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Elementos de geometria Riemaniana: Análise da esfera S2

(Topics of Riemannian geometry: Sphere S2analysis)

Resumos

Este artigo se propõe a expor conceitos de geometria riemanniana e aplicá-los a uma esfera em duas dimensões, a esfera S2, que é a variedade riemanniana mais simples de construir. Assim, esse artigo visa dar subsídios suficientes aos estudantes de graduação em Física para que eles compreendam tais conceitos de geometria com o propósito de facilitar o estudo da teoria da relatividade geral. Da mesma forma, este artigo atende às necessidades de professores do Ensino Médio que queiram transpor didaticamente a geometria riemanniana a fim de ensinar os avanços obtidos no campo aos estudantes do Ensino Básico. Nesse sentido, introduzimos conceitos básicos como curvatura e construímos a variedade S2, mostrando que a sua curvatura não é zero. Isso ilustra o arcabouço teórico da relatividade geral pois mostra como conceitos familiares da geometria euclidiana são alterados. Como exemplo mostramos como o teorema de Pitágoras é construído na variedade S2.

geometria riemanniana; relatividade geral; tensor métrico


This article presents concepts of Riemannian geometry and apply them to a two-dimensional sphere, the sphere S2, which is the simplest Riemannian manifold. Thus this article is intended to give enough subsidies to undergraduate students of physics to understand such concepts of geometry in order to facilitate the study of the general relativity. Similarly, this article is suitable to high school teachers who want to use basics concepts of Riemannian geometry to talk about the progress made in the field. In this sense, we introduce the curvature and define the manifold S2, showing that its curvature is not zero. This illustrates the theoretical framework of general relativity and it shows how the familiar concepts in Euclidian geometry change when the geometry is expanded. As an example we show how the Pythagorean theorem is built on this manifold.

Riemannian geometry; general relativity; metric tensor


1. Introdução

O surgimento das geometrias não-euclidianas encontra-se na tentativa de resolução do “Axioma das Paralelas” [1[1] M.P. Carmo, Matemática Universitária 6, 25 (2005).,2[2] J.L. Barbosa, Geometria Hiperbólica (IMPA, Rio de Janeiro, 2008).]. Esse axioma, o quinto proposto por Euclides, diz que por um ponto fora de uma reta pode-se traçar uma única paralela à reta dada. Conforme veremos posteriormente, este axioma é o que distingue a geometria euclidiana das não-euclidianas. Dentre os matemáticos que arduamente trabalharam na prova do axioma das paralelas, destaca-se o italiano Giovanni Gerolano Saccheri, que entre os séculos XVI e XVII, introduziu conceitos que mais tarde inaugurariam a geometria hiperbólica plana. Saccheri imaginou um quadrilátero que possuía dois ângulos retos e dois lados opostos de mesmo comprimento. Sua pretensão era provar que os dois ângulos do quadrilátero também eram retos. Caso ele conseguisse finalizar a sua demonstração, teria provado o quinto axioma. Porém, Saccheri somente conseguiu provar que os ângulos eram congruentes. Em seu trabalho, Saccheri obteve diversos resultados próprios de um geometria não-euclidiana. Contudo, por não esperar a existência de outra geometria, deixou de ser condecorado como o fundador da geometria hiperbólica [3[3] C. Boyer, História da Matemática (Edgar Blucher, São Paulo, 1974).,4[4] D. Howard and J. Stachel, Einstein and the History of General Relativity (Birkhäuser, Boston, 1989).]. Coube então ao matemático russo Nikolai Lobachevski publicar um trabalho desenvolvendo uma geometria construída sobre uma hipótese em conflito direto com o quinto axioma de Euclides. Nesta nova geometria, o quinto axioma deveria ser reescrito como: por um ponto exterior a uma reta podemos traçar uma infinidade de paralelas a esta reta. Lobachevski entrou para a história ao mostrar que a geometria euclidiana não era a verdade absoluta que se supunha ser. O seu feito intelectual é uma quebra de paradigma comparado à apresentação do modelo heliocêntrico de Copérnico. Desde então, as geometrias não-euclidianas passsaram a ser formalizadas, bem como tornaram-se ingredientes fundamentais na construção de teorias físicas.

Dentre as propostas de geometrias não-euclidianas, destaca-se a geometria riemanniana. Investigar a origem desta geometria significa recontar parte da história do matemático alemão Carl Friedrich Gauss [5[5] H. Eves, Introdução à História da Matemática(Unicamp, Campinas, 2002).]. Em meados de 1820, o governo de Hanover contratou Gauss para supervisionar um levantamento topográfico neste reino Germânico. Na execução de tal projeto, Gauss se perguntou se havia possibilidade em determinar a forma da Terra a partir das medições realizadas. Essa simples indagação levou Gauss a introduzir o conceito de curvatura e generalizar os conceitos do cálculo diferencial e integral sobre espaços distintos do ℝn. Este trabalho, embora tenha consumido um considerável período de sua vida, estimulou-o a conceber uma obra prima intitulada Investigações Gerais de Superfícies Curvas, publicada em 1827. Nesta obra, Gauss vai além das ideias incipientes sobre parametrização já propostas por Euler e introduz conceitos fundamentais no panorama da geometria diferencial. Um desses conceitos, talvez o mais essencial, é a noção de curvatura gaussiana. Nesse contexto, Gauss demonstrou o importante Teorema Egregium, o qual atesta que a curvatura gaussiana é invariante sob uma deformação isométrica. O teorema destacado introduz o conceito de geometria intrínseca, ou seja, pode-se estudar a geometria de uma superfície operando exclusivamente na própria superfície. Na sequência, coube ao estudante de doutorado de Gauss, o matemático alemão Bernhard Riemann, a tarefa de organizar e generalizar as ideias já desenvolvidas na eminente geometria. Nesse sentido, em 1854, Riemann apresentou o trabalho As hipóteses sobre as quais se baseiam os fundamentos da geometria como requisito para a admissão como docente na Universidade de Göttingen. Em seu trabalho, Riemann aprofundou o conceito de geometria intrínseca, introduziu o conceito de métrica Riemanniana, o que passou a ser o objeto fundamental numa geometria não-euclidiana. A partir da noção de métrica, Riemann também introduziu a noção de geodésica, as quais seriam as curvas que localmente minimizam distâncias entre pontos. Com esses novos conceitos, as noções de comprimento de curva, curvatura e área passaram a ser vistos como objetos intrínsecos, dependentes apenas da métrica. Além disso, o trabalho de Riemann unificou as geometrias euclidiana e não-euclidianas. Dessa forma, pode-se afirmar que no bojo da geometria riemanniana o quinto axioma de Euclides é substituído por: por um ponto fora de uma reta não podemos traçar nenhuma paralela à reta dada [6[6] R. Bonola, Non Euclidian Geometry: A Critical and Historical Study of its Development (Dover, New York, 1955).8[8] L. Coutinho, Convite às Geometrias Não-Euclidianas(Interciência, Rio de Janeiro, 2001).]. Posterior aos desenvolvimentos de Riemann, Elwin Christoffel, publicou um trabalho que generalizava a teoria de superfícies de Gauss. Christoffel introduziu elementos conhecido como símbolos de Christoffel e o tensor de curvatura de Riemann, formulando assim a base dos métodos invariantes em geometria riemanniana.

Umas das consequências naturais do desenvolvimento deste novo paradigma geométrico e topológico foi a sua aplicação no desenvolvimento e aprimoramento de teorias físicas. Um exemplo desta aplicação, e talvez o mais conhecido, seja o advento da relatividade geral [9[9] J. Earman, World Enough and Space Time: Absolute versus Relational Theories of Space and Time (MIT Press, Cambridge, 1989).]. A apresentação desta teoria foi iniciada por Einstein juntamente com o matemático alemão Marcel Grossman em 1916. O mais relevante pressuposto é a interpretação geométrica da gravidade: a densidade de matéria numa certa região, e portanto a intensidade do campo gravitacional é proporcional à curvatura do espaço-tempo. Este espaço-tempo curvo é também quadridimensional, no sentido que, na matematização de sua teoria, Einstein utilizou a geometria riemanniana. Um elemento essencial na relatividade geral é o tensor métrico, que além de descrever a geometria do espaço-tempo, também desempenha o papel de campo gravitacional. Desde então, a teoria da relatividade geral tornou-se um dos pilares da física, de forma que para investigar a natureza no âmbito da gravitação e da cosmologia, por exemplo, é indispensável conhecê-la [10[10] J.C. Fabris e H.E.S. Velten, Revista Brasileira de Ensino de Física 34, 4302 (2012).].

Assim o advento da teoria da relatividade geral resultou em uma mudança de paradigma. Ou seja, foi a primeira vez que uma geometria não-euclidiana foi usada para descrever um sistema físico. Um dos primeiros grandes triunfos dessa teoria, e portanto da geometria na física, foi o cálculo correto do avanço do periélio de Mercúrio. Há muito já se sabia que o planeta Mercúrio mostrava um comportamento anômalo. O ponto mais perto do sol em sua trajetória não é fixo, ou seja há uma mudança lenta e gradual da posição do seu periélio. Muito embora este efeito não ocorra em sistemas Newtonianos de dois corpos, a presença de outros planetas no sistema solar poderia causar esta precessão. O periélio de Mercúrio, porém, apresentava um desvio significativo do que era calculado usando gravitação Newtoniana. Chegou-se a conjecturar que esse comportamento era devido à presença de um planeta muito próximo ao sol, apelidado de Volcano, mas nunca observado. Coube à relatividade geral explicar corretamente esse comportamento. A correção relativística da equação newtoniana da trajetória foi observada com incrível acurácia e, uma vez tendo sido submetida a um teste experimental e provando-se eficaz na explicação dos fenômenos observados, começou-se a verificar experimentalmente as outras previsões dessa teoria. Uma dessas previsões é que a luz não de desloca sempre em linha reta, podendo descrever uma trajetória curva devido à presença do campo gravitacional que se traduz em curvatura do espaço. Essa característica foi observada por astrônomos britânicos em expedições à Africa e Sobral-CE no Brasil. Ou seja, grandes distribuições de matéria curvam o espaço a sua volta, o que força a luz a percorrer um espaço curvo nas suas imediações. Esse fenômeno é chamado de lente gravitacional. A luz se curva pois ela segue o caminho de menor energia, ou seja, a geodésica do espaço, que não necessariamente é uma reta. Outra previsão interessante da teoria é o que se chama de buraco negro. Os buracos negros são estruturas geométricas cuja força gravitacional é tão forte que nem mesmo a luz escapa de sua ação. Os buracos negros nunca foram observados, mas há evidências fortíssimas de sua existência.

Tendo em vista a relevância da geometria riemanniana na concepção de teorias físicas, em especial, na teoria da relatividade geral, o presente trabalho apresenta uma revisão, de caráter pedagógico, de elementos desta geometria. A nossa análise será restrita à geometria da superfície da esfera. Embora seja um sistema particular, nossa análise não perderá generalidade. Além disso, a metodologia que será apresentada trará um bom material de apoio, principalmente para aqueles que farão uma primeira leitura sobre o tema. Por ter uma natureza de revisão, apresentamos várias referências úteis aqueles que se iniciam na área.

A apresentação está disposta da seguinte maneira: na seção 2 introduzimos os conceitos básicos de geometria riemanniana. Na seção 3 apresentamos a variedade na qual aplicaremos tais conceitos básicos, assim introduzimos a métrica da esfera em duas dimensões. Na seção 4 calculamos o tensor de Ricci para essa variedade e mostramos que ela é não-euclidiana. Com isso calculamos e resolvemos as equações que determinam a curva geodésica na seção 5. Mostramos como obter o teorema de Pitágoras nessa variedade na seção 6, bem como o respectivo limite euclidiano. Finalmente na última seção, apresentamos nossas conclusões.

2. Conceitos básicos

O ponto de partida para uma discussão da geometria na superfície da esfera, que denominaremos de esfera S2, é o conhecimento dos conceitos de variedade, tensor, métrica e curvatura. A variedade é definida por meio de uma associação entre dois conjuntos de elementos. Assim um zoológico pode ser considerado uma variedade, pois nessa estrutura cada espécie de animal é disposta em um espaço físico específico. Então existe uma associação única entre cada espécie e sua jaula [11[11] M.D. Maia, Geometry of The Fundamental Interactions(Springer Verlag, New York, 2011).]. Quando lidamos com sistemas físicos tal associação pura não é suficiente. A física faz previsões a respeito de um dado movimento, para tanto é necessário um sistema de coordenadas. Então para formalizar o estudo de um movimento necessita-se de uma associação entre cada ponto do espaço real e um dado conjunto de coordenadas. Portanto precisamos de uma variedade mais específica: a variedade topológica. Tal variedade vincula cada ponto da variedade a um ponto de um espaço euclidiano Rn. Isso significa que localmente uma variedade topológica é um espaço Rn. Em muitos desses sistemas físicos usamos um sistema de coordenadas adequado à simetria do problema. Por exemplo o problema de Kepler é imensamente facilitado pelo uso de coordenadas esféricas em detrimento de coordenadas cartesianas. Portanto é um fato que as grandezas físicas alteram seu valor quando usamos sistemas de coordenadas diferentes. Então devemos usar estruturas matemáticas na variedade topológica que formalizem e contemplem tais mudanças. Essas estruturas são os chamados tensores. Vamos defini-los por suas propriedades de transformação. Essencialmente existem dois tipos de tensores, os covariantes e os contra-variantes. Uma transformação covariante é a mesma que as componentes de uma derivada sofrem, enquanto uma transformação contra-variante é a mesma operada por uma diferencial. Então o produto entre esses dois tipos de transformações geram uma quantidade invariante. A título de ilustração vamos introduzir a notação usada nesse artigo através do conhecimento de vetores.

De maneira geral um vetor é escrito como o somatório de componentes multiplicadas por uma base. As componentes e a base individualmente se alteram quando mudamos o sistema de coordenadas, mas o vetor em si não. Portanto temos que usar uma combinação de quantidades covariantes com aquelas co-variantes. Assim é necessário distinguir tais quantidades [12[12] R. d'Inverno, Introducing Einstein's Relativity(Oxford University Press, Oxford, 1992), 1st ed.]. Vamos denotar quantidades covariantes por meio do índice embaixo da quantidade, digamos Vμ, enquanto as co-variantes serão denotadas por Vμ. Essas quantidades se transformam da seguinte maneira, quando mudamos um sistema de coordenadas xμ = (x0, x1, x2, x3) para x′μ = (x′0, x′1, x′2, x′3)

(1)Vμ=νxμxνVν,Vμ=νxνxμVν.
Assim resta evidente que nesse contexto um vetor pode ser escrito como
(2)V=μVμeμVμeμ,
onde eμ é a base vetorial e Vμ são as componentes do vetor. Aqui introduzimos uma nova notação: índices repedtidos significam um somatório. Essa é a chamada notação de Einstein.

O produto escalar entre dois vetores gera um invariante, ou seja

(3)V,W=Vμeμ,Wνeν=VμWνeμ,eν=VμWνgμν,
onde usamos gμν = 〈eμ,eν〉, então Wμ = Wνgμν, uma vez que um invariante deve ser escrito como o produto de quantidades covariantes e contra-variantes. Como vemos a quantidade gμν, chamada de métrica, relaciona essas duas quantidades. A métrica transforma quantidades covariantes em contra-variantes e vice-versa. A palavra métrica tem sua origem na aferição de distâncias no espaço, por exemplo a métrica de uma poesia se refere ao espaçamento do som das palavras e assim pode-se construir poesias em que a cadência das palavras transmite o sentimento do poeta. Então usamos a métrica para calcularmos o produto escalar entre dois diferenciais de comprimento vetoriais. Ou seja
(4)ds2=gμνdxμdxν,
isso significa que a métrica determina o invariante de comprimento do espaço. De maneira geral um tensor covariante de ordem n se transforma como nvetores covariantes, o mesmo vale para tensores contra-variantes. Podemos ter também uma combinação dos mesmos. Assim a métrica é um tensor covariante de ordem 2. A métrica inversa gμν é um tensor contra-variante de ordem 2.

Um exemplo interessante de elemento de linha não-euclidiano é aquele com assinatura Lorentziana. A gênese de tal elemento de distância quadrático está nas chamadas transformações de Lorentz que deixam a velocidade da luz invariante. Nesse contexto temos drdt=cn, ou seja

(5)dr2=c2dt2dr2c2dt2=0,
isso significa que a luz é descrita por um elemento de linha nulo. Então é possível definir um elemento de linha geral ds2 = −c2 + dx2 + dy2 + dz2 que descreve movimentos com velocidade abaixo, igual ou maior que a velocidade da luz. O espaço definido por tal elemento de linha é conhecido como Espaço de Minkowski e a estrutura definida por ds2 = 0 é chamada de cone de luz. Consequentemente, através de um formalismo muito similar do utilizado ao longo deste trabalho, é possível descrever uma transformação de referencial que se dá na teoria da relatividade restrita em termos de uma estrutura geométrica tal qual o espaço de Minkowski, entretanto o nosso foco nesse artigo é distinto desse.

No espaço euclidiano de três dimensões, que nos é mais familiar, podemos transportar um vetor paralelamente em qualquer ponto do espaço, assim é possível fazer operações como adição e subtração de vetores em diferentes pontos do espaço, isso influi diretamente na definição de derivadas. Essa propriedade não é observada em uma variedade de caráter geral, de sorte que devemos construir um processo para transportar paralelamente um campo tensorial. Consideremos um campo tensorial Aμ, tal campo tensorial é função das coordenadas xμ. Tomemos pois dois pontos infinitesimalmente próximos, supomos que o campo tensorial se altera segundo

δAμ=ΓνλμAνdxλ,
sob transporte paralelo, conforme a Fig. 1.

Figura 1
Transporte paralelo.

A quantidade Γνλμé conhecida como a conexão da variedade. Isso significa que o campo tensorial se altera por uma combinação linear do diferencial das coordenadas e do próprio campo tensorial sob transporte paralelo. Entretanto existe outra mudança no campo: uma mudança diferencial. Tal mudança é formalmente dada por

dAμ=Aμxνdxν.
Assim o campo tensorial se altera de uma maneira total
(6)DAμdAμδAμ=(Aμxν+ΓλνμAλ)dxν=νAμdxν,
onde definimos νAμ=νAμ+ΓλνμAλ, com a notação νAμAμxν. Assim com essa notação é possível denifir uma nova derivada que se transforma como um tensor cujas componentes são dadas por ∇νAμ, conhecida como derivada covariante. A derivada covariante generaliza a noção de operador “∇” em uma geometria euclidiana, de tal forma que pode ser usada para estabelecer gradiente, laplaciano, rotacional e divergente. Claramente a derivada parcial de um campo tensorial não se transforma como um tensor, mas a sua combinação com a conexão deve obedecer essa lei de transformação. Essa imposição induz a seguinte transformação sob uma mudança de coordenadas
(7)Γνλμ=xμxσxρxνxβxλΓρβσxσxνxρxλ2xμxσxρ,
o que não é um tensor. Dessa forma a conexão se enquadra como um novo objeto da variedade, tal objeto determina de certa forma a geometria da variedade em que o movimento se dá.

Vamos analisar quais consequências surgem da hipótese de um tensor alterar suas componentes quando paralelamente transportado em um circuito fechado, conforme a Fig. (2) [13[13] L.D. Landau and E.M. Lifshitz, Course of Theoretical Physics: The Classical Theory of Fields (Butterworth-Heinemann, Oxford, 1975), 4th ed.].

Figura 2
Curvatura.

Como exemplo podemos considerar um campo vetorial tangente à uma família de curvas na variedade. Então a mudança no vetor será

ΔAμ=δAμ=ΓμνλAλdxv,
tal integral pode ser reescrita utilizando o teorema de Stokes para uma área infinitesimal do circuito dfλν. Com isso, temos
(8)ΔAμ=12[λ(ΓμλαAα)ν(ΓμλαAα)]dfλν=12[λΓμναAα+λAαΓμνανΓμλαAαΓμλανAα]dfλν,
substituindo νAμ=ΓμνλAλchegamos a
ΔAμ=12RαμλνAαΔfλν,
onde
(9)Rαμλν=λΓμλα+νΓμλα+ΓβλαΓμνβΓμλβΓβνα
é uma quandidade tensorial, conhecida como curvatura ou tensor de Riemann. Tal ideia é uma generalização da curvatura gaussiana. Vemos, pois, o significado de curvatura: ela mede o quanto um campo tensorial se altera após percorrer um circuito fechado sobre a variedade. Esse significado tem um caráter geométrico, do ponto de vista algébrico a curvatura está relacionada com a não comutatividade da derivada covariante.

Como vimos até aqui o conceito de variedade é amplo e vai se especializando conforme a necessidade de se formalizar conceitos físicos. Quando lidamos com a curvatura esse processo não é diferente, pois tal quantidade define a geometria com a qual trabalhamos. Então dentre as várias possíveis geometrias, vamos tratar com a Riemanniana. Essa geometria é estabelecida quando calculamos a curvatura a partir de uma conexão específica: os chamados símbolos de Christoffel. Essa conexão é obtida quando impomos a condição de metricidade, que é o anulamento da derivada covariante da métrica. Assim é possível isolar os símbolos de Christoffel na equação definida pela condição de metricidade, o que resulta em

(10)Γλμν=12(νgλμ+μgλνλgμν).
Essencialmente a condição de metricidade garante que o instrumento com o qual se mede distâncias, por exemplo uma régua, não muda a medida em que se efetua a aferição.

Como foi estabelecido através da idéia de transporte paralelo, um campo tensorial de ordem um altera sua direção quando deslocado ao londo da variedade. Então um indagamento surge imediatamente: é possível que um vetor se desloque em uma determinada direção sem se modificar? Em outras palavras, estamos procurando uma curva em que o campo vetorial é auto-paralelo quando o mesmo se desloca na curva. Portanto estamos procurando a solução da equação ∇νAμ = 0 para um campo vetorial característico da curva. Essa curva pode ser parametrizada pelo invariante de distância, s = ∫ ds, e o campo vetorial em questão pode ser tomado como o vetor tangente à curva. É interessante notar que sem perda de generalidade Aμ poderia ser o vetor normal. Consequentemente queremos estabelecer uma curva no espaço, xμ(s), cujo vetor tangente, Aμ=dxμds, é auto-paraleo. Dessa forma essa curva será solução da equação

(11)d2dxμds2+Γλνμdxλdsdxνds=0.
Essa é a conhecida equação da geodésica.

Nas próximas seções utilizaremos esses conceitos básicos aplicados a uma esfera de duas dimensões com o intuito de ilustrar o funcionamento de tais idéias. Isso permite que esse conteúdo possa ser transposto por professores do Ensino Médio, aproximando os alunos dos mais recentes descobrimentos da física teórica.

3. A métrica da esfera S 2

Como visto na seção anterior o tensor métrico pode ser obtido a partir do elemento de linha na Eq. (4) que descreve a superfície esférica. Para esse fim, consideraremos uma esfera de raio a. Utilizaremos um sistema de coordenadas esférico cujo ângulo polar é representado por ϕ e o ângulo azimutal é representado por θ, conforme está representado na Fig. 1. Com isso, o quadrado da distância entre dois pontos infinitamente vizinhos (elemento de linha) é descrito por

(12)ds2=a2(dθ2+sin2θdφ2).
Para justifircarmos o elemento de linha acima partimos de uma mudança de coordenadas cartesianas para esféricas em três dimensões, ou seja
x=rsinθcosφ,y=rsinθsinφ,z=rcosθ,
que nada mais é do que uma transformação xμxμ, então lembramos que ds2 = dxμ dxμ = d′xμ dx′μ, onde dxμ=xμxνdxν. Assim basta fazer r = a que chegamos na expressão (12). De certa forma, podemos afirmar que o conhecimento do elemento de linha num certo espaço define a métrica deste espaço. Então, uma vez que g11 = a2, g12 = 0, g21 = 0 e g22 = a2 sin2θ, deduzimos que neste caso a métrica (tensor métrico) pode ser representada pela matriz
(13)gμν=[a200a2sin2θ].
Note que temos um tensor métrico diagonal. Este tensor não pode ser escrito com elementos constantes em nenhum sistema de coordenadas. Isso significa, num dicionário próprio da geometria riemanniana, que estamos analisando, de fato, uma variedade riemanniana.

4. O Tensor de Ricci

O tensor de Ricci é definido a partir do tensor de Riemann por meio de um processo chamado de contração, ou seja

Rμν=Rλμλν.
Este tensor é um elemento fundamental na descrição da geometria de qualquer variedade. Evidentemente usamos o tensor métrico, definido na seção anterior, para calcular os símbolos de Christoffel e então a curvatura. Quando o tensor de Ricci (ou de Riemann) é nulo, dizemos que estamos numa variedade plana. Um exemplo de variedade plana é o espaço euclidiano. Conforme veremos adiante, este tensor é fundamental na teoria gravitacional de Einstein. Contudo, antes de calcularmos o tensor de Ricci, precisamos encontrar as conexões, ou seja, os símbolos de Christoffel, os quais são dados pela Eq. (10). É fácil notar que as conexões são simétricas em relação aos dois índices inferiores, isto é, gλσΓσμν=Γμνλ=Γνμλ. É instrutivo lembrar que gμν = (gμν)−1, ou seja, gμλgλν=δμν. As conexões são determinadas a partir de derivadas parciais da métrica. Invertendo a matriz gμν, encontramos
(1/a2001/(a2sin2θ)).
Assim fica claro que estamos trabalhando em duas dimensões e os índices variam entre 1 e 2. Usando essas quantidades, podemos calcular os elementos da conexão, aqueles não-nulos são dados por
(14)Γ221=sinθcosθ,Γ222=cotθ.
De posse das conexões, podemos calcular os elementos do tensor de Ricci, os não-nulos são escritos como
(15)R11=1,R22=sin2θ.
Na sequência, podemos calcular o escalar de Ricci, que é dado pela equação
(16)R=gμνRμν.
Com isso, obtemos para a variedade em questão
R=2/a2.
Um tensor de Ricci diferente de zero implica que a variedade dada é, de fato, não-euclidiana. Isso significa que podemos estudar as curvas geodésicas que não são trivialmente dadas por retas.

5. Geodésicas

Um dos ingredientes fundamentais deste trabalho são as geodésicas. Uma vez conhecidas o conjunto de equações que estabelecem a curva geodésica podemos aplicá-lo esfera em duas dimensões. Tal conjunto de equações é dado pela Eq. (11). Vemos então que para o espaço euclidiano a solução é dada por uma reta, uma vez que as conexões são nulas. Para a variedade em questão, obtemos as seguintes equações diferenciais:

(17)d2θds2sinθcosθ(dθds)2=0,
(18)d2φds2+2cotθdθdsdφds=0.
Com o intuito de procurar soluções para tais equações, reescreveremos a Eq. (18) como
dds(dφdssin2θ)=0,
o que implica
(19)dφdtsin2θ=k,
onde k é uma constante.

Restringiremos as nossas geodésicas para que sejam parametrizadas por comprimento de arco conforme discutido na seção de conceitos básicos. Assim, temos

(dθds)2+sinθ(dφds)2=1.
Utilizando a Eq. (19), obtemos
(dθds)2=1k2sin2θ.
Com isso, ao longo da geodésica, temos
(20)(dθdφ)2=sin2θ(k2sin2θ1),
o que nos leva a
(21)(φφ0)=±dθsinθk2sin2θ1.
Resolvendo a Eq. (21), chegamos a
cotθ=±k21cos(φφ0).
Tomando c1=k21cos(φ0)e c2=k21sin(φ0), chegamos a
(22)cotθ=±(c1cosφ+c2sinφ).
Escrevendo a Eq. (22) em coordenadas cartesianas, obtemos
(23)z=±(c1x+c2y).
A Eq. (23) representa planos que passam pela origem. Assim, podemos concluir que, na superfície esférica, as geodésicas são subconjuntos da interseção da superfície da esfera com um plano que atravessa a origem. Ou seja, as geodésicas são arcos ao longo de grandes círculos.

6. Teorema de Pitágoras em S2

Nesta seção, mostraremos como é escrito o teorema de Pitágoras na superfície esférica. Um resultado interessante é que no limite euclidiano (a → ∞), obtemos o teorema de Pitágoras trivial. Antes de iniciarmos essa discussão, temos que entender como calculamos distâncias nessa variedade. Para isso, reescrevamos a Eq. (12) da seguinte forma

(24)s=a1sin2θ0sin2θ(sin2θ+sin2θ0)dθ,
onde foi também utilizada a Eq. (21). A solução da integral dada na Eq. (24)é dada por
(25)s=aarccos[cos(θθ0)sinθ0sinθ+cosθcosθ0].

A última equação perimite-nos calcular distâncias entre dois pontos sobre a variedade. Nessa perspectiva, podemos deduzir o teorema de Pitágoras na esfera S2. Para essa finalidade, tomemos três pontos, A, B e C, não-alinhados sobre a superfície da esfera. Esses pontos formam um triângulo cujos lados são curvas, conforme está representado na Fig. (3). Denotaremos os comprimentos dos lados como: x=BC¯, y=AC¯, z=AB¯. Sem perda de generalidade, tomemos o lado z sobre o equador, ou seja, θ = π/2. Dessa forma, o ângulo entre os lados AC¯e AC¯é reto e, assim, o triângulo é retângulo. Considere que a nossa esfera esteja centrada na origem O do eixo de coordenadas. Se OB, OA e OC são os vetores que ligam a origem aos vértices do triângulo coniderado, então as suas coordenadas são (cos(z/a), 0, sin(z/a)), (a, 0, 0), (cos(y/a), sin(y/a), 0) respectivamente. Logo, o cosseno do ângulo entre os vetores OB e OC é dado por

(26)cos(x/a)=OB,OC,
onde 〈F, G〉 representa o produto interno euclidiano entre os vetores F e G. Com isso, chegamos ao resultado
(27)cos(x/a)=cos(y/a)cos(z/a).
A Eq. (27) representa o teorema de Pitágoras na esfera S2. Observe que podemos reescrevê-la como
x=aarccos(cos(y/a)cos(z/a)),
confirmando a expressão dada na Eq. (25).

Figura 3
Triângulo esférico.

Um aspecto muito interessante aparece quando expandirmos em série de potências ambos os lados da Eq. (27),

1(x/a)22!+(x/a)44!+=(1(y/a)22!+)(1(z/a)22!+)=1(y/a)22!+(y/a)2(z/a)2(2!)2+
Simplificando a última equação, obtemos
(28)x22!+x44!a2+=y22!z22!+y2z24!a2+
Tomando a → ∞ na Eq. (28), ou seja, fazendo o raio da esfera tender ao infinito, obtemos
x2=y2+z2,
que é o Teorema de Pitágoras numa variedade plana.

7. Uma rotina MAPLE para visualização das geodésicas

Os conceitos geométricos abordados neste trabalho podem ser de difícil visualização, especialmente o formato das geodésicas. A solução da equação da geodésica é dada como um plano que passa pela origem, mas a visual] da interseção deste plano com a superfície esférica pode ser complicada para o aluno inexperiente. A popularização da computação algébrica traz um novo recurso para a apresentação deste conteúdo que pode simplificar bastante este aprendizado. O que segue é um worksheet do MAPLE que parte da definição de distância sobre a esfera bidimensional, minimiza a mesma através da equação de Euler-Lagrange e plota a interseção da solução da equação obtida com a esfera, de modo que um aluno possa visualizar o resultado obtido.
  • f:=sqrt(a^2*diff(theta(phi),phi)^2+a^2*sin(theta(phi))^2);

  • f1:=subs({theta(phi)=var1,diff(theta(phi),phi)=var2},f);

  • Epr1:=diff(f1,var2);

  • Epr2:=diff(f1,var1);

  • Epr3:=subs({var1=theta(phi),var2=diff(theta(phi),phi)},Epr1);

  • Epr4:=subs({var1=theta(phi),var2=diff(theta(phi),phi)},Epr2);

  • Epr5:=diff(Epr3,phi);

  • Eq6:=Epr5-Epr4=0;

  • Eq7:=simplify(Eq6);

  • Soln1:=dsolve(Eq7, theta(phi));

  • Eq11:=simplify(arccos(z/sqrt(x^2+y^2+z^2))=subs(phi=arctan(y/x),rhs(Soln1)));

  • Eq12:=isolate(Eq11,z);

  • with(plots):

  • intersectplot(x^2+y^2+z^2 = 1, subs(_C1=1,_C2=0,Eq12),

  • x = −1 .. 1, y = −1 .. 1, z = −1 .. 1, axes = box, thickness = 2, orientation = [70, 40]):

  • plots[display](%, plottools[sphere]([0, 0, 0], 1));

Um exemplo de figura gerada pelo MAPLE através desta rotina é mostrada na Fig. 4.

Figura 4
Resultado do worksheet Maple: geodésica da esfera.

8. Conclusões

Neste artigo, abordamos conceitos básicos de geometria riemanniana aplicados a uma esfera bidimensional. Usualmente a fundamentação matemática para a teoria da relatividade geral fica distante dos alunos do começo da graduação em física, assim nesse trabalho pudemos expor tal conteúdo de maneira a contemplar esses estudantes. A esfera S2 é a variedade mais simples em que a geometria riemanniana pode ser exemplificada. Dessa forma, os cálculos de conexões e derivadas covariantes podem encontrar paralelo com o conteúdo de disciplinas básicas como cálculo diferencial e integral de várias variáveis. Nesse mesmo sentido, professores do Ensino Médio podem transpor didaticamente os conceitos inerentes à relatividade geral para para as aulas de física e matemática, mostrando a interdependência entre esses ramos do conhecimento. Essa abordagem matemática é necessária para o ensino de relatividade geral no Ensino Médio, o que normalmente não acontece, ficando restrito o conteúdo à relatividade restrita. Claro que o formalismo matemático deve ser diluído, mas isso não pode justificar a privação a que os estudantes estão sujeitos no que se refere a uma parte da física que permanece na fronteira do conhecimento humano.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2014
  • Aceito
    31 Jan 2015
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