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O escarro induzido na prática médica

EDITORIAL

O escarro induzido na prática médica

Elcio Oliveira Vianna

Professor Associado do Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FMRP/USP - Preto (SP) Brasil

O interesse dos clínicos pela análise do escarro de asmáticos iniciou-se há mais de 100 anos, quando os espirais de Curschmann e os cristais de Charcot-Leyden foram descritos em associação à eosinofilia do escarro desses pacientes. Entretanto, a análise do escarro não se tornou relevante para decisões terapêuticas, diagnósticas ou mesmo para pesquisas de fisiopatologia até os últimos 15 anos. O que impulsionou esse uso recente do escarro como parâmetro inflamatório das vias aéreas foi o desenvolvimento da técnica de induzir escarro pela inalação de solução salina hipertônica oriunda de nebulizadores ultra-sônicos. Esse procedimento foi implementado, inicialmente, para pesquisa de Pneumocystis jirovecii em AIDS,(1) ganhou grande impulso quando foi aplicado à pesquisa em asma, recebeu aprimoramentos para a análise do material obtido, foi validado e seu uso tem sido ampliado para diversas doenças respiratórias.(2) Diretrizes internacionais, inclusive, foram publicadas abordando detalhes que vão da metodologia laboratorial aos riscos para os pacientes.(3,4)

As ações terapêuticas para asma, até o presente, se baseiam no quadro clínico e na espirometria. No entanto, se a asma é definida por três componentes-obstrução, hiper-reatividade brônquica e inflamação-por que apenas a obstrução tem sido valorizada? A mesma pergunta se poderia fazer em relação à bronquite crônica, cuja fisiopatologia inclui um processo inflamatório muito pouco valorizado na prática médica, ou mesmo, de modo geral, em relação à doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e bronquiectasias. São muitas as respostas para essas perguntas, mas dentre elas destaca-se a falta de um método satisfatório para a avaliação da inflamação na rotina médica. Atualmente, várias técnicas buscam preencher esse espaço, sendo que a do escarro induzido é a mais estudada e a que se tem mostrado mais relevante para orientar condutas médicas. Até o presente, o escarro induzido permitiu um melhor entendimento da relação entre a função pulmonar e a inflamação das vias aéreas, identificou diferentes fenótipos das doenças, definiu como esses fenótipos respondem ao tratamento e parece ser capaz de guiar a corticoterapia no tratamento da asma e DPOC.(2,5) Há poucos estudos demonstrando o papel do escarro induzido no tratamento da asma, mas são estudos que apontam no mesmo sentido, ou seja, revelam que o ajuste do tratamento baseado na monitorização da porcentagem de eosinófilos no escarro reduz a freqüência de exacerbações.(6-8)

O artigo de Moritz et al. na presente edição do Jornal Brasileiro de Pneumologia descreve a prática de um centro pioneiro na pesquisa sobre o método de indução e processamento do escarro.(9) Os autores apresentam a experiência do seu uso clínico por cinco colegas pneumologistas, descrevendo suas indicações para o procedimento e suas condutas perante os resultados. Em ordem de freqüência, as indicações foram feitas para a investigação de asma, tosse crônica, bronquiectasias e DPOC. O exame do escarro determinou, na maioria dos pacientes, mudanças no tratamento, principalmente com alterações das doses dos corticosteróides. Além disso, o texto inclui uma excelente revisão sobre as situações clínicas nas quais o escarro induzido tem sido indicado como exame de rotina para o diagnóstico ou para o acompanhamento, abordando também, resumidamente, questões de segurança e o sucesso do procedimento.

O leitor deve considerar que os dados demonstrados refletem peculiaridades do centro médico em questão e devem ser extrapolados com cautela para outros serviços, nacionais ou internacionais; pois os resultados demonstrados dependem da padronização de protocolos de diagnóstico de cada centro, padronização de protocolos de tratamento, disponibilidade de outros métodos diagnósticos que concorrem com o escarro induzido, prevalência das doenças em cada região, sistema de triagem e encaminhamento de pacientes.

Os resultados apresentados também descrevem diferenças na citologia do escarro entre as doenças, o que poderia pressupor a capacidade do método em detectar esses diagnósticos. Entretanto, a utilidade dessas diferenças para o diagnóstico é uma área que ainda necessita novos estudos, uma vez que houve uma proporção considerável de casos de DPOC e bronquiectasias associadas à bronquite eosinofílica, e 6% dos asmáticos apresentavam bronquite neutrofílica.

No passado, estudos com lavado broncoalveolar e biópsias brônquicas eram limitados em termos de casuística. Com o desenvolvimento do escarro induzido, se pôde definir melhor o fenótipo neutrofílico da asma e suas implicações, incluindo a resposta terapêutica aos corticosteróides, que tem se mostrado reduzida nos asmáticos não eosinofílicos quando comparada àquela nos eosinofílicos.

A heterogeneidade observada quanto ao padrão de citologia do escarro (eosinofílico na DPOC e neutrofílico na asma) mais provavelmente indica diferentes fenótipos dentro de cada doença, mas também pode significar uma limitação de se avaliar apenas os leucócitos expectorados. Essa limitação é fácil de ser compreendida porque a migração celular é apenas um dos vários componentes das doenças das vias aéreas. Ou seja, a anatomia patológica da asma, DPOC e bronquiectasia tem outras características além do infiltrado neutrofílico ou eosinofílico. No caso da asma, além de eosinófilos, observa-se, por exemplo, um espessamento da membrana basal e descamação epitelial. Apesar da citologia inflamatória do escarro induzido ser o primeiro e grande passo, novos parâmetros e novos métodos poderão ainda ser necessários para se estudar a inflamação em nossos pacientes.

Independentemente das limitações ou dos progressos já obtidos, o uso do escarro induzido ainda está em fase de aprimoramento de estudos clínicos quanto à sua relevância e, portanto, nós ainda não atingimos seu apogeu. Desenvolvimentos podem ser realizados de diversas formas, como por exemplo, pelo aperfeiçoamento e padronização da avaliação de mediadores na fase líquida (não-celular) do escarro; uso das células para imunocitoquímica e para cultura celular (estudos in vitro); processamento sem o uso de ditiotreitol (que interfere na concentração de citocinas); composição de resultados do escarro com outros métodos para avaliar a inflamação (condensação do ar expirado, medida de óxido nítrico no ar exalado, medidas celulares ou moleculares do sangue); etc.

Enfim, para testemunharmos a favor desse método baseando-se na experiência de nosso laboratório, podemos afirmar que quem já empregou o escarro induzido para a pesquisa de inflamação teria muita dificuldade para planejar futuros estudos mudando o método para broncoscopia, principalmente em indivíduos com risco aumentado de broncoespasmo. E, quanto à prática médica, o artigo de Moritz et al. demonstra a capacidade do escarro induzido como parâmetro de inflamação e descreve indicações que o incluem como parte da rotina dos pneumologistas. Essas indicações serão rapidamente assimiladas pelos consensos internacionais sobre as respectivas doenças das vias aéreas.

  • 1. Pitchenik AE, Ganjei P, Torres A, Evans DA, Rubin E, Baier H. Sputum examination for the diagnosis of Pneumocystis carinii pneumonia in the acquired immunodeficiency syndrome. Am Rev Respir Dis. 1986;133(2):226-9.
  • 2. Hargreave FE. Quantitative sputum cell counts as a marker of airway inflammation in clinical practice. Curr Opin Allergy Clin Immunol. 2007;7(1):102-6. Review.
  • 3. Pizzichini E, Pizzichini MM, Leigh R, Djukanović R, Sterk PJ. Safety of sputum induction. Eur Respir J Suppl. 2002;37:9s-18s.
  • 4. Efthimiadis A, Spanevello A, Hamid Q, Kelly MM, Linden M, Louis R, et al. Methods of sputum processing for cell counts, immunocytochemistry and in situ hybridisation. Eur Respir J Suppl. 2002;37:19s-23s.
  • 5. Brightling CE. Clinical applications of induced sputum. Chest. 2006;129(5):1344-8. Review.
  • 6. Green RH, Brightling CE, McKenna S, Hargadon B, Parker D, Bradding P, et al. Asthma exacerbations and sputum eosinophils counts: a randomized controlled trial. Lancet. 2002;360(9347):1715-21.
  • 7. Jayaram L, Pizzichini MM, Cook RJ, Boulet LP, Lemière C, Pizzichini E, et al. Determining asthma treatment by monitoring sputum cell counts: effect on exacerbations. Eur Respir J. 2006;27(3):483-94.
  • 8. Petsky HL, Kynaston JA, Turner C, Li AM, Cates CJ, Lasserson TJ, et al. Tailored interventions based on sputum eosinophils versus clinical symptoms for asthma in children and adults. Cochrane Database Syst Rev. 2007;18(2):CD005603.
  • 9. Moritz P, Steidle LJ, Felisbino MB, Kleveston T, Pizzichini MM, Pizzichini E. Determination of the inflammatory component of airway diseases by induced sputum cell counts: use in clinical practice. J Bras Pneumol. 2008;34(11):913-21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2008
  • Data do Fascículo
    Nov 2008
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