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Trajetória e mutações do utilitarismo jurídico-penal: um ensaio de história das ideias

Trajectory and mutations of PENAL utilitarianism: an essay of intellectual history

Resumo

Este texto aborda a biografia do utilitarismo jurídico-penal moderno focando três importantes momentos de seu desenvolvimento: o utilitarismo ilustrado (Bentham e Beccaria), o utilitarismo reformado (Ferrajoli) e a crise do utilitarismo penal, denunciada pela criminologia crítica, em suas vertentes minimalistas e abolicionistas. O instrumental teórico empregado é o da historiografia das ideias, de modo que os fundamentos da punição - no caso deste ensaio, a prevenção geral negativa e a prevenção de penas arbitrárias - conformam uma tipologia de respostas designadas para elucidar a questão perene “por que punir?”, sem perder de vista a constância desse debate, que até então permanece irresoluto. Ao fim, se ensaia uma resposta, calcada nas considerações do realismo marginal (Zaffaroni), no sentido de identificar os limites, mas também traçar algumas condições que tornem viável a permanência dos pressupostos utilitaristas no campo jurídico-penal.

Palavras-chave
Utilitarismo penal; história das ideias; criminologia crítica; abolicionismo; realismo marginal

Abstract

This text addresses the biography of modern utilitarianism, in a legal and criminal sense, focusing on three important moments of its development: illustrated utilitarianism (Bentham and Beccaria), the reformed utilitarianism (Ferrajoli), and the crisis of the utilitarianism ideal in this sense - this last one exposed by the minimalist and abolitionist branches of critical criminology. The theoretical instrument used is the one of historiography of ideas, so that the foundations of punishment - in the case of this investigation: negative general prevention and prevention of arbitrary penalties - conform to a typology of responses designed to elucidate the perennial question “why punish?”, without losing sight of the constancy of this debate (until now unresolved). In the end, a possible answer is suggested based on the considerations of marginal realism (Zaffaroni) in order to identify the limits of utilitarianism, but also to outline some conditions that enable the maintenance of its assumptions in criminal law.

Keywords
Penal utilitarianism; intellectual history; critical criminology; abolitionism; marginal realism

Introdução

Revisar criticamente os passos do utilitarismo penal é, ainda hoje, uma tarefa necessária. Os sentidos discursivos atribuídos ao controle penal na Era Moderna fazem mais do que limitar as práticas punitivas: conformam uma cosmovisão, formam e deformam as mentalidades dos atores jurídicos, naturalizando determinadas noções e, por vezes, imunizando-as de investidas críticas. Sob o pretexto de racionalizar as penas, o utilitarismo penal readéqua o imperativo de legitimar o castigo no novo “paraíso terreno” que estaria por trás do projeto iluminista. E, assim, o mal-estar permanece. Malgrado a chegada dos “tempos modernos”, nossas prisões ostentam feições similares às de uma masmorra medieval que dariam inveja a qualquer soberano absolutista; bibliotecas inteiras são redigidas no intuito de conceder ao direito penal um caráter subsidiário e fragmentário, mas nossa política criminal insiste em fazer da criminalização uma via pretensamente idônea para a resolução de conflitos que escapam à racionalização simplificadora calcada no binômio crime/pena; a despeito da fartura de evidências empíricas a sugerir o oposto, os teóricos que escrevem a narrativa do Direito Penal prosseguem na crença de que a eleição de uma teoria de justificação da pena é uma atitude inexorável e perfeitamente racional.

Ainda assim, é o ofício das críticas criminológica e jurídico-penal prosseguir na cansativa tarefa de denunciar as incongruências entre as funções manifestas pelo ordenamento jurídico e as funções latentes, efetivamente desempenhadas. Queremos crer que esse exercício não é infrutífero, em especial no que condiz com as justificativas utilitárias do poder de punir, pois, se autores como Massimo Pavarini possuem alguma razão, a adoção de um crivo utilitário para legitimar o controle penal acabou sendo um “mau negócio” para a pena: quando se tratava de justificá-la de acordo com parâmetros inverificáveis, a sua refutação não podia passar de uma atitude moral, mas, a partir do momento em que fins práticos lhe são atribuídos, temos o seu calcanhar de Aquiles (PAVARINI, 1993PAVARINI, Massimo. La justificación impossible: la historia de la idea de pena entre la justicia y utilidad. Capítulo Criminológico, Maracaibo, n. 21, p. 30-41, 1993. , p. 31).

Nossa reflexão neste ensaio partirá da historiografia das ideias, trabalhada por autores como Franklin Baumer e Arthur Lovejoy, intentando descrever sob esse prisma a caminhada do utilitarismo penal moderno. Essa trajetória, no entanto, não será narrada com pretensão de completude, o que implicaria analisar inúmeros outros modelos de justificação utilitária da pena,1 1 Uma cronologia bastante completa desses modelos, contendo inclusive os utilitarismos de matriz preventista especial, pode ser obtida em Bitencourt (2011). sem falar na variedade de críticas que lhes foram dirigidas. Para a nossa reflexão, apontaremos três momentos distintos desse itinerário.2 2 Por “momentos”, não pretendemos descrever uma trajetória linear. De fato, as teses que puseram em xeque o utilitarismo penal, oriundas das criminologias críticas, certamente precedem o utilitarismo reformado de Ferrajoli, por exemplo. E, sem querer ir longe demais, é de se notar, na linha do que aduz Michel Foucault, que a crítica da prisão (inclusive a denúncia de sua inutilidade) aparece muito cedo (FOUCAULT, 2009, p. 251 ss.). Optamos por privilegiar a linearidade do raciocínio em detrimento da cronologia das formulações de que nos ocuparemos. No primeiro deles, trataremos de referir alguns dos principais argumentos de sustentação do utilitarismo no interior da narrativa jurídico-penal, a partir do utilitarismo ilustrado (cujos mais destacados pensadores certamente foram Jeremy Bentham e Cesare Beccaria) e do utilitarismo reformado, que impulsionou inúmeras discussões teóricas dentro do campo jurídico-penal desde a sua formulação por Luigi Ferrajoli, rendendo debates que seguem atuais. Em um segundo momento, buscaremos referir dois horizontes de crítica criminológica às justificações utilitárias: o minimalismo penal de Alessandro Baratta3 3 Não que seu modelo seja o único programa de intervenção político-criminal que a criminologia crítica foi capaz de desenvolver, mas certamente é um dos mais importantes, tendo angariado a devida simpatia de toda uma geração de criminólogos críticos latino-americanos, o que justifica a preferência deste ensaio. Para uma homenagem a suas ideias e atitudes, cf. Andrade (2012), em especial o primeiro capítulo. e as formulações abolicionistas. Ao fim, ensaiaremos algumas conclusões a partir do modelo de Direito Penal mínimo desenvolvido por Eugenio Raúl Zaffaroni. Buscaremos demonstrar em que termos o autor aborda o utilitarismo no interior da narrativa jurídico-penal, projetando, a nosso ver, uma ruptura e, ao mesmo tempo, uma revitalização utilitária do Direito Penal, sem abrir mão da coerência.

1. Delimitação do marco teórico: o campo penal na história das ideias (“por que punir” enquanto questão perene)

A tradição de pesquisas no campo da história das ideias está longe de constituir uma novidade do ponto de vista historiográfico. Segundo Franklin Baumer, a história das ideias enquanto saber remonta ao Iluminismo. Os germes de seus estudos podem ser rastreados até autores como Voltaire, embora no geral o campo tenha sido eclipsado por interesses historiográficos diversos, como o da história política (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 18). Além do próprio Baumer, desde a perspectiva estadunidense4 4 Cabe agregar que no Brasil a historiografia das ideias tem sido desenvolvida por estudos como os de Ruth Gauer (2009) e suscita debates no âmbito das ciências criminais, em particular do processo penal, cabendo mencionar trabalhos como o de Augusto Jobim do Amaral (2013) e Salah H. Khaled Jr. (2010). da historiografia das ideias temos um oportuno desenvolvimento com as considerações pioneiras de Lovejoy, para quem esse saber possui algumas predileções que ajudam a depurar seu objeto de estudo. Conforme o autor, o crivo da historiografia das ideias tem de ser muito claro: a disciplina interessa-se por ideias “que produzem efeito na história do pensamento”, ideias que prevalecem ao teste do tempo, ideias que suscitam ações humanas, frequentemente coletivas (LOVEJOY, 2005LOVEJOY, Arthur O. A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo, 2005. , p. 15).5 5 Uma importante discussão se dá acerca do papel que as ideias acabariam desempenhando na trajetória histórica. Franklin Baumer sinaliza duas tendências extremas. De um lado, os idealistas pressupõem que as ideias seriam forças em si mesmas, tendentes a modificar o percurso histórico em conformidade com a mudança dos ventos no interior do pensamento de uma geração. Simplificando bastante: há aqui a assunção de que as ideias modificam o mundo material (e não o contrário). Na outra ponta, temos a tendência mecanicista que se recusa a enxergar as ideias como determinantes da caminhada histórica. Há aqui uma pressuposição invertida: as ideias seriam reflexos, ou seja, guardariam uma mera relação de correspondência em função das realidades materiais que as produzem em primeiro lugar. Acompanhamos a conclusão de Baumer, para quem nenhuma das duas posições pode ser uma saída interessante para o desenvolvimento da historiografia das ideias. Deve-se primar por uma posição intermediária que não negue uma relação dialética entre as condições sociais e a força criadora das ideias (BAUMER, 1977, p. 23-24). Existe uma interação complexa que deve ser investigada caso a caso, evitando-se fórmulas analíticas preconcebidas que só serviriam para ser desmentidas. Especulamos que a controvérsia acerca da força criadora das ideias se comunica com outra questão adjacente: o potencial da própria ação humana no sentido de modificar as injustiças de seu tempo, o que é uma questão sensível especialmente para quem teoriza desde as ciências criminais. Como regra, só poderemos seguir depositando nossa convicção na velha máxima marxiana segundo a qual os seres humanos “fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos” (MARX, 2011, p. 25). Essa ramificação da historiografia atribui importância às doutrinas na medida em que angariam adeptos, e não quando são fruto de concepções marcadamente individuais de seus formuladores, destituídas de qualquer transcendência. Quanto mais ampla a difusão de um sistema de pensamento - digamos, o pensamento utilitário no interior da narrativa jurídico-penal -, ao ponto de se tornar “parte do acervo de muitas mentes”, maior será o interesse do historiador das ideias (LOVEJOY, 2005LOVEJOY, Arthur O. A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo, 2005. , p. 27-28). Dizer que o historiador das ideias se interessa por ideias que encontram difusão, entretanto, não implica dizer que pouco lhe importa os seus formuladores. O papel do intelectual nesses estudos é uma questão crucial. Tomemos em conta a afirmação de Lovejoy (2005, p. 16-17)LOVEJOY, Arthur O. A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo, 2005. :

[...] há suposições implícitas ou incompletamente explícitas ou hábitos mentais mais ou menos inconscientes, operando no pensamento de um indivíduo ou de uma geração. São as crenças que são tão habituais que são mais tacitamente pressupostas do que formalmente expressas e discutidas, as maneiras de pensar que parecem tão naturais e inevitáveis que não são perscrutadas com o olho da autoconsciência lógica, que com frequência são mais decisivas do caráter da doutrina de um filósofo, e ainda mais frequentemente das tendências intelectuais dominantes de uma época.

Se a proposição do autor está correta - e julgamos que está -, a formação dos hábitos mentais que caracterizam o pensamento de dada época obtém na figura do intelectual (em sentido amplo, é claro) um intérprete privilegiado. Não por outra razão Baumer (1977, p. 23)BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977. irá considerar que o intelectual desempenha um papel fundamental na história das mentalidades, uma vez que seria um “espelho” do pensamento de seu tempo - embora a metáfora tenha de ser compreendida em termos bastante relativos, já que o intelectual apreenderia as ideias em estado bruto, dando-lhes significado, coesão e inserindo-as em uma estrutura de pensamento mais geral, o que requer certamente algo de sua subjetividade.

Embora os seus articuladores principais tenham buscado definir um quadro conceitual e postulados metodológicos próprios às necessidades de seu ofício, eventualmente reivindicando uma relativa autonomia para o campo - o que se deu na busca de demarcação de certas fronteiras que o separam da história política e dos estudos de história da filosofia, por exemplo -, a história das ideias segue distinguindo-se como um saber multidisciplinar, interdepartamental (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 21) e impróprio para mentes compartimentadas (LOVEJOY, 2005LOVEJOY, Arthur O. A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo, 2005. , p. 30).

De que modo opera a historiografia das ideias? Acreditamos que a resposta mais eficaz dada a essa questão veio das considerações de Lovejoy (2005, p. 13)LOVEJOY, Arthur O. A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo, 2005. . De acordo com o autor, a disciplina lida com ideias-unidade, ou seja, o desmembramento de sistemas mais complexos de ideias (doutrinas, tendências ou simplesmente “ismos” diversos). Sendo o corpo total de uma concepção doutrinária um agregado complexo e heterogêneo, o qual o próprio idealizador sequer suspeita existir, a historiografia das ideias preocupa-se em analisar seus componentes individuais. O esforço de individualizar as células que compõem um corpo de pensamento tem o claro propósito de captar as permanências e mudanças havidas durante a caminhada histórica com uma lente teórica otimizada. Aliás, as inovações constantemente arguidas pelos intelectuais que anunciam a transição de um sistema de pensamento para outro jamais deixam de angariar a desconfiança do historiador das mentalidades. Isso, porque o que acaba sendo percebido como uma inovação muitas vezes não passa de um rearranjo ou um reordenamento de ideias-unidade, dando vida a um padrão diverso, a uma nova doutrina, a uma reforma (ou contrarreforma) das mentalidades de uma época, ou a outro “ismo”. Estamos diante de diferenças de superfície, portanto, de modo que raramente o que se opera é a substituição das ideias-unidade que compõem um sistema por outras, mas, sim, um novo manejo delas (LOVEJOY, 2005LOVEJOY, Arthur O. A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo, 2005. , p. 14).

Como dito, neste ensaio se intenta retraçar a caminhada do utilitarismo na circunscrição da narrativa jurídico-penal, o que implica atentar para os seus rearranjos doutrinários. Sendo necessário eleger a ideia-unidade que regeu os incontáveis sistemas utilitários de direito penal, argumentaremos desde já que a “pena útil” desempenhou esse papel. De fato, a imposição político-criminal da necessidade de um resultado prático e socialmente benéfico (a defesa social mediante “prevenção da criminalidade”) a partir do castigo constitui o fator distintivo do plano político-criminal da burguesia nascente, em oposição ao poder absoluto do soberano no século XVIII. Foi essa ideia que encampou, ao menos no plano das práticas punitivas, uma guinada histórica que culminou na ascensão do Terceiro Estado e na derrocada dos Estados Absolutos europeus, assim como na corrosão da influência das doutrinas clericais.6 6 Embora deva se ressaltar que nesse particular a ideia de secularização do crime e das penas, transportando-os aos marcos de uma fenomenologia secularizada, certamente foi ainda mais decisiva do que a simples imposição de uma utilidade terrena para o castigo. Não à toa convictos utilitaristas como Ferrajoli não cansam de celebrar a separação entre direito e moral como um importante passo para a transição de um direito penal substancialista para um direito penal de tipo cognitivo e garantidor (FERRAJOLI, 2014, p. 200 ss.). A utilidade do castigo para deter novos delitos se torna tão fundamental que a não verificação dessa hipótese autorizadora, no cânone da nova moral burguesa, serviria para desautorizar a irrogação da pena, golpeando fortemente o escopo de projeção do poder soberano. Como resume Foucault, a partir de então, “um crime sem dinastia não clama castigo” (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 36. ed. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 89), e em termos político-criminais essa premissa representa uma verdadeira revolução copernicana.

Contudo, para que serve a história das ideias e de que modo ela nos auxilia na empreitada de revisar os marcos do utilitarismo penal? Baumer (1977, p. 25)BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977. é enfático ao responder a primeira parte desse questionamento: a utilidade desse saber reside em sua aptidão para fornecer respostas às questões perenes, isto é, questões investigadas pela humanidade ao longo de todas as gerações, durante toda a trajetória histórica. São questões que não podem deixar de ser feitas e que traduzem algumas das perguntas mais profundas que os seres humanos historicamente sempre enunciaram, e aí estaria seu traço perene (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 27). Ao longo de sua obra, Baumer destaca e desenvolve cinco delas, a saber: “deus”, a “natureza”, a “humanidade”, a “sociedade” e a própria “história”. Embora essas questões não estejam presentes em igual intensidade (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 33) ao longo do pensamento europeu moderno - recorte de investigação que o autor adota -, é incontroversa a sua permanência nas mentalidades.

Para entendermos de que modo a questão penal se insere no âmbito das perguntas perenes, devemos ter em conta dois alertas feitos por Baumer. Em primeiro lugar, existem zonas de contato entre todas essas questões, de modo que as respostas fornecidas para uma delas constantemente também tocam, ainda que de maneira indireta, as demais. Em segundo lugar, o significado conceitual dos enunciados, assim como as respostas que eles geram, não pode ser descolado de sua própria historicidade. Como adverte Baumer (1977, p. 34-35)BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., as questões perenes devem ser examinadas nos termos mais amplos possíveis, pois de outro modo tenderíamos a considerar, por exemplo, que as discussões sobre o Estado na Grécia Antiga nada têm a ver com os questionamentos que o moderno Leviatã suscita (por essa razão, o autor pensará em termos mais abrangentes, como o da “organização social” em sentido amplo, que certamente sempre gerou respostas ao longo da história das mentalidades).

Ora, tendo em conta os alertas supramencionados, não é exagero considerar que a questão penal é uma constante ao longo da história das ideias, ainda que a sua gramática tenha sofrido variações. É fácil verificar que as respostas que a questão “por que punir?” gerou comunicam-se (além, obviamente, da questão que versa sobre a sociedade e seus modos de produção e organização da vida) com questões perenes como deus (especialmente nos debates sobre a secularização do crime e da pena, como já mencionamos de passagem), o ser humano (por exemplo, quando a criminologia positivista, em afronta à antropologia iluminista que pregava o livre-arbítrio, irá conceber um homem determinado, um criminoso atávico, na linha dos estudos de antropometria criminal, como os de Lombroso (2007)LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone, 2007. no século XIX, reciclados e utilizados como sustentáculo de legitimação da política criminal nacional-socialista em meados do século XX)7 7 Sobre o tema, e a inadmitida influência lombrosiana nos estudos de antropologia criminal levados a cabo durante o regime, cf. Muñoz Conde (2005). ou mesmo a história (como se infere da insistência da narrativa jurídico-penal em enxergar um “progresso” rumo à humanização das práticas punitivas, em conformidade com a historiografia setecentista).8 8 Que anunciava nada menos do que uma transição “das trevas para a luz” (BAUMER, 1977, p. 275). A questão “por que punir?” gravita em torno do objeto de discussão da historiografia das ideias, e nesse cenário a ideia de “pena útil” talvez tenha constituído a maior permanência discursiva ao longo da modernidade.

2. Utilitarismo penal moderno: manejos da tensão entre contração punitiva e defesa social

Entre os tratadistas que se ocupam do estudo das ideias penais, é comum considerar que a modernidade legou duas grandes narrativas que servem de fundamento ao poder de punir. De um lado, estariam as doutrinas absolutas (ou retributivas) do castigo, normalmente associadas a pensadores como Immanuel Kant (2003)KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2003. e Georg W. F. Hegel (1997)HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997., em que pese que suas raízes remontam pelo menos ao medievo.9 9 Pavarini, de passagem, faz menção às raízes pré-modernas do discurso retribucionista inerente à tradição religiosa que vincula a pena a noções como a de “castigo divino”, de modo a torná-la um mecanismo “expiação” do crime/pecado (PAVARINI, 1993, p. 31). Além disso, quando pensamos na pena como instrumento de retribuição, é difícil escapar da imagem da “Lei de Talião”. Mais uma vez, o instrumental da história das ideias serve para nos prevenir acerca da constância de ideias-unidade que sobrevivem mesmo no interior de sistemas de pensamento de tipo distinto. De outro lado, os manuais costumam mencionar as doutrinas relativas (ou utilitárias), normalmente sucedidas de uma tipologia que as divide em prevenção geral (que pode ser de tipo “negativo” ou “positivo”) ou prevenção especial (igualmente, “negativa” ou “positiva”). Mesmo que a categorização possa simplificar em excesso as diferenças e convergências entre as referidas correntes,10 10 A título de exemplo, a partir de Zaffaroni et al. (2003, p. 521), poderíamos interrogar se as teses retributivas, especialmente de matriz kantiana, estariam de fato tão distantes de uma demarcação utilitária. O argumento dos autores é o seguinte: conceber a teoria da pena contida em Kant como algo completamente alheio ao utilitarismo não passa de simplismo, pois dizer que a pena é “um fim em si mesmo” não significa dizer que ela não possui uma finalidade (no caso, a realização de um imperativo moral). Nesse caso, ela não seria absoluta, mas, sim, irracional, o que não combina com o legado kantiano e o espírito moderno de modo geral. Em sentido similar, o retribucionismo de matriz hegeliana também não nos parece terminantemente alheio à gramática utilitária, já que a restauração da ordem jurídica, ferida pelo fenômeno criminal, denota a imposição de uma finalidade conservadora ao poder punitivo, trazendo à superfície um componente utilitário. Não por acaso, Zaffaroni et al. consideram possível estender uma ponte entre as teses utilitárias que compõem a prevenção geral positiva (ou “prevenção integração”) e o sistema hegeliano de justificação da pena (ZAFFARONI et al., 2003, p. 121-122). Assim, é de se conceber a tipologia usual das ideias penais como uma categorização ideal e relativa, e não estanque. fica bastante claro que cada uma das teses configura uma hipótese de legitimação do poder de punir em conformidade com o esquadro moderno, cada uma delas desempenha o papel de sustentação política da pena estatal e entrega o lugar teórica e filosoficamente demarcado ao controle penal em dada organização social (NOVOA MONREAL, 1984NOVOA MONREAL, Eduardo. Algunas reflexiones sobre el derecho de castigar del Estado. Anuario de Filosofía del Derecho, Madrid, n. 1, p. 197-211, 1984., p. 197).

Deve-se observar, porém, que a filosofia utilitária extrapola o campo do Direito Penal. De modo geral, o utilitarismo costuma ser descrito como um segmento da filosofia moral que procura dotar a busca do bem viver de um senso de utilidade prática das ações rumo à maximização dos prazeres e à minimização dos sofrimentos, ainda que as implicações casuísticas dessa busca não sejam livres de polêmica e tenham constantemente gerado paradoxos irresolúveis.11 11 Um excelente inventário dos debates surgidos a partir do utilitarismo pode ser visto em Mulgan (2012). Com John Stuart Mill e Jeremy Bentham - que, com Henry Sidgwick, seriam os maiores nomes do chamado utilitarismo clássico (cf. MULGAN, 2012MULGAN, Tim. Utilitarismo [recurso eletrônico]. Petrópolis: Vozes , 2012., p. 11 ss.) -, o utilitarismo penetra na filosofia política,12 12 Como veremos, o desenvolvimento da questão penal foi uma temática mais presente na obra de utilitaristas como Bentham e Beccaria, mas a obra de Stuart Mill representa um dos momentos mais marcantes do liberalismo político, teorizando sobre temáticas como a liberdade de expressão, a democracia e o direito das mulheres, iniciativas que, a seu ver, estariam plenamente fundamentadas pelos postulados utilitários (MULGAN, 2012, p. 20 ss.). Mesmo assim, os ecos de Mill se fazem ouvir no campo penal, por exemplo, na transposição de seu “princípio do dano” (harm principle) às discussões referentes aos limites legislativos da criminalização nos sistemas jurídicos anglo-saxões (ZAFFARONI, 2014, p. 11). dando outro sentido às relações entre governo e sociedade. Não é exagero considerar que a filosofia utilitária fornece ao projeto moderno burguês um arsenal de fundamentação teórica ímpar. A partir da introjeção dos postulados utilitários na filosofia política, temos plantadas as condições históricas para que o sujeito moderno - calculista, prospectivo, individualista - possa atualizar a própria concepção de ser humano.

Podemos considerar, ainda, que o impulso de distinção levado a termo pelos modernos em contraposição à herança legada pelos antigos torna possível a edificação de uma nova forma de se pensar a experiência humana, especialmente no que se refere à natureza e à sociedade. A atitude contemplativa cede espaço a uma concepção utilitária e ativista (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 48), a perspectiva moderna por excelência no que diz respeito ao trato dessas e de outras questões. Essa perspectiva foi capaz de fundar todo um sistema de eticidade que tem a ver com “uma corporalidade reduzida a ser uma mera subjetividade empírica orientada pelo cálculo meio-fim ao controle de uma felicidade” (DUSSEL, 2012DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2012., p. 108) que poderia estar na satisfação de interesses materiais do sujeito, da sociedade ou do Estado-nação moderno. De fato, o sistema de ética próprio do utilitarismo moderno, em certos momentos, chega a conceber uma espécie secular de “divina providência”, na qual a conduta individual egoísta e o bem comum da sociedade - e, com isso, a prosperidade do Estado moderno - restariam perfeitamente conciliados (DUSSEL, 2012DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2012., p. 109-110).

A título de digressão, vale observar, com Pierre Dardot e Christian Laval, que, na perspectiva contemporânea, mesmo essa conciliação entre o egoísmo e o bem-estar parece ter desaparecido. No neoliberalismo, a nova razão do mundo baseia-se em postulados spencerianos, de darwinismo social, abolindo a necessidade de qualquer utilitarismo, pois o egoísmo da “mão invisível” do mercado e as formas de cooptação da subjetividade pelo vetor biopolítico tornam-se dominantes. Não se necessita buscar formas de remediação visando à maximização do prazer e do sofrimento. Não há espaço para a felicidade humana, apenas para as virtudes do egoísmo privado visando a um mítico bem geral, já que nem a sociedade existe, apenas indivíduos racionais atomizados. Representando esse espírito, os autores catalogam duas grandes correntes de ideias: o ordoliberalismo representado por Walter Eucken e Wilhelm Röpke, e a corrente austro-americana, representada por Ludwig Von Mises e Friedrich A. Hayek, com pensamento econômico assentado exclusivamente no laissez-faire (DARDOT e LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 33 e p. 44-45). Essa ideologia hoje promove um alinhamento planetário das políticas públicas, sendo os Estados Unidos a encarnação planetária da utopia neoliberal (WACQUANT, 2001WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 20).

Tomando a questão do papel do Estado, Baumer demonstra que as diversas correntes do pensamento político que floresceram na modernidade pareciam concordar com a premissa de que o Estado seria “um mecanismo que podia ser manipulado para produzir mais segurança, liberdade e igualdade” (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 254-255). Esse deslocamento de atitudes não é somente uma mutação no campo das ideias que circulavam naquele momento histórico, mas, como dissemos, conecta-se com os imperativos de uma nova ordem socioeconômica que se edificava a partir da modernidade europeia.13 13 “Esta perspectiva utilitária estava em desacordo com as tradicionais concepções do conhecimento, a aristotélica e agustiniana, que salientavam o conhecimento ou a sabedoria em si. Contudo, era o produto, não só da reação contra uma escolástica acadêmica e árida, mas também de uma sociedade urbana e comercial crescente, interessada em ‘obras’” (BAUMER, 1977, p. 48). Em tal cenário, essa ética utilitarista expõe sua vocação para legitimar e universalizar as necessidades de um capitalismo emergente, sempre pressuposto nesse sistema de pensamento.14 14 A vinculação histórica entre a mentalidade utilitarista e as necessidades de desenvolvimento do capitalismo moderno é bastante conhecida. Basta lembrar, por exemplo, que Bentham acompanha grande parte das propostas de Adam Smith relativas ao livre mercado, ainda que buscasse limitar essa liberdade de acordo com os postulados do utilitarismo, o que acabava por conferir à liberdade de mercado um valor instrumental e não intrínseco (MULGAN, 2012, p. 16). Conforme aduz Enrique Dussel (2012, p. 112-113)DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2012., “o utilitarismo se move num círculo abstrato da razão instrumental, onde o fim é a felicidade e onde os meios para alcançá-la são calculados formalmente, mas sempre dentro do mercado capitalista como horizonte”. Nesse sentido, o autor concebe o utilitarismo como uma forma de neoestoicismo, gestado no bojo de uma racionalização metropolitana burguesa voltada para um controle mais racional da estratégia militar, do business econômico e político, internos e coloniais (DUSSEL, 2012DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2012., p. 109). Os pressupostos ideológicos são os de uma gestão baseada nos critérios de governança burguesa da população e do território, com sua pauta de interesses relativos à segurança jurídica patrimonial burguesa assente na defesa da propriedade privada e do mercado enquanto ente metafísico sacralizado, em ataque direto ao Estado de Bem-Estar Social com a globalização da tolerância zero, inclusive com a crise de modelos do “paternalismo humanitário” holandês, em que a melhora do capital humano por aprendizado e tratamento terapêutico foi substituída por um “instrumentalismo gerencial” (WACQUANT, 2001WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 121).

A correlação entre o utilitarismo e a narrativa jurídico-penal, portanto, requer uma contextualização que trate de não os apartar do campo de análise da sociedade capitalista e a constelação de ideias que constituíram seu substrato teórico. Certamente esse imperativo representa um desafio ao historiador das ideias. Nesse sentido, mais do que as ideologias jurídicas, é importante que se recorra a uma economia política do castigo,15 15 Na linha de estudos clássicos como os de Geor Rusche e Otto Kirchheimer (2004) e Foucault (2009). Uma obra interessante, da perspectiva brasileira, está nos dois volumes da História das prisões no Brasil, em especial a introdução de Maia et al. (2009), na qual se encontra uma síntese da historiografia das punições. para que seja possível obter uma compreensão mais abrangente do utilitarismo penal moderno, seja em sua versão iluminista, seja no modelo reformado do final do século XX.16 16 Uma análise acurada e desmistificadora da narrativa utilitária no Direito Penal comprometeria a brevidade dessa reflexão, razão pela qual nos deteremos em uma descrição sintética dos utilitarismos ilustrado e reformado. Posteriormente, no entanto, trataremos de referir algumas das razões de sua crise a partir da crítica criminológica, que ganha impulso na década de 1960.

2.1. Utilitarismo ilustrado

O utilitarismo jurídico-penal moderno encontra suas principais formulações no século XVIII, em especial na contribuição de dois autores.17 17 O rol não é, de maneira alguma, exaustivo: Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 58 ss.) refere também as contribuições do reformador John Howard, enquanto Baratta (2002, p. 34 ss.) lembra de autores como Gian Domenico Romagnosi e Francesco Carrara. Em Milão, Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, publica em 1764 o seu tratado Dos delitos e das penas, no qual se encontra provavelmente a mais ampla e aprofundada crítica das práticas punitivas de seu tempo. Já na Inglaterra, Jeremy Bentham escreve a sua Introdução aos princípios da moral e da legislação em 1780, na qual opera uma severa defesa da perspectiva utilitária no âmbito das relações governamentais. Em ambas as obras, guardadas suas particularidades, vislumbramos uma defesa da perspectiva utilitária para a fundamentação do Direito Penal, assim como a designação de uma finalidade preventista geral negativa à pena.

Bentham acredita que a natureza tenha disposto os seres humanos sob o julgo de dois senhores soberanos, quais sejam, a dor e o prazer. Dentro dessa contextualização se posiciona o entendimento conceitual da aceitabilidade moral de uma ação dependente da utilidade. O utilitarismo é uma versão do consequencialismo (BONJOUR e BAKER, 2010BONJOUR, Laurence; BAKER, Ann. Filosofia: textos fundamentais comentados. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010., p. 392), o que equivale a dizer que a intenção subjetiva dos atores não está em primeiro plano, mas, sim, o resultado de suas ações.

O utilitarismo se afirma como uma reação ao paradigma filosófico kantiano baseado em abstrações metafísicas, ainda que Kant postule uma conciliação entre a transcendência e a imanência dentro do normativismo deontológico universalista que, enquanto modelo ético prático, busca uma conciliação entre o racionalismo e a experiência empírica. Como dito, o utilitarismo enquanto paradigma ético imputa um papel essencial à dor e ao prazer, os dois grandes governantes do ser humano de acordo com Bentham. A questão do cálculo felicífico, ou cálculo hedonístico, é objetivada por critérios como sua intensidade, sua duração, sua certeza ou incerteza, sua proximidade, sua fecundidade, sua pureza e extensão (NAHRA, 2014NAHRA, Cinara. O consequencialismo. In: TORRES, João Carlos (org.). Manual de ética: questões de ética teórica e aplicada. Petrópolis: Vozes , 2014., p. 271). Por isso a crítica de “pig philosophy” (ANTUNES, 2015ANTUNES, Paulo Fernando Rocha. Stuart Mill, o utilitarismo e um problema fundamental. Clareira - Revista de Filosofia da Região Amazônica, v. 2, n. 2, p. 99-119, ago./dez. 2015., p. 111- 112) como uma filosofia não antropocêntrica, que não diferenciaria o aspecto sensorial de dor e prazer animal e humano, aspecto que, mais tarde, Stuart Mill procura “corrigir” acentuando a superioridade dos elementos intelectuais humanos e o papel da educação, refinando o utilitarismo de Bentham em prol de um ideário humanista antropocêntrico.18 18 Esse é um dos pontos em que Stuart Mill toma distância de Bentham, seu antecessor na defesa do utilitarismo. Naturalmente a versão de Mill, sem dúvida mais sofisticada devido ao contato com as críticas dirigidas à formatação anterior da ética utilitária, é capaz de superar o hedonismo que se encontra em Bentham, reformulando o princípio da utilidade no sentido de livrá-lo de considerações meramente sensoriais e aproximá-lo de objetivos mais relevantes do ponto de vista do “bem comum” rousseauniano (cf. FERRAZ, 2014, p. 226). O trecho a seguir de sua obra, constantemente lembrado, dá testemunho da rejeição do hedonismo em seu pensamento: “É indiscutível que um ser cujas capacidades de deleite sejam baixas tem uma probabilidade maior de as satisfazer completamente, e que um ser amplamente dotado sentirá sempre que, da forma como o mundo é constituído, qualquer felicidade que possa esperar será imperfeita. Mas pode aprender a suportar as suas imperfeições, se de todo forem suportáveis, e estas não o farão invejar o ser que, na verdade, está inconsciente das imperfeições, mas apenas porque não sente de modo nenhum o bem que essas imperfeições qualificam. É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o porco têm uma opinião diferente é porque só conhecem o seu próprio lado da questão. A outra parte da comparação conhece ambos os lados” (STUART MILL, 2005, p. 51). É importante lembrar, entretanto, que esse humanismo edificante nega o conflito social e a luta de classes (LOSURDO, 2015LOSURDO, Domenico. A luta de classe: uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo , 2015., p. 98).

É nesses termos que Bentham irá formular o seu princípio da utilidade - um critério de aprovação e reprovação das ações humanas (individuais, coletivas ou mesmo governamentais) que se reporta à tendência de aumentar ou diminuir a felicidade das pessoas (medida em razão do prazer ou da dor produzidos através de cada ação, por óbvio). Esse princípio serviria para incumbir os seres humanos da edificação de um sistema de coisas que trouxesse a felicidade, através da razão e da lei (BENTHAM, 1974BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores, XXXIV)., p. 9-10). Sob outro ângulo, partindo da teoria contratualista, Beccaria identifica a origem das penas e do direito de punir no instante do pacto social, ou seja, na necessidade que obriga as pessoas a ceder uma parcela de suas liberdades a fim de constituírem um ente superior capaz de garantir, pelo uso comedido da violência, a segurança no usufruto das liberdades restantes. É de se notar, no entanto, que essa união de parcelas de liberdade não traduz um ato de extremo desprendimento do cidadão por duas razões principais: em primeiro lugar, o interesse em ceder uma parcela da liberdade não tem a ver com altruísmo (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 18), mas remonta ao desejo de cada um em usufruir do restante com a necessária segurança, livre da tormenta que seria o “estado de natureza” pré-contratual.19 19 No sistema de pensamento de Beccaria, como, em geral, no restante dos contratualistas, respeitadas as suas diferentes nuances, o surgimento do ordenamento jurídico é o momento que marca a passagem de uma ordem incivilizada, um estado generalizado de beligerância a um contexto de primazia das leis, onde as vontades e necessidades dos mais fracos poderiam ser respeitadas. “Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, [os homens] sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança” (BECCARIA, 2008, p. 19). Nota-se que a própria raiz de fundamentação prática do ente estatal no marco da teoria contratualista implica um juízo histórico, calcado em um consenso social facilmente objetável. Em segundo lugar, mesmo nos moldes do referencial contratualista, nenhuma pessoa seria capaz de ceder toda a sua liberdade no processo fictício do pacto social. Conforme o marquês, o somatório dessas parcelas de liberdade cedidas pelos pactuantes constituiria o fundamento do direito de punir, e “todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo” (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 19-20).

O espírito utilitário moderno e seus desígnios ao poder de punir podem ser contemplados em Bentham e Beccaria, especialmente a partir de suas críticas, diretas ou indiretas, à inútil desumanidade das práticas penais de seu tempo. Para Beccaria, a finalidade das penas não poderia estar em aniquilar o sujeito desviante, como no contexto do suplício, técnica tida como anacrônica e dispensável. Também não estaria atrelada ao intento de desfazer o crime passado, o que logicamente seria impossível (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 49). Trilhando essas duas alamedas - e isso é fundamental para compreendermos o sistema de pensamento desse autor e de todo o utilitarismo ilustrado -, o poder punitivo não se converte em direito de punir. Em sentido similar, Bentham reconhece o caráter pernicioso da punição, chegando a considerá-la em si mesma um mal, de sorte que o princípio da utilidade viria a limitar o seu uso a casos em que se revele necessária a fim de evitar um mal maior. Pensando nisso, o autor lista os casos em que está proibido recorrer à punição: (1) quando não houver motivo, ou seja, a conduta que se deseja prevenir não constituir um mal; (2) quando a punição só pode ser ineficaz, isto é, quando não puder evitar o prejuízo decorrente de uma conduta valorada negativamente; (3) quando a punição for manifestamente inútil ou excessivamente dispendiosa, ou seja, quando o prejuízo produzido pelo castigo superar o prejuízo da conduta delitiva; (4) quando a punição for supérflua, ou seja, quando meios alternativos possam se encarregar de evitar a conduta indesejada (BENTHAM, 1974BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores, XXXIV)., p. 65). Claramente, estamos diante de critérios axiológicos capazes de delimitar o escopo de incidência do poder punitivo, ensejando uma ruptura no campo das ideias penais que permanece, ainda hoje, atrelada à cosmovisão dos penalistas.

Sem embargo de sua preocupação em explorar os possíveis efeitos do cárcere na subjetividade do criminalizado,20 20 Acompanhamos a conclusão de Bitencourt (2011, p. 64-65), para quem a tese preventista geral era preponderante no pensamento de Bentham, ainda que sua obra forneça certamente elementos para se pensar a prevenção especial positiva, como a sua preocupação com a arquitetura carcerária panóptica. os fundamentos da punição fornecidos por Bentham (assim como por Beccaria) constituem uma defesa da tese preventista geral negativa. Para o autor, a tentação criminal tende a ser forte na medida em que o prazer ou a vantagem que o agente pode esperar da conduta delitiva superam o incômodo e o perigo que viriam a acompanhar o ato. Ao contrário, a tentação tenderá a ser leve se as desvantagens que acompanham o ato superam o prazer que o agente pode esperar dele extrair (BENTHAM, 1974BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores, XXXIV)., p. 61). Segundo Beccaria, o fundamento capaz de tornar legítimo o poder punitivo estatal estaria em sua capacidade para perseguir a finalidade única de “obstar o culpado de tornar-se futuramente prejudicial à sociedade e afastar seus concidadãos do caminho do crime” (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 49). Observa-se, assim, o caráter nitidamente preventista que toma conta de seu manifesto. Estando o direito de punir relacionado ao potencial de prevenção do delito futuro que o castigo apresentaria, a necessidade de crueldade ou espetacularização das penas, próprias de um anacrônico suplício corporal, passa a ser questionada: “a fim de que o castigo surta o efeito [dissuasório] que se deve esperar dele, basta que o mal causado vá além do bem que o culpado retirou do crime”, assim, “qualquer excesso de severidade torna-a [a pena] supérflua e, portanto, tirânica” (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 50).

O efeito da pena, prossegue Beccaria, não está necessariamente no grau de sofrimento ou na gravidade da mutilação imposta pelo soberano ao infrator, mas, antes, na certeza da punição que deveria vir inexoravelmente após o desvio criminoso. Fica claro que o erro da mentalidade absolutista, para o autor, estaria em uma apreciação equivocada sobre o potencial utilitário das práticas punitivas. “A perspectiva de um castigo moderado, porém inflexível, provocará sempre uma impressão mais forte do que o vago temor de um suplício horrendo, em relação ao qual aparece alguma esperança de impunidade” (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 64). Nessa acepção utilitária, mais valeria um castigo leve capaz de prevenir delitos futuros do que a mais degradante das penas, carente de efeito dissuasório. A partir das considerações do utilitarismo ilustrado, intimidação e tirania deixam de ser sinônimos, inclusive passando a compor polos opostos.21 21 Na verdade, pode-se considerar que a expressividade das revoltas sociais contra a crueldade dos métodos punitivos do Estado absolutista pavimentou o caminho percorrido pelos reformadores do Iluminismo. A preocupação que ficava subentendida era quanto à criação de uma solidariedade de classe entre a população e os desviantes que, em comum, possuíam ao menos uma total vulnerabilidade diante dos humores do monarca (cf. FOUCAULT, 2009, p. 61).

Em última instância, para que a pena não se resuma a um ato de violência ilegítima contra o cidadão, no marco do utilitarismo iluminista ela “deve ser, de modo essencial, pública, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei” (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 107). A preocupação aqui se refere à limitação do poder despótico através de postulados verificáveis e independentes de considerações de ordem subjetivista. Essa preocupação também se revela em algumas passagens dos escritos de Bentham (1974, p. 15-16)BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores, XXXIV)., por exemplo, quando o autor trata dos princípios contrários ao da utilidade, entre eles o “princípio da simpatia e da antipatia”. Esse princípio designaria um critério de aprovação e reprovação das ações humanas que exprime uma fundamentação subjetivista: as ações não seriam louváveis ou condenáveis devido à sua aptidão para trazer ou rechaçar a felicidade, mas, sim, em razão do fato de que alguém se sente disposto a aprová-las ou reprová-las (o que, a bem da verdade, aduz o autor, não seria exatamente um princípio, mas, sim, a ausência de qualquer princípio orientador). Embora não negue que eventualmente essa ordem de critérios possa coincidir com o princípio da utilidade, Bentham considera que a simpatia ou a antipatia têm efeitos deletérios e tendem a maximizar a severidade punitiva.

O discurso jurídico-penal em Beccaria - como, de resto, nos demais pensadores europeus do século XVIII - se associa, de uma forma ou de outra, ao empreendimento moderno que historicamente acaba questionando o poder do soberano absolutista e permite, desse modo, a fixação de garantias jurídicas em favor do indivíduo e em contraposição ao Estado que teria limitada a sua ingerência,22 22 Evidentemente esse intento questionador não foi de todo linear ou sequer consensual. Baumer problematiza a atmosfera do pensamento político do século XVIII, demonstrando que as doutrinas políticas que circulavam não desaguavam necessariamente no Estado liberal que veio a se consolidar mais tarde. Havia no século XVIII muito do conservadorismo de outrora, de modo que as orientações políticas em questão formavam um verdadeiro caleidoscópio. “Um utilitarista, por exemplo, podia ser liberal, conservador ou revolucionário, assim como um crente na ‘natureza’ podia apoiar uma versão democrática ou autocrática do contrato social” (BAUMER, 1977, p. 253). No entanto, o peso de concepções como o direito natural e o próprio contratualismo - independente da radicalidade com que eram tratadas pelos teóricos - não deve ser subestimado. Evidência disso pode ser encontrada no esvanecimento de concepções como o “direito divino” do soberano, descartada mesmo no despotismo (esclarecido) daquele século (BAUMER, 1977, p. 253-254). mesmo que essa não fosse a finalidade que guiou a insurgência do autor.23 23 Não se sugere que a crítica de Beccaria estava dirigida aos regimes absolutistas em geral. De fato, o autor faz questão de esclarecer no prefácio de sua obra que “muito ao contrário de pensar em diminuir a autoridade legítima, constatar-se-á que todos os meus esforços foram no sentido de engrandecê-la; e ela de fato se engrandecerá, quando a opinião pública puder mais do que a força, quando a indulgência e a humanidade puderem fazer com que se perdoe aos príncipes o poder que têm” (BECCARIA, 2008, p. 12). Entretanto, é fato que sua obra produziu uma crítica profunda a uma economia de poder que era própria dessa anatomia política e, por essa razão, soma-se aos abalos levados a cabo pela Ilustração. O escopo de atuação do soberano, nos moldes desse garantismo iluminista, esbarraria na necessidade do castigo que já não encontra legitimação apriorística na vontade do monarca. De acordo com os novos parâmetros, as penas, para atingirem um mínimo de legitimidade, precisariam estar atreladas a utilidade social possível de ser obtida, nada menos que isso. O utilitarismo penal ilustrado caracteriza-se, sob um ponto de vista ideal, em uma pena e um direito penal orientados na busca de “todo o bem-estar possível para a maioria” (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 16) - sendo a “maioria” referida pelo autor uma categoria concebida em conformidade com uma teoria social ancorada no consenso, em que apenas há uma minoria desviante, contra a qual o controle penal apontaria suas baterias.

2.2. Utilitarismo reformado

O desenvolvimento do utilitarismo no interior da narrativa jurídico-penal não termina com a Ilustração. Quase três séculos se passaram desde o manifesto de Beccaria, mas o discurso do Direito Penal não descartou os postulados utilitários, tratando de reciclá-los em conformidade com necessidades históricas que se apresentaram ao longo da trajetória da modernidade europeia. Na verdade, as críticas dirigidas ao utilitarismo penal, em especial com as criminologias de matriz sociológica após a década de 1960, não deram paz aos penalistas, obrigando-os a efetuar reparos nesse edifício teórico, ainda que nenhum desses reparos tenha representado uma ruptura profunda com a presunção de necessidade e utilidade do cárcere. De nossa parte consideramos que o último grande esforço teórico de revitalização da ideia de “pena útil” no âmbito jurídico foi levado a cabo por Luigi Ferrajoli, com a publicação de seu tratado Direito e razão em 1989. A obra certamente não hostiliza os pilares de sustentação do discurso utilitário da Ilustração (na verdade, o autor assegura sua preferência pela tradição do liberalismo, por exemplo, uma plataforma política e filosófica cara ao utilitarismo ilustrado), mas demarca algumas de suas insuficiências e busca suprir determinadas incongruências então percebidas.

De acordo com Ferrajoli, se com o utilitarismo iluminista o Direito Penal deve atentar ao objetivo de promover o máximo bem-estar possível aos não desviantes (primeiro parâmetro utilitário), a partir de seu utilitarismo renovado, caberia levar em conta, igualmente, o mínimo mal-estar necessário aos desviantes (segundo parâmetro utilitário). Nesse sentido, o autor insiste no pressuposto de que o utilitarismo penal ilustrado estaria “partido ao meio”, ao passo que o seu modelo representaria um programa completo de intervenção (FERRAJOLI, 2014FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014., p. 308-309). Ferrajoli sustenta que seu modelo estaria blindado contra tentações autoritárias - lembrando que o autor escreve já ao final do século XX, tendo levado em conta as experiências totalitárias na Europa poucas décadas antes -, mas também contra os indigestos argumentos de deslegitimação do sistema penal provenientes da crítica externa, especialmente das doutrinas abolicionistas.

Se o primeiro parâmetro utilitário poderia ser satisfeito com a tese da prevenção geral negativa, para que se atendesse ao segundo parâmetro, caberia, conforme Ferrajoli, conferir ao Direito Penal uma função de prevenção de penas arbitrárias ou vinganças de tipo privado: o mínimo mal-estar necessário aos desviantes. Logicamente, o argumento não leva em consideração ou minimante contempla questões sedimentadas na criminologia: como desvelou Becker (2008)BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. , é necessário um complexo processo de interação social para que alguém seja considerado desviante. Os desviantes a que Ferrajoli se refere são aqueles que foram constituídos de modo efetivo como tais pela atuação das agências de criminalização secundária do sistema penal, cuja seletividade de atuação é notoriamente conhecida. Inobstante o fato de que Ferrajoli incorpora, ao menos referencialmente, grande parte das críticas à penalidade moderna, e muito embora proponha um equilíbrio entre as diferentes funções que confere à pena, é inegável que o seu modelo de utilitarismo reformado segue com facilidade instrumentalizável pelas mais ardilosas argumentações, que permanecem reféns dos vetores autoritários propiciados pelas exigências da prevenção geral negativa. Do mesmo modo, Ferrajoli parece não se dar conta de que a hipótese civilizatória de que o Direito Penal é um instrumento de redução de violências que elimina a vingança privada simplesmente não se sustenta. Embora a pena estatal possa ocasionalmente cumprir essa função - evitando certas dinâmicas de linchamentos,24 24 Argumento que por si só é bastante questionável, mormente em um contexto em que pessoas são linchadas nas próprias prisões, como demonstram pesquisas empíricas como a de José de Souza Martins (2015). por exemplo -, daí não há como extrair qualquer leitura de que os conflitos não seriam ou não podem ser resolvidos de outra forma. A conexão entre o que é definido como crime e a eventual imposição de pena historicamente tem relação com a apropriação de mecanismos de resolução de conflitos pela justiça estatal, cujo sentido consistia na afirmação da autoridade dos monarcas absolutistas. Considerar que o propósito por trás dessa iniciativa era a racionalização do poder punitivo conforma uma abordagem historiográfica bastante questionável.

Não é nossa intenção nesta reflexão inventariar as críticas que foram especificamente objetadas ao modelo utilitário ferrajoliano.25 25 A esse respeito, cf. Elena Larrauri (2005). Uma tentativa de autojustificação diante das principais críticas dirigidas ao seu modelo foi efetuada por Ferrajoli (2008). Nosso propósito é mais modesto e consiste em salientar que seu sistema anuncia um reordenamento das ideias-unidade que delinearam o pensamento utilitário, sem, contudo, abrir mão de seu núcleo, identificado com a noção de utilidade da pena. Aliás, a designação de um caráter útil à pena não é só reafirmada, mas ampliada, pois, se no utilitarismo ilustrado os anseios de defesa social e combate à criminalidade foram a pedra angular do discurso jurídico-penal, no horizonte do utilitarismo reformado, a pena teria ainda a utilidade humanitária de proscrever outras modalidades de castigo mais “selvagens”, por assim dizer.

Não se deve ignorar que Ferrajoli de fato rechaça grande parte das ideias que nortearam o utilitarismo penal moderno pós-Iluminismo, chegando inclusive a revisar alguns aspectos pontuais da prevenção geral negativa - o autor admite a função de intimidação da pena em abstrato, tão somente, e não a ideia de uma pedagogia penal de intimidação que faria do criminalizado um exemplo do funcionamento do controle penal, supostamente para assegurar a dissuasão de novos desviantes, mas transformando o condenado em “bode expiatório” (FERRAJOLI, 2014FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014., p. 257-258). Apesar do impulso crítico inicial, seu modelo não se liberta das inconsistências do discurso penal moderno. É por essa razão que consideramos que, nos marcos delimitadores de seu modelo, a tradição utilitária segue rendida à noção de utilidade da pena, o que demonstra um esgotamento de seu desempenho. Nesse sentido, o direito penal mínimo de Ferrajoli seria o direito do mais fraco, sempre a partir de um cálculo de custos: o custo do direito penal e o custo da anarquia punitiva (ZAFFARONI, 2001ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001., p. 96).

3. Crise do utilitarismo penal: criminologia e estratégias político-criminais para além da falácia da “pena útil”

A crise do utilitarismo no campo dos saberes penais coincide com a sua crise em sentido mais amplo. Nesse contexto, nos parece que a criminologia crítica opera a tradução específica de um realinhamento de ideias-unidade que passaram a hostilizar, de modo geral, o pensamento utilitário em função de suas insuficiências. Como exemplo, podemos sopesar, a partir de Mulgan, as críticas acerca de como o utilitarismo lida com a incerteza, já que seu método de análise está baseado em cálculos precisos de utilidade, impraticáveis devido à complexidade das sociedades contemporâneas. O raciocínio é simples: o utilitarismo nos impõe o imperativo de maximizar a felicidade humana, portanto, se não está claro o que tende a realizar esse princípio, o utilitarismo de nada serve para orientar nossas ações. Em outros termos, o fato de muitas vezes não conhecermos antecipadamente as consequências de nossas ações tende a desconstituir o utilitarismo como bússola ética (MULGAN, 2012MULGAN, Tim. Utilitarismo [recurso eletrônico]. Petrópolis: Vozes , 2012., p. 119-120). Essa premissa irá ecoar no interior do discurso criminológico crítico, em especial na crítica do encarceramento, de seus efeitos concretos e de seus discursos de sustentação. Ao descurar dos efeitos deletérios causados pelo encarceramento, tanto em nível subjetivo quanto em escala social, a narrativa jurídico-penal revelou seu componente ideológico, e as criminologias de corte crítico foram competentes em explorar essa via.

O utilitarismo é uma teoria que presume a neutralidade do agente, em torno de um objetivo comum. O utilitarismo dos atos,26 26 Convém reparar que o utilitarismo se divide em várias correntes no âmbito filosófico: utilitarismo dos atos, das regras (que podem admitir, inclusive, a existência de várias sub-regras ampliando a noção de felicidade), utilitarismo da média, teorias mentalistas, negativistas, o utilitarismo preferencialista, teorias pluralistas e objetivistas do bem-estar, ou seja, são várias abordagens do consequencialismo adaptando os vários enfoques diferenciados, visando à retificação de seus postulados. Mesmo o socialismo e o anarquismo podem ser considerados abordagens utilitaristas. As críticas ao utilitarismo também são afeitas à diminuição dos direitos individuais contra os interesses da maioria (cf. CARVALHO, 2000, p. 99-115). por exemplo, pressupõe o reconhecimento das consequências de nossas ações, que devem tender a produzir mais felicidade. Porém, isso pode se referir à falta da força normativa invocada por argumentações deontológicas em que se poderia dizer que “não quero que façam isto comigo”, através da possibilidade de generalização desse apelo universalista. A imparcialidade das razões utilitárias é subjetiva, razão pela qual elas não poderiam ser invocadas para o outro sob a expectativa de um agente imparcial (NAHRA, 2014NAHRA, Cinara. O consequencialismo. In: TORRES, João Carlos (org.). Manual de ética: questões de ética teórica e aplicada. Petrópolis: Vozes , 2014., p. 277).

Os anos da década de 1960 fornecem o pano de fundo para o início da gradual transição de paradigma no interior da criminologia, até então caracterizada pelo discurso etiológico, causal-explicativo, seja de matriz biológica (identificando na figura do delinquente as causas de seu desvio), seja de tipo sociológico (em que as causas do desvio são procuradas a partir de processos sociais). A instabilidade política e as mudanças no campo dos costumes fornecem à criminologia um caldo cultural propício a investidas revisionistas,27 27 Larrauri (2000, p. 69) rastreia essa transição até o movimento dos teóricos da new left na Inglaterra, inspirados por pautas que vão desde a crítica da guerra entre EUA e Vietnã até as movimentações estudantis do Maio de 1968. entre elas o que se convencionou chamar de “enfoque do etiquetamento” ou da “reação social”, surgido na esteira da sociologia estadunidense, com destaque para a monografia Outsiders, de Howard Becker (2008)BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. , publicada em 1963. Apesar de alguns autores salientarem o “médio alcance” crítico dessas primeiras contribuições em razão da ausência de uma narrativa em nível estrutural que permitisse à criminologia um salto do plano de análise superficial em direção às razões políticas que conformam os processos de rotulação (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2002., p. 144), é inegável que a partir de então o impulso crítico ganha velocidade: daí em diante a criminologia, mesmo que em caráter complementar, passaria a incluir o poder punitivo em seu objeto de análise, fornecendo aos criminólogos uma nova agenda de estudos e intervenção política.

Se a necessidade de correlação da criminologia com uma narrativa estrutural abrangente que fosse capaz de decifrar as meta-regras do processo de rotulação já havia se tornado evidente a partir da recepção alemã do labeling approach (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2002., p. 109 ss.), é na Inglaterra que esse desenvolvimento se dará de maneira mais clara e sistemática, ainda que errante. Pode-se considerar a obra A nova criminologia [La nueva criminología] (1977), de Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young, como a precursora de uma criminologia de viés marxista que ditaria o tom da pesquisa sociológica no campo criminal. É claro que diversas revisões internas foram levadas a efeito, em especial a partir das acusações de idealismo reconhecidas pelos teóricos da nova criminologia,28 28 A exemplo de Jock Young (2012). mas a crítica da sociedade punitiva e a identificação dos processos classistas de definição política do âmbito criminal tornaram-se uma constante no interior da narrativa criminológica.

Não pretendemos induzir a conclusão de que a criminologia crítica tenha representado um movimento uníssono em relação à inutilidade ou mesmo à nocividade do cárcere. De fato, essa tradição comporta diversos graus de hostilidade ao poder punitivo: se o realismo de esquerda inglês optou por uma agenda mais reformista, correntes minimalistas e abolicionistas por vezes trilharam um rumo menos transigente. Ainda assim, é certo que o núcleo crítico compartilhado entre as diversas vertentes está presente na denúncia da assimetria entre a programação oficial do sistema penal (funções manifestas) e a sua real operacionalidade (funções latentes), o que veio a escrever um novo capítulo na trajetória histórica do utilitarismo jurídico-penal, formando toda uma geração de criminólogos e juristas - e por vezes criminólogos-juristas - comprometidos com um olhar que transcende as limitações das teorias puramente normativas, inclusive no Brasil.29 29 Dentre os mais destacados precursores da criminologia crítica em território nacional, vale mencionar as obras de Roberto Lyra Filho (1997) e Juarez Cirino dos Santos (2008). A atitude cética perante as razões oficiais fornecidas pelas agências de controle penal tem ditado o tom da criminologia crítica, antes e agora. Trataremos de distinguir, ao menos preliminarmente, as diferentes consequências extraídas desse postulado, valendo-nos da análise comparativa de dois modelos político-criminais, assim como de sua relação com os pressupostos da ética utilitária.

3.1. Minimalismo penal

A fundamentação que Alessandro Baratta fornece ao Direito Penal é, ainda hoje, um exemplo proeminente da possibilidade de diálogo produtivo entre o saber criminológico e o jurídico-penal. A preocupação do autor em debater as pré-condições para esse diálogo é bastante evidente, mesmo porque em sua obra principal, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal, publicada pela primeira vez em 1982, ele insiste que o grande encontro entre juristas e criminólogos ainda não ocorreu e, por conta disso, o saber jurídico-penal (que se orgulha de seu caráter “normativo”, signo metodológico que o distingue dos campos de análise “empíricos” do sistema penal) permanece imerso em um mar de obscurantismo ideológico. É na esteira desse reconhecimento que o autor procurará erguer as bases teóricas e práticas que permitam devolver a dignidade ao ofício do jurista, sob a condição de estar orientado pela crítica criminológica - e não pelos princípios que nortearam o senso comum jurídico-penal, pelo menos desde o utilitarismo ilustrado, ou seja, o que o autor chamou de “ideologia da defesa social” (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2002., p. 4 ss.).

Partindo da tradição marxista, mas sem apego a ortodoxias,30 30 O autor propõe uma leitura do materialismo histórico “livre de toda forma de dogmatismo, ou seja, considerando o marxismo como um edifício teórico aberto, que, como qualquer outro, pode e deve ser continuamente controlado mediante a experiência o confronto, crítico mas sem preconceitos, com os argumentos e os resultados provenientes de enfoques teóricos diversos” (BARATTA, 2002, p. 200). De fato, a ausência de apego a barreiras teóricas é o que parece permitir a Baratta apropriar-se com desenvoltura e criatividade de referenciais diversos que vão desde a leitura foucaultiana da penalidade contemporânea até as contribuições da psicanálise no desvelar das pulsões punitivas inconscientes, conforme se verifica em sua obra. Baratta concebe o processo de criminalização como um processo de luta entre classes antagônicas pela hegemonia da questão penal. Essa contraposição de interesses dispõe, de um lado, uma classe burguesa interessada na manutenção de uma sociedade estruturada em classes e com desigualdade abissal na distribuição do poder, o que traduz o interesse em criminalizar condutas que afrontem as condições de reprodução desse tipo de sociedade (especialmente delitos patrimoniais cometidos pelos despossuídos). De outro lado, a classe proletária, com interesse (nem sempre esclarecido nesses termos) na superação das condições que garantem sua exploração, ou seja, com interesse na superação da configuração capitalista da sociedade. Em termos político-criminais, esse interesse produz duas frentes de ação: descriminalização ou tratamento alternativo (não penal) para os delitos praticados pelo proletariado; e criminalização de condutas praticadas pela burguesia, condutas que de fato podem ser encaradas como predatórias e socialmente nocivas ao interesse das massas subalternizadas (como crimes de “colarinho branco”, delitos ambientais, etc.) (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2002., p. 197-198).

O projeto de minimalismo jurídico-penal, em Baratta, pressupõe o esforço de movimentar uma política criminal alternativa, adotando expressamente o ponto de vista das classes subalternas e rejeitando os interesses hegemônicos das classes dominantes. Nesses termos, o autor considera possível erigir uma teoria e uma práxis que conduzam à abolição das prisões (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2002., p. 203), pauta que está inserida no programa maior de superação do sistema capitalista e na criação de uma sociedade de tipo socialista (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2002., p. 207) - conceito que, em sua obra, certamente não se refere às experiências do chamado socialismo real, já que essa experiência histórica teria produzido um direito penal próximo, em muitos aspectos, a formas de ideologia de segurança nacional (ZAFFARONI, 2001ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001., p. 55). Assim, cabe a crítica na perspectiva marxista de Baratta que se efetiva no sentido de uma crítica à democracia, não a partir de sua negação reacionária (que corresponderia à ditadura, ao fascismo e ao bonapartismo), mas no sentido de apontar os desafios enfrentados pelo proletariado em regimes democráticos e a necessidade de formas superiores de organização política (BIONDI, 2015BIONDI, Pablo. A criminalização dos movimentos sociais na perspectiva marxista. In: KASHIURA JR., Celso; AKAMINE JR., Oswaldo; MELO, Tarso de (orgs.). Para a crítica do Direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São Paulo: Outras Expressões; Editorial Dobra, 2015., p. 694).

É importante destacar que Baratta não demonstra exatamente a mesma fé na ideia de utilidade da pena, como é o caso dos utilitarismos ilustrado e reformado, já descritos. Em seu quadro de análise, o papel do sistema penal é constantemente confrontado com dados empíricos, o que lhe permite incorporar a crise do utilitarismo penal enquanto uma importante variável para a construção de seu modelo teórico. Em um de seus ensaios mais conhecidos, “Princípios de Direito Penal Mínimo”, originalmente de 1987 (publicado em BARATTA, 2004BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004., p. 299 ss.), o autor argumenta:

El sistema punitivo produce más problemas de cuantos pretende resolver. En lugar de componer conflictos, los reprime y, a menudo, éstos mismos adquieren un carácter más grave en su propio contexto originario; o también por efecto de la intervención penal, pueden surgir conflictos nuevos en el mismo o en otros contextos. [...] El sistema punitivo, por su estructura organizativa y por el modo en que funciona, es absolutamente inadecuado para desenvolver las funciones socialmente útiles declaradas en su discurso oficial, funciones que son centrales a la ideología de la defensa social y a las teorías utilitarias de la pena. (BARATTA, 2004BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004., p. 302)

Nota-se, portanto, que Baratta (2004, p. 303)BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. não negligencia o fato de que as possibilidades de se utilizar o poder punitivo em prol dos interesses das classes dominadas são extremamente limitadas. Aliás, o próprio autor lembra que a criminalização de condutas praticadas pelos estratos favorecidos não pode significar a revitalização da fé no credo utilitário (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2002., p. 202). Entretanto, sobrevém a indagação: se o autor não hesita em declarar a pena um instrumento inadequado para a resolução de conflitos (mesmo os conflitos cuja resolução corresponda ao interesse das classes dominadas), por que razão a criminalização continua sendo uma pauta válida, a ponto de seu programa de Direito Penal mínimo prever princípios político-criminais que flertam com a ideia de pena útil?31 31 Um bom exemplo está no chamado “princípio da idoneidade”: “Este principio obliga al legislador a realizar un atento estudio de los efectos socialmente útiles que cabe esperar de la pena: sólo subsisten las condiciones para su introducción si, a la luz de un riguroso control empírico basado en el análisis de los efectos de normas similares en otros ordenamientos, de normas análogas del mismo ordenamiento y en métodos atendibles de prognosis sociológica, aparece probado o altamente probable algún efecto útil, en relación a las situaciones en que se presupone una grave amenaza a los derechos humanos” (BARATTA, 2004, p. 309-310). Não está claro se o autor refere esse princípio a modo de limitação do horizonte de intervenção do sistema penal (contando que não haja situações em que o poder punitivo se mostre idôneo para resolver conflitos, o que talvez forçasse a imaginação político-criminal a conceber alternativas não penais) ou se, de fato, considera haver um escasso espaço de intervenção legítima do poder punitivo no intento de solucionar conflitos, o que revigora o pressuposto da pena útil e, inevitavelmente, aproxima seu modelo dos demais utilitarismos jurídico-penais já trabalhados.

Parece-nos, por fim, que, apesar de manifestar evidente hostilidade ao pressuposto da pena útil, a obra de Baratta fica a meio caminho entre a revitalização do poder punitivo e seu completo rechaço como via idônea para atingir em parte os objetivos de uma transição rumo ao socialismo. Malgrado a inegável força crítica de sua obra, ao menos há que se admitir que o autor fornece razoável espaço para uma leitura que busque vincular seu modelo a um novo tipo de utilitarismo da pena, em que os direitos fundamentais úteis à classe trabalhadora seriam objeto de “tutela” penal e, simultaneamente, os bens jurídicos caros à classe burguesa seriam objeto de descriminalização.

A nosso ver, a necessidade de atuação simultânea em ambas as frentes - criminalização e descriminalização - acaba contaminando o modelo alternativo de Baratta com o núcleo do utilitarismo penal moderno, ou seja, a ideia de utilidade da pena. É diante dessa contaminação que os limites político-criminais do modelo de Baratta se tornam evidentes: não nos parece que a inutilidade da pena (epifenômeno da crise de fundamentação utilitária no âmbito do Direito Penal) possa ser declarada em parte, de acordo com a conveniência dos atores políticos que postulam hegemonia no confronto de classes. Ou se admite que a pena não resolve os conflitos sociais que motivam, real ou aparentemente, sua irrogação (atitude que conduz à necessidade de sua abolição e substituição por métodos alternativos), ou se prossegue no interior da necrosada fundamentação utilitária, assumindo o ônus da justificação da pena nos quadros da prevenção (de delitos e/ou de violências arbitrárias). A teoria do grande criminólogo italiano parece também seguir esse trajeto, ao menos parcialmente.

3.2. Abolicionismo penal

Pensar o abolicionismo penal em termos monolíticos, tanto no que diz respeito a suas orientações políticas e teóricas quanto em relação à sua agenda de intervenção prática, é impossível. Precisamente porque o abolicionismo penal ostenta uma dupla identidade - figurando tanto no plano teórico da história das ideias penais quanto no plano da práxis, da militância política em prol da humanização e da extinção do cárcere32 32 Esse aspecto militante do abolicionismo penal é lembrado com constância pelos analistas. A tentativa de intervenção político-criminal sempre esteve associada ao movimento, de modo que o conceber em termos puramente teóricos significa necessariamente amputar o seu significado enquanto fenômeno histórico. Apenas para exemplificar, o movimento abolicionista na circunscrição estadunidense esteve associado à militância em prol dos direitos civis e à denúncia da brutalidade do tratamento dirigido a setores marginalizados daquela sociedade. Nos EUA, não raras vezes a luta abolicionista constituiu uma pauta do movimento dos Panteras Negras, merecendo destaque a atuação de Angela Davis, entre outros (CIRINO DOS SANTOS, 2008, p. 27). -, as considerações que teceremos neste ensaio inevitavelmente carecerão de maiores contextualizações. Enquanto corpo teórico e movimento militante plural e dialético, o abolicionismo penal não é facilmente categorizável. É possível se argumentar, inclusive, que esse traço tende a diferi-lo com nitidez das demais doutrinas modernas de justificação da pena, para as quais a conhecida (e bastante repetida) divisão entre “absolutas”, “relativas”, “prevenção geral” e “prevenção especial” ainda parece dar conta, sem maiores desgastes.

De modo sintético, podemos caracterizar o abolicionismo penal, no recorte de análise da história das ideias, como uma teoria sensibilizadora (SCHEERER, 1989SCHEERER, Sebastian. Hacia el abolicionismo. In: HULSMAN, Louk; CHRISTIE, Nils; MATHIESEN, Thomas; SCHEERER, Sebastián; STEINERT, Heinz; DE FOLTER, Rolf S. Abolicionismo penal. Buenos Aires: Ediar , 1989. p. 15-34., p. 21), que nega a utilidade da pena, chegando a concebê-la como um problema em si. A declaração da inutilidade do sistema punitivo em relação às tentativas de solução dos conflitos socialmente produzidos33 33 Autores abolicionistas costumam problematizar o enquadramento simplificador fornecido pelos aparelhos de justiça formal ao tratar a questão penal. Dentro da lógica punitiva, problemas sociais costumam ser reduzidos à redoma de “escolhas” (dentro do paradigma liberal) ou “determinações” (dentro do modelo explicativo do positivismo criminológico) individuais, o que reduz enormemente as chances de gestão produtiva do próprio conflito (cf. CHRISTIE, 1989). é razão suficiente para orientar os teóricos abolicionistas em direção à exploração experimental de métodos alternativos, isto é, não estruturados na simplificação que consiste em tratar diferentes tipos de desvio com o mesmo “remédio”.34 34 Nesse sentido, cf. Hulsman e Celis (1993) e Christie (2011). A rejeição das indevidas tentativas de padronização do tratamento da questão penal e a problematização dos efeitos indesejáveis que essa postura de estandardização traz para a imaginação humana são duas das marcas da teoria abolicionista. É bastante conhecida a metáfora de Louk Hulsman: “se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer suspeitava” (HULSMAN e CELIS, 1993HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993., p. 140). Não é sem razão que o movimento costuma ser associado a diversos mecanismos de administração de conflitos que não seguem a lógica da pena útil, como a chamada justiça restaurativa (cf. ACHUTTI, 2014ACHUTTI, Daniel. Abolicionismo penal e justiça restaurativa: do idealismo ao realismo político-criminal. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1, p. 33-69, jan./jun. 2014.).

De um ponto de vista teórico/metodológico, o abolicionismo penal também não pode ser facilmente situado sem certa dose de simplificação. Os analistas costumam lembrar ao menos três vertentes teóricas - uma espécie de “tríade” do pensamento abolicionista europeu, referida em termos de tipos ideais, no sentido weberiano - personificadas nas figuras de Thomas Mathiesen (2003aMATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI - abolição, um sonho impossível? Verve, São Paulo, n. 4, p. 80-111, 2003a. e 2003b)MATHIESEN, Thomas. Juicio a la prisión. Buenos Aires: Ediar , 2003b., Nils Christie (1984CHRISTIE, Nils. Los límites del dolor. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1984. e 2011)CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2011. e Louk Hulsman (1993)HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993.. Enquanto Mathiesen representaria a vertente associada ao marxismo, Christie e Hulsman estariam identificados nos quadros da fenomenologia (ZAFFARONI, 2001ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001., p. 98 ss.). Há quem fale em dois tipos de abolicionismo penal: o abolicionismo de percurso (presente na obra de Hulsman partilhando a influência de autores libertários) e o abolicionismo de itinerário (com ascendência na criminologia crítica e representado pela obra de Christie e Mathiesen), vias que não são mutuamente excludentes, mas demarcam posturas distintas, em algum grau (PASSETI, 2004PASSETI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASSETI, Edson (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan , 2004., p. 28). Debates internos, arguições e réplicas acerca das estratégias, concepções ou mesmo os próprios objetivos do movimento não são incomuns quando se fala em abolicionismo penal.35 35 Um bom exemplo dessas discussões pode ser visto no debate entre Rolf de Folter e Thomas Mathiesen acerca da concepção de poder que deveria orientar o movimento. Tanto a arguição inicial de Folter quanto a resposta de Mathiesen podem ser encontradas na obra coletiva Abolicionismo penal (1989).

Em que pese as diferentes categorizações que possamos conceber, é importante frisar que o núcleo crítico compartilhado entre os promotores do abolicionismo penal consiste na crítica severa das práticas punitivas e na busca de vias não penais de resolução das situações-problema. Sob o prisma da história das ideias, relembrando as colocações referidas no início deste ensaio, podemos dizer que o abolicionismo penal procura atestar a morte de uma ideia-unidade, ou seja, intenta declarar a falsidade da pena útil, concebida no âmbito dos utilitarismos penais e mantida (ainda que com inúmeras ressalvas e de maneira não inteiramente admitida) pelo modelo de minimalismo penal da criminologia crítica de Baratta.

O abolicionismo penal está mais interessado na realização de uma pedagogia libertária extraída dos próprios conflitos do que em formulações jurídicas estanques ou métodos burocratizados de ação, próprios do sistema penal. Para a teoria e a práxis abolicionistas, estratégias comunitárias de resolução de conflitos na esteira de lógicas compensatórias, terapêuticas ou conciliatórias, haja vista a falência do modelo punitivo - visto, portanto, como uma (e não a única) via de reação frente aos conflitos -, constituem um território inexplorado e promissor (HULSMAN e CELIS, 1993HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993., p. 100). Trata-se, sobretudo, de transcender modelos de resposta que se ancorem na expropriação do conflito, tirado das mãos da vítima, entendendo que a genuína importância desse ator, nos quadros do sistema penal, se limita a habilitar a incidência do próprio poder punitivo. Portanto, a despeito de toda a mistificação, mais ou menos informada, acerca do abolicionismo penal, é importante notar que não está em pauta o abandono do conflito e da vítima, muito pelo contrário: se pode com justiça argumentar que é na própria infecundidade e nocividade do sistema penal que encontramos os catalisadores do movimento abolicionista.

O abolicionismo penal opera uma transição radical na articulação de ideias-unidade que formaram o moderno saber penal. Para os teóricos abolicionistas, como dito, a utilidade da pena no que condiz com o programa (manifesto) de “defesa social” que orienta os processos de criminalização é simplesmente inexistente. A própria associação entre o princípio utilitário e o fenômeno da pena soa indevida, já que o poder punitivo, na esteira da teoria abolicionista, é tudo menos o promotor de felicidade. Mesmo que não nos pareça que o abolicionismo opere uma rejeição ao princípio utilitário de modo geral - isto é, não negue terminantemente a ética utilitária no campo político, pois, do contrário, a própria discussão acerca dos métodos alternativos de gestão de conflitos soaria impertinente -, há, sem dúvida, uma rejeição radical ao núcleo de justificação de qualquer doutrina utilitária.

4. Perspectiva agnóstica do realismo marginal: alternativa ou sopro de vida ao utilitarismo penal?

Ainda que o referencial abolicionista repercuta no interior das ideias jurídico-penais, não seria equivocado sustentar que seu feixe de propagação vem “de fora”, isto é, o abolicionismo penal não parece particularmente interessado em tornar-se uma teoria de orientação dirigida aos atores jurídicos. Como dito, o movimento abolicionista aposta suas fichas em transformações mais ou menos estruturais que se localizam na esfera política em geral. Não se pode dizer que haja um modelo abolicionista de orientação de decisões judiciais, em que pese esse detalhe não ter necessariamente correlação com a origem “externa” da crítica abolicionista - lembrando que o modelo minimalista de Baratta é também oriundo da criminologia crítica, portanto externo aos cânones do pensamento jurídico tradicional, inclusive partindo de um referencial teórico marxista, completamente avesso às simplificações próprias do quadro de análise liberal e/ou positivista que têm orientado o utilitarismo penal, e mesmo assim não deixa de ser um modelo de orientação dirigido em especial aos juristas. Também não se está a sustentar que o pensamento abolicionista não passe de uma agregação inorgânica de hipóteses completamente diversas - ainda que plural, decerto o enfoque abolicionista, independentemente de suas diversas vertentes, tem determinadas pautas que o diferenciam e lhe dão identidade enquanto sistema de pensamento - ou que carece de estratégia,36 36 É claro que o grau de clareza quanto aos métodos de implementação de uma sociedade sem prisões varia de autor para autor. Ademais, o acerto ou o desacerto das proposições oriundas do pensamento abolicionista podem ser arguidos, mas há estratégia, e a obra de Mathiesen talvez seja o melhor exemplo disso (ZAFFARONI, 2001, p. 99). limitando-se a uma utopia vaga e sem condições de atingir a concretude.37 37 Soa falacioso acusar o abolicionismo penal de não fornecer elementos para uma ação política concreta. O pensamento abolicionista sempre foi muito mais propositivo do que seus detratores estiveram dispostos a admitir, em que pese ser correto afirmar que não apresente um receituário no sentido em que estamos acostumados. Conforme Andrade (2012, p. 264-265), “o abolicionismo não se coaduna com receitas estáticas e totalizadoras, e não podendo ser interpretado como um receituário imediatista ingênuo (que sendo ‘aplicado’ permitiria dormir com o sistema e acordar sem o sistema) valoriza as lutas processuais e micro, de modo que podemos exercer práticas abolicionistas cotidianamente, às vezes, até sem o saber, sempre que levamos a sério a ultrapassagem do modelo punitivo. Essa via, de certa maneira, co-responsabiliza todos nós”.

Fato é que o abolicionismo penal, por recursar as amarras do poder jurídico, deixa os juristas (enquanto juristas) órfãos de um programa concreto (e “completo”) de intervenção (ZAFFARONI et al., 2003ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro. 4. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003., p. 651). Para o bem e para o mal, a teoria abolicionista abdica de fornecer parâmetros dogmáticos de orientação decisória. Talvez a frequência de seu discurso seja muito mais abrangente, soando estranha a uma audição formatada pelos cânones do saber dito jurídico. Mesmo assim, a utopia de uma realidade sem prisões deixou sua marca no pensamento jurídico, agregando ingredientes à crise do utilitarismo penal. Mas em que termos?

Diante das incertezas do mundo complexo moderno e da devastação do pensamento utilitário, seus defensores têm com frequência encampado algumas defesas teóricas revisionistas. Uma delas consiste em buscar suplentes para o bem-estar, ou seja, indicadores confiáveis que permitam prescindir de um cálculo preciso acerca do grau de benefício agregado por determinada ação. Seriam informações comumente associadas ao bem-estar social de maneira geral, como a concretização de direitos civis, saúde pública, educação, etc. Embora não possamos calcular com exatidão a “taxa” de felicidade gerada por determinada ação, é indiscutível que medidas que tendam a reforçar esses componentes da cidadania em geral representam um incremento da felicidade, o que contribui para salvar o espírito utilitário das críticas sobre a incerteza (MULGAN, 2012MULGAN, Tim. Utilitarismo [recurso eletrônico]. Petrópolis: Vozes , 2012., p. 128-129).

Portanto, o resgate do pensamento utilitário no interior da narrativa jurídico-penal, pretendendo contornar os focos de crise que lhe acometeram (em especial a já referida crítica da incerteza), necessariamente precisa se dar pela via oblíqua, evitando incorrer nas armadilhas que a justificação da pena tem gerado. É dessa forma que o modelo realista marginal de Eugenio Raúl Zaffaroni se diferencia das narrativas utilitárias. Sua proposta opera uma síntese entre a crítica criminológica (empírica), a deslegitimação abolicionista e o apelo às garantias jurídicas, cuja conquista esteve associada aos teóricos do liberalismo político. Acrescentamos, todavia, que aqui não se ignoram - e cremos que o modelo de Zaffaroni tampouco ignora - os problemas que derivam da implicação do liberalismo político em uma cultura fundada sob a formação social capitalista associada ao escravismo que mantém sua herança de longa duração, em que os setores marginalizados se transformam em ralé estrutural, que ocupa o trabalho manual, precário, o trabalho doméstico, da construção civil, atividades de trabalhadores rurais superexplorados, análogos ao trabalho escravo. A partir da obra mais recente de Jessé Souza (2017)SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: Leya, 2017. - cujas conclusões não são livres de crítica -, podemos cogitar que essa disposição estrutural se alicerça em uma mentalidade autoritária das “classes médias”, com a elite do atraso, que sataniza o Estado como foco de toda a corrupção, criminalizando a igualdade, os movimentos sociais sob uma retórica que induz a aliança entre o liberalismo conservador e a manutenção da ideia do complexo de “vira-lata”, em que a privatização aparece como alternativa emancipatória da chaga patrimonialista que hegemoniza as ideologias da subordinação e do atraso. Isso teria um caráter de necessidade contra um povo corrupto, desonesto, atrasado e inferior, que deve confiar na gestão multilateral estadunidense de protestantes individualistas superiores e honestos. Elite que deseja se tornar parte do sonho mitológico do Primeiro Mundo, sem clientelismo, corrupção, apesar de o sistema de lobbies nos EUA provar apenas que sua corrupção é legalizada. Qualquer avanço dos direitos populares é considerado um ataque ao status quo, que estaria sendo agredido por uma possível ameaça de insurgência contra seus interesses pelo “populismo” e pela ineficácia patrimonialista intrínseca ao Estado (ao menos quando dominado por forças adjetivadas de “populistas”, com tendências distributivas, ainda que muitas vezes mínimas, tendo em conta o tamanho da desigualdade brasileira, uma das mais abissais do mundo).

Esse discurso de subalternização neocolonialista transformado em senso comum pelas teses do homem cordial e da fidalguia dos estamentos estatais de Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, apropriados pela mídia e tornados em opinião pública, criaria, segundo Jessé Souza, um imaginário edificador de uma esfera pública dominada pela manipulação midiática que torna virtualmente impossível qualquer forma de soberania popular duradoura, e mesmo de empatia com os grupos subalternos. Dessa maneira, enfatiza-se o aspecto repressivo do Estado e do controle social informal, desde o açoite dos tempos de escravidão, a violência contra moradores de favelas, até os grupos de extermínio e milícias contemporâneas para defender o patrimônio da elite contra as classes perigosas, que hoje se combina com a perspectiva do Estado paternalista penal baseado na gestão do território pela violência do sistema penal. Então, qualquer forma de empatia, alteridade e respeito ao corpo do outro é desfeita, com o beneplácito de certo “liberalismo” que mal mascara suas razões de ser (cf. SOUZA, 2017SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: Leya, 2017., passim). Nesse sentido é relevante salientar o fracasso de certa discursividade crítica que não revela também as suas formas peculiares de violência simbólica, que podem ser desmitificadas inclusive pela semiótica discursiva crítica de autores como Luis Alberto Warat (2002, p. 349)WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. v. 2. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor , 2002.:

A teoria crítica não pode atacar o totalitarismo dessa identidade propondo-se, por sua vez, como a forma não falsificada dessa razão. Ela precisa deslocar o lugar da verdade, reintroduzindo-a na racionalidade do cotidiano, como roteiro para a recuperação do valor político da prática cotidiana. Na gramática de produção pequeno-gnoseológica, encontra a raiz última da exploração do significante no discurso da violência simbólica que ele exerce sobre os indivíduos. A tarefa política da teoria crítica é a de destruir a força desta violência significativa, para liberar a nossa própria força. A teoria crítica tem a função de pôr o indivíduo em condições de defender-se da violência simbólica. Sua crise é provocada, em grande medida, porque ela, longe de consegui-lo, opera de um modo finalmente cúmplice.

Tópicos como o liberalismo, garantismo, abolicionismo penal e teoria crítica, em Zaffaroni, constituem um mosaico teórico articulado e complexo, mas jamais rendido às tentações autoritárias de qualquer natureza. Não é por acaso que em sua obra mais conhecida, a monografia Em busca das penas perdidas (2001), todos esses referenciais são reconhecidos enquanto fontes teóricas ou respostas dirigidas à crise de legitimidade do utilitarismo penal na circunscrição latino-americana (realidade periférica ou marginal). Trata-se de um modelo sincrético38 38 Curioso observar que o traço sincrético que caracteriza o seu modelo é apresentado não de modo tímido, mas como signo virtuoso de distinção de modelos análogos: “Cuando se pregunta si hay cultura latinoamericana, obviamente que la respuesta debe ser que existen muchas culturas latinoamericanas, pero en un inédito fenômeno de sincretismo permanente: eso es lo original, estar siendo la sincretización de la mayor parte de todo lo que el poder mundial fue depreciando. La esencia del ser latinoamericano es todo lo contrario de lo estático, es dinâmico por excelência, se está haciendo a si mismo continuamente. Esto desconcierta a uma ciência que quiere petrificarlo todo, separar, analizar por partes y perder el todo y destruir todo. Latinoamérica no viene de viejas glorias petrificadas, sobrayando diversidad de concepciones para marcar aún más la antinomia entre la convicción orgullosa y la situación humillada” (ZAFFARONI, 1988, p. 77). que congrega contribuições de referenciais teóricos bastante diversos (ou mesmo “antagônicos”)39 39 Zaffaroni, no entanto, parece não se importar com arguições desse naipe. Em um de seus escritos, em que presta homenagem ao penalista brasileiro Tobias Barreto, o mestre argentino ensaia uma resposta bastante persuasiva acerca das acusações puristas dirigidas a esse autor: “As contradições de Tobias provêm da falta de elementos filosóficos com os quais opôs-se ao avanço do positivismo autoritário e racista do sul. Estas carências são comuns até hoje: é impossível opor uma ideologia num marco teórico coerente - ao nível de coerência dos países centrais - desde os países periféricos, por causa das limitações dos meios e da informação, que é disponível nos países centrais e que não têm os cientistas sociais dos nossos países. Os marcos teóricos feitos na periferia do poder planetário ficam, pelo menos em boa parte, contraditórios. Hoje sabemos que o complexo ‘poder-saber’ é indivisível e o maior mérito não é a impossível construção de um marco teórico perfeito (segundo os controles de qualidade acadêmicos dos países centrais), mas a clareza na percepção do sentido do exercício do poder” (ZAFFARONI, 1982, p. 181). Como se percebe, o argumento não apenas tem o condão de preservar a memória intelectual de Barreto, mas funciona também como defesa do modelo realista marginal de Zaffaroni. sob o eixo da deslegitimação das narrativas de justificação da pena, em especial as utilitárias.

Zaffaroni procura retirar o poder jurídico da batalha pela justificação do poder punitivo, direcionando sua artilharia teórica a um potencial mais factível: a contenção de danos produzidos pelo indefensável sistema penal.40 40 Sobre isso, cf. Zaffaroni (2001). A metodologia para concretizar a proposta é discutida no capítulo quinto. A proposta claramente mira os indicadores de bem-estar que a sociedade contemporânea possui, mas a partir do verdadeiro potencial de intervenção jurídico-penal, depurado dos objetivos de “combate à criminalidade”, próprios dos utilitarismos penais. Por outro lado, ainda que se valha dos dados empíricos (criminologia) e da crítica abolicionista (como o leitor deve ter reparado, a homenagem a Louk Hulsman se faz notar já no título de sua obra), o modelo realista marginal de Zaffaroni (2001, p. 186-187) tem uma pretensão que excede os objetivos do abolicionismo penal: almeja ser uma teoria racional, não legitimante e pautadora de decisões judiciais, ou seja, disputa a hegemonia no interior do saber jurídico. Ao fim e ao cabo, é uma teoria localizada no campo da hermenêutica jurídica, e esse aspecto talvez encontre explicação na própria biografia do autor, ex-ministro da Suprema Corte argentina e atual membro da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Para Zaffaroni, as linhas de fundamentação fornecidas pelas teorias da pena soam metafísicas e falaciosas. Sua desconexão com a realidade operacional do poder punitivo (fator que não parece incomodar o utilitarismo reformado de Ferrajoli)41 41 Exemplo disso são os constantes apelos que o autor faz à “Lei de Hume” enquanto postulado metodológico (FERRAJOLI, 2014, p. 300). Para um enfoque crítico do conceito desde a filosofia ética, cf. Dussel (2012, p. 105 ss.). Para uma abordagem crítica desde a criminologia, cf. Larrauri (2005, p. 16). não permite que sejam concebidas como legítimas nos quadros de sistemas penais marcadamente genocidas como os latino-americanos. Em seu entender, o poder punitivo encontra-se deslegitimado pelos próprios fatos (ZAFFARONI, 2001ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001., p. 38).

A rigor, não há uma crise de eficácia do modelo punitivo penal, pois ele alcança o seu objetivo de criminalização da pobreza, ou seja, dentro de sua função oculta reproduzindo a desigualdade social e o status quo. O discurso legitimador da dor, do prazer e da felicidade dos “cidadãos de bem” é apenas uma ficção, uma ilusão jurídica que oculta a verdadeira função de criminalização seletiva do sistema penal protegendo os “homens de bens” (NEPOMUCENO, 2004NEPOMUCENO, Alessandro. Além da lei: a face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004., p. 52), quando setores estereotipados e vulneráveis das camadas sociais subalternas sofrem a criminalização naturalizada, em que a violência contra os corpos e a subjetividade foge de qualquer aplicação de ideais utilitaristas em sua acepção reformista filosófica cooptada pela ideologia do sistema penal. Nesse sentido é interessante esboçar a relação entre mitologia e ideologia em Warat, pois, para o autor, a mitologia transforma a história em ideologia:

No direito, a ideia do emissor universal pode ser identificada com o culto ao “espírito legislador”. E através do mito logra-se politicamente a conciliação das contradições sociais na medida em que estas são projetadas em uma dimensão harmoniosa de essências puras, relações necessárias e esquemas ideais, aos quais devemos forçosamente aderir. Esta função de harmonização, esse ritual simbólico aparece no direito mediante a constituição de conceitos fetichistas tais como “direito natural”, “dever jurídico”, “ato antijurídico” etc. ou como “natureza jurídica”, “Estado”, “soberania”, “legalidade”, sendo que as últimas três citações são noções ontológicas reificantes [que] se sustentam sobre a invocação dos pressupostos da noção da “mala in se”, ou do “dever in se”, ou do direito subjetivo inerente (visto como atributo do homem). (WARAT, 1994WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito: interpretação da lei: temas para uma reformulação. v. 1. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1994., p. 105)

Dentro desse contexto, em que os vernizes ideológicos da falácia da programação garantista do nosso sistema tornam desnecessária a atualização da conjuntura histórica do Brasil, em que se consolida a noção de um Estado pós-democrático sem necessidade de disfarces garantistas, em uma era de neo-obscurantismo, em que as garantias constitucionais e processuais penais são totalmente anuladas com o aporte de “poderes selvagens”, na acepção de Ferrajoli (2014, p. 12)FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014., concomitante a desconstitucionalização atrelada à imposição da razão neoliberal, no modelo do pensamento bélico-binário no estilo amigo-inimigo com imposição de verdades inquestionáveis pela mídia com figuras decisionistas como juízes messiânicos alçados ao status de heróis, em que é garantido que o poder econômico neoliberal se transforme em poder político sem amarras com a demonização da política e a criminalização dos indesejáveis (CASARA, 2017CASARA, Rubens. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 180-183), as amarras utilitárias do discurso penal sucumbem ao discurso autoritário de criminalizar os inimigos. Sintoma: até o velho estereótipo do comunista foi resgatado.

É por essas e outras razões que o penalista argentino irá propor uma atitude teórica agnóstica ou negativa: não é tarefa dos penalistas buscar obsessivamente fundamentos para a pena. Até que se comprove algo diferente, a pena carece de fundamentos jurídicos, encontrando, no entanto, fundamentação bélica. Trata-se de imposição de poder, própria de Estados policiais, cabendo à práxis jurídica um papel análogo ao da Cruz Vermelha: sem legitimar as intervenções bélicas, vale a pena agir para conter violências - nesse caso, as violências que podem efetivamente ser contidas pelo poder jurídico, isto é, as violências produzidas pelo sistema penal (ZAFFARONI et al., 2003ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro. 4. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003., p. 97 ss.).

Não seria apropriado caracterizar o realismo marginal como uma espécie de “abolicionismo penal aplicado” ao ofício dos juristas. Em que pese a relação orgânica entre ambos os enfoques, Zaffaroni deixa claro que a abrangência da militância abolicionista parece também exceder os limites do poder jurídico. Para o autor, o abolicionismo penal seria uma teoria/movimento que demanda uma nova organização social, com uma nova sociabilidade. Não se discute a concretude desse projeto, mas para o catedrático argentino a realização dessa transição está para além da contribuição que os teóricos são capazes de fornecer, necessitando de um engajamento muito mais capilarizado (ZAFFARONI, 2012ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 228 e 462). Sob outro prisma, a proposta realista marginal parece diferenciar-se do modelo de Baratta, entre outros aspectos, devido à severa descrença que Zaffaroni opõe às possibilidades de uso alternativo do poder punitivo,42 42 Embora a obra de ambos os autores não pareça demarcar essa distinção com toda a clareza, certamente fornece elementos para que possamos traçar essa conclusão. Um debate nos servirá de exemplo: Baratta considera que a questão dos conteúdos da “tutela” penal, posta em termos de uma qualidade intrínseca dos bens jurídicos em questão, ao fim se revela uma questão impossível de ser resolvida e, portanto, vã. Desse modo, para o autor, há que se adotar como princípio metodológico para avaliar a racionalidade político-criminal de determinada norma penal duas condições: em primeiro lugar, deve-se afastar, mesmo que provisoriamente, os conceitos de pena e delito e mesmo a existência de um controle penal, concedendo espaço para a imaginação sociológica e novos métodos de resolução dos conflitos criminalizados; ainda, se deve considerar, entre as situações conflitivas, as provocadas pelo próprio sistema penal (BARATTA, 2004, p. 66). Para Zaffaroni et al., Baratta leva a cabo “uma verdadeira liberação da imaginação sociológica e política diante de uma cultura do penal que coloniza amplamente o modo de perceber e construir os conflitos e problemas sociais em nossa sociedade” (ZAFFARONI et al., 2003, p. 642). Entretanto, sendo obedecidas as condições propostas pelo autor, Zaffaroni considera que dificilmente restaria alguma matéria que a imaginação não punitiva não pudesse subtrair do sistema penal, designando, assim, modelos alternativos de resolução dos conflitos em questão (ZAFFARONI, 2001, p. 96-97). Se nos dispusermos a considerar que Baratta tinha em mente uma política criminal que adotasse o ponto de vista das camadas desfavorecidas, criminalizando condutas nocivas levadas a cabo pelas classes dominantes, a discordância dos autores poderá ser facilmente reelaborada nos termos que ora arguimos. o que não parece lhe permitir compactuar com novas tentativas de criminalização, mesmo que o conteúdo material tipificado implique interesses estratégicos das classes dominantes, a quem o sistema penal parece servir majoritariamente, pois se insere no processo de reprodução da estrutura capitalista desigual.

Mas, afinal, o modelo agnóstico/realista marginal deixa de ser utilitário? Sem embargo de toda nossa sustentação até o momento, acreditamos que a resposta a essa questão deve ser negativa. Não há dúvida que o modelo de Zaffaroni rompe com as narrativas utilitárias da pena, ou seja, assim como o abolicionismo penal, rompe manifestamente com a ideia de pena útil. Entretanto, não nos parece que essa atitude represente um rechaço intransigente com o próprio utilitarismo, mesmo porque, como dissemos, a crítica da incerteza no interior do discurso utilitário tende a ser reformista: a partir dela é possível se erigirem novas metodologias de concretização do princípio utilitário, inclusive sob os escombros das velhas técnicas de materialização desse princípio. Sepultada a ideia de pena útil, a narrativa jurídico-penal é capaz de se reorganizar, realinhando sua constelação de ideias-unidade em prol de outros parâmetros, mas não menos utilitários. Se a pena - enquanto mecanismo produtor de felicidade - demonstrou sua flagrante ineficácia, coube à narrativa jurídico-penal (na esteira do modelo realista marginal) estabelecer outra diretriz ao poder jurídico, no caso, a própria contenção de excessos punitivos (lembrando que, para Zaffaroni, a pena é um fato de poder, ou seja, seu exercício não é jurídico, apenas habilitado ou não por atores jurídicos).43 43 Em escritos mais recentes, o autor ensaia algumas respostas para a origem das pulsões punitivas desde um referencial antropológico e psicanalítico, em especial a partir da obra de René Girard (ZAFFARONI, 2012, p. 299).

Fica claro, portanto, que o utilitarismo penal, em Zaffaroni, não é um utilitarismo da pena. Se o poder punitivo não cansou de demonstrar sua inaptidão para concretizar o princípio utilitário da maior felicidade/menor infelicidade, o poder jurídico, no exercício de seu mister de conter os excessos de violência, demonstra certa envergadura para patrocinar objetivos caros à clientela preferencial do sistema penal, garantindo-lhe a integridade de seus direitos. Sua justificação estaria, portanto, atrelada a esse objetivo. Dele decorreria sua razão de ser.

Considerações finais

Vimos, portanto, que o trajeto percorrido pelo utilitarismo na estrada do discurso jurídico- penal não é linear. Seu percurso é errante, requerendo inúmeras correções de rumo. Entretanto, não é de todo aleatório. Mesmo as mudanças de trajeto se fazem ao modo de um realinhamento de ideias-unidade, sem implicar um completo abandono dos objetivos traçados inicialmente, sem significar uma rejeição completa aos postulados do pensamento utilitário. Se os utilitarismos ilustrado e reformado viram na pena útil a premissa de sua sustentação enquanto corpo de pensamento, a criminologia crítica efetuou sérias fissuras nesse modelo de sustentação. A partir dessa investida crítica, já não foi mais inteiramente possível se sustentar a utilidade da pena enquanto mecanismo tendente a realizar o princípio utilitário, ou seja, enquanto aparelho de felicidade. Resgatando esses avanços, o modelo realista marginal foi capaz de construir um paradigma de orientação jurídico-penal que prescinde totalmente da noção de pena útil. Entretanto, tal modelo não pode ser tido como um rechaço pleno dos postulados do utilitarismo em Direito Penal. Ao contrário: trata-se de um esforço de continuidade, pois a recusa de se atribuir utilidade à pena não traduz desesperança no potencial de contenção de danos do poder jurídico. Embora agnóstica em relação à pena, a perspectiva realista marginal impõe uma práxis jurídica que preserva o princípio utilitário de maximização da felicidade e minimização do sofrimento, identificando na contenção de danos um indicador de bem-estar, cuja realização estaria a cargo do Direito Penal.

  • 1
    Uma cronologia bastante completa desses modelos, contendo inclusive os utilitarismos de matriz preventista especial, pode ser obtida em Bitencourt (2011).
  • 2
    Por “momentos”, não pretendemos descrever uma trajetória linear. De fato, as teses que puseram em xeque o utilitarismo penal, oriundas das criminologias críticas, certamente precedem o utilitarismo reformado de Ferrajoli, por exemplo. E, sem querer ir longe demais, é de se notar, na linha do que aduz Michel Foucault, que a crítica da prisão (inclusive a denúncia de sua inutilidade) aparece muito cedo (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 36. ed. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 251 ss.). Optamos por privilegiar a linearidade do raciocínio em detrimento da cronologia das formulações de que nos ocuparemos.
  • 3
    Não que seu modelo seja o único programa de intervenção político-criminal que a criminologia crítica foi capaz de desenvolver, mas certamente é um dos mais importantes, tendo angariado a devida simpatia de toda uma geração de criminólogos críticos latino-americanos, o que justifica a preferência deste ensaio. Para uma homenagem a suas ideias e atitudes, cf. Andrade (2012)ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. , em especial o primeiro capítulo.
  • 4
    Cabe agregar que no Brasil a historiografia das ideias tem sido desenvolvida por estudos como os de Ruth Gauer (2009)GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. e suscita debates no âmbito das ciências criminais, em particular do processo penal, cabendo mencionar trabalhos como o de Augusto Jobim do Amaral (2013)AMARAL, Augusto Jobim do. Constantes inquisitoriais de estilo: uma introdução à história das ideias processuais penais. Mneme - Revista de Humanidades, Caicó, v. 14, n. 32, p. 1-49, jan./jul. 2013. e Salah H. Khaled Jr. (2010)KHALED JR., Salah Hassan. Windscheid & Muther: a polêmica sobre a Actio e a invenção da ideia de autonomia do Direito Processual. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 97-109, jan./jun. 2010. .
  • 5
    Uma importante discussão se dá acerca do papel que as ideias acabariam desempenhando na trajetória histórica. Franklin Baumer sinaliza duas tendências extremas. De um lado, os idealistas pressupõem que as ideias seriam forças em si mesmas, tendentes a modificar o percurso histórico em conformidade com a mudança dos ventos no interior do pensamento de uma geração. Simplificando bastante: há aqui a assunção de que as ideias modificam o mundo material (e não o contrário). Na outra ponta, temos a tendência mecanicista que se recusa a enxergar as ideias como determinantes da caminhada histórica. Há aqui uma pressuposição invertida: as ideias seriam reflexos, ou seja, guardariam uma mera relação de correspondência em função das realidades materiais que as produzem em primeiro lugar. Acompanhamos a conclusão de Baumer, para quem nenhuma das duas posições pode ser uma saída interessante para o desenvolvimento da historiografia das ideias. Deve-se primar por uma posição intermediária que não negue uma relação dialética entre as condições sociais e a força criadora das ideias (BAUMER, 1977, p. 23-24). Existe uma interação complexa que deve ser investigada caso a caso, evitando-se fórmulas analíticas preconcebidas que só serviriam para ser desmentidas. Especulamos que a controvérsia acerca da força criadora das ideias se comunica com outra questão adjacente: o potencial da própria ação humana no sentido de modificar as injustiças de seu tempo, o que é uma questão sensível especialmente para quem teoriza desde as ciências criminais. Como regra, só poderemos seguir depositando nossa convicção na velha máxima marxiana segundo a qual os seres humanos “fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos” (MARX, 2011MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo , 2011. , p. 25).
  • 6
    Embora deva se ressaltar que nesse particular a ideia de secularização do crime e das penas, transportando-os aos marcos de uma fenomenologia secularizada, certamente foi ainda mais decisiva do que a simples imposição de uma utilidade terrena para o castigo. Não à toa convictos utilitaristas como Ferrajoli não cansam de celebrar a separação entre direito e moral como um importante passo para a transição de um direito penal substancialista para um direito penal de tipo cognitivo e garantidor (FERRAJOLI, 2014FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014., p. 200 ss.).
  • 7
    Sobre o tema, e a inadmitida influência lombrosiana nos estudos de antropologia criminal levados a cabo durante o regime, cf. Muñoz Conde (2005)MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu tempo: estudos sobre o Direito Penal no nacional-socialismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. .
  • 8
    Que anunciava nada menos do que uma transição “das trevas para a luz” (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 275).
  • 9
    Pavarini, de passagem, faz menção às raízes pré-modernas do discurso retribucionista inerente à tradição religiosa que vincula a pena a noções como a de “castigo divino”, de modo a torná-la um mecanismo “expiação” do crime/pecado (PAVARINI, 1993PAVARINI, Massimo. La justificación impossible: la historia de la idea de pena entre la justicia y utilidad. Capítulo Criminológico, Maracaibo, n. 21, p. 30-41, 1993. , p. 31). Além disso, quando pensamos na pena como instrumento de retribuição, é difícil escapar da imagem da “Lei de Talião”. Mais uma vez, o instrumental da história das ideias serve para nos prevenir acerca da constância de ideias-unidade que sobrevivem mesmo no interior de sistemas de pensamento de tipo distinto.
  • 10
    A título de exemplo, a partir de Zaffaroni et al. (2003, p. 521)ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro. 4. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003., poderíamos interrogar se as teses retributivas, especialmente de matriz kantiana, estariam de fato tão distantes de uma demarcação utilitária. O argumento dos autores é o seguinte: conceber a teoria da pena contida em Kant como algo completamente alheio ao utilitarismo não passa de simplismo, pois dizer que a pena é “um fim em si mesmo” não significa dizer que ela não possui uma finalidade (no caso, a realização de um imperativo moral). Nesse caso, ela não seria absoluta, mas, sim, irracional, o que não combina com o legado kantiano e o espírito moderno de modo geral. Em sentido similar, o retribucionismo de matriz hegeliana também não nos parece terminantemente alheio à gramática utilitária, já que a restauração da ordem jurídica, ferida pelo fenômeno criminal, denota a imposição de uma finalidade conservadora ao poder punitivo, trazendo à superfície um componente utilitário. Não por acaso, Zaffaroni et al. consideram possível estender uma ponte entre as teses utilitárias que compõem a prevenção geral positiva (ou “prevenção integração”) e o sistema hegeliano de justificação da pena (ZAFFARONI et al., 2003ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro. 4. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003., p. 121-122). Assim, é de se conceber a tipologia usual das ideias penais como uma categorização ideal e relativa, e não estanque.
  • 11
    Um excelente inventário dos debates surgidos a partir do utilitarismo pode ser visto em Mulgan (2012)MULGAN, Tim. Utilitarismo [recurso eletrônico]. Petrópolis: Vozes , 2012..
  • 12
    Como veremos, o desenvolvimento da questão penal foi uma temática mais presente na obra de utilitaristas como Bentham e Beccaria, mas a obra de Stuart Mill representa um dos momentos mais marcantes do liberalismo político, teorizando sobre temáticas como a liberdade de expressão, a democracia e o direito das mulheres, iniciativas que, a seu ver, estariam plenamente fundamentadas pelos postulados utilitários (MULGAN, 2012MULGAN, Tim. Utilitarismo [recurso eletrônico]. Petrópolis: Vozes , 2012., p. 20 ss.). Mesmo assim, os ecos de Mill se fazem ouvir no campo penal, por exemplo, na transposição de seu “princípio do dano” (harm principle) às discussões referentes aos limites legislativos da criminalização nos sistemas jurídicos anglo-saxões (ZAFFARONI, 2014ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Anotações sobre o bem jurídico: fusões e (con)fusões. In: PINHO, Ana Cláudia Bastos de; DELUCHEY, Jean-François Y.; GOMES, Marcus Alan de Melo. Tensões contemporâneas da repressão criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014., p. 11).
  • 13
    “Esta perspectiva utilitária estava em desacordo com as tradicionais concepções do conhecimento, a aristotélica e agustiniana, que salientavam o conhecimento ou a sabedoria em si. Contudo, era o produto, não só da reação contra uma escolástica acadêmica e árida, mas também de uma sociedade urbana e comercial crescente, interessada em ‘obras’” (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 48).
  • 14
    A vinculação histórica entre a mentalidade utilitarista e as necessidades de desenvolvimento do capitalismo moderno é bastante conhecida. Basta lembrar, por exemplo, que Bentham acompanha grande parte das propostas de Adam Smith relativas ao livre mercado, ainda que buscasse limitar essa liberdade de acordo com os postulados do utilitarismo, o que acabava por conferir à liberdade de mercado um valor instrumental e não intrínseco (MULGAN, 2012MULGAN, Tim. Utilitarismo [recurso eletrônico]. Petrópolis: Vozes , 2012., p. 16).
  • 15
    Na linha de estudos clássicos como os de Geor Rusche e Otto Kirchheimer (2004)RUSCHE, Geor; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2004. e Foucault (2009)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 36. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.. Uma obra interessante, da perspectiva brasileira, está nos dois volumes da História das prisões no Brasil, em especial a introdução de Maia et al. (2009)MAIA, Clarissa Nunes; NETO, Flávio de Sá; COSTA, Marcos; BRETAS, Marcos Luiz. Introdução: história e historiografia das prisões. In: MAIA, Clarissa Nunes; NETO, Flávio de Sá; COSTA, Marcos; BRETAS, Marcos Luiz. História das prisões no Brasil. v. 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 9-34. , na qual se encontra uma síntese da historiografia das punições.
  • 16
    Uma análise acurada e desmistificadora da narrativa utilitária no Direito Penal comprometeria a brevidade dessa reflexão, razão pela qual nos deteremos em uma descrição sintética dos utilitarismos ilustrado e reformado. Posteriormente, no entanto, trataremos de referir algumas das razões de sua crise a partir da crítica criminológica, que ganha impulso na década de 1960.
  • 17
    O rol não é, de maneira alguma, exaustivo: Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 58 ss.)BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. refere também as contribuições do reformador John Howard, enquanto Baratta (2002, p. 34 ss.)BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2002. lembra de autores como Gian Domenico Romagnosi e Francesco Carrara.
  • 18
    Esse é um dos pontos em que Stuart Mill toma distância de Bentham, seu antecessor na defesa do utilitarismo. Naturalmente a versão de Mill, sem dúvida mais sofisticada devido ao contato com as críticas dirigidas à formatação anterior da ética utilitária, é capaz de superar o hedonismo que se encontra em Bentham, reformulando o princípio da utilidade no sentido de livrá-lo de considerações meramente sensoriais e aproximá-lo de objetivos mais relevantes do ponto de vista do “bem comum” rousseauniano (cf. FERRAZ, 2014FERRAZ, Carlos Adriano. Ética: elementos básicos. Pelotas: NEPFIL, 2014., p. 226). O trecho a seguir de sua obra, constantemente lembrado, dá testemunho da rejeição do hedonismo em seu pensamento: “É indiscutível que um ser cujas capacidades de deleite sejam baixas tem uma probabilidade maior de as satisfazer completamente, e que um ser amplamente dotado sentirá sempre que, da forma como o mundo é constituído, qualquer felicidade que possa esperar será imperfeita. Mas pode aprender a suportar as suas imperfeições, se de todo forem suportáveis, e estas não o farão invejar o ser que, na verdade, está inconsciente das imperfeições, mas apenas porque não sente de modo nenhum o bem que essas imperfeições qualificam. É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o porco têm uma opinião diferente é porque só conhecem o seu próprio lado da questão. A outra parte da comparação conhece ambos os lados” (STUART MILL, 2005STUART MILL, John. Utilitarismo. Porto: Porto Editora, 2005. , p. 51).
  • 19
    No sistema de pensamento de Beccaria, como, em geral, no restante dos contratualistas, respeitadas as suas diferentes nuances, o surgimento do ordenamento jurídico é o momento que marca a passagem de uma ordem incivilizada, um estado generalizado de beligerância a um contexto de primazia das leis, onde as vontades e necessidades dos mais fracos poderiam ser respeitadas. “Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, [os homens] sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança” (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 19). Nota-se que a própria raiz de fundamentação prática do ente estatal no marco da teoria contratualista implica um juízo histórico, calcado em um consenso social facilmente objetável.
  • 20
    Acompanhamos a conclusão de Bitencourt (2011, p. 64-65)BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011., para quem a tese preventista geral era preponderante no pensamento de Bentham, ainda que sua obra forneça certamente elementos para se pensar a prevenção especial positiva, como a sua preocupação com a arquitetura carcerária panóptica.
  • 21
    Na verdade, pode-se considerar que a expressividade das revoltas sociais contra a crueldade dos métodos punitivos do Estado absolutista pavimentou o caminho percorrido pelos reformadores do Iluminismo. A preocupação que ficava subentendida era quanto à criação de uma solidariedade de classe entre a população e os desviantes que, em comum, possuíam ao menos uma total vulnerabilidade diante dos humores do monarca (cf. FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 36. ed. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 61).
  • 22
    Evidentemente esse intento questionador não foi de todo linear ou sequer consensual. Baumer problematiza a atmosfera do pensamento político do século XVIII, demonstrando que as doutrinas políticas que circulavam não desaguavam necessariamente no Estado liberal que veio a se consolidar mais tarde. Havia no século XVIII muito do conservadorismo de outrora, de modo que as orientações políticas em questão formavam um verdadeiro caleidoscópio. “Um utilitarista, por exemplo, podia ser liberal, conservador ou revolucionário, assim como um crente na ‘natureza’ podia apoiar uma versão democrática ou autocrática do contrato social” (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 253). No entanto, o peso de concepções como o direito natural e o próprio contratualismo - independente da radicalidade com que eram tratadas pelos teóricos - não deve ser subestimado. Evidência disso pode ser encontrada no esvanecimento de concepções como o “direito divino” do soberano, descartada mesmo no despotismo (esclarecido) daquele século (BAUMER, 1977BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. v. 1. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 253-254).
  • 23
    Não se sugere que a crítica de Beccaria estava dirigida aos regimes absolutistas em geral. De fato, o autor faz questão de esclarecer no prefácio de sua obra que “muito ao contrário de pensar em diminuir a autoridade legítima, constatar-se-á que todos os meus esforços foram no sentido de engrandecê-la; e ela de fato se engrandecerá, quando a opinião pública puder mais do que a força, quando a indulgência e a humanidade puderem fazer com que se perdoe aos príncipes o poder que têm” (BECCARIA, 2008BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 12). Entretanto, é fato que sua obra produziu uma crítica profunda a uma economia de poder que era própria dessa anatomia política e, por essa razão, soma-se aos abalos levados a cabo pela Ilustração.
  • 24
    Argumento que por si só é bastante questionável, mormente em um contexto em que pessoas são linchadas nas próprias prisões, como demonstram pesquisas empíricas como a de José de Souza Martins (2015)MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015. .
  • 25
    A esse respeito, cf. Elena Larrauri (2005)LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul, ano 4, n. 20, p. 11-38, 2005.. Uma tentativa de autojustificação diante das principais críticas dirigidas ao seu modelo foi efetuada por Ferrajoli (2008)FERRAJOLI, Luigi. Notas críticas y autocríticas en torno a la discusión sobre “Derecho y Razón”. In: GIANFORMAGGIO, Letizia (org.). Las razones del garantismo: discutiendo con Luigi Ferrajoli. Bogotá: Temis, 2008. p. 475-545..
  • 26
    Convém reparar que o utilitarismo se divide em várias correntes no âmbito filosófico: utilitarismo dos atos, das regras (que podem admitir, inclusive, a existência de várias sub-regras ampliando a noção de felicidade), utilitarismo da média, teorias mentalistas, negativistas, o utilitarismo preferencialista, teorias pluralistas e objetivistas do bem-estar, ou seja, são várias abordagens do consequencialismo adaptando os vários enfoques diferenciados, visando à retificação de seus postulados. Mesmo o socialismo e o anarquismo podem ser considerados abordagens utilitaristas. As críticas ao utilitarismo também são afeitas à diminuição dos direitos individuais contra os interesses da maioria (cf. CARVALHO, 2000CARVALHO. Maria Cecília Maringone. Por uma ética ilustrada e progressista: uma defesa do utilitarismo. In: OLIVEIRA, Manfredo. A de (org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 99-115., p. 99-115).
  • 27
    Larrauri (2000, p. 69)LARRAURI, Elena. La herencia de la criminología crítica. 2. ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 2000. rastreia essa transição até o movimento dos teóricos da new left na Inglaterra, inspirados por pautas que vão desde a crítica da guerra entre EUA e Vietnã até as movimentações estudantis do Maio de 1968.
  • 28
    A exemplo de Jock Young (2012)YOUNG, Jock. Criminología de la clase obrera. Caracas: UNES, 2012. .
  • 29
    Dentre os mais destacados precursores da criminologia crítica em território nacional, vale mencionar as obras de Roberto Lyra Filho (1997)LYRA FILHO, Roberto. Criminologia dialética. Brasília: Ministério da Justiça, 1997. e Juarez Cirino dos Santos (2008)CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 3. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2008. .
  • 30
    O autor propõe uma leitura do materialismo histórico “livre de toda forma de dogmatismo, ou seja, considerando o marxismo como um edifício teórico aberto, que, como qualquer outro, pode e deve ser continuamente controlado mediante a experiência o confronto, crítico mas sem preconceitos, com os argumentos e os resultados provenientes de enfoques teóricos diversos” (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Inst. Carioca de Criminologia, 2002., p. 200). De fato, a ausência de apego a barreiras teóricas é o que parece permitir a Baratta apropriar-se com desenvoltura e criatividade de referenciais diversos que vão desde a leitura foucaultiana da penalidade contemporânea até as contribuições da psicanálise no desvelar das pulsões punitivas inconscientes, conforme se verifica em sua obra.
  • 31
    Um bom exemplo está no chamado “princípio da idoneidade”: “Este principio obliga al legislador a realizar un atento estudio de los efectos socialmente útiles que cabe esperar de la pena: sólo subsisten las condiciones para su introducción si, a la luz de un riguroso control empírico basado en el análisis de los efectos de normas similares en otros ordenamientos, de normas análogas del mismo ordenamiento y en métodos atendibles de prognosis sociológica, aparece probado o altamente probable algún efecto útil, en relación a las situaciones en que se presupone una grave amenaza a los derechos humanos” (BARATTA, 2004BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004., p. 309-310). Não está claro se o autor refere esse princípio a modo de limitação do horizonte de intervenção do sistema penal (contando que não haja situações em que o poder punitivo se mostre idôneo para resolver conflitos, o que talvez forçasse a imaginação político-criminal a conceber alternativas não penais) ou se, de fato, considera haver um escasso espaço de intervenção legítima do poder punitivo no intento de solucionar conflitos, o que revigora o pressuposto da pena útil e, inevitavelmente, aproxima seu modelo dos demais utilitarismos jurídico-penais já trabalhados.
  • 32
    Esse aspecto militante do abolicionismo penal é lembrado com constância pelos analistas. A tentativa de intervenção político-criminal sempre esteve associada ao movimento, de modo que o conceber em termos puramente teóricos significa necessariamente amputar o seu significado enquanto fenômeno histórico. Apenas para exemplificar, o movimento abolicionista na circunscrição estadunidense esteve associado à militância em prol dos direitos civis e à denúncia da brutalidade do tratamento dirigido a setores marginalizados daquela sociedade. Nos EUA, não raras vezes a luta abolicionista constituiu uma pauta do movimento dos Panteras Negras, merecendo destaque a atuação de Angela Davis, entre outros (CIRINO DOS SANTOS, 2008CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 3. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2008. , p. 27).
  • 33
    Autores abolicionistas costumam problematizar o enquadramento simplificador fornecido pelos aparelhos de justiça formal ao tratar a questão penal. Dentro da lógica punitiva, problemas sociais costumam ser reduzidos à redoma de “escolhas” (dentro do paradigma liberal) ou “determinações” (dentro do modelo explicativo do positivismo criminológico) individuais, o que reduz enormemente as chances de gestão produtiva do próprio conflito (cf. CHRISTIE, 1989CHRISTIE, Nils. Las imágenes del hombre en el Derecho Penal moderno. In: HULSMAN, Louk; CHRISTIE, Nils; MATHIESEN, Thomas; SCHEERER, Sebastián; STEINERT, Heinz; DE FOLTER, Rolf S. Abolicionismo penal. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 127-141.).
  • 34
    Nesse sentido, cf. Hulsman e Celis (1993)HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993. e Christie (2011)CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2011..
  • 35
    Um bom exemplo dessas discussões pode ser visto no debate entre Rolf de Folter e Thomas Mathiesen acerca da concepção de poder que deveria orientar o movimento. Tanto a arguição inicial de Folter quanto a resposta de Mathiesen podem ser encontradas na obra coletiva Abolicionismo penal (1989).
  • 36
    É claro que o grau de clareza quanto aos métodos de implementação de uma sociedade sem prisões varia de autor para autor. Ademais, o acerto ou o desacerto das proposições oriundas do pensamento abolicionista podem ser arguidos, mas há estratégia, e a obra de Mathiesen talvez seja o melhor exemplo disso (ZAFFARONI, 2001ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001., p. 99).
  • 37
    Soa falacioso acusar o abolicionismo penal de não fornecer elementos para uma ação política concreta. O pensamento abolicionista sempre foi muito mais propositivo do que seus detratores estiveram dispostos a admitir, em que pese ser correto afirmar que não apresente um receituário no sentido em que estamos acostumados. Conforme Andrade (2012, p. 264-265)ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. , “o abolicionismo não se coaduna com receitas estáticas e totalizadoras, e não podendo ser interpretado como um receituário imediatista ingênuo (que sendo ‘aplicado’ permitiria dormir com o sistema e acordar sem o sistema) valoriza as lutas processuais e micro, de modo que podemos exercer práticas abolicionistas cotidianamente, às vezes, até sem o saber, sempre que levamos a sério a ultrapassagem do modelo punitivo. Essa via, de certa maneira, co-responsabiliza todos nós”.
  • 38
    Curioso observar que o traço sincrético que caracteriza o seu modelo é apresentado não de modo tímido, mas como signo virtuoso de distinção de modelos análogos: “Cuando se pregunta si hay cultura latinoamericana, obviamente que la respuesta debe ser que existen muchas culturas latinoamericanas, pero en un inédito fenômeno de sincretismo permanente: eso es lo original, estar siendo la sincretización de la mayor parte de todo lo que el poder mundial fue depreciando. La esencia del ser latinoamericano es todo lo contrario de lo estático, es dinâmico por excelência, se está haciendo a si mismo continuamente. Esto desconcierta a uma ciência que quiere petrificarlo todo, separar, analizar por partes y perder el todo y destruir todo. Latinoamérica no viene de viejas glorias petrificadas, sobrayando diversidad de concepciones para marcar aún más la antinomia entre la convicción orgullosa y la situación humillada” (ZAFFARONI, 1988ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un márgen. Bogotá: Temis , 1988., p. 77).
  • 39
    Zaffaroni, no entanto, parece não se importar com arguições desse naipe. Em um de seus escritos, em que presta homenagem ao penalista brasileiro Tobias Barreto, o mestre argentino ensaia uma resposta bastante persuasiva acerca das acusações puristas dirigidas a esse autor: “As contradições de Tobias provêm da falta de elementos filosóficos com os quais opôs-se ao avanço do positivismo autoritário e racista do sul. Estas carências são comuns até hoje: é impossível opor uma ideologia num marco teórico coerente - ao nível de coerência dos países centrais - desde os países periféricos, por causa das limitações dos meios e da informação, que é disponível nos países centrais e que não têm os cientistas sociais dos nossos países. Os marcos teóricos feitos na periferia do poder planetário ficam, pelo menos em boa parte, contraditórios. Hoje sabemos que o complexo ‘poder-saber’ é indivisível e o maior mérito não é a impossível construção de um marco teórico perfeito (segundo os controles de qualidade acadêmicos dos países centrais), mas a clareza na percepção do sentido do exercício do poder” (ZAFFARONI, 1982ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Elementos para uma leitura de Tobias Barreto. In: ARAÚJO JR., João Marcelo (org.). Ciência e política criminal em honra de Heleno Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 175-185., p. 181). Como se percebe, o argumento não apenas tem o condão de preservar a memória intelectual de Barreto, mas funciona também como defesa do modelo realista marginal de Zaffaroni.
  • 40
    Sobre isso, cf. Zaffaroni (2001)ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.. A metodologia para concretizar a proposta é discutida no capítulo quinto.
  • 41
    Exemplo disso são os constantes apelos que o autor faz à “Lei de Hume” enquanto postulado metodológico (FERRAJOLI, 2014ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Anotações sobre o bem jurídico: fusões e (con)fusões. In: PINHO, Ana Cláudia Bastos de; DELUCHEY, Jean-François Y.; GOMES, Marcus Alan de Melo. Tensões contemporâneas da repressão criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014., p. 300). Para um enfoque crítico do conceito desde a filosofia ética, cf. Dussel (2012, p. 105 ss.)DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2012.. Para uma abordagem crítica desde a criminologia, cf. Larrauri (2005, p. 16)LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul, ano 4, n. 20, p. 11-38, 2005..
  • 42
    Embora a obra de ambos os autores não pareça demarcar essa distinção com toda a clareza, certamente fornece elementos para que possamos traçar essa conclusão. Um debate nos servirá de exemplo: Baratta considera que a questão dos conteúdos da “tutela” penal, posta em termos de uma qualidade intrínseca dos bens jurídicos em questão, ao fim se revela uma questão impossível de ser resolvida e, portanto, vã. Desse modo, para o autor, há que se adotar como princípio metodológico para avaliar a racionalidade político-criminal de determinada norma penal duas condições: em primeiro lugar, deve-se afastar, mesmo que provisoriamente, os conceitos de pena e delito e mesmo a existência de um controle penal, concedendo espaço para a imaginação sociológica e novos métodos de resolução dos conflitos criminalizados; ainda, se deve considerar, entre as situações conflitivas, as provocadas pelo próprio sistema penal (BARATTA, 2004BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004., p. 66). Para Zaffaroni et al., Baratta leva a cabo “uma verdadeira liberação da imaginação sociológica e política diante de uma cultura do penal que coloniza amplamente o modo de perceber e construir os conflitos e problemas sociais em nossa sociedade” (ZAFFARONI et al., 2003ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro. 4. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003., p. 642). Entretanto, sendo obedecidas as condições propostas pelo autor, Zaffaroni considera que dificilmente restaria alguma matéria que a imaginação não punitiva não pudesse subtrair do sistema penal, designando, assim, modelos alternativos de resolução dos conflitos em questão (ZAFFARONI, 2001ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001., p. 96-97). Se nos dispusermos a considerar que Baratta tinha em mente uma política criminal que adotasse o ponto de vista das camadas desfavorecidas, criminalizando condutas nocivas levadas a cabo pelas classes dominantes, a discordância dos autores poderá ser facilmente reelaborada nos termos que ora arguimos.
  • 43
    Em escritos mais recentes, o autor ensaia algumas respostas para a origem das pulsões punitivas desde um referencial antropológico e psicanalítico, em especial a partir da obra de René Girard (ZAFFARONI, 2012ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 299).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2018
  • Aceito
    03 Maio 2019
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