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Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo

RESENHAS REVIEWS

Angélica Ferreira Fonseca

Coordenadora Editorial da revista Trabalho, Educação e Saúde <revtes@fiocruz.br>

Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 1999, 156 p.

No campo da saúde, é cada vez maior a freqüência de propostas de qualificação profissional cuja responsabilidade de implementação está exclusivamente a cargo de entidades tão diversas quanto hospitais, conselhos municipais e secretarias de saúde.

Esse movimento traz implicações que certamente merecem ser analisadas, mas, de antemão, é pertinente questionar o quanto deste esforço pela expansão dos processos de qualificação, freqüentemente impulsionado pelo anseio de adequação dos trabalhadores às mudanças nos processos de trabalho decorrentes da velocidade de produção e incorporação de inovações tecnológicas, vem sendo acompanhado por um diálogo com os referenciais teóricos próprios do campo da educação.

Certamente o livro Documentos de Identidade; uma introdução às teorias do currículo, de Tomaz Tadeu da Silva - professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), envolvido, há mais de duas décadas, com as discussões do campo educacional - é extremamente interessante como introdução, tal qual o próprio título informa, às discussões teóricas do campo social, filosófico e educacional que abordam diretamente a questão do currículo ou que, a despeito deste enfoque, conduziram a diferentes formas de se pensar sobre o tema.

Poderíamos dizer que, através desse texto, encontramos uma colaboração consistente ao objetivo de elaborar de forma consciente uma fundamentação teórica que se faz necessária enquanto base para a reflexão/ação do educador que se pretende crítico.

Ao longo do livro, dividido em duas partes, cada uma contendo nove textos breves, o autor apresenta um mapeamento das principais contribuições, ora referidas a autores específicos, ora a movimentos intelectuais, que proporcionam uma composição de certa pluralidade teórica que nos ajuda a refletir sobre o lugar do currículo nos processos de produção e reprodução social.

Na introdução, Tomaz Tadeu renuncia à pretensão de objetividade mostrando-se favorável a abordar a questão do currículo não a partir da noção de teoria, que estaria comprometida com um conceito de verdade, mas da noção de discurso, compreendido como um modo particular de definição, produzindo, assim, uma certa concepção de currículo. Ao argumentar a favor da segunda alternativa,o autor implicitamente sugere ao leitor que também seu texto deva ser tomado como um modo particular de valorar, representar e articular as construções teóricas que ele destaca como centrais à reflexão sobre o currículo. Fica ao leitor o convite, reforçado pela clareza do texto e pela abrangência das questões postas em pauta, a atuar como co-autor, reformulando, através da leitura, as conexões, entrelaçamentos, contraposições e transformações que os conceitos de cada teoria produzem entre si.

Como "sinalizadores" da renovação da teoria educacional/curricular, o autor apresenta dois deslocamentos, que, em grande parte, definem a organização do livro. O primeiro intenso deslocamento, e que constitui a primeira parte do livro, seria proporcionado pelas Teorias Críticas ao demarcar o campo do currículo como espaço de poder, ou seja, de luta por hegemonia em torno de projetos de escolarização, onde estão situados e em movimento as antinomias imposição/resistência e domínio/ oposição. O segundo deslocamento seria ocasionado pelas teorias Pós-Críticas ao descentrar a ênfase nas dinâmicas de classe e consolidar a importância dos processos de produção de subjetividade, particularmente expressos nas construções discursivas para a elaboração de análises sociais.

Em relação ao primeiro conjunto de teorias, a grande transformação frente às teorias tradicionais se opera pelo profundo questionamento quanto à naturalização dos conhecimentos que compõem o currículo e as estruturas educacionais. Enquanto as teorias tradicionais, com base nos princípios da administração taylorista, tomariam como dado os conhecimentos em torno dos quais se estabelecia o status quo, concentrando-se na dimensão tecnocrática do currículo, as Teorias Críticas viriam investir no desenvolvimento de conceitos que permitissem compreender o modo pelo qual dinâmicas sociais de dominação se implementam também através dos processos educacionais e curriculares, conformando uma estreita conexão entre saber e poder.

Ao relembrar que a teorização curricular recente ainda vive do legado das teorias críticas, o autor indiretamente nos indica o interessante exercício de identificar alguns conceitos que impulsionaram estas reflexões e que permanecem fortemente presentes nas análises sobre currículo.

Observa-se, assim, que a partir das teorizações críticas de base marxista, a questão da desigualdade - tomada como fenômeno vinculado à injustiça - se estabeleceu nesse campo de discussão. A preocupação em compreender, na perspectiva de transformar, os contextos através dos quais a escola atuava de forma discriminatória em relação às classes trabalhadoras mobilizou a produção de autores das denominadas teorias críticas, como Bordieu, Passeron, Michel Apple, Paulo Freire, por exemplo, e de correntes de pensamento como a Nova Sociologia da Educação. A atenção à questão da desigualdade/dominação foi preservada no conjunto das Teorias Pós-Críticas, influenciando vigorosamente as referências de análise de vertentes teóricas, tais como a pedagogia feminista, pós-colonialista e o multiculturalismo. Entretanto, diferentemente da perspectiva promovida pelas Teorias Críticas em relação às Teorias pós-críticas, constata-se uma recusa à idéia de emancipação como contraponto à dominação, na medida em que não admite a existência de uma essência humana a ser recuperada.

Outro exemplo de proposição teórica que vem expressar o poder de rearticulação e reconstrução de determinadas concepções quando incorporadas a um novo cenário de questões é a afirmação do currículo como artefato histórico. Uma abordagem histórica que enfatiza o caráter de construção social do currículo ingressou de modo pungente no debate educacional através da Nova Sociologia da Educação. A crítica dirigia-se à forma pela qual as categorias curriculares, pedagógicas e avaliativas foram naturalizadas pela teoria educacional e pelos educadores, apontando para o fato de que sua desnaturalização deveria seguir um itinerário de reflexão que promovesse a compreensão dos interesses e valores sociais postos em jogo no processo seletivo característico das construções curriculares. Esta contribuição inspirou também os Estudos Culturais e as teorias influenciadas pela perspectiva pós-estruturalista.

Outro debate instigante em que o livro nos envolve diz respeito ao modo como as diferentes teorias consideram a relação entre cultura acadêmica e escolar, cultura popular e cultura de massa. Não vamos nos deter aqui na discussão sobre a qualidade dos vínculos entre as dinâmicas do campo social e campo cultural, abordada por Tomaz Tadeu, mas somente focalizar como determinadas correntes teóricas contribuem para integrar a cultura popular no contexto pedagógico.

Ao colocar em questão a visão elitista segundo a qual do campo cultura estariam excluídas as manifestações populares, postulando o reconhecimento da cultura como "forma global de vida ou experiência vivida de um grupo social" (p. 133), o campo denominado Estudos Culturais contribuiu para consolidar, no campo educacional, uma perspectiva antropológica de cultura que tem grande repercussão nas diversas vertentes teóricas.

É especialmente relevante, nesse conjunto de reflexões, o papel de Paulo Freire, cuja influência extrapolou o âmbito nacional. O que o texto nos permite registrar é que, ao estruturar uma abordagem pedagógica que ressignifica a cultura, traduzindo-a como o contexto existencial em articulação com o contexto social, Paulo Freire traz a experiência de vida dos educandos e, portanto, a dimensão cultural dessa existência para o centro do processo pedagógico. Consubstanciada no conceito de educação problematizadora, Paulo Freire apresenta alternativa teórico-metodológica para a superação do freqüente fracasso dos processos de educação de adultos.

Essa formulação sobre a cultura continha uma contestação explícita à excessiva valorização das tradições culturais dos grupos dominantes, em detrimento do universo cultural dos grupos subordinados. Tal elaboração, que perpassa Teorias Críticas e Pós-críticas, aponta para um desenho curricular coerente com um projeto político-pedagógico apoiado em princípios democráticos. A cena educacional é assim pontuada por novas análises, nas quais as experiências culturais consideradas estão para além da produção reconhecida pelas elites tradicionais.

Finalizando, destacamos que o livro de Tomaz Tadeu tem o mérito de provocar, mesmo em leitores pouco familiarizados com o campo teórico da educação, a experiência de um diálogo que estimula o desejo de continuidade através de outros textos. Além disso, impulsiona aqueles que se comprometem com as práticas educativas a reconhecer a complexidade desse objeto e retomar uma indagação que nos parece fundamental: afinal, que sociedade pretendemos construir e que lugar reservamos nessa sociedade para a escola?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2003
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