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Água doce nos fóruns comerciais internacionais: GATT, GATS e interação entre os regimes da água doce e do comércio internacional

Fresh water within international trade fora: GATT, GATS and interaction between the freshwater and the international trade regimes

Resumo

O comércio internacional de água compreende desde transações de compra e venda de água in natura engarrafada e água in bulk, até o comércio de água virtual e o comércio de serviços de água. Uma vez que a temática da água doce é enfrentada principalmente nos fóruns de direito ambiental internacional, surge a questão de como solucionar possíveis conflitos entre normas comercias e normas ambientais. Apresenta-se uma possível interação conflitual entre o Regime Internacional da Água Doce e o Regime do Comércio Internacional, levando em consideração as normas consolidadas do GATT, do GATS e dos distintos documentos internacionais sobre a água doce, de maneira a antecipar-se ao conflito. Apresenta-se, ainda, uma possível interação relacional entre esses dois regimes, prevendo a construção de normas que tragam um diálogo prévio. Conclui-se pela viabilidade desses dois tipos de interação, apontando suas possibilidades como soluções sustentáveis para a questão dos conflitos em torno da água doce. A pesquisa apresentada é qualitativa, com o uso dos métodos dedutivo e dialético.

Palavras-chave
Água doce; Comércio Internacional de Água; interação entre regimes; GATT e água; GATS e serviços de água

Abstract

International Trade of Water comprises bottled fresh water and water in bulk as well as virtual water and trade of water services. Since fresh water is an issue dealt with mainly within the international environmental law fora, there raises the doubt on how to settle possible conflicts between trade rules and environmental rules within it. A possible conflict interaction between the International Fresh Water Regime and the International Trade Regime is presented, taking into consideration the consolidated rules of GATT, GATS and the distinct documents on fresh water issues in such a way of anticipating the conflict. There is also presented a possible relational interational between these two regimes, foreseeing the construction of rules that bring a previous dialogue between them. A conclusion is for the viability of these kinds of interaction, pointing out their sustainable solutions for the fresh water conflicts issue. The research presented is a qualitative one, with the use of the deductive and dialectic methods.

Keywords
Fresh water; International Trade of Water; regime interaction; GATT and fresh water; GATS and water services

Introdução

Um diálogo entre as distintas normas do Regime Internacional da Água Doce e do Regime do Comércio Internacional ou, em outra linguagem, uma interação entre esses dois regimes, requer uma compreensão acerca das dimensões em que podem dialogar ou interagir.

Tendo em vista suas normas já prontas e consolidadas, bem como os distintos interesses que cada qual advoga, não é difícil imaginar uma interação conflitual entre ambos os regimes. Isso significa propor soluções para os possíveis conflitos que venham existir, uma vez que, de fato, não houve, ainda, conflitos entre suas normas em âmbito judicial. Não há, portanto, interpretações judiciais específicas a serem analisadas. Assim, o presente estudo pretende antecipar-se ao conflito.

Por outro lado - e de maneira construtiva -, algumas normas do Regime Internacional da Água Doce podem já nascer com um diálogo prévio com as normas do Regime do Comércio Internacional. Isso significa que a sua construção levará em consideração as normas de comércio internacional já existentes, bem como o seu impacto sobre elas.

A pesquisa aqui apresentada possui natureza qualitativa, utiliza os métodos dialético e dedutivo, e tem como objetivo geral analisar como os fóruns comerciais internacionais incluem a tratativa da água doce e, de forma específica, identificar se existe conflito entre os regimes analisados, bem como possíveis interações conflituais e relacionais. Para tanto, serão apresentados diferentes tipos de comércio de água, a saber: água engarrafada, in bulk, serviços de água e água virtual.1 1 Água in bulk compreende a água vendida em grandes quantidades para abastecimento público e industrial por meio de navios cargueiros ou tubulações. Água virtual compreende a água utilizada na produção de bens. Comércio de serviços de água, comumente denominado “privatização”, compreende os serviços de abastecimento e saneamento básico. A venda de água engarrafada compreende tanto água in natura como água dita “potável”.

Dessa forma, o presente trabalho apresenta um diálogo entre o Regime Internacional da Água Doce e o Regime do Comércio Internacional. Em um primeiro momento, após breve apresentação do Regime Internacional da Água Doce, será apresentada uma interação conflitual entre este Regime e o do Comércio Internacional. Para tanto, serão abordados os textos do General Agreement on Tarifs and Trade (GATT) e do General Agreement on Trade in Services (GATS) e a possibilidade de sua aplicação à água. Em um segundo momento, será apresentada uma interação relacional entre esses dois regimes, de maneira a se identificar a possibilidade do nascimento da norma - estatal ou não estatal - com natureza híbrida, ou seja, que nascerá trazendo essa interação.

1. Regimes internacionais e interações possíveis

Os regimes internacionais, conforme idealizados na década de 1980, não eram autossuficientes. Pertenciam a um todo, denominado “sistema internacional”, e buscavam, no conjunto, a ordem no plano internacional.

Ernest B. Haas (1983HAAS, Ernest B. Words can hurt you; or, who said what to whom about regimes. In: KRASNER, Stephen D. (ed.) International regimes. Ithaca: Cornell University Press, 1983, p. 26., p. 26), em ensaio para a obra editada por Krasner (1983KRASNER, Stephen D. Structural causes ad regime consequences: regimes as intervening variables. In: (ed.). International regimes. Ithaca: Cornell University Press, 1983, p. 1.), faz a diferenciação entre ordem, regime e sistema. Segundo Haas, regimes são instituições sociais para gerenciar conflitos dentro de um contexto de interdependência. Regimes são parte de um sistema. O sistema é o todo. A ordem refere-se, então, aos benefícios que um regime pode prover, enquanto o sistema refere-se ao todo dentro do qual há colaboração em favor da ordem.

Com o tempo, a expressão “regimes internacionais” foi sendo absorvida também pelo Direito Internacional para passar a noção de pluralidade. Muitos adeptos da fragmentação do Direito Internacional preferiram aplicar a expressão para advogar no sentido de não haver um sistema de direito internacional, de ser essa unidade uma artificialidade constitucionalista e de estar ela completamente desvinculada da realidade (KOSKENNIEMI, 2005KOSKENNIEMI, Martin. From apology to utopia. The structure of international legal argument. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.). Desde então, essa expressão “regimes internacionais” tem sido usada para dar margem de defesa às ideias de fragmentação e inexistência de um sistema de direito internacional, o que pode ser considerado um equívoco.

Por fragmentação do Direito Internacional, tem-se compreendido a grande especialização e isolamento dos distintos regimes, cada qual sendo autossuficiente per si. Isso implica que cada regime desenvolve suas próprias normas, princípios, seu próprio vocabulário, seus próprios procedimentos de solução de disputas, sem interconexões. Cada regime seria criado e consolidado de maneira completamente independente dos demais. Assim, suas normas não se preocupariam com situações de sobreposição e muito menos de hierarquia (KOSKENNIEMI, 2005KOSKENNIEMI, Martin. From apology to utopia. The structure of international legal argument. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.).

Defender uma unidade sistemática do Direito Internacional não significa, dentro deste estudo, defender a constitucionalização do direito internacional, em termos kantianos.2 2 Referência a Kant e sua ordem cosmopolita, com a proposta de uma constituição universal. Ver Kant (2008). Mas fechar os olhos para o fato de que o processo de globalização pelo qual passa o mundo advoga a favor de princípios constitutivos de uma sociedade internacional é ficar de braços cruzados, sendo mero espectador passivo. No reconhecimento de um sistema internacional, as normas a serem criadas ou interpretadas devem levar em conta uma coerência e uma harmonia que se deseja para pleitear a justiça internacional. É sob essa perspectiva que o presente estudo sugere o diálogo entre o regime do comércio internacional e o regime da água. Sempre que entre eles houver interação, não se pode olvidar que a busca é por uma justiça social no plano internacional.

Conforme se verificará no próximo subcapítulo, o Regime Internacional da Agua Doce tem se consolidado com base em documentos de natureza majoritariamente soft law. Além disso, sua construção tem sido feita principalmente nas três últimas décadas (VIEIRA, 2015VIEIRA, Andreia Costa. O Regime Internacional da Água Doce. RDCI, v. 23, n. 90, jan-mar. 2015, p. 307-331.; 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.). Por outro lado, o Regime do Comércio Internacional, com seus acordos e convenções com natureza de hard law, tem tido vasta interpretação, principalmente nos fóruns da Organização Mundial do Comércio (OMC), com jurisprudência já fortemente consolidada há muitas décadas (WTO, 2014). São documentos de produção centralizada - a maioria produzida no âmbito da OMC, que geram obrigações para os Estados, dentro de um sistema pacta sunt servanda internacional, com possibilidade inclusive de sanções em caso de descumprimento, ainda que haja deficiências no sistema de execução dessas sanções (WTO, 2014).

Não há, contudo, impedimentos para uma interação sustentável entre esses dois regimes. Margaret Young (2012, p. 91) postula que o impedimento para a interação entre dois ou mais regimes ocorre quando: a) há tentativas de limitar ou reduzir o papel de um regime frente ao outro com alegações de que a importância de um desses regimes se dá apenas dentro de sua área específica; b) há falta de coordenação política em nível doméstico; ou c) há falta de transparência e abertura para um dado regime. Ela observa que no sistema de solução de controvérsias da OMC, os procedimentos têm permanecido amplamente fechados a terceiros, mas já há a submissão de amicus briefs3 3 Intervenção de terceiros convidados, semelhante à intervenção de terceiro já consagrada no Direito brasileiro como amicus curiae (“Amigo da Corte”). e de consultas entre os painéis e órgãos de apelação da OMC com organismos pertencentes a outros regimes.

Além disso, conforme observa Young (2012, p. 88), o estudo desses regimes deve ser realizado em paralelo com o entendimento dos princípios gerais e do sistema geral do Direito Internacional. Não devem ser vistos de forma isolada, mas devem compreender sua interdependência e o sistema dentro do qual se incluem.

A seguir, será introduzido o Regime Internacional da Agua e, na sequência, far-se-ão duas análises de interação entre esse regime e o do comércio internacional. A primeira análise compreende uma possível interação conflitual entre as normas do comércio internacional e o regime internacional da água. A segunda será uma análise do que tem sido denominado uma “interação relacional”, em âmbito geral, cuja aplicação específica está sendo sugerida, neste estudo, para o Regime do Comércio Internacional e o Regime Internacional da Agua Doce.

2. Identificação do Regime Internacional da Água Doce

Compreende-se por Regime Internacional da Agua Doce o conjunto de normas internacionais e nacionais, institutos, elementos, atores e sujeitos que direcionam seus objetivos e atividades à questão da água doce (VIEIRA, 2015VIEIRA, Andreia Costa. O Regime Internacional da Água Doce. RDCI, v. 23, n. 90, jan-mar. 2015, p. 307-331.). Dentro do Regime Internacional da Agua Doce, uma das maiores defesas é a do direito de acesso à água, defendido como um direito humano (VIEIRA, 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.). Em Comentário Geral do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (Comentário Geral n. 15, 2002) o direito à água é compreendido como o direito a sua disponibilidade (quantidade suficiente e continuidade), qualidade (potável) e acessibilidade física e econômica. Em Resolução da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) (2010UNITED NATIONS. General Assembly Resolution 10967, UN Doc A/64/L.63/REV.1, 2010.), o direito humano à água foi formalmente reconhecido pelas Nações Unidas, passando, desde então, a fazer parte de distintos documentos nacionais e internacionais, nas esferas doméstica, regional e multilateral (VIEIRA, 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.).

Alguns aspectos desses documentos que defendem o direito à água são imediatamente identificáveis e influenciam a maneira como se fará uma interação do regime internacional da água doce com o regime do comércio internacional. Os documentos acerca da água já criados foram desenvolvidos ao longo das três últimas décadas e são documentos, em sua maioria, com natureza de soft law (VIEIRA, 2015VIEIRA, Andreia Costa. O Regime Internacional da Água Doce. RDCI, v. 23, n. 90, jan-mar. 2015, p. 307-331.; 2016aVIEIRA, Andreia Costa. International law, governance and trade of water services. In: PARZATZIS, Photini; GAVOUNELI, Maria (org.). Reconceptualising the rule of law in global governance, resources, investment and trade. 1ed. Oxford, UK: Hart Publishing, 2016a, v. 1, p. 277-288.). Têm produção descentralizada, sendo produzidos em distintas instâncias e organismos - alguns de natureza intergovernamental, outros de natureza privada com a participação de representantes estatais (WWC, 2003WORLD WATER COUNCIL. Report on the human right to water. World Health Organization, Paris, 2003. WORLD TRADE ORGANIZATION.WTO in brief. Geneva, 2014.; VIEIRA, 2015VIEIRA, Andreia Costa. O Regime Internacional da Água Doce. RDCI, v. 23, n. 90, jan-mar. 2015, p. 307-331.; 2016aVIEIRA, Andreia Costa. International law, governance and trade of water services. In: PARZATZIS, Photini; GAVOUNELI, Maria (org.). Reconceptualising the rule of law in global governance, resources, investment and trade. 1ed. Oxford, UK: Hart Publishing, 2016a, v. 1, p. 277-288.).

No Regime Internacional da Água Doce, há apenas duas Convenções Internacionais com natureza de hard law em vigor - a saber, a Convenção de Nova York sobre a Utilização dos Cursos de Água Internacionais para fins distintos da Navegação, de 1997, e a Convenção de Helsinki sobre a Proteção e Utilização dos Cursos de Água Transfronteiriços e dos Lagos Internacionais, de 1992. Nenhuma das duas estabelece, de fato, um “direito à água” (VIEIRA, 2015VIEIRA, Andreia Costa. O Regime Internacional da Água Doce. RDCI, v. 23, n. 90, jan-mar. 2015, p. 307-331.; 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.).

Não há “tribunais específicos” para as questões hídricas, no caso da água doce. A temática de acesso à água e de privatização dos serviços de água foi trabalhada em alguns tribunais arbitrais, tais como os do International Centre on Settlement of Investiments Disputes (ICSDI),4 4 Ver Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Vivendi Universal S.A. v. Argentine Republic, ICSID (World Bank), ARB/03/19, Amicus Curiae Submission (2007); LG&E v. Argentine Republic, ICSID (World Bank) ARB/02/1, Decision on Liabitily 234-37 (2006) e outros. mas não existe tribunal próprio do Regime Internacional da Água Doce, o que o difere do Regime do Comércio Internacional que tem seus tribunais arbitrais específicos para a temática comercial. No Regime Internacional da Água Doce tampouco há institutos intergovernamentais, com as exceções do UNESCO-IHE5 5 Ver UNESCO-IHE. Disponível em: <https://www.unesco-ihe.org/>. Acesso em: 14 ago. 2018. (com natureza acadêmica) e da UN-Water6 6 Ver UN-Water. Disponível em: <http://www.unwater.org/>. Acesso em: 14 ago. 2018. (com natureza de mera coordenação de trabalhos entre agências), que trabalham a questão da água.

Os diversos documentos internacionais que são apontados como direcionadores do direito à água (VIEIRA, 2016aVIEIRA, Andreia Costa. International law, governance and trade of water services. In: PARZATZIS, Photini; GAVOUNELI, Maria (org.). Reconceptualising the rule of law in global governance, resources, investment and trade. 1ed. Oxford, UK: Hart Publishing, 2016a, v. 1, p. 277-288.; 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.), a exemplo das Regras de Berlim (2004), da International Law Association (ILA) e dos Reports do World Water Council (WWC), são documentos com natureza de soft law. Os documentos de natureza intergovernamental, ora sob a forma de Declarações, ora sob a forma de Comentários Gerais, ora sob a forma de Resoluções, não têm efeito obrigatório. As Regras de Berlim, diferentemente dos demais documentos mencionados, trazem a proposta de reconhecimento de um direito de dispor de água suficiente, segura, física e economicamente acessível para satisfazer as necessidades humanas vitais (ILA, 2004INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION (ILA). The Berlin rules on water resources, 2004.), o que as coloca em consonância com o Comentário Geral n. 15/2002.

Os muitos eventos havidos sobre o tema hídrico, bem como os vários documentos de caráter não governamental, mas com larga participação de representantes estatais (os documentos dos Fóruns Internacionais da Agua, promovidos pelo WWC, por exemplo), somam-se, juntamente com esses outros documentos anteriormente citados, como evidências da existência de um Regime Internacional da Água Doce, ainda que incipiente e em construção (VIEIRA, 2015VIEIRA, Andreia Costa. O Regime Internacional da Água Doce. RDCI, v. 23, n. 90, jan-mar. 2015, p. 307-331.).

Não há análises judiciais sobre o conteúdo da maior parte desses documentos, salvo casos específicos analisados em tribunais nacionais (VIEIRA, 2015VIEIRA, Andreia Costa. O Regime Internacional da Água Doce. RDCI, v. 23, n. 90, jan-mar. 2015, p. 307-331.). Na existência de um conflito de normas entre eles, o tribunal internacional a analisar o caso estaria agindo de primeira mão em sua interpretação. Esses documentos servem para os Estados como modelos de orientação, sugestões a serem seguidas, agendas a serem traçadas, mas nunca como obrigações a serem cumpridas - daí sua natureza de soft law.

A urgência da temática “água doce”, em âmbito doméstico, regional e internacional, reclama que seja tratada em todos os mais distintos fóruns, dando-se a ela a devida prioridade que o tema merece, uma vez que o acesso à água é hoje consagrado um direito humano universal. Nesse sentido, uma interação conflitual entre o Regime Internacional da Agua Doce e o Regime do Comércio Internacional merece uma devida atenção.

3. Uma interação conflitual

Algumas pesquisas têm demonstrado que não há, até o momento, litígios internacionais, no âmbito da OMC ou de outros organismos regionais de integração comercial, que envolvam o comércio internacional de água (VIEIRA, 2016aVIEIRA, Andreia Costa. International law, governance and trade of water services. In: PARZATZIS, Photini; GAVOUNELI, Maria (org.). Reconceptualising the rule of law in global governance, resources, investment and trade. 1ed. Oxford, UK: Hart Publishing, 2016a, v. 1, p. 277-288.; 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.). Falar de uma interação conflitual entre o regime da água e o Regime do Comércio Internacional é antecipar-se a possíveis futuros conflitos, bem como construir, antecipadamente, diretrizes que poderão conduzir a uma interação entre esses dois regimes.

Essa construção pode servir, inclusive, para orientar a interação entre outros regimes ainda em consolidação, sempre que questões ambientais estejam envolvidas. Serão, pois, levantadas aqui duas interações conflituais específicas. A primeira será entre o GATT e o regime da água; a segunda, entre o GATS e o regime da água.

3.1. O GATT e sua aplicação à água

O GATT, em seu Art. I, estabelece o princípio reconhecido como o princípio da isonomia entre os países membros, também chamado de most favored nation clause (a “cláusula” da “nação mais favorecida”). Em seu texto, o Art. I traz a abrangência do GATT, onde se lê que a aplicação do acordo se estende a “qualquer produto” originado de” ou “destinado a” um país signatário. No texto original:

[…] Any advantage,favor, privilege or immunity granted by any contracting party to any product originating in or destined for any other country shall be accorded immediately and unconditionally to the like product originating in or destined for the territories of all other contracting parties.7 7 “Qualquer vantagem, favor, privilégio ou imunidade concedido a qualquer parte contratante para produto originado ou destinado a qualquer outro país será acordado imediatamente e incondicionalmente ao produto semelhante originado ou destinado ao território de todos os países signatários.” (grifo nosso)

Por sua vez, o Art. XI do GATT impõe proibições a restrições quantitativas ou leis limitativas de importação de qualquer produto. Em seu parágrafo 1°, lê-se, conforme o texto original, que:

No prohibitions or restrictions other than duties, taxes or other charges, whether made effective through quotas, import or export licences or other measures, shall be instituted or maintained by any contracting party on the importation of any product of the territory of any other contracting party or on the exportation or sale for export of any product destined for the territory of any other contracting party.8 8 “Nenhuma proibição ou restrição, que não sejam impostos, taxas ou outros encargos, ainda que efetivados através de quotas, licenças de importação e exportação ou outras medidas, deverão ser instituídas ou mantidas por outra parte contratante na importação de qualquer produto do território de qualquer parte contratante ou na exportação ou venda para exportação de qualquer produto destinado ao território de qualquer outra parte contratante.” (grifo nosso)

Um questionamento que se coloca é se a água está abrangida pelo GATT, como um produto nos termos dos Arts. I e XI. As exceções às regras dispostas nesses dois artigos são estabelecidas em seus parágrafos integrantes. Não se lê, contudo, em nenhum deles, norma que especificamente se refira à água.

O texto do Art. I, em seu caput, não traz exceções. Em uma leitura dos parágrafos seguintes, nos quais algumas exceções são feitas, nenhuma delas se refere especificamente a um produto, mas são exceções relativas a integrações regionais diversas, conforme listadas nos anexos A, B, C, D, E e F do Acordo.

Por sua vez, as exceções apontadas no Art. XI referem-se muito mais a questões de aplicação de políticas públicas do que a um “bem” de forma específica e são todas circunstanciais, a exemplo de seu parágrafo 2°, no qual se lê que as restrições podem ser aplicadas em caráter temporário e em períodos de shortage.

Resta, contudo, uma dúvida: teria a água natureza jurídica de “produto” ou “bem” nos termos do GATT? Se se puder excluir sua natureza enquanto “produto” ou “bem”, poder-se-ia dizer que o GATT não se aplica à água in natura.Weiss (2005WEISS, Edit Brown. Water transfers and international trade law. In: WEISS, Edith Brown et al. (orgs.), Fresh water and international economic law, 67, 2005., p. 69) argumenta que um produto é aquilo que é produzido a partir de métodos naturais, químicos ou industriais - água in natura e in bulk não seriam, portanto, produtos. No entanto, há pouca diferença entre a água e o petróleo bruto nesses termos, sendo que o último tem sido, sim, negociado como um produto no mercado internacional.

Ao contrário, não se questiona a natureza do petróleo bruto como “produto”, mas excluise sua comercialização do âmbito da OMC, principalmente por razões históricas e políticas, uma vez que muitos dos países negociadores do petróleo, membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), não são signatários do GATT e, por uma razão de especificidade, aquela é a organização internacional própria para essas discussões (SMITH, 2009SMITH B. W., Water as a public good: The status of water under the general agreement on tariffs and trade. Cardozo Journal of International and Comparative Law (JICL), v. 17, n. 291, 2009., p. 3). O mesmo não se pode dizer da água. Não há fórum específico para suas negociações.

Weiss (2005WEISS, Edit Brown. Water transfers and international trade law. In: WEISS, Edith Brown et al. (orgs.), Fresh water and international economic law, 67, 2005., p. 85) sugere três soluções para lidar com esse problema: 1) emendar o GATT para, de forma explícita, nos termos de seu Art. XX, excluir-se a água; 2) aplicar-se exceções específicas relativas à água in bulk, dentro de artigos como os Arts. I e o XI; e 3) interpretar, de forma autorizada,9 9 Uma interpretação autorizada do GATT é feita, nos termos do Acordo de Marrakesh que criou a OMC (Art. IX.2), por meio das Conferências Ministeriais e do Conselho Geral, tendo efeito erga omnes, o que não exclui a capacidade ativa dos membros de buscar esclarecimentos diretos aos painéis e órgão de apelação. Neste caso, as recomendações, tanto dos painéis como do órgão de apelação, têm efeito inter partes. o GATT de maneira a se excluir água in bulk.

A terceira opção foi tomada no âmbito do North American Free Trade Agreement (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio - NAFTA), em 1993, quando uma recomendação interpretativa excluiu água in natura da abrangência daquele acordo, salvo quando, já com valor agregado (ex. : água engarrafada), já tenha se tornado uma mercadoria ou produto. Está escrito no texto dessa recomendação que:

Unless water in any form has entered into commerce and become a good or product, it is not covered by the provisions of any trade agreement including the NAFTA and nothing in the NAFTA would oblige any NAFTA Party to either exploit its water for commercial use, or to begin exporting water in any form. Water in its natural state in lakes, rivers, reservoirs, aquifers, water basins and the like is not a good or product, is not traded, and therefore is not and never has been subject to the terms of any trade agreement.10 10 A menos que a água, em qualquer forma, tenha entrado em comércio e se torne uma mercadoria ou produto, não está coberta pelas previsões de qualquer tratado, incluindo o NAFTA, e nada no NAFTA obrigaria qualquer Estado Parte a explorar sua água para usos comerciais ou a começar a exportá-la em qualquer de suas formas. Água, em sua forma natural, em lagos, rios reservatórios, aquíferos, bacias hidrográficas e outras formas naturais não é uma mercadoria ou um produto, não é comercializável e, portanto, não é e nunca foi sujeita aos termos de qualquer acordo comercial (tradução livre). (Ver NAFTA 1993 Statement by the Governments of Canada, Mexico, and the United States. In: Parliamentary Information and Research Service, Library of Parliament, Ottawa, 9 January 2003). Disponível em: <http://www.parl.gc.ca/content/LOP/ResearchPublications/prb0213-e.htm>. Acesso em: 14 ago. 2018.

Smith (2009SMITH B. W., Water as a public good: The status of water under the general agreement on tariffs and trade. Cardozo Journal of International and Comparative Law (JICL), v. 17, n. 291, 2009., p. 5) advoga a favor de outra posição. Entende ser desnecessária a aplicação de qualquer dessas soluções, pois se aplicaria diretamente à questão o public ownership consensus.11 11 Consenso sobre ser o bem de propriedade pública. Uma vez que, segundo constata, a grande maioria de países no mundo considera a água um “bem público” e, como tal, não estaria sujeita ao GATT. Essa sujeição se daria apenas se o próprio Estado decidisse retirar da água a natureza de “recurso natural” e tratá-la como “produto”, no âmbito de sua soberania legislativa. Assim, entende que a água, em qualquer de suas apresentações (in bulk ou não), pertenceria a esse grupo de “recursos naturais” e, como tais, não haveria aplicação do GATT. Contudo, como bem coloca o próprio autor, o GATT se aplica à maioria de “recursos naturais” e esse, por si só, seria um argumento fraco para a exclusão da água.

Por outro lado, Smith (2009SMITH B. W., Water as a public good: The status of water under the general agreement on tariffs and trade. Cardozo Journal of International and Comparative Law (JICL), v. 17, n. 291, 2009.) também lembra que, quando se aborda a questão “recursos naturais”, cai-se no problema de conceituação sobre o que vem a ser essa expressão. Não há consenso. Os diferentes Estados determinam sua soberania sobre suas “águas”, por vezes sobre “a água” e, por vezes, sobre “as fontes de água”. Nesse sentido, não há também tratamento internacional comum.

Em quase todos os sistemas legais, quando se aborda o “direito à água”, trata-se do direito ao “uso da água” e não à “propriedade da água” e, como tal, segundo Smith (2009SMITH B. W., Water as a public good: The status of water under the general agreement on tariffs and trade. Cardozo Journal of International and Comparative Law (JICL), v. 17, n. 291, 2009.), não se poderia falar em “produto”. Esse seu argumento, ainda que prevalecesse para o GATT, não teria como prevalecer, contudo, no âmbito do GATS, como se verá adiante, uma vez que existe a possibilidade de os “serviços” de água serem negociados e amparados dentro dos mecanismos da OMC sempre que não forem serviços prestados no âmbito exclusivo de autoridades públicas. Smith (2009SMITH B. W., Water as a public good: The status of water under the general agreement on tariffs and trade. Cardozo Journal of International and Comparative Law (JICL), v. 17, n. 291, 2009., p. 6), então, argumenta a natureza “especial” da água, como um bem essencial tanto quanto o ar. Por “especial”, entende a sua “necessidade” e “infungibilidade”. E é nessa “especialidade” conjugada com sua defesa de public ownership consensus que ele se apoia, substancialmente, para dizer que a água está excluída do âmbito do GATT.

Em uma pesquisa comparada de sistemas legais, Caponera (2007CAPONERA, Dante A. (2007). Principles of water law and administration, 2. ed, rev. e adapt. por M. Nanni, Taylor & Francis, London, 290 pp.), conclui que:

  1. o Direito Romano considerava toda água fluente como res comunis omnium, e conferia título apenas às instituições públicas, tais como municipalidades, para conceder o seu uso a outros (apenas pequenas porções de água - a exemplo de águas subterrâneas extraídas em poços e pequenos lagos dentro de propriedades privadas - eram consideradas particulares);

  2. o Código de Napoleão, que passou a ser aplicado a quase toda a Europa e terras conquistadas, fazia uma categorização: águas privadas (aquelas que estivessem dentro, subterrâneas ou ao longo de uma propriedade privada) e águas públicas (as navegáveis);

  3. a common law, em sua versão britânica original, manteve a posição de bem comum de todos à água, exceção feita à propriedade privada de água recolhida da chuva e de água subterrânea durante a posse do imóvel;

  4. a Constituição do Estado Soviético estabeleceu que as águas são do Estado;

  5. o Direito Islâmico também trata a água como bem público, havendo, nesse sentido, assertivas de Maomé, em distintas partes do Alcorão, excetuando apenas águas de poços dentro de propriedades privadas, o que influenciou o direito em todos os países de maioria islâmica da Africa e do Oriente Médio;

  6. os sistemas de origem otomana afirmam o “direito comunitário” a todas as águas, inclusive às águas subterrâneas capturadas em poços;

  7. o direito norte-americano é bastante diversificado nesse sentido, afirmando-se, no lado oriental dos Estados Unidos, a natureza de bem público a quase todas as águas superficiais e subterrâneas e, em seu lado ocidental, a doutrina do título conferido àquele que primeiro apropriar-se do bem (riparian doctrine);

  8. nos países latino-americanos, há um consenso quanto à natureza de bem público das águas, variando apenas quanto ao seu pertencimento à União ou aos estados/províncias federados, como é o caso do Brasil;

  9. na China, todas as fontes de água são propriedades do Estado; e

  10. a Constituição indiana confere o título de propriedade da água aos seus Estados federados.

Um estudo realizado pela Food and Agriculture Organization (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO), publicado em 2009, apresentou relatório no qual indica que 44 países consideram a água um bem público ou bem comum ou bem comunitário, o que, em suma, significaria o mesmo para essas três expressões.12 12 UN-FAO, Water Law and Standards. Disponível em: <http://www.waterlawandstandards.org>. Acesso em: 3 jul. 2016. Em 2002, a França, que historicamente tem tradição de propriedade privada da água, declarou, por lei, que a água é um bem comum da nação, sendo que qualquer tipo de água só estaria sujeita ao “direito de uso” e não mais ao “direito de propriedade”. A maioria dos países europeus trazem, hoje, essa abordagem da água como “bem público” (BARRAQUE, 1995BARRAQUÉ, Bernard. Politiques de l'eau em Europe. Revue Française de Science Politique, v. 45, n. 3, p. 420-453, 1995.).

Em uma interpretação do Art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, na qual princípios gerais de direito são considerados fontes de direito internacional, conjuntamente com tratados internacionais e costumes internacionais, Smith (2009SMITH B. W., Water as a public good: The status of water under the general agreement on tariffs and trade. Cardozo Journal of International and Comparative Law (JICL), v. 17, n. 291, 2009., p. 14) entende que o public ownership consensus pode ser considerado um princípio de direito internacional, ainda que considerado em diferentes perspectivas (bem comum, bem comunitário, bem público, bem estatal etc.), uma vez que a grande maioria dos países desconsidera a propriedade privada da água, aceitando-a excepcionalmente.

Em 1969, a Corte Internacional de Justiça entendeu que se considera um princípio geral de direito internacional um princípio estabelecido, amplamente divulgado e de prática consistente entre os Estados, que é reconhecido como sendo obrigatório por regra de direito que o exige13 13 North Sea Continental Shelf (F.R.G. v. Den.), 1969 I.C.J. 44 (Feb. 20). . Para Smith (2009SMITH B. W., Water as a public good: The status of water under the general agreement on tariffs and trade. Cardozo Journal of International and Comparative Law (JICL), v. 17, n. 291, 2009.), pode-se considerar o public ownership consensus um princípio de Direito Internacional no tocante à água, cuja natureza, de acordo com ele, é reforçada pela consideração que se faz, atualmente, do direito humano à água.

Entretanto, a defesa do direito humano à água não necessariamente engloba a natureza pública do bem água (VIEIRA, 2016aVIEIRA, Andreia Costa. International law, governance and trade of water services. In: PARZATZIS, Photini; GAVOUNELI, Maria (org.). Reconceptualising the rule of law in global governance, resources, investment and trade. 1ed. Oxford, UK: Hart Publishing, 2016a, v. 1, p. 277-288.; 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.). São coisas distintas e mediante um sistema misto (que considere a água pública em algumas circunstâncias e privada em outras), ainda é perfeitamente possível defender-se o direito humano à água. Ademais, não existe uma obrigatoriedade quanto à consideração da natureza pública da água. Existe, sim, uma margem alargada de policy space14 14 Policy space é uma expressão que tem sido entendida como discricionariedade para adotar políticas públicas. deixada aos Estados para assim o considerarem e, por estar mais em consonância com a legislação de uma parte significativa dos Estados, a determinação pública da água tem prevalecido. Em momento algum, poder-se-ia considerar uma “quebra” de princípio geral de direito a aplicação por um Estado de regime privado à água.

Ademais, a discussão se dá até aqui em torno do regime aplicável à água in natura. Contudo, a mesma discussão não pode ser levantada para a água engarrafada e comercializada mundialmente. A partir do momento em que se coloca água mineral ou potável em uma garrafa, há um processo de industrialização e não há qualquer dúvida quanto a ser essa água um produto, nos termos do GATT. Não se pode olvidar toda uma preocupação relacionada aos impactos ambientais provocados nas regiões de extração dessa água.

No sistema padronizado para comércio mundial (World Custom Organization's Harmonized Commodity Description and Coding System - HS), a água é tabelada sob o código 22.01, que inclui “waters, including natural or artificial, mineral and aerated waters, not containing added sugar or other sweetening matter or flavored; ice and snow”.15 15 “Águas, incluindo naturais ou artificiais, minerais ou gasosas, não contendo adição de açúcar ou outro adoçante ou sabor; gelo e neve” (tradução livre). Essa padronização, em si, já leva ao entendimento de que a água pode, sim, ser tratada como mercadoria em diversas situações. E, por haver essa possibilidade, não se deve excluir a aplicação do Art. XX do GATT. No texto desse artigo, lê-se:

Artigo XX

Exceções Gerais

Desde que essas medidas não sejam aplicadas de forma a constituir quer um meio de discriminação arbitrária, ou injustificada, entre os países onde existem as mesmas condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio internacional, disposição alguma do presente capítulo será interpretada como impedindo a adoção ou aplicação, por qualquer Parte Contratante, das medidas:

I. a) necessárias à proteção da moralidade pública;

b) necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e á preservação dos vegetais;

[…];

g) relativas à conservação dos recursos naturais esgotáveis, se tais medidas forem aplicadas conjuntamente com restrições à produção ou ao consumo nacionais; […].

O Art. XX compreende as exceções gerais. Ou seja, as medidas nele elencadas, dentro dos parâmetros previstos em seu caput, podem ser adotadas ainda que firam princípios tais como o da Nação Mais Favorecida (Art. I do GATT), Tratamento Nacional (Art. III) ou proibição de leis que vedem a importação ou coloquem quotas à importação (Art. XI).

Outra polêmica situação que envolve a água e sua comercialização é a questão da água virtual. Por água virtual, compreende-se, segundo conceito desenvolvido pelas ciências econômicas, o volume de água necessária para produzir uma commodity, virtualmente, portanto, incorporada a esta (HOEKSTRA et al., 2011HOEKSTRA, Arjen Y. CHAPAGAIN, Ashok K.; ALDAYA, Maite M.; MEKONNEN, Mesfin M. The water footprint assessment manual - Setting the global standard. London: Earthscan, 2011.). Outra expressão utilizada pelas ciências econômicas é water footprint (pegada da água) para também significar a quantidade de água utilizada no processo produtivo de uma dada mercadoria (VIEIRA, 2015VIEIRA, Andreia Costa. O Regime Internacional da Água Doce. RDCI, v. 23, n. 90, jan-mar. 2015, p. 307-331.; 2016cVIEIRA, Andreia Costa. International Law and trade of water. Anuário Brasileiro de Direito Internacional, v. 2, n.21, jul. 2016c, pp. 11-36.). Essa expressão foi desenvolvida, em 2002, por Hoekstra et al. (2011HOEKSTRA, Arjen Y. CHAPAGAIN, Ashok K.; ALDAYA, Maite M.; MEKONNEN, Mesfin M. The water footprint assessment manual - Setting the global standard. London: Earthscan, 2011.) e tem sido divulgada pela Water Footprint Network (WFN),16 16 Informação disponível em: <http://www.waterfootprint.org/?page=files/home>. Acesso em: 14 ago. 2018. que entende ser o conceito de water footprint mais amplo que o conceito de virtual water, incorporando, por exemplo, o uso da água pelo consumidor - the consumer's water footprint (medido pelas mercadorias e serviços por ele consumidas), o uso da água pelo produtor - the producer's water footprint (negócios, manufatura, provisão de serviços) e, também, a quantidade de água usada para produzir uma dada mercadoria ou serviço - the good's or service's footprint, que, neste caso, coincide com o conceito de água virtual.

A Econometria desenvolveu uma fórmula para o cálculo de água virtual exportada, cuja equação, de maneira genericamente compreendida, resume o montante de comércio internacional de um determinado produto multiplicado pela quantidade de água usada em sua produção (CHAPAGAIN; HOEKSTRA, 2008CHAPAGAIN, Ashok K.; HOEKSTRA, Arjen Y. The global component of freshwater demand and supply: an assessment of virtual water flows between nations as a result of trade in agricultural and industrial products. Water International, v. 33, n. 01, p. 19-32, March, 2008, p. 20.). Os dados levantados pelos pesquisadores nessa área têm mostrado que há uma crescente interdependência econômica contemporânea entre os países, que é medida pelo consumo de água virtual (VIEIRA, 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.; 2016cVIEIRA, Andreia Costa. International Law and trade of water. Anuário Brasileiro de Direito Internacional, v. 2, n.21, jul. 2016c, pp. 11-36.).

Assim, os países carentes em água deixarão de produzir as mercadorias que demandam muita água em sua produção, como por exemplo, os produtos agrícolas (CHAPAGAIN; HOEKSTRA, 2008CHAPAGAIN, Ashok K.; HOEKSTRA, Arjen Y. The global component of freshwater demand and supply: an assessment of virtual water flows between nations as a result of trade in agricultural and industrial products. Water International, v. 33, n. 01, p. 19-32, March, 2008, p. 20.; VIEIRA, 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.; 2016cVIEIRA, Andreia Costa. International Law and trade of water. Anuário Brasileiro de Direito Internacional, v. 2, n.21, jul. 2016c, pp. 11-36.). Para suprir a demanda, passarão a importar esses produtos de países cuja abundância de recursos hídricos lhes permitem ser grandes exportadores de água virtual, ou seja, de produtos que demandam expressivo volume de água em sua produção. A água virtual passa a ser uma “fonte alternativa” de água (VIEIRA, 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b., p. 32). A indústria e a agricultura utilizam enormes quantidades de água em seus processos produtivos. São, de fato, hoje, as maiores consumidoras de água do planeta. Todos os produtos utilizados nesses processos são cobertos ou pelo GATT ou pelo Acordo sobre Agricultura. Não se descarta uma preocupação ambiental em torno da comercialização da água virtual (VIEIRA, 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.; 2016cVIEIRA, Andreia Costa. International Law and trade of water. Anuário Brasileiro de Direito Internacional, v. 2, n.21, jul. 2016c, pp. 11-36.).

Nessas três situações (água in natura, água engarrafada e água virtual) afirma-se, aqui, que um Estado da OMC pode, sim, reclamar a aplicação direta do GATT e de outros acordos da OMC que se mostrarem aplicáveis. Não se defende aqui a aplicação desses acordos por uma razão mercantilista. Ao contrário: aponta-se, dentro do GATT e de todos os acordos da OMC, as chamadas exceções ambientais (Art. XX) e se advoga no sentido de que, quando aplicáveis, a defesa da água e a margem de policy space dos Estados que quiserem defender o seu meio ambiente deve prevalecer sobre os interesses comerciais. Para essa defesa, compreende-se a aplicação do GATT e de seu Art. XX pelos painéis e órgão de apelação (VIEIRA, 2014VIEIRA, Andreia Costa. A OMC e o Policy space dos Estados: questões de flexibilização, desenvolvimento sustentável e políticas públicas no GATT e no GATS. In: AMARAL JUNIOR, A. do; CELLI JUNIOR, U. (org.). A OMC: desafios e perspectivas. São Paulo: Aduaneiras, 2014, p.43-74.).

Ademais, um tratado deve ser interpretado à luz de seu preâmbulo, conforme a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados (Art. 31, parágrafo 2°). O preâmbulo do Acordo de Marrakesh, criador da OMC e guarda-chuva de todos os tratados que lhe são anexos, inclusive o GATT e o GATS, conclama seus Estados membros a atenderem princípios de sustentabilidade de acordo com o objetivo de um desenvolvimento sustentável, ainda que tal compreensão esteja em construção no âmbito dos painéis e órgão de apelação da OMC. Não obstante, desde 1995, o Comitê de Comércio e Meio Ambiente da OMC tem dado propulsão à integração desses valores no âmbito multilateral e tem servido para advogar mudanças de perspectivas em litígios e em negociações multilaterais, plurilaterais e bilaterais.17 17 Ver WTO, Committee on Trade and Environment. Disponível em: <https://www.wto.org/english/tra-top_e/envir_e/envir_e.htm>. Acesso em: 14 ago. 2018.

Em uma situação de ter o Estado um regime predominantemente público de propriedade da água, fica mais fácil a defesa da exclusão do GATT nos casos de água in natura, porque a água pública será produto “fora do comércio”. Contudo, não se pode dizer o mesmo de um regime misto, como é o caso dos Estados Unidos e da Espanha. Porém, mesmo nos países de regime totalmente público, as questões relacionadas à água engarrafada e à água virtual não podem ser olvidadas. Ademais, se um Estado membro da OMC decidir levar suas negociações em torno da questão da água aos painéis e órgão de apelação, independentemente do regime que adotar, e houver aceitação plena por parte do Estado requisitado, não há nada no GATT que impeça essa negociação de ser analisada sob o prisma desse acordo e de ser arbitrada pelo sistema de solução de controvérsias da OMC. A discricionariedade dos Estados permanece, sendo respaldada pelo princípio do single undertaking, salvo exceções expressamente previstas nos textos dos tratados da OMC.

Se um país rico em água colocasse uma barreira ou quota à exportação de bulk water por razões ambientais, nada impediria essa medida de ser confrontada nos painéis da OMC como uma medida restritiva ao comércio internacional, nos termos do Art. XI do GATT (BARLOW; CLARKE, 2002BARLOW, Maude; CLARKE, Tony. Blue gold. The battle against corporate theft of the world s water. London: Earthscan Publications, 2002., p. 165). Entende-se, contudo, ser perfeitamente possível acomodar a defesa dessa medida no Art. XX, alíneas “b” e “g” desse acordo. Medidas de proteção da água são necessárias à proteção da vida e da saúde humana e animal ou vegetal e, em alguns casos específicos, trata-se de recurso natural exaurível, como no caso do uso de águas provenientes de aquíferos confinados (VILLAR, 2012VILLAR, Pilar Carolina. A busca pela governança dos aquíferos transfronteiriços e o caso do Aquífero Guarani.Tese (Doutorado em Ciências Ambientais). Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2012.).

Por outro lado, se um país, por razões ambientais, desejar impor uma restrição à importação de água in bulk ou de qualquer produto rico em água virtual, esbarraria na interpretação dada pelos Painéis e Orgão de Apelação da OMC de que um produto não pode ser distinguido pela maneira como foi produzido, se isso não influenciar nas suas qualidades finais (Casos US Tuna-Dolphin I18 18 United States. Restrictions on Imports of Tuna, DS21/R, 3 September 1991 (unadopted). e US Shrimp19 19 United States, Import prohibition of certain shrimp and shrimp products. Malaysia and others v. EUA, AB Report, WT/DS58/AB/RW, DSR 2001. ). Por esse entendimento, produtos semelhantes têm de ser tratados de maneira igual, independente da forma como foram produzidos. Contudo, esse é um entendimento do órgão de solução de controvérsias que pode evoluir com uma nova interpretação do texto do GATT, em um diálogo de coerência com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, ou seja, atendo-se ao seu objeto e finalidade, usando o significado simples das expressões do GATT dentro de seu contexto.

Ao se partir de uma construção dinâmica do direito do comércio internacional, o Regime Internacional da Agua Doce dialogaria com o GATT de maneira a lhe proporcionar a noção de sustentabilidade para a água e a necessidade de proteção desta em uma esfera transfronteiriça, como toda proteção ambiental. Os trabalhos do Comitê de Comércio e Meio Ambiente da OMC advogam nesse sentido, conforme supramencionado. Na ausência de casos concretos para analisar tal conflito, propõe-se uma interpretação com base no preâmbulo do Marrakesh Agreement que, indisputavelmente, traz a orientação do desenvolvimento sustentável para reger todas as transações comerciais da OMC, bem como no já incorporado diálogo que tem feito o órgão de apelação na introdução de acordos ambientais para interpretar as normas comerciais da OMC, a exemplo das decisões dos Casos US Shrimp, EC Asbestos20 20 European Communities, Measures affecting asbestos and asbestos-containing products, Canada V. EC, WT/DS135/R, 5 April 2001. e Brazil Retreated Tyres21 21 Brazil, Measures Affecting Imports of Retreaded Tyres, European Union V. Brazil, WT/DS332/R, 3 December 2007. ).

De acordo com o preâmbulo do Acordo de Marrakesh,

As Partes no presente Acordo:

Reconhecendo que as suas relações no domínio comercial e econômico deveriam ser orientadas tendo em vista a melhoria dos níveis de vida, a realização do pleno emprego e um aumento acentuado e constante dos rendimentos reais e da procura efetiva, bem como o desenvolvimento da produção e do comércio de mercadorias e serviços, permitindo simultaneamente otimizar a utilização dos recursos mundiais em consonância com o objetivo de um desenvolvimento sustentável que procure proteger e preservar o meio ambiente e aperfeiçoar os meios para atingir esses objetivos de um modo compatível com as respectivas necessidades e preocupações a diferentes níveis de desenvolvimento econômico; […].

O GATT, em seu Art. XX, alíneas “b” e “g” (“Medidas necessárias à proteção da vida e da saúde humana, animal e vegetal” e “Medidas relacionadas a recursos naturais exauríveis”), pode ser usado para reclamar, em âmbito internacional, o direito à água. Trata-se de visualizar a coerência sistemática do Direito Internacional e de não enxergar os distintos regimes como autossuficientes (VIEIRA, 2015VIEIRA, Andreia Costa. O Regime Internacional da Água Doce. RDCI, v. 23, n. 90, jan-mar. 2015, p. 307-331.). A água seria enquadrada como o bem ambiental que é, ao contrário de algumas preocupações que colocam a aplicação do GATT à água como sendo um obstáculo à defesa desse bem como um direito. A noção de desenvolvimento sustentável já foi incorporada pelos mais distintos tratados, inclusive os tratados da OMC, conforme afirmação do preâmbulo do Acordo de Marrakesh e, como tal, deve ser utilizado na interpretação dos casos que forem trazidos à apreciação do órgão de solução de controvérsias.

3.2. O GATS e a liberalização do comércio de serviços de água e saneamento básico

Em uma interação entre o GATS e o Regime Internacional da Agua Doce, dentro de um questionamento de interpretação das normas, o ponto central seria até quanto o GATS pode ser aplicado à liberalização do comércio de serviços de água e saneamento básico. Nas negociações sobre o comércio de serviços, no âmbito do GATS, um dos principais alvos foi o serviço de saneamento básico. Por saneamento, compreende-se desde o processo de captação e tratamento até o processo de distribuição de água e tratamento residual. Nesse setor, há seis tipos de participação privada, a saber: contratos de serviços, contratos de gerenciamento público, contratos de leasing, contratos build-operate-transfer, concessão de serviços e privatização.

Os contratos de serviço, de menor duração (cerca de 1-2 anos), têm propriedade, operação e manutenção, investimento e risco públicos. Nos contratos de gerenciamento público (com duração média de 3-5 anos), apenas a operação e manutenção do serviço são privadas; os demais, a saber, propriedade, investimento e risco, permanecem públicos. Nos contratos de leasing, com duração de 8-15 anos, a propriedade e o investimento são públicos, a operação e manutenção são privadas e o risco é compartilhado entre o público e o privado. Nos contratos build-operate-transfer, a operação e manutenção, o investimento e o risco são privados, enquanto a propriedade é compartilhada. Nos contratos de concessão de serviços, são privados a operação e a manutenção, o investimento e o risco, enquanto que a propriedade permanece pública. Na privatização, a propriedade pode ser inteiramente privada ou público-privada, mas a operação e manutenção, o investimento e o risco são totalmente privados (MIRANDOLA; SAMPAIO, 2008MIRANDOLA, Carlos Maurício S.; SAMPAIO, Luiza S. A universalização do direito à água. In: CELLI JUNIOR, Umberto; SAYEG, Fernanda (orgs.). Comércio de serviços, OMC e Desenvolvimento. São Paulo: IDCID, 2008, p. 172-205., p. 183).

O Art. XIII do GATS prescreve que as licitações públicas de serviços não estão sujeitas às obrigações de acesso a mercado (Art. XVI) ou tratamento nacional (Art. XVII), nem à obrigação da cláusula da nação mais favorecida (MFN, do inglês, most favored nation) (Art. II). Essa limitação pode influenciar diretamente os serviços ambientais, principalmente no tocante aos setores de infraestrutura (como abastecimento de água, saneamento básico e tratamento de esgoto). Assim é que, se uma parceria público-privada (PPP) for enquadrada dentro de um processo licitatório (public procurement), aplicar-se-ia o Art. XIII do GATS. Contudo, a variedade de contratos que podem ser formados sob a denominação de PPP faz com que essa inclusão no Art. XIII não seja algo tão pacífico assim. Dessa forma, contratos de concessão poderiam não ser considerados public procurement para efeito de aplicação dessa cláusula. O contrato público-privado deve, por isso, ser analisado caso a caso (COSSY, 2011COSSY, Mireille. Environmental services and the General Agreement on Trade in Services (GATS): Legal issues and negotiating stakes at the WTO. In: HERRMANN, C.;TERHECHTE, J. P. (eds.). European Yearbook of International Economics Law 2011. Berlin: Springer, 2011., p. 252).

Os que defendem a liberalização do subsetor de abastecimento e saneamento básico, em geral, levantam três bandeiras: 1) o mercado sabe precificar; 2) há sérios problemas de captura e corrupção no serviço público; 3) nos países em desenvolvimento, há falta de recursos públicos para investimento (MIRANDOLA; SAMPAIO, 2008MIRANDOLA, Carlos Maurício S.; SAMPAIO, Luiza S. A universalização do direito à água. In: CELLI JUNIOR, Umberto; SAYEG, Fernanda (orgs.). Comércio de serviços, OMC e Desenvolvimento. São Paulo: IDCID, 2008, p. 172-205., p. 185).

Quanto à primeira defesa, tem-se que as empresas privadas compram diretamente do mercado o necessário para suas instalações e operações. Por sua vez, os consumidores, de acordo com suas necessidades, adquirem o serviço final ofertado. Dessa forma, pelo menos teoricamente, o preço do serviço será indicado pela própria sociedade, havendo, assim, uma sinalização dos consumidores aos produtores do quantum de serviço que necessitam consumir. Em estudos que apresentam uma sequência de casos acerca da privatização do setor de abastecimento e saneamento básico de diversos países, identifica-se que o preço nem sempre é ditado de acordo com a necessidade do consumidor, mesmo em locais nos quais a regulação do setor se deu de maneira prévia e planejada, como foi o caso da Inglaterra (VIEIRA, 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.; 2016cVIEIRA, Andreia Costa. International Law and trade of water. Anuário Brasileiro de Direito Internacional, v. 2, n.21, jul. 2016c, pp. 11-36.).

Quanto à segunda bandeira em prol da liberalização, é verdade que, em uma grande parte dos países em desenvolvimento, principalmente nos continentes africano e sul-americano, os governantes têm rotineiramente adotado uma política corrupta, na qual os interesses privados sobressaem-se em detrimento dos interesses públicos. Contudo, trata-se muito mais de questão cultural arraigada do que de política econômica propriamente dita.22 22 A corrupção na América Latina é bem discutida como cultura em: GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. Nada impediria que, nesses países, um setor de abastecimento e saneamento básico privado fosse acometido dessas mesmas manchas da administração pública.

Em relação à terceira bandeira levantada, talvez seja a que, de fato, proporcione a maior motivação para a privatização do setor em muitos dos países em desenvolvimento. Contudo, não pode ser feita de forma aleatória e sem planejamento e regulação prévia. Uma política de privatização do setor de abastecimento e saneamento básico bem-sucedida é a do Chile (VIEIRA, 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b., p. 277). Nesse país, uma política de subvenção planejada, conjugada com uma regulação prévia minuciosa e regionalizada, foi o segredo do sucesso da liberalização desse serviço essencial.

Contudo, não se pode deixar de levantar a preocupação com a fragilidade de um sistema altamente subvencionado em um país em desenvolvimento, como é o caso do sistema chileno. No caso da França, onde os serviços de abastecimento de água são privados desde o século XIX, tem havido movimentos recentes para a publicização desses serviços em cidades específicas, a exemplo de Grenoble, em 2005, e Paris, em 2010, que tomaram para a municipalidade o gerenciamento desses serviços (VIEIRA, 2016aVIEIRA, Andreia Costa. International law, governance and trade of water services. In: PARZATZIS, Photini; GAVOUNELI, Maria (org.). Reconceptualising the rule of law in global governance, resources, investment and trade. 1ed. Oxford, UK: Hart Publishing, 2016a, v. 1, p. 277-288., p. 75; 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.). Em Portugal e Espanha, os serviços privados de abastecimento de água e saneamento básico também têm gerado forte insatisfação entre consumidores (BARLOW; CLARKE, 2002BARLOW, Maude; CLARKE, Tony. Blue gold. The battle against corporate theft of the world s water. London: Earthscan Publications, 2002.). No Uruguai, na Bolívia e na Argentina, a privatização desses serviços gerou levantes públicos e desde mudanças constitucionais, como no caso do Uruguai, até polêmicas arbitragens no âmbito do Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (ICSID), como no caso da Argentina e da Bolívia, foram verificadas (VIEIRA, 2016aVIEIRA, Andreia Costa. International law, governance and trade of water services. In: PARZATZIS, Photini; GAVOUNELI, Maria (org.). Reconceptualising the rule of law in global governance, resources, investment and trade. 1ed. Oxford, UK: Hart Publishing, 2016a, v. 1, p. 277-288., p. 79; 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.).

Por outro lado, alguns fatores somam contra a privatização dos serviços de água. Mirandola e Sampaio (2008MIRANDOLA, Carlos Maurício S.; SAMPAIO, Luiza S. A universalização do direito à água. In: CELLI JUNIOR, Umberto; SAYEG, Fernanda (orgs.). Comércio de serviços, OMC e Desenvolvimento. São Paulo: IDCID, 2008, p. 172-205., p. 187) apontam os seguintes: 1) o investimento atraído pode ser insuficiente (com pouco investimento, a qualidade do serviço cai e o preço aumenta, uma vez que, sendo investimento de alto risco, o setor privado quer recuperar o que gastou o mais rápido possível); 2) na inexistência de metas de universalização do serviço previamente implantadas, a privatização seria um fiasco (deve haver, portanto, investimentos em localidades que não seriam economicamente rentáveis e isso deve ser acordado contratualmente); 3) o preço de acesso aos serviços deve ser adequado com a renda média da população que os consumirá (o que, na maioria das vezes, não é de interesse do setor privado, devendo ser viabilizado mediante política de subsídios cruzados ou mesmo de subsídios diretos).

Vários países, principalmente na América Latina, a exemplo da Argentina e da Bolívia, e na Africa, a exemplo da Africa do Sul, enfrentaram exatamente esses problemas com a implantação de políticas de privatização dos serviços de água (VIEIRA, 2016aVIEIRA, Andreia Costa. International law, governance and trade of water services. In: PARZATZIS, Photini; GAVOUNELI, Maria (org.). Reconceptualising the rule of law in global governance, resources, investment and trade. 1ed. Oxford, UK: Hart Publishing, 2016a, v. 1, p. 277-288.; 2016bVIEIRA, Andreia Costa. O direito humano à água. Belo Horizonte: Arraes, 2016b.).

No geral, independentemente de serem públicos ou privados, os serviços de água requerem regulamentação que considere o planejamento do uso da terra para proteger as fontes de água, estudos de impactos ambientais, medidas para promover a eficiência dos serviços de água, bem como a redução do seu uso, além de medidas para consumo sustentável de energia nos projetos de gerenciamento de águas (SWENARCHUK, 2004SWENARCHUK, Michelle. GATS. Water services and policy options. Ensuring access to water and sanitation. The Trade Dimension. New York: ICTSD, 2004., p. 4).

Não se pode esquecer, contudo, da flexibilização deixada no texto do GATS, principalmente no tocante às negociações de serviços. Uma interação entre o regime da água com o regime do comércio internacional de serviços deve levar em conta essa flexibilização também em um momento de interpretação das normas.

4. Uma interação relacional

Uma interação entre regimes, como bem lembram Young (2012) e Dunoff (2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136.), pode ocorrer em momentos fora dos órgãos de solução de controvérsias ou fora das situações de conflito. Contemporaneamente, apontar uma interação entre regimes somente quando há litígios ou possibilidade de conflitos é tratar o problema apenas com paliativos. Paliativos são necessários, mas medidas preventivas têm maior sustentabilidade nas relações internacionais.

Conforme estudo publicado, apoiado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) (WOLF; YOFFE;, 2003WOLF, Aaron T.;YOFFE, Shira B.; GIORDANO, Mark. International waters: indicators to identifying basins at risk. The Oregon State University, PCCP Series, n. 20, UNESCO, Genebra, 2003., p. 2), bacias hidrográficas internacionais que têm tratados de cooperação assinados entre os países envolvidos são potencialmente menos conflituosas do que as bacias que não têm tratados que as regulamentem. Ainda que esse estudo tenha identificado a precariedade desses tratados existentes, bem como o pouco número deles em relação ao número de bacias hidrográficas internacionais, é fato que a existência do tratado, per si, impulsiona uma maior cooperação internacional. Assim, uma interação que ocorra no momento de construção da norma, de sua implementação e, posteriormente, de sua execução, mas previamente à formação do conflito, pode ser consideravelmente mais sustentável. Uma teoria acerca de interação entre regimes que se concentrar apenas no caso paradigmático de conflitos de normas perante tribunais é não inclusiva (YOUNG, 2012, p. 90).

Young (2012, p. 90) desenvolveu um estudo sobre a interação do que denomina fisheries regime, o qual será nominado, neste estudo, de “regime da pesca”. Em suas análises, conclui que uma interação entre regimes deve ocorrer também durante o processo de criar, de implementar e de executar o Direito Internacional. Tudo isso envolve mais do que questões técnicas de mandato ou coordenação. Enquanto a literatura sobre fragmentação tem se concentrado fortemente na solução para normas em conflito, um estudo mais acurado acerca de interação entre regimes deve incorporar vários estágios de desenvolvimento jurídico da norma e sua aplicação. Para fazê-lo, é necessário adotar uma nova perspectiva da própria natureza do Direito Internacional, que requer uma compreensão mais apurada das práticas entre os Estados, das negociações multilaterais, dos desenvolvimentos institucionais, além das funções judiciais.

Dunoff (2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136., p. 151) critica as análises acadêmicas sobre interação entre regimes baseadas somente em solução de conflitos em cortes e tribunais. Entende que o maior problema é que pesquisas acadêmicas que se baseiam em esforços judiciais para lidar com interação entre regimes podem levar a conclusões inadequadas porque pressupõem um modelo parcial e inadequado. Tribunais internacionais podem agir apenas de maneira limitada em relação à solução de conflitos, não apenas por causa da precariedade na execução de suas decisões, como também por não haver regras padrão consolidadas de interação entre regimes a serem neles aplicadas. O ativismo judicial tem deixado de lado, muitas vezes, regras consolidadas de interpretação de tratados (VIEIRA, 2012VIEIRA, Andreia Costa. Comércio internacional e meio ambiente: diálogo das fontes ou fragmentação do direito internacional? In: MENEZES, Wagner (org.). Direito Internacional em expansão. 1. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2012, v. 1, p. 59-78.).

A maior parte de interação entre regimes ocorre em relacionamentos cotidianos entre seus atores e instituições, fora dos tribunais, incluindo o trabalho regulatório, administrativo, operacional e conceitual. Dunoff (2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136., p. 151) chama essa relação entre regimes de “interação relacional”. Apesar de Dunoff preferir ver a questão dos regimes como se cada regime fosse “independente” - posição contrária à defendida neste presente estudo, no qual se levanta a necessidade de uma coerência sistemática -, utilizam-se aqui os modelos oferecidos pelo autor para melhor compreender esse tipo de interação não judicial de regimes internacionais. Dunoff oferece os modelos de interação regulatória e administrativa, operacional e conceitual.

O primeiro tipo de interação sugerido por Dunoff é a regulatória e administrativa. Os tratados continuam sendo as principais normas internacionais. Contudo, não são as únicas. Há várias normas em forma de regulação, dentro ou entre o âmbito administrativo de diversas instituições, que se tornam criadoras de regras e padrões de aplicação geral. Essa atividade tem sido chamada de “direito administrativo global” ou de “direito administrativo internacional” ( KINGSBURY; KRISCH;STEWART, 2005KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART, Richard B. The emergence of global administrative law. Law and Contemporary Problems, n. 68, p. 1-377, 2005.).

Dunoff (2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136., p. 152) traz o exemplo de interação regulatória e administrativa na área de substâncias perigosas, com a formação, inclusive, de uma organização internacional para lidar com produtos químicos (Inter-Organization for the Sound Management of Chemicals - IOMC), que conjuga esforços de diferentes atores, tais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a FAO, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD), o Banco Mundial, entre outros. Todos esses atores encontram-se bienalmente e seu esforço conjunto tem produzido regulamentação na área de produtos químicos de grande importância. A IOMC está engajada em alguns projetos de amplitude mundial, dentre eles o projeto para padronização e classificação de produtos químicos e pesticidas, inclusive com a utilização de “selos”.

Outro bom exemplo é a Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs Convention), que entrou em vigor em 2004, e que proíbe o uso de certos pesticidas e produtos químicos que causam “acumulação biológica” (bioaccumulation). Nas negociações desse tratado, muitos organismos ambientais advogaram a favor da proibição do uso do pesticida diclorodifeniltricloroetano (DDT). Muitos países em desenvolvimento e organismos de saúde pública advogaram a favor da manutenção do uso do DDT, por ser o único mecanismo eficiente contra a malária. A OMS respaldou esse clamor dos países em desenvolvimento e o uso do DDT foi mantido em razão do controle da malária e da falta de alternativas mais eficientes. Contudo, a POPs prevê que mudanças nas regras do uso do DDT deverão ser feitas de acordo com uma contínua interação entre todos esses organismos envolvidos e, principalmente, que o contínuo uso do DDT deverá obedecer às regras e orientações estabelecidas pela OMS (DUNOFF, 2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136.).

O segundo tipo de interação entre regimes sugerido por Dunoff (2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136., p. 156) é a interação operacional. Um exemplo de interação operacional é a formação da Programa das Nações Unidas de combate à Aids (UNAIDS). Trata-se de uma operação conjunta - uma joint venture - entre distintos atores internacionais, dentre eles, o Banco Mundial, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a UNESCO, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e outros, que antes atuavam de maneira isolada. Com a criação do programa, passaram a ter uma interação conjunta, poupando recursos, esforços e agilizando procedimentos, pois as ações não são mais desnecessariamente duplicadas em fóruns distintos, mas concentram-se sob o âmbito da ONU. Cada um desses atores que formaram essa joint venture se incumbiu de trabalhar em uma área específica do combate à AIDS (planejamento, gerenciamento, prevenção, tratamento e monitoramento) potencializando, assim, os seus esforços conjuntos.

O Global Environment Facility também é um tipo de interação operacional formado pelo Banco Mundial, PNUMA e PNUD. A esses, em um esforço conjunto operacional, com divisão de atividades e áreas de atuação para promover medidas de proteção ambiental, juntaram-se à FAO e outras agências internacionais. Dunoff (2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136., p. 157) menciona, inclusive, a promoção do Dia Mundial da Agua, que foi um esforço conjunto entre PNUMA, UNICEF, FAO, UNESCO, OMS, UN-Habitat e outros, para sensibilizar a população mundial acerca dos problemas relacionados à água potável.

O terceiro tipo de interação relacional sugerido por Dunoff é a conceitual. Por interações conceituais, Dunoff (2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136., p. 158) classifica o tipo de “relacionamento” entre regimes criador de conhecimento, criador de conceitos. Regimes são considerados uma estrutura conceitual - a conceptual framework - para entender parte do mundo social. Quando atores internacionais, dentro de um regime especifico, criam regras ou se envolvem em atividades operacionais e, ao mesmo tempo, participam do processo criacionista de conceitos e conhecimento. Dessa maneira foram criados os conceitos de “desenvolvimento sustentável”, “direito humano à água”, “serviços ambientais”, “bens ambientais”, “proteção internacional aos refugiados”, “globalização”, “governança global” e tantos outros.

A OMC tem interagido com a OIT para chegarem a um conceito social da expressão “globalização” (DUNOFF, 2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136., p. 160). Muita interação entre regimes tem ocorrido também dentro do Comitê de Meio Ambiente da OMC, de onde se espera sair uma definição consolidada de “bens ambientais” e “serviços ambientais” - expressões ainda em processo de construção dentro da OMC. Já o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU tem continuamente proposto uma interação entre direitos humanos e meio ambiente. A defesa da proteção climática, por exemplo, promovida como uma defesa de direitos humanos, tem ganhado adeptos em razão de se “humanizar” suas reivindicações.

Koskenniemi (2012KOSKENNIEMI, Martin. Hegemonic regimes. In: YOUNG, M. (org.). Regime interaction in international law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 305., p. 319), contudo, vê todas essas tentativas acerca de interação entre regime (conceitos, regulações, área administrativa e conflitual) como uma forma de afirmar a hegemonia de um regime sobre o outro. De acordo com seu entendimento, o problema é identificado na total ignorância de um regime em relação ao outro, cada qual firmemente empenhado em impor sua maneira de ver o mundo. Os regimes desenvolvem a partir de sua expansão informal, seu vocabulário próprio na academia e ocupam posição de dominação em suas estruturas dominantes de pensamento e ação, suas matrizes para a identificação de problemas e suas próprias regras para suas soluções. O caráter funcional dessas estruturas de autorregulação - tais como comércio internacional, direito ambiental e outras - não significa que trabalhem em prol de uma definição global do bem comum. Apenas referem-se às suas qualidades como produtores mecanizados de resultados que são internamente validados por hierarquias integradas de preferências - suas preconcepções estruturais, como se afirma Koskenniemi (2012, p. 319).

Em uma crítica exatamente a esse entendimento, Dunoff (2012DUNOFF, Jeffrey L. A new approach to regime interaction. In:YOUNG, M. (org.) Regime interaction in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 136., p. 162) postula que, no entender de Koskenniemi, as interações conceituais direcionadas a criar os regimes “híbridos” são mais bem compreendidos, em termos políticos, como uma luta pela influência. Contudo, o autor pondera que, enquanto interações conceituais entre regimes são indubitavelmente movidas por motivações políticas e instrumentais, muito mais do que isso está em jogo. As aberturas havidas na área de direitos humanos representam um novo caminho para se pensar a questão da mudança climática e uma nova estrutura para criticar ou justificar esforços internacionais nessa área. Os juristas de direitos humanos têm oferecido novas abordagens doutrinárias e operacionais para mudanças climáticas que focam no vulnerável e marginalizado. Em um nível mais fundamental, o regime dos direitos humanos tem procurado uma interação conceitual que se dá, contemporaneamente, em torno do significado negativo ou social de mudança climática.

O presente estudo tende a se posicionar a favor dessa exposição de Dunoff. O Direito não pode ser meramente analítico, mas deve ser o instrumento para a construção de normas que representem as mudanças contemporâneas e que lhes tragam propostas para os seus distintos problemas considerados, ainda que tais propostas sejam apontadas como solução temporária para problemas contemporâneos específicos.

Quer-se, pois, aqui, propor a existência de interação relacional entre o Regime Internacional da Agua Doce e o Regime do Comércio Internacional, por entender que há urgência na temática e por concluir que há necessidade desse tipo de diálogo e interação. Assim, devem ser chamados para a construção das normas acerca da proteção e uso das águas doces, todos os atores interessados dos mais distintos regimes (isso inclui a UN-Water e o WWC), o que não pode excluir organizações internacionais, como o Banco Mundial, a OMC, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a UNCTAD, o International Trade Centre (Centro de Comércio Internacional - ITC), entre outros, que não têm natureza específica de proteção das águas doces ou de proteção ambiental. Trata-se de trabalhar a governança - a boa governança - dos recursos hídricos e dos serviços de abastecimento e saneamento básico, construindo normas que sejam sustentáveis e legítimas, uma vez que, de sua construção, participaram os mais distintos atores da sociedade internacional.

Considerações conclusivas

Neste presente artigo, propôs-se uma interação entre o Regime Internacional da Agua Doce e o Regime do Comércio Internacional. Ficou demonstrado que essa é uma interação possível, sob uma análise conflitual e sob uma análise relacional, apesar das distintas naturezas e instituições desses dois regimes.

Sob uma análise conflitual, apesar de não haver litígios deflagrados envolvendo essas duas áreas, faz-se uma antecipação a possíveis litígios, discutindo a questão da água doce nos textos do GATT e do GATS.

Em três possibilidades de comércio de água identificadas - água in natura, água engarrafada e água virtual -, afirma-se, após apresentar posicionamentos contrários, que um Estado membro da OMC possa, sim, reclamar a aplicação direta do GATT e de outros acordos da OMC que se mostrarem aplicáveis à água. Não seriam aplicáveis, porém, à água in bulk. No entanto, não se defende a aplicação desses acordos por uma razão mercantilista. Ao contrário, aponta-se, dentro do GATT e de todos os acordos da OMC, as chamadas exceções ambientais e se advoga no sentido de que, quando aplicáveis, a defesa da água e a margem de policy space dos Estados que quiserem defender o seu meio ambiente deve prevalecer sobre os interesses comerciais. Para essa defesa, compreende-se a aplicação do GATT e de seu Art. XX pelos painéis e órgão de apelação. Ao adotar essa posição, entende-se que o Regime Internacional da Agua Doce dialogaria com o GATT de maneira a lhe proporcionar a noção de sustentabilidade para a água e a necessidade de proteção desta em uma esfera transfronteiriça, como toda proteção ambiental.

Dentre as muitas bandeiras levantadas para a privatização dos serviços de água e saneamento básico, a que prepondera e se justifica é a falta de recursos públicos para atender as necessidades da população. Independentemente de serem públicos ou privados, os serviços de água requerem regulamentação que considere o planejamento do uso da terra para proteger as fontes de água, estudos de impactos ambientais, medidas para promover a eficiência dos serviços de água, bem como a redução do seu uso, além de medidas para consumo sustentável de energia nos projetos de gerenciamento de águas. Entende-se que o texto do GATS é aplicável, sim, a esses serviços. Convém lembrar, porém, que o texto do GATS é bastante flexível e afirma que as licitações públicas de serviços não estão sujeitas às obrigações de acesso a mercado. Assim, uma interação entre o regime da água com o regime do comércio internacional de serviços deve levar em conta essa flexibilização também em um momento de interpretação das normas.

Contemporaneamente, afirma-se a possibilidade de uma interação relacional entre regimes. Uma interação que ocorra no momento de construção da norma, de sua implementação e, posteriormente, de sua execução, mas previamente à formação do conflito, pode ser consideravelmente mais sustentável. Neste estudo, afirma-se, por fim, a necessidade de serem chamados para a construção das normas acerca da proteção e uso das águas doces todos os atores interessados dos diferentes regimes, incluindo os do regime do comércio internacional, uma vez que o comércio internacional de água doce - enquanto produto ou enquanto serviço - não pode ter sua existência ignorada mesmo pelos ambientalistas mais cuidadosos.

Os serviços de abastecimento e saneamento básico e a crescente comoditização da água continuam fazendo parte das principais agendas que destacam planejamentos de políticas públicas no cenário doméstico e mundial. A recente onda de privatização dos serviços públicos para pagar contas de estados com déficit, como é o caso de alguns estados federados no Brasil, preocupa muito a todos que enfrentam o questionamento da polêmica discussão de conflito entre o comércio de água e o direito de acesso à água. Ao final, espera-se ver reconciliado esse conflito, conforme o diálogo aqui proposto, para que o acesso à água para todos seja um direito humano garantido em fóruns nacionais e internacionais.

  • 1
    Água in bulk compreende a água vendida em grandes quantidades para abastecimento público e industrial por meio de navios cargueiros ou tubulações. Água virtual compreende a água utilizada na produção de bens. Comércio de serviços de água, comumente denominado “privatização”, compreende os serviços de abastecimento e saneamento básico. A venda de água engarrafada compreende tanto água in natura como água dita “potável”.
  • 2
    Referência a Kant e sua ordem cosmopolita, com a proposta de uma constituição universal. Ver Kant (2008KANT, Immanuel. A paz perpétua. Um projeto filosófico (1795). Trad.: Artur Morão. Covilhã: Universidade de Beira Interior, 2008.).
  • 3
    Intervenção de terceiros convidados, semelhante à intervenção de terceiro já consagrada no Direito brasileiro como amicus curiae (“Amigo da Corte”).
  • 4
    Ver Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Vivendi Universal S.A. v. Argentine Republic, ICSID (World Bank), ARB/03/19, Amicus Curiae Submission (2007); LG&E v. Argentine Republic, ICSID (World Bank) ARB/02/1, Decision on Liabitily 234-37 (2006) e outros.
  • 5
    Ver UNESCO-IHE. Disponível em: <https://www.unesco-ihe.org/>. Acesso em: 14 ago. 2018.
  • 6
    Ver UN-Water. Disponível em: <http://www.unwater.org/>. Acesso em: 14 ago. 2018.
  • 7
    “Qualquer vantagem, favor, privilégio ou imunidade concedido a qualquer parte contratante para produto originado ou destinado a qualquer outro país será acordado imediatamente e incondicionalmente ao produto semelhante originado ou destinado ao território de todos os países signatários.”
  • 8
    “Nenhuma proibição ou restrição, que não sejam impostos, taxas ou outros encargos, ainda que efetivados através de quotas, licenças de importação e exportação ou outras medidas, deverão ser instituídas ou mantidas por outra parte contratante na importação de qualquer produto do território de qualquer parte contratante ou na exportação ou venda para exportação de qualquer produto destinado ao território de qualquer outra parte contratante.”
  • 9
    Uma interpretação autorizada do GATT é feita, nos termos do Acordo de Marrakesh que criou a OMC (Art. IX.2), por meio das Conferências Ministeriais e do Conselho Geral, tendo efeito erga omnes, o que não exclui a capacidade ativa dos membros de buscar esclarecimentos diretos aos painéis e órgão de apelação. Neste caso, as recomendações, tanto dos painéis como do órgão de apelação, têm efeito inter partes.
  • 10
    A menos que a água, em qualquer forma, tenha entrado em comércio e se torne uma mercadoria ou produto, não está coberta pelas previsões de qualquer tratado, incluindo o NAFTA, e nada no NAFTA obrigaria qualquer Estado Parte a explorar sua água para usos comerciais ou a começar a exportá-la em qualquer de suas formas. Água, em sua forma natural, em lagos, rios reservatórios, aquíferos, bacias hidrográficas e outras formas naturais não é uma mercadoria ou um produto, não é comercializável e, portanto, não é e nunca foi sujeita aos termos de qualquer acordo comercial (tradução livre). (Ver NAFTA 1993 Statement by the Governments of Canada, Mexico, and the United States. In: Parliamentary Information and Research Service, Library of Parliament, Ottawa, 9 January 2003). Disponível em: <http://www.parl.gc.ca/content/LOP/ResearchPublications/prb0213-e.htm>. Acesso em: 14 ago. 2018.
  • 11
    Consenso sobre ser o bem de propriedade pública.
  • 12
    UN-FAO, Water Law and Standards. Disponível em: <http://www.waterlawandstandards.org>. Acesso em: 3 jul. 2016.
  • 13
    North Sea Continental Shelf (F.R.G. v. Den.), 1969 I.C.J. 44 (Feb. 20).
  • 14
    Policy space é uma expressão que tem sido entendida como discricionariedade para adotar políticas públicas.
  • 15
    “Águas, incluindo naturais ou artificiais, minerais ou gasosas, não contendo adição de açúcar ou outro adoçante ou sabor; gelo e neve” (tradução livre).
  • 16
    Informação disponível em: <http://www.waterfootprint.org/?page=files/home>. Acesso em: 14 ago. 2018.
  • 17
    Ver WTO, Committee on Trade and Environment. Disponível em: <https://www.wto.org/english/tra-top_e/envir_e/envir_e.htm>. Acesso em: 14 ago. 2018.
  • 18
    United States. Restrictions on Imports of Tuna, DS21/R, 3 September 1991 (unadopted).
  • 19
    United States, Import prohibition of certain shrimp and shrimp products. Malaysia and others v. EUA, AB Report, WT/DS58/AB/RW, DSR 2001.
  • 20
    European Communities, Measures affecting asbestos and asbestos-containing products, Canada V. EC, WT/DS135/R, 5 April 2001.
  • 21
    Brazil, Measures Affecting Imports of Retreaded Tyres, European Union V. Brazil, WT/DS332/R, 3 December 2007.
  • 22
    A corrupção na América Latina é bem discutida como cultura em: GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Nov 2016
  • Aceito
    18 Jun 2018
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