão mínimo de vida. Isto compromete a qualidade do trabalho e a qualidade de vida do professor" (professora d).

Os resultados dessa primeira fase da pesquisa sinalizavam o descaso das políticas públicas no que se refere à atenção à saúde dos docentes no município de Vitória e às condições muito precárias de trabalho. Os professores estão imersos em um conflito cotidiano entre o que é exigido, o que desejam e o que realmente é possível fazer diante dos obstáculos, das condições e da organização atual do trabalho na educação em Vitória.

Poderíamos parar por aqui, afirmando a situação de nocividade das escolas, limitando-nos a dizer que os docentes apresentam uma espécie de 'síndrome de desistência', que pode ser apontada pelo esgotamento emocional e pela falta de compromisso com o trabalho. Indicar esse processo de desistência é também importante, não se trata de negá-lo.

Entretanto, buscamos, principalmente, dar visibilidade às ações que apontam a teimosia e insistência dos professores em transformar as condições de trabalho nas escolas. Muitas vezes afirmavam: "Não é fácil mudar essa situação da escola e da educação nesse município, mas eu acho que nós já fazemos isso, na medida em que estamos aqui tentando pensar em algumas saídas" (professor f). Ou ainda: "e se nós fizéssemos uma passeata com a comunidade desse bairro para sensibilizar a prefeitura?" (professora a); "Muitas vezes tenho vontade de desistir, mas, quando acordo no dia seguinte, penso que ainda é possível que alguma coisa mude" (professora g).

Esse era o nosso grande desafio, pois mapear os movimentos de saúde parecia ser muito mais difícil do que, simplesmente, constatar o adoecimento instalado nos docentes. Foi com esse objetivo que partimos para a segunda etapa do processo investigativo: o Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas Escolas Grande Vitória, que passamos a apresentar.

O Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas escolas da Grande Vitória

A partir dos resultados obtidos na primeira fase do processo investigativo, que indicavam um agravamento da situação da saúde dos professores do município de Vitória, elaboramos um Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas Escolas da Grande Vitória (PFist) que está articulado a uma perspectiva segundo a qual a questão da saúde dos trabalhadores "não pode ser compreendida a não ser a partir de uma sistemática de pesquisas, debates contínuos e ações cotidianas nos locais de trabalho" (Athayde, Brito e Neves, 2003a, p. 67). O PFist foi elaborado partindo do entendimento de que promover saúde é intervir nas situações de trabalho com base na experiência dos trabalhadores, que, por sua vez, convocam as diversas disciplinas a se desenvolverem a partir das questões trazidas pelos mundos do trabalho.

O programa teve como norte metodológico o Programa em Saúde, Gênero e Trabalho em Escolas, construído por pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e se constitui em um "instrumento de pesquisa e de formação das/os trabalhadora/es na defesa da vida e da saúde no trabalho" (Athayde e Brito, 2003, p. 251). Saúde, conforme assinalamos, é assunto que diz respeito a todos, capazes que somos de falar de nossa experiência de prazer e sofrimento, não sendo tema exclusivo de especialistas.

Esse dispositivo de pesquisa-intervenção em rede articula um programa de formação com um programa de pesquisas, visando à luta pela saúde e pela afirmação da vida. Buscamos contribuir para que os trabalhadores possam 'aguçar' o olhar (Athayde, Brito e Neves, 2003b) e a escuta para o que faz adoecer, o que faz sofrer nas escolas, assim como encontrar estratégias para sair dessas situações e construir locais de trabalho favoráveis à saúde. O programa se constituiu numa metodologia de trabalho que tem se pautado na Abordagem Ergológica, buscando contribuir para o aprimoramento dessa metodologia no âmbito das escolas. Vislumbramos, ainda, a partir do material produzido ao longo do PFist, a instituição de comissões de saúde nas escolas da Grande Vitória com a parceria da Secretaria de Saúde do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Espírito Santo (Sindiupes) e de algumas secretarias municipais de educação.

Em todas as ações previstas no programa, procuramos fortalecer relações estratégicas de produção de saúde já existentes no âmbito da educação pública e ampliá-las. Partimos da tese de que formar trabalhadores que possam multiplicar as ações no campo da saúde-trabalho não significa, simplesmente, instrumentalizá-los com novas tecnologias, mas, principalmente, investir na produção de outros modos de subjetivação6 6 O conceito de subjetividade utilizado não tem o sentido de identidade ou personalidade, ou 'natureza humana'; refere-se a modos de existência "essencialmente fabricados e modelados no registro social" (Guattari e Rolnik, 1986, p. 31). .

As etapas do Programa

A primeira etapa da constituição do programa foi o contato com o Sindiupes. Usando de sua estrutura organizacional, o sindicato viabilizou a divulgação do programa nas escolas da rede pública de ensino da Grande Vitória.

O debate com o sindicato oportunizou uma análise das políticas de saúde em curso no estado e a construção de estratégias para a formação de uma rede de ações no âmbito das articulações saúde-trabalho nas escolas. Um dos caminhos vislumbrados foi a instituição de espaços de conversa com os colegas nos locais de trabalho, para se conhecer os principais problemas das escolas e discutir sobre as diferentes situações vividas. Também foi indicada a criação de um jornal que pudesse fazer circular informações sobre a temática.

O Sindiupes considera que a estrutura precária e o número reduzido de professores que atuam no sindicato não têm viabilizado o fortalecimento das ações da Secretaria de Saúde da entidade: "É preciso arrebanhar na escola, levando gente para engrossar a quantidade de trabalhadores disponíveis para o trabalho de vigilância de saúde". E ainda: "Temos que investir numa conscientização do trabalhador para ele aprender a se defender ou lutar para que não se produza mais doença, modificando as condições de trabalho" (Secretária de Saúde do Sindiupes). E acrescentamos: como produzir uma torção nas prioridades de ação no sindicato? Como articular a prevenção de doenças e lutar por outras condições de trabalho?

Com o propósito de ampliar as discussões sobre saúde e trabalho nas escolas da Grande Vitória, realizamos, apoiadas pelo Sindiupes, uma seleção de três escolas por município, entre as que, segundo o sindicato, têm sido mais sensíveis a esses debates. Foram, então, realizados contatos com essas escolas públicas visando à divulgação do programa.

Essa etapa incluiu uma reunião com os professores das escolas, com a apresentação dos objetivos do programa e o preenchimento de uma ficha de inscrição, que foi utilizada como um importante instrumento de comunicação, uma vez que entendemos que:

"(...) a formação está ocorrendo antes mesmo do início do curso, portanto o diálogo deve ser permanente. Essa ficha é constituída de questões sobre saúde e trabalho e teve o objetivo de despertar os trabalhadores para uma reflexão sobre o problema e permitiria conhecer previamente algumas dificuldades que vivem e algumas das lutas que já estão travando no campo da saúde-trabalho" (Athayde, Brito e Neves, 2003b, p. 12).

As informações contidas nas fichas nos ofereceram um quadro das expectativas dos docentes em relação ao programa:

  • buscar informações sobre problemas de saúde e condições de trabalho;

  • conhecer as formas de prevenção das doenças ocupacionais;

  • promover um trabalho educativo sobre Saúde do Trabalhador;

  • elaborar leis e políticas para beneficiar os professores;

  • formar grupo solidário que busque a valorização do profissional de educação no que se refere à saúde física e mental no trabalho;

  • melhorar as condições de trabalho e a relação com colegas e alunos;

  • compartilhar os problemas de saúde com os colegas e repensar nas próprias práticas; e

  • socializar os conhecimentos do curso com os colegas da escola de origem.

Os professores também fizeram propostas de temas a serem discutidos. Segundo suas sugestões, a formação deveria incluir os seguintes itens:

  • estresse e instabilidade emocional do professor;

  • auto-estima e tensões no trabalho;

  • relações interpessoais no trabalho e cooperação entre os colegas;

  • uso da voz, alergias e métodos de prevenção;

  • solidariedade;

  • apoio psicológico e social para os casos de adoecimento profissional;

  • conhecimento do processo de laudo médico e os direitos dos professores;

  • prevenção e primeiros socorros; e

  • como conservar a voz e suportar o barulho.

Ao serem questionados sobre que tipo de lutas pela saúde têm sido encaminhadas pelo movimento dos professores, a maioria relata que desconhece uma luta efetivamente estabelecida pela categoria. Apenas duas professoras comentam sobre o trabalho realizado pelo grupo da Ufes numa escola municipal de Vitória. Outras três citam algumas ações do sindicato, como palestras, e a pesquisa nacional da Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação. Entretanto, não existiria luta no cotidiano de trabalho em meio às regulações instituídas? Esse quadro nos indicava a importância de discutir essas questões com o professorado.

O segundo contato com os inscritos foi feito por meio de uma carta na qual reafirmávamos os objetivos do programa e o calendário dos encontros que comporiam a primeira fase do PFist7 7 As fases que compõem o programa serão apresentadas posteriormente neste artigo. . Foram estabelecidos, também, contatos com as secretarias de educação estadual e municipais, com os objetivos de divulgar o programa e avaliar o apoio dado pelas mesmas. Essa preocupação, expressa pelos próprios professores, baseava-se na avaliação que faziam do fato de que uma administração verticalizada - tendência hegemônica no estado - poderia dificultar as ações do grupo que começava a se constituir com PFist. O contato com as secretarias mostrou um quadro no qual os administradores afirmaram seu interesse no programa, colocando-se como parceiros. Entretanto, as falas apontavam uma perspectiva segundo a qual o trabalhador é responsabilizado por seu adoecimento.

O programa tem como proposta a continuidade do processo de formação de maneira que os docentes participantes o coordenem em outros momentos. Aqueles que participaram do primeiro ciclo8 8 Relatamos aqui apenas o primeiro ciclo do programa, uma vez que o segundo será iniciado em 2005. seriam 'multiplicadores', ou seja, formadores de outros professores assessorados pelos profissionais que compõem a equipe da Ufes. Com esse objetivo, foi organizado em ciclos, cada um deles com duas fases.

A primeira delas, o curso, visava a transmitir alguns conceitos-ferramentas, tais como, Comunidade Ampliada de Pesquisa, Saúde, Trabalho-Gestão e Formação, que iriam ajudar no estudo de campo. Esses exercícios, que se efetivavam com observações atentas do cotidiano da escola, buscavam não só identificar no processo de trabalho as situações produtoras e mantenedoras de sofrimento, mas, principalmente, formar os professores para que pudessem ser pesquisadores atentos do que faz produzir doença nos ambientes de trabalho na perspectiva da sua transformação.

A alternância entre esses estudos de campo e encontros para a discussão da experiência, dos achados e das propostas de mudanças com a equipe da Ufes, constituiu a segunda fase dos ciclos do programa. A esse coletivo - professores e pesquisadores da Universidade - denominamos Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP)9 9 O conceito de Comunidade Ampliada de Pesquisa será detalhado mais adiante neste artigo. .

O primeiro ciclo, formação de multiplicadores, teve em sua composição dois membros da direção do Sindiupes e dois docentes de cada município da Grande Vitória e dele participaram 20 membros, que serão os multiplicadores que coordenarão os ciclos seguintes.

A fase 1 desse ciclo, o curso, não se limitou a um momento de transmissão de conhecimentos. Ao contrário, foi um processo contínuo de diálogo entre os pólos dos conceitos (das disciplinas científicas) e o da experiência prática dos docentes.

O curso ocorreu de 15 em 15 dias, aos sábados, na Ufes. A primeira etapa desse ciclo do programa, que se constituiu de cinco encontros, foi iniciada com a apresentação do resultado do inquérito epidemiológico realizado na rede pública de ensino de Vitória.

O curso se efetivou em dois turnos: no período da manhã, uma profissional, pesquisadora na área, apresentava um dos temas que seriam geradores da discussão e do processo de formação. Esses temas estão reunidos em um Caderno de Textos que foi preparado a partir do que foi pesquisado e experimentado em três estados (Rio de Janeiro, Espírito Santo e Paraíba). O primeiro tema foi Comunidades Ampliadas de Pesquisa; o segundo, Saúde; o terceiro, Trabalho e Gestão; e o quarto, Formação. No último encontro, os participantes definiram o foco a ser estudado nos exercícios de campo - a fase da alternância.

Os momentos de parada para o café e o almoço com música ao vivo foram muito ricos. Como nos indica Davezies (1993, p. 41), os espaços não-oficiais de debates, de confrontação das opiniões, são fundamentais na construção da confiança entre os trabalhadores. Tais espaços são considerados como não produtivos e isso "é um grande erro". Muitas alianças foram aí estabelecidas. Representaram espaços importantes na construção de algumas regras para o funcionamento do grupo.

Assim, nessa primeira fase, o curso teve o seguinte encadeamento: pesquisadores que desenvolvem trabalhos relacionados com cada uma das temáticas propostas faziam uma exposição de um dos temas geradores que fundamentavam os conceitos-ferramentas; os docentes liam os conteúdos dos respectivos Cadernos de Textos; e os participantes debatiam nos subgrupos e, posteriormente, no grupo. A coordenação dos subgrupos ficou sob a responsabilidade da equipe de pesquisadores da Ufes, responsável por fazer fluir a discussão, evitando 'tirar dúvidas' ou emitir opiniões. Cada subgrupo contou, ainda, com um observador cuja tarefa foi acompanhar e registrar os movimentos do grupo e os aspectos relevantes do debate. Os subgrupos escolhiam um relator que deveria fazer a apresentação dos resultados da discussão no grupo ampliado. Todos os momentos do curso foram registrados por meio de fotos, gravações e filmagens dos debates. Esse material constituiu um relatório de observações que subsidiou as discussões e análises efetivadas pela equipe de pesquisadores da Ufes.

Os debates promovidos no curso possibilitaram o questionamento de práticas que, ao se submeterem às pressões do trabalho, poderiam funcionar como mantenedoras das situações que causam doenças, ou seja, aquelas que dificultam o 'poder de tolerância' e a capacidade de transformar e criar outras situações. Apresentamos, a seguir, os aspectos mais relevantes das discussões ocorridas durante o curso10 10 Como dispositivos para os debates foram utilizados os textos de Athayde, Brito e Neves (2003a). .

O tema Comunidade Ampliada de Pesquisa foi o primeiro a ser apresentado. O debate se efetivou a partir dos trabalhos desenvolvidos pelo médico Ivar Oddone e sua equipe na Itália (1978-1982), que contribuíram de maneira significativa para a criação de uma 'nova cultura' no que diz respeito à relação entre operários e técnicos, ou seja, uma aliança entre intelectuais, sujeitos de um conhecimento científico, e trabalhadores, sujeitos da experiência e de um conhecimento sobre o processo de produção. Essa articulação, segundo Oddone (1986), sempre foi muito frágil, evidenciando uma 'incultura' por parte do pesquisador e do trabalhador. Conhecer as formas de cultura e patrimônios deve, segundo essa perspectiva, passar pelo conhecimento dos próprios trabalhadores, que será confrontado com os saberes formais dos pesquisadores e vice-versa.

Partindo dessa idéia, Oddone (1986) criou as Comunidades Cientificas Alargadas, com o intuito de aliar os conceitos acadêmicos ao dia-a-dia da experiência operária e, assim, ampliar a comunidade científica. Essa estratégia metodológica seria um instrumento privilegiado para o conhecimento do trabalho e para provocar nele uma transformação.

A discussão sobre essa comunidade ampliada de cientistas-pesquisadores constituiu-se em um primeiro e importante passo para uma longa trajetória de construção de alianças entre os pesquisadores da universidade e os professores, além de explicitar a direção ética da pesquisa. Buscávamos imprimir uma nova direção de formação que começava a ser acionada e instituir um espaço de trocas e debates entre conceitos científicos resultantes de outras pesquisas e a experiência prática dos docentes acerca das relações entre saúde e trabalho e processo formativo.

O lugar do especialista, possuidor da verdade e da única fala autorizada, foi questionado. Conforme o depoimento de uma professora: "A gente não se autoriza a pesquisar, a escrever, a gente não incorpora uma cabeça erguida" (professora y). Em muitos momentos, a instituição 'especialismo'11 11 Especialismo, aqui, não é o mesmo que especialista. Refere-se às práticas que desqualificam os saberes não considerados oficiais pela academia. foi destronada, facilitando a produção de conhecimento conjunto. Foi afirmada uma ética de pesquisa, segundo a qual só é possível produzir conhecimento sobre as relações entre saúde-trabalho com uma parceria entre os docentes e os pesquisadores, quando se busca aprender com o outro não só o que ele faz, mas, também, como ele o faz. Como afirmou um professor:

"Acho a idéia das comunidades ampliadas de pesquisa muito interessante e confesso que tenho grandes expectativas em relação aos resultados que o nosso grupo poderá alcançar, através das CAPs, principalmente no sentido de formar uma grande rede de pesquisa, discussões e soluções para os problemas que afetam a saúde de todos que trabalham na educação" (professor x).

O conceito-ferramenta apresentado no segundo momento do curso foi o de saúde. A concepção que utilizamos, e que já explicitamos brevemente, dirigiu as discussões. A formação dos professores incluiu não só o debate sobre uma concepção de saúde diferente da definição clássica que a considera como oposição à doença, mas visou, principalmente, a construir ferramentas que pudessem nos ajudar na transformação dos processos de trabalho instituídos nas escolas. Foi possível apontar as estratégias de resistência no trabalho como índice de saúde, como podemos ilustrar com as falas de algumas professoras: "Nós, professores e professoras, estamos lutando arduamente para conseguir um espaço na escola (tempo) para nossos encontros" (professora b); "Esperamos que nossa união possa melhorar as relações e o nosso ambiente, para que possamos produzir um trabalho com mais qualidade e mais prazer" (professora y).

A direção potencializadora que essa noção aponta fez com que, por muitas vezes, os professores pudessem sair do lugar do fracasso e da paralisação, por exemplo, quando um professor afirmou:

"Fui por alguns anos professor de Programas de Saúde e acreditava no que diz a OMS: 'A saúde é o completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade'. Com a participação no curso, vejo a saúde e a doença com outros olhos. A saúde é o motor que gera vida e a vida é dinâmica, produtiva, crítica e, sobretudo, transformadora. A doença é parte da vida, é desafiante, é inquietante, é instigante e se junta à saúde dando sentido à vida" (professor x).

Outras vezes, a impotência tomava o lugar da capacidade de tornar a inquietação como dispositivo para análise: "Honestamente, não acredito mais que as coisas mudem" (professora h).

A construção de um espaço crítico entre os pesquisadores da Ufes e os professores visou a propiciar a construção de discursos a partir das situações de trabalho, instituindo-se, assim, outras formas de produção de conhecimento sobre as relações trabalho-saúde nas escolas. Como sinalizam Athayde e Brito:

"(...) o acesso à experiência não é simples, pois sua principal característica é a opacidade, seja para o observador ou para o próprio sujeito, daí este esforço de criar uma atividade (de linguagem) sobre a atividade (de trabalho), re-apresentando-se a experiência e colocando-a em análise. As condições para esse tipo de diálogo estão por se desenvolver" (Athayde e Brito, 2003, p. 255).

O trabalho, na concepção que utilizamos, é uma experiência constitutiva da espécie humana, e foi nessa direção que pautamos a discussão sobre esse conceito-ferramenta. Nossos trabalhos, nossas práticas cotidianas, criam, por exemplo, a escola, o educador, a educação. Gerir é criar, gerir é também regular eventualidades específicas do ofício, além de gerir relações com o outro, os tempos-ritmos, o objeto mesmo da atividade, as relações com a equipe, com o aluno, com a comunidade extra-escolar, ou seja, toda uma gama de gestões heterogêneas que supõe sempre e, acima de tudo, um trabalho coletivo.

Nos debates, foi destacada a importância da construção de um ambiente de trabalho no qual os professores possam conversar, trocar experiências, falar sobre seu trabalho, reinventando-o a cada situação que o exija. Muitas vezes, o trabalho aparecia fundamentalmente como tripalium (tortura), mas, ao mesmo tempo, como uma 'cachaça' e, então, os professores apresentavam um 'brilho nos olhos'.

Ao se discutir o conceito de trabalho como aquilo que efetivamente é realizado e, também, aquilo que não se faz, aquilo que se procura fazer sem lograr êxito - 'o drama dos fracassos' -, aquilo que se teria querido ou podido fazer, aquilo que se pensa poder fazer em outras situações, uma professora afirmou:

"Sempre que eu não conseguia realizar o planejamento feito ou não conseguia fazer alguma coisa criativa na sala de aula, me sentia uma incompetente. Agora, que sei que as frustrações fazem parte do trabalho, encaro esse processo de outra forma e isso não me imobiliza mais" (professora c).

Outro professor acrescentou:

"O curso me fez mudar em relação à idéia de trabalho na perspectiva de sua variabilidade e imprevisibilidade. Saber da possibilidade de observar as prescrições estabelecidas tendo conhecimento de que elas podem ser adaptadas à realidade com um pouco de criatividade ou com muita luta, quando necessário" (professor w).

Ou, ainda, conforme se manifestou outro educador: "Saber que faz parte do trabalho não só o feito, mas o desfeito, o não feito e por que não o imperfeito?" (professor z).

Outra dificuldade colocada em análise durante o processo foi a de pensar o trabalho como processo coletivo. Cooperar aparece como 'somatório de partes' e as dores e as delícias como algo da ordem do individual, o que diferencia o bom do mau trabalhador. O 'cada um por si e Deus por todos' muitas vezes dominava os debates. Como criar novos modos de gestão frente a essas adversidades? Como pensar a cooperação para além do somatório?

Segundo alguns professores, só por meio do diálogo nas escolas é possível co-gerir o trabalho e isso só se faz 'criando tempo'. Conforme os depoimentos: "Temos que rachar o tempo. O poder começa quando se começa a dialogar" (professor o); "É necessária uma discussão ampliada sobre saúde e trabalho também com a comunidade extra-escolar" (professora y); "A gestão democrática e participativa é imprescindível quando temos como meta a promoção de saúde nas escolas" (professora b).

O debate sobre a temática Formação buscou destrinchar as práticas que vêm sendo construídas nesse âmbito, principalmente nessa nova organização do trabalho: O que a palavra formação suscita? Que formação requer o oficio de professor? Como se dá a formação do professor? Que aspectos ressaltar na formação? Como relacionar a formação acadêmica com essa que se dá no cotidiano? O que é formação permanente?

A discussão foi disparada com a apresentação do vídeo produzido pelas experiências do Programa de Formação em Saúde, Trabalho e Gênero, realizadas no Rio de Janeiro e em João Pessoa, apresentando depoimentos de professores que passaram pelo processo de formação e as ações que já estão sendo implementadas a partir desse programa nesses estados.

Com base nesse vídeo, foi possível disparar um debate que se constituiu como analisador das práticas em curso na escola. A formação dos professores (seu 'treinamento') é, muitas vezes, entendida como transmissão de um conjunto de conhecimentos do 'espaço do verdadeiro' numa racionalidade que traria os professores o mais próximo possível dessa verdade, fazendo com que, a partir de então, instrumentalizados, possam cumprir seu papel conforme prescrições das novas exigências da organização do trabalho docente.

Esse processo consiste, em outros termos, em nutrir a 'subjetividade especialismo'12 12 "Subjetividade especialismo" refere-se aos modos de operar no campo da formação que desqualificam todos os saberes que não são reconhecidos pelo saber 'científico oficial'. , descartando tudo o que não é autorizado. Nesse sentido, "o discurso competente, como discurso padronizado, exige a interiorização dos seus princípios, pois não interiorizá-los é ser considerado incompetente" (Barros, 1997, p. 208).

Descartam-se aí a experiência-construção cotidiana dos professores. É comum ouvirmos dizer que o professorado 'não quer capacitar-se' e justifica-se isso por explicações que vão desde a preguiça, a falta de entendimento dessa necessidade, a falta de compromisso e até o apego às tradições.

Os especialismos, como discursos do conhecimento, promovem, freqüentemente, o reconhecimento inconteste da incompetência dos humanos como sujeitos sociais e políticos. Mas, de tudo 'desconfia-se' e, portanto, resiste-se, como declarou uma professora:

"Eu não tenho pós-graduação, mas tenho 27 anos de trabalho. Isso serve também? A formação é informação, mas é também aquilo que nem sei explicar, vai se construindo e descontruindo no dia-a-dia, tem a ver com uma química, envolve o gestual, os sentidos aguçados, sei lá. Não sei explicar, mas a gente entra na sala, olha e aí sabe se dá pra ensinar uma certa coisa ou não. Isso também é formação" (professora h).

Os focos de estudo

Finalizando essa primeira fase - o curso - , foi realizado o último encontro, destinado à discussão e organização da continuidade do programa. Como definir o foco a ser estudado? A proposta dos exercícios de campo foi debatida entre os professores, que definiram as estratégias que seriam utilizadas nesse estudo.

A partir da proposta apresentada no Caderno de método e procedimentos (Athayde, Brito e Neves, 2003b), do Programa de Formação em Saúde, Gênero e Trabalho nas escolas, foram apresentadas algumas sugestões de focos de estudo que deveriam ser apreendidos uns em relação aos outros: 1) espaço de trabalho - ambiente, mobiliário, equipamentos e materiais; 2) sobrecarga de trabalho - tipo de prescrições, falhas das prescrições, imprevistos e condições inadequadas, trabalho realmente realizado, o que se mobiliza para dar conta do trabalho, relação entre número de alunos e professores por escola e por sala, ritmo de trabalho; 3) dinâmica das relações no trabalho - pressões temporais e hierárquicas, espaços formais e informais para encontro, visibilidade e circulação das informações, formas de comunicação; e 4) sinais de adoecimento e formas de enfrentamento e encaminhamento.

Como foco de pesquisa para ser explorado nos estudos de campo com os outros colegas das escolas, os docentes escolheram a dinâmica das relações de trabalho. Para cada grupo em campo se constituiu uma equipe de pesquisadores da Ufes que acompanhou o estudo realizado pelos docentes. Esse acompanhamento se efetivava nas dependências da Ufes, a partir do agendamento feito pelos docentes de acordo com suas disponibilidades. Como estratégias de pesquisa, os professores utilizaram observações, entrevistas, leituras de documentos pertinentes, diário de observações de campo, entre outros, centrados no foco de estudo.

Mensalmente, de posse do material obtido nos estudos de campo, os professores elaboravam relatórios e apresentavam seus achados em um encontro da CAP, a fim de trazer subsídios para uma análise coletiva das situações de trabalho, quando, então, foi possível iniciar a construção de algumas estratégias coletivas de monitoramento das condições de saúde e da organização do trabalho nas escolas, tais como:

  • sensibilização dos gestores-administradores das secretarias para a questão da situação das escolas e a produção de saúde-doença através de reuniões com os secretários de educação dos municípios, quando foi pactuado o desdobramento do segundo ciclo em alguns municípios com o apoio das secretarias;

  • início da construção de uma rede em cada escola e entre as escolas, abrindo-se um debate sobre as relações saúde-trabalho, que estão se efetivando por meio de um

    site criado para o PFist;

  • articulação entre a Ufes, o CRST e o Sindiupes para discutir a situação dos professores do estado e fazer encaminhamentos em busca de medidas cabíveis;

  • inclusão de uma oficina sobre saúde-trabalho no Congresso dos Professores do Estado do Espírito Santo, com a participação de, aproximadamente, mil docentes;

  • instituição de um fórum de debates sobre a instituição das Comissões de Saúde para os professores do município da Serra e da rede estadual de ensino com a participação da intersindical do Espírito Santo;

  • formação de um grupo de trabalho que vai construir propostas para uma política de saúde para os professores no Espírito Santo (duas professoras que participaram do primeiro ciclo do programa estão compondo esse coletivo ampliado do qual fazem parte o CRST, representantes da Secretaria de Saúde do Estado e a intersindical do Espírito Santo);

  • criação de grupos de estudos sobre saúde e trabalho em cada uma das escolas que participou do programa;

  • início do segundo ciclo do programa, que se efetivará no município da Serra, com a coordenação de 15 professores que participaram do primeiro ciclo.

Começou, assim, a construção de uma rede no âmbito da educação do estado do Espírito Santo, que pretende a mobilização de saberes não apenas científicos para a construção de outras situações de vida-trabalho no estado. Conforme previsto pela metodologia do PFist, e já assinalado anteriormente, o processo de formação terá continuidade com a coordenação dos docentes participantes desse primeiro ciclo, em um dos municípios da Grande Vitória - Serra - eleito pelos participantes. Tal escolha teve como critério a situação desse município, optando-se pelo que, no momento, apresenta as condições mais precárias de trabalho nas escolas.

Considerações finais

O Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas escolas da Grande Vitória nos indicou a importância de ações no campo da saúde do trabalhador da educação que não signifiquem um gerenciamento preventivo dos riscos provenientes do trabalho. Não se trata de fazer prevenção mapeando riscos, vigiando e antecipando a emergência de acontecimentos indesejáveis (Castel, 1986), nem de intromissão por parte dos cientistas na vida dos indivíduos. A conceituação de saúde, conforme trouxemos aqui neste artigo, não está relacionada com segurança contra o risco. Só podemos falar de saúde quando detemos os meios para enfrentar nossas dificuldades e nossos compromissos e a conquista e ampliação desses meios são uma tarefa ao mesmo tempo individual e coletiva (Czeresnia, 2003).

A partir do Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas Escolas da Grande Vitória, foi possível problematizar verdades instituídas, avessas à produção da saúde. Além disso, o programa representou uma outra prática formativa, pautada em uma ética diversa e resistente à lógica capitalista, que, no âmbito da saúde, sempre esteve associada a uma perspectiva valorativa que se refere àquilo que é considerado como desejável em um determinado momento e em uma determinada sociedade e que determina como um processo deveria ser. Tais práticas se constituem como elemento disciplinador e regulador, que se aplica ao corpo e às populações e que permite controlar a ordem do corpo e os fatos de uma multiplicidade humana (Foucault, 1992).

Na direção contrária, tentamos afirmar uma tradição no campo da Saúde do Trabalhador, buscando um modo de produção de conhecimento que se efetive a partir da construção de "um espaço de diálogo crítico sobre a atividade de trabalho nas escolas" (Athayde e Brito, 2003, p. 56). A Comunidade Ampliada de Pesquisa constituída na Grande Vitória com os professores das escolas públicas procura instituir-se como um recurso para reinscrever de outro modo o vivido em novas possibilidades de agir.

Notas

Recebido em 30/09/2004

Aprovado em 19/01/2005

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    Psicóloga. Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. <
  • 2
    Professora da Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. <
  • 3
    Professora da Universidade Federal do Espírito Santo. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. <
  • 4
    É importante destacar que, quando usamos a expressão 'possíveis', não estamos nos referindo a possibilidades, ou seja, à disponibilidade atual de um projeto ser realizado. A palavra possível não está designando, aqui, "a série de alternativas reais e imaginárias (ou... ou...), é preciso entendê-la como emergência dinâmica do novo" (Zourabichvili, 2000, p. 337). Não se tem o possível antes de tê-lo criado. Assim, o campo dos possíveis não se confunde com a delimitação do realizável em um determinado momento.
  • 5
    Essa primeira fase do processo investigativo foi realizada apenas no município de Vitória. A partir dos resultados obtidos foi implementado o Programa de Formação-Investigação em Saúde e Trabalho nas Escolas da Grande Vitória que se estendeu para as escolas da Grande Vitória, que inclui também os municípios da Serra, Cariacica, Viana e Vila Velha, o qual será apresentado posteriormente.
  • 6
    O conceito de subjetividade utilizado não tem o sentido de identidade ou personalidade, ou 'natureza humana'; refere-se a modos de existência "essencialmente fabricados e modelados no registro social" (Guattari e Rolnik, 1986, p. 31).
  • 7
    As fases que compõem o programa serão apresentadas posteriormente neste artigo.
  • 8
    Relatamos aqui apenas o primeiro ciclo do programa, uma vez que o segundo será iniciado em 2005.
  • 9
    O conceito de Comunidade Ampliada de Pesquisa será detalhado mais adiante neste artigo.
  • 10
    Como dispositivos para os debates foram utilizados os textos de Athayde, Brito e Neves (2003a).
  • 11
    Especialismo, aqui, não é o mesmo que especialista. Refere-se às práticas que desqualificam os saberes não considerados oficiais pela academia.
  • 12
    "Subjetividade especialismo" refere-se aos modos de operar no campo da formação que desqualificam todos os saberes que não são reconhecidos pelo saber 'científico oficial'.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2005

    Histórico

    • Aceito
      19 Jan 2005
    • Recebido
      30 Set 2004
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