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O sincrocíclotron do CNPq: da concepção ao abandono

The CNPq synchrocyclotron: from conception to abandon

Resumos

No embalo da euforia com os resultados obtidos por César Lattes e as possibilidades de avanços na pesquisa em física das partículas elementares com o uso de aceleradores de partículas, o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) adquiriu, em 1952 um pequeno sincrocíclotron da Universidade de Chicago (o modelo da máquina de 450 MeV). Inicialmente, a instalação e a operação do equipamento ficaram a cargo do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, mas em 1954 a equipe responsável se dispersou e a montagem do equipamento foi interrompida. A remontagem do equipamento foi efetivada, entre 1958 e 1962, por uma equipe do Centro de Pesquisas Físicas (CPF) da Universidade do Rio Grande do Sul, por força de um convênio entre esta universidade e o CNPq. O relato dessa remontagem é apresentado neste trabalho a partir de um dossiê elaborado por Gerard Hepp, coordenador da equipe do CPF.

sincrocíclotron; CNPq; CPF-URGS


Following the results obtained by César Lattes and the possibilities of improvements in particle physics research in Brazil, the Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) acquired, in 1952, a small synchrocyclotron from the University of Chicago (a model of the 450 MeV machine). At the beginning, a team from the Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) was put in charge of the installation and operation of the equipment, but in 1954 the team in charge was dispersed and the installation discontinued. The remounting of the equipment was performed from 1958 to 1962 by a team from the Centro de Pesquisas Físicas (CPF) of the Universidade do Rio Grande do Sul, through an agreement between this university and CNPq. The report of this remounting is presented in this paper following the dossier prepared by Gerard Hepp, head of the CPF team.

synchrocyclotron; CNPq; CPF-URGS


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

O sincrocíclotron do CNPq: da concepção ao abandono

The CNPq synchrocyclotron: from conception to abandon

Carlos Alberto dos Santos1 1 E-mail: cas.ufrgs@gmail.com.

Instituto Mercosul de Estudos Avançados, Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu, PR, Brasil

RESUMO

No embalo da euforia com os resultados obtidos por César Lattes e as possibilidades de avanços na pesquisa em física das partículas elementares com o uso de aceleradores de partículas, o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) adquiriu, em 1952 um pequeno sincrocíclotron da Universidade de Chicago (o modelo da máquina de 450 MeV). Inicialmente, a instalação e a operação do equipamento ficaram a cargo do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, mas em 1954 a equipe responsável se dispersou e a montagem do equipamento foi interrompida. A remontagem do equipamento foi efetivada, entre 1958 e 1962, por uma equipe do Centro de Pesquisas Físicas (CPF) da Universidade do Rio Grande do Sul, por força de um convênio entre esta universidade e o CNPq. O relato dessa remontagem é apresentado neste trabalho a partir de um dossiê elaborado por Gerard Hepp, coordenador da equipe do CPF.

Palavras-chave: sincrocíclotron, CNPq, CPF-URGS.

ABSTRACT

Following the results obtained by César Lattes and the possibilities of improvements in particle physics research in Brazil, the Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) acquired, in 1952, a small synchrocyclotron from the University of Chicago (a model of the 450 MeV machine). At the beginning, a team from the Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) was put in charge of the installation and operation of the equipment, but in 1954 the team in charge was dispersed and the installation discontinued. The remounting of the equipment was performed from 1958 to 1962 by a team from the Centro de Pesquisas Físicas (CPF) of the Universidade do Rio Grande do Sul, through an agreement between this university and CNPq. The report of this remounting is presented in this paper following the dossier prepared by Gerard Hepp, head of the CPF team.

Keywords: synchrocyclotron, CNPq, CPF-URGS.

1. Introdução

A afirmação de que 1934 é o marco inicial da institucionalização da pesquisa científica no Brasil é recorrente na literatura sobre este tema [1-3]. Entre 1934 e 1944 são formados, a partir da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (FFCLUSP) e da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil (FNFUB), os primeiros grupos de pesquisa em física no país. Em São Paulo, Gleb Wataghin orienta a formação de César Lattes, Jayme Tiomno, Marcello Damy de Souza Santos, Mário Schenberg, Oscar Sala, Paulo Leal Ferreira e Paulus Aulus Pompéia, entre outros [1, 4, 5]. Ao contrário de São Paulo, cujo sistema educacional desenvolvia-se integralmente na esfera estadual, no Rio de Janeiro a Universidade do Brasil estava na esfera do governo federal, e sofreu consequências dos conturbados movimentos políticos do final dos anos 1930 ao início dos anos 1950. O que se constata é que no Rio de Janeiro o início da história científica não é tão linear quanto o de São Paulo. Por exemplo, nos depoimentos de Leite Lopes [6] e de Bernhard Gross [7], duas proeminentes figuras da história da física no Brasil, especialmente daquela desenvolvida no Rio de Janeiro, não há, entre os precursores citados, uma figura que se assemelhe a Gleb Wataghin. Shozo Motoyama é explícito quanto a isso [1]:

(...) se de um lado os grupos de Gross e de Costa Ribeiro podem ser tomados como modelos de pesquisa bem-sucedida por terem encontrado o campo adequado para atuar mesmo em condições adversas, de outro lado não contribuíram substancialmente para a formação de uma comunidade mais ampla no Rio de Janeiro nas décadas de 30 e 40 (p. 73).

Convém lembrar que os principais trabalhos de Bernhard Gross e Joaquim Costa Ribeiro foram desenvolvidos no Instituto Nacional de Tecnologia, e não na Faculdade Nacional de Filosofia [7]. Mas, a partir da Faculdade Nacional de Filosofia o desenvolvimento da pesquisa em física no Rio de Janeiro teve a participação de figuras iconográficas da historiografia brasileira, além de Gross e Costa Ribeiro: César Lattes, Guilherme F. Leal Ferreira, Jayme Tiomno, José Leite Lopes, Plínio Sussekind Rocha, Sérgio Mascarenhas, Yvonne Mascarenhas, entre outros [1-3, 6-12]. A descoberta do píon, em 1947, que contou com a participação de César Lattes [12], propiciou, em 1949, a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), por onde circularam renomados cientistas brasileiros e estrangeiros [2, 6, 13, 14]. Dois anos depois, a criação do Conselho Nacional de Pesquisas inicia a institucionalização do fomento ás atividades de pesquisa científica no país [13, 15-17].

Essas iniciativas no Rio de Janeiro e em São Paulo servem de inspiração para a criação de centros de pesquisa similares em outras cidades. Em Porto Alegre, Antônio Estevam Pinheiro Cabral, que havia feito estágio com César Lattes no CBPF, em 1951, convence seus colegas da Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul (FF-URGS)2 2 Embora federalizada em 1950, a Universidade do Rio Grande do Sul só adotou a denominação Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1968. a criarem o Centro de Pesquisas Físicas (CPF-URGS), nos moldes do CBPF. Criado em 3 de setembro de 1953, o Centro é extinto em 9 de março de 1959 para dar lugar ao Instituto de Física [18]. Embora não tenha produzido pesquisa científica relevante, durante sua curta existência o CPF desempenhou papel importantíssimo no estabelecimento de uma cultura acadêmica e na preparação de infraestrutura para o desenvolvimento de pesquisa experimental e tecnológica. Quando, em dezembro de 1959 decidiu-se que o IF investiria em física experimental, todo o trabalho de base realizado no CPF foi de inestimável valor. O envolvimento de uma equipe do CPF na recuperação do sincrocíclotron do CNPq, cujos resultados serão apresentados na sequência, é uma demonstração clara da capacidade tecnológica desenvolvida na URGS nos anos 1950. O presente relato tem como fonte primária unicamente o dossiê elaborado por Gerard Hepp, coordenador da equipe do CPF, e como fontes secundárias, documentos disponíveis na literatura [12-17, 41]. Para o registro historiográfico, o presente trabalho deverá ser complementado por uma criteriosa pesquisa nos arquivos do CNPq, de modo que questões aqui expostas via Gerard Hepp possam ser melhor apreciadas.

Para uma apreciação mais contextualizada do que será aqui relatado, convém uma breve descrição do desenvolvimento do CPF-URGS.

2. O Centro de Pesquisas Físicas da URGS

Tudo indica que a ideia da criação do Centro foi uma imposição do recém-licenciado em física Antônio Estevam Pinheiro Cabral, então no CBPF do Rio, sem o quê não aceitaria assumir a Cátedra de Mecânica Racional, Mecânica Celeste e Física Matemática da Faculdade de Filosofia da URGS, para a qual fora convidado. Uma vez aceita a ideia, ela foi inteiramente absorvida pelas principais lideranças acadêmicas da URGS. A composição do primeiro Conselho Deliberativo (CD) sinaliza bem o apoio institucional a criação do CPF. O Diretor Executivo, Luiz Pilla, era Catedrático de Físico-Química e Química Superior, da FF e de Físico-Química da Escola de Engenharia (EE). Todos os membros do Conselho eram destacados professores da FF e da EE. Alvaro Magalhães, Catedrático de História e Filosofia da Educação da FF e de Física Geral e Experimental II da EE. Foi Diretor da FF, de 1946 a 1949. Ary Nunes Tietböhl, Catedrático de Análise Matemática e Análise Superior da FF e de Cálculo Diferencial e Integral da Arquitetura. Foi Diretor da FF, de 1963 a 1966. Cayoby Vieira de Oliveira, Catedrático de Complementos de Matemática da FF, a partir de 1958. João Francisco Simões da Cunha, Catedrático de Física Teórica e Física Superior da FF e Assistente da Cadeira de Física Geral e Experimental II da EE. Em dezembro de 1953, Luiz Pilla é nomeado Diretor da FF e Ary Nunes Tietböhl é nomeado Diretor Executivo do Centro [19]. Na sua primeira reunião, o CD escolheu, por unanimidade, Antônio Cabral para exercer o cargo de Diretor Científico.

O planejamento da criação do CPF foi elaborado por uma comissão nomeada pelo reitor Elyseu Paglioli em setembro de 1952, cujo relatório foi encaminhado em 27 de janeiro de 1953, e a oficialização do órgão de natureza científica, autônomo e diretamente subordinado à Reitoria se deu em 3 de setembro do mesmo ano. Portanto, em menos de quatro meses a Comissão produziu um plano de trabalho com tal nível de detalhamento que deve ter sido o resultado de reflexões anteriores a sua designação. Provavelmente Antônio Cabral cuidou para que a ideia se disseminasse. Ao tratar das razões para a criação do Centro, a Comissão afirma que a "Universidade do Rio Grande do Sul, empenhada no desenvolvimento da pesquisa científica (...) decidiu promover pesquisas no setor da Física Moderna, que a capacitem a colocar-se entre as instituições do país que hoje formam a vanguarda com respeito ao vulto dessas pesquisas." Mais adiante, indicam o foco do projeto quando sugerem a "necessidade da intensificação das pesquisas atômicas no país" [20]. As atas do Conselho Técnico Científico (CTC) [21] e do CD sugerem que os administradores do CPF empenharam-se para a contratação de pesquisadores qualificados para liderar pesquisas em Física Nuclear, a area de atuação escolhida. Fizeram muitos contatos, mas não tiveram sucesso nesse particular. Por outro lado, investiram tudo o que puderam no desenvolvimento da Divisão de Eletrônica (DE). Examinado agora, em retrospectiva, não podemos deixar de apreciar o acerto administrativo. Também é notável a obediência dos administradores do CPF aos princípios básicos descritos no plano de trabalho mencionado acima.

Não há dúvida de que o sucesso da DE pode ser atribuído à competência e dedicação de dois engenheiros: Gerard Hepp e Paulo Pedro Petry. O primeiro, engenheiro eletrônico da Philips, perito em detectores nucleares, chegou ao Brasil em 1951 para realizar uma missão da Unesco junto ao CBPF. Em 18 de março de 1954, ele se transferiu para o CPF. Na chegada de Hepp, o jornal Folha da Tarde publica uma matéria (Fig. 1), na qual ele aparece ao lado de Petry, sobre o qual consta na reportagem a informação de que acabara de instalar os primeiros transmissores da Rádio da Universidade. Consta também a informação de que o CPF estava oferecendo o Curso de Introdução à Eletrônica Aplicada, ministrado por Petry.


Sobre a importância de Gerard Hepp, Darcy Dillenburg fez a seguinte declaração:

(...) juntou um grupo de profissionais para trabalhar com ele, aprendendo técnicas modernas de pesquisa.

O laboratório [de eletrônica], depois dirigido pelo professor Paulo Pedro Petry, foi um instrumento importante quando começaram as atividades de pesquisa na UFRGS. Foi implantado também um laboratório de radio química que teve a cooperação de professores do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, onde estava também o professor Luiz Pilla e outros, que colaboraram no manuseio de materiais radioativos que se ia trabalhar no Centro.

Além disso, se instalou uma excelente oficina mecânica de precisão, que ao longo dos anos construiu extraordinários equipamentos ou componentes de equipamentos que precisavam ser adaptados aos aparelhos existentes ou para substituir peças. Foi um elemento fundamental nas etapas seguintes [22].

Na comemoração do primeiro aniversário do CPF, em 3 de setembro de 1954, menos de seis meses após a chegada de Hepp, o Centro exibiu equipamentos em avançado estágio de construção na DE. Digno de nota é o microscópio óptico com imagem projetada em um cinescópio. Eles o denominaram telemicroscópio. O equipamento funcionava como um circuito fechado de TV. Não há registro escrito, mas em depoimento ao autor, Paulo Pedro Petry informou que ele foi testado em exames oftalmológicos. Duas fotografias ilustram o andamento dos trabalhos. Na primeira (Fig. 2a), durante a visita do Reitor por ocasião do primeiro aniversário do CPF, observa-se a parte do equipamento correspondente à transmição da imagem para o cinescópio. Na segunda fotografia (Fig. 2b), obtida entre 1954 e 1955, vê-se o equipamento completo. Outro equipamento que merece destaque é um computador analógico montado no CPF (Fig. 3). Esses equipamentos, com sofisticados recursos tecnológicos da época, serviram para o treinamento de inúmeros estagiários de engenharia, e para estabelecer uma escola de desenvolvimento tecnológico. A ideia foi bem tratada e influenciou marcadamente as primeiras gerações de físicos formados no IF. Nos anos 1970, o percentual de equipamentos desenvolvidos localmente, em relação aos importados era claramente maior no IF do que em outros centros de pesquisa nacionais.



O prestígio da DE logo ultrapassou a porta do CPF e até mesmo os muros da Universidade. Para a Varig, por exemplo, foi desenvolvido um sistema de alto vácuo para calibração de altímetros. Nos arquivos preservados no IF, foram encontradas inúmeras solicitações de outras faculdades e de órgãos externos à URGS, para o conserto de diferentes equipamentos eletro-eletrônicos. Entre essas solicitações, ocupa posição de destaque aquela referente ao sincrocíclotron do CNPq, objeto do presente relato.

3. Sincrocíclotron: noções básicas

Desde os trabalhos pioneiros de Rutherford, no início dos anos 1900, o principal método de investigação do núcleo atômico tem sido o espalhamento de partículas carregadas. A ideia é simples. Uma partícula carregada, altamente energética, é lançada contra um núcleo. A análise do quê resulta dessa interação permite a modelagem da composição e, ou da estrutura nuclear. Foi assim, analisando partículas alfa espalhadas por núcleos de metais pesados que Rutherford elaborou, em 1911, seu modelo nuclear. Em 1919, estudando a interação de partículas alfa com núcleos de nitrogênio ele descobriu o próton e previu a existência do nêutron,3 3 Em sua conferência Bakeriana, em 1920, Rutherford descreve como identificou o próton e previu a existência de uma partícula neutra. Na verdade, ele identificou mesmo foi a existência, no núcleo do átomo de nitrogênio, de algo como o núcleo de hidrogênio. Anos depois é que a denominação próton foi usada. Naquela conferência ele imaginou a existência de elétrons no interior do núcleo, e que a combinação desses com núcleos de hidrogênio resultaria em algo que ele chamou de "dubleto neutro". que seria descoberto em 1932, a partir da interação de partículas alfa com núcleos de berílio. Em todas essas experiências, realizadas até o início dos anos 1930, as fontes de partículas alfa eram núcleos radioativos

naturais, o que limitava o valor da energia a aproximadamente 10 MeV. Outra limitação dos materiais radioativos como fonte de partículas carregadas é que apenas raios gama, partículas alfa e beta são emitidas nos processos naturais. Evidentemente não estamos considerando aqui a possibilidade de usar raios cósmicos, pelas óbvias dificuldades operacionais. Como a interação de raios gama e partículas beta com outros núcleos não fornece as informações necessárias para os propósitos acima, fica-se limitado ao estudo da interação das partículas alfa [23-27]. O problema com essa limitação na energia é que uma partícula alfa com 10 MeV não consegue penetrar no campo eletrostático de muitos núcleos.

A partir de 1927, motivados por um apelo feito por Rutherford na Royal Society [28, 29], muitos pesquisadores, em diversos laboratórios, começaram a projetar aceleradores de partículas. Não surpreende que dois de seus colaboradores, John Douglas Cockcroft e Ernest Thomas Sinton Walton, tenham sido os primeiros a construir esse tipo de equipamento [30-33]. E como era de se esperar, o primeiro acelerador foi construído a partir da tecnologia mais óbvia e simples disponível naquela época. Com um transformador de 200 kV, Cockroft e Walton conseguiram construir uma fonte de 800 kV, com a qual aceleraram prótons em um tubo de vácuo com aproximadamente dois metros e meio de comprimento. Era, portanto, o primeiro acelerador linear. Todavia, o acelerador Cockroft-Walton, como ficou conhecido, logo perdeu a corrida pela preferência da comunidade científica. Já no ano seguinte, surgia o ainda hoje famoso gerador eletrostático de Van de Graafe [29]. Esse tipo de equipamento foi instalado em muitos laboratórios, incluindo os da PUC-RJ e da USP, mas sua eficiência não ultrapassa a energia de 10 MeV. Outros aceleradores foram desenvolvidos para energias superiores, usando um princípio distinto, qual seja, acelerando cargas elétricas através de campos magnéticos, portanto em círculo e não de forma retilínea. Nessa categoria, se destaca o cíclotron, concebido em 1928 por Ernest Orlando Lawrence [30].

O esquema apresentado na Fig. 4 ilustra o princípio de funcionamento de um cíclotron. Se uma carga elétrica, q, penetra em uma região onde existe uma diferença de potencial, V, esta carga adquire energia E = qV. Vem dessa expressão a unidade de energia eletronvolt, eV. O eletronvolt é a energia adquirida por uma partícula com carga igual à carga do elétron (1,6 x 10-19 C), quando submetida a uma diferença de potencial igual a 1 volt. Ou seja, 1 eV = 1,6 x 10-19 J.


Se uma carga elétrica, q, com velocidade v, penetra em uma região onde existe um campo magnético, B, ela é submetida a uma força dada pela relação [34]

A Fig. 4 apresenta dois "dês" separados por um pequeno espaço. Esses "dês", construídos com materiais metálicos, são ocos, e entre eles é possível aplicar uma diferença de potencial. Para completar o cíclotron, um campo magnético é aplicado perpendicularmente ao plano dos "dês". Se uma carga elétrica gerada no centro de um dos "dês", penetrar no seu interior com velocidade perpendicular à sua face, ou seja com velocidade no plano dos "dês", ela executará o movimento circular esquematizado na figura. Esse movimento é consequência da Eq. (1). Neste caso particular, v e B são perpendiculares, de modo que a força F passa a ser uma força centrípeta. Se existisse apenas o campo magnético, a partícula ficaria girando no círculo de raio

com frequência

e energia cinética

Ao contrário do raio, que é diretamente proporcional à velocidade, a frequência de cıclotron só depende do valor da carga, do campo magnético e da massa da partícula, enquanto a energia cinética é proporcional ao quadrado do raio. Agora temos todas as ferramentas para o funcionamento do cíclotron. Para aumentar a energia, mantendo fixo o campo magnético, é necessário aumentar o raio, ou seja, é necessário aumentar a velocidade da partícula. Esta pode ser aumentada pela aplicação de uma diferença de potencial. Quando, ao completar um semicírculo a partícula atinge a face do "dê", uma diferença de potencial é aplicada entre esta face e a face do outro "dê", de modo que a partícula terá sua velocidade aumentada e circulará em um raio maior. E por esta razão que o espaço entre os dois "dês" é denominado de espaço de aceleração. No próximo semicírculo, a diferença de potencial deverá ter sua polaridade invertida. Como a frequência de cíclotron é constante, é fácil construir um oscilador elétrico, tal que a cada meio período a polaridade seja invertida. Ao final de alguns ciclos, o feixe pode ser extraído por meio de um sistema defletor.

É claro que uma coisa é a descrição do princípio de funcionamento, outra bastante diferente é a sua operacionalização. Muitas dificuldades tecnológicas devem ser superadas até que um equipamento desses entre em operação. Independentemente dessas dificuldades, é óbvio que quanto maior o raio do cíclotron, maior será a energia alcançada pela partícula. Se as dificuldades técnicas não o impedissem, poderíamos imaginar a obtenção de qualquer energia, bastando para isso aumentar o raio do cíclotron. Mas, isso tem um limite fundamental, explicado pela teoria da relatividade restrita. Quando a velocidade de uma partícula aproxima-se da velocidade da luz, sua massa deixa de ser constante. Neste caso relativístico, a frequência passa a ser dada pela relação

onde c é a velocidade da luz, E0 é a energia de repouso da partícula (aproximadamente 511 keV para o elétron e 938 MeV para o próton) e E é a energia cinética adquirida no cíclotron. Portanto, a vantagem tecnológica que se tinha antes, pelo fato de a frequência de cíclotron ser constante, transforma-se em grande dificuldade para a obtenção de altas energias. A medida que a energia cresce, a frequência diminui.

Do exposto, fica claro que podem existir dois tipos de cíclotrons. Aqueles cuja energia fica abaixo do limite relativístico e que operam com frequência constante (cíclotron padrão [35]), e aqueles com energia acima do limite relativístico, nos quais a frequência de cíclotron decresce com o aumento da energia. Neste caso, é necessário haver uma sincronização entre a frequência de cíclotron e a frequência da voltagem aplicada, daí a denominação sincrocíclotron [36]. O primeiro sincrocíclotron, com 184 polegadas de diâmetro, foi instalado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 1946, tendo uma energia máxima de 200 MeV [37]. Por causa da Segunda Guerra Mundial, esse tipo de equipamento só apareceu mais de uma década após a construção do primeiro cíclotron padrão, que também ocorreu em Berkeley. Com o cíclotron padrão, a máxima energia é de aproximadamente 20 MeV para prótons e dêuterons e 40 MeV para partículas alfa, ao passo que com o sincrocíclotron esses valores chegam a ser multiplicados por 10. Por volta de 1950 [36], existiam, instalados ou em construção, 11 sincrocíclotrons, entre os quais devemos destacar o da Universidade de Chicago, com 170 polegadas de diâmetro, projetado para fornecer feixes de prótons com 450 MeV [38]. Um protótipo desse equipamento foi adquirido pelo CNPq, em 1952; depois de marchas e contramarchas chegou a ser instalado, mas jamais foi utilizado em projetos de pesquisa. Alguns detalhes dessa história serão apresentados a seguir.

3.1. Nascimento e definhamento do sincrocíclotron do CNPq

No início de 1948, César Lattes chega a Berkeley para trabalhar com a equipe liderada por Eugene Gardner, na Universidade da Califórnia [39]. O objetivo era usar o feixe de partículas alfa com energia de 380 MeV, extraído do sincrocíclotron de 184 polegadas, para detectar o méson pi produzido artificialmente. Conforme declaração de Lattes, o sucesso foi imediato:

Duas semanas depois da minha chegada, em um sábado à tarde, consegui detectar mésons-π, usando o eletroímã de Berkeley. As partículas-a batiam em núcleos do alvo de carbono e os mésons defletidos por um campo magnético tomavam certa direção e deixavam sua marca nas emulsões (Apud Ana Maria Ribeiro de Andrade [13, p. 45]).

Em 12 de março daquele ano, esses resultados foram publicados na prestigiosa revista Science, em artigo assinado por Eugene Gardner e C.M.G. Lattes [40].

Em 12 de janeiro do ano seguinte, Lattes envia telegrama, de Berkeley, a José Leite Lopes, referindo-se à construção de um cíclotron no Rio de Janeiro. Estava exultante pelo apoio que recebera de Ernest Lawrence, o inventor desse acelerador. A ideia era construir um cíclotron de 10 MeV. Nas palavras de Ana Maria Ribeiro Andrade [13]:

Talvez comece assim, em 1949, a epopéia do sincrociclotron do Brasil. O empenho de dois ou três professores da Faculdade Nacional de Filosofia e da Escola Politécnica de São Paulo, a articulação destes com um grande político/mecenas, o apadrinhamento de um cientista americano consagrado e a criação de um instituto de pesquisa em física no Rio de Janeiro. Dias depois deste telegrama, e de correspondência trocada entre Cesar Lattes, José Leite Lopes e Luiz Cintra do Prado, estavam definidos os nomes da equipe inicial que iria para os Estados Unidos aprender a construir ciclotron, garantida a inserção de militares no projeto e fundado o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (p. 173).

Depois de muita discussão e interferências de políticos e militares, do Brasil e dos Estados Unidos, e de análises de equipamentos alternativos, chegou-se, em 1952, à decisão pela compra do modelo de 21 polegadas do acelerador de 170 polegadas da Universidade de Chicago. A ideia era utilizar o pequeno sincrocíclotron para capacitar uma equipe que na sequência encarregarse-ia de construir no Rio de Janeiro uma réplica do acelerador de 170 polegadas. O CNPq tornou pública essa decisão durante o Simpósio sobre Novas Técnicas de Pesquisa em Física, realizado entre 15 e 29 de julho daquele ano, parte no Rio de Janeiro e parte em São Paulo [41].

Em um folheto publicado naquele ano, com os Estatutos do Centro, são registradas as presenças ilustres de Richard Feynman, Giuseppe Occhialini e Gerard Hepp. Alfredo Marques dá outros detalhes:

O projeto de construção daqueles aceleradores dominava uma boa parte das atividades do CBPF, onde estavam instalados os laboratórios necessários e os técnicos ligados aqueles projetos, apesar de não ter implicado qualquer alteração das áreas de pesquisa e ensino que o CBPF vinha desenvolvendo desde a fundação. Foram criados os Serviços de Projeto e Construção do Sincrociclotron pelo Presidente do CNPq, com a incumbência de supervisionar e executar todas as tarefas de planejamento e construção do Sincrociclotron de 170", já que a máquina menor estava praticamente pronta, devendo passar apenas por testes de ajustes e otimização de características e outras medidas visando exclusivamente ao treinamento de técnicos brasileiros [41, p. 141].

Veremos mais adiante que a situação em relação ao acelerador de 21 polegadas não era tão simples. As dificuldades enfrentadas por Hepp sugerem que, ao contrário do que afirma Alfredo Marques, a máquina não estava praticamente pronta. O pessoal do CBPF teve outras decepções. A Universidade do Brasil não autorizou a instalação do equipamento nas proximidades do CBPF, na Praia Vermelha. O acelerador seria instalado em terreno doado pelo Governo do Rio de Janeiro, no Morro de São João Batista, em Niterói. Para dar conta dos problemas de construção dessas máquinas, o Almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva, Vice-Presidente, no exercício da Presidência do CBPF,

designa, em 7 de junho de 1952, o Dr. Alvaro Difini para o cargo de Diretor Executivo do CBPF, e acumulativamente, de Diretor Tesoureiro, ocupados até então pelos Profs. Hervásio de Carvalho e Gabriel Fialho, respectivamente. Embora essa medida visasse exclusivamente à agilização da administração geral dos recursos, colocando àsua frente pessoa experimentada, a circunstância de a mesma pessoa exercer também o cargo de Diretor Executivo dos Serviços de Construção do Sincrociclotron do CNPq esteve na origem de todo o abalo sofrido por esse empreendimento, pelo CBPF e pelo CNPq, associado ao escândalo do desvio de verbas [41, p. 142].

De acordo com Alfredo Marques, o CBPF transferiu parte de suas atividades para Niterói:4 4 O sincrocíclotron foi instalado em um galpão, no Morro de São João Baptista, onde hoje é o campus Valoguinho da Universidade Federal Fluminense [12].

Para lá se deslocaram as unidades de infraestrutura, o Departamento Técnico, com a Oficina Mecânica, o serviço de Eletricidade, e a Eletrônica, parte do Serviço de Alto-Vácuo, a Química, necessários ao funcionamento do cíclotron, e parte da Divisão de Raios Cósmicos que nessa ocasião trabalhava com instrumentação eletrônica para ser levada a Chacaltaya e dependia dos serviços de montagens eletrônicas. (...) A transferência para Niterói se fez com alto custo; anos depois os diferentes setores afetados ainda se queixavam dos recursos gastos com a transferência, retirados de seus magros orçamentos [41, p. 144].

No seu relato, baseado nos relatórios anuais do CBPF, Alfredo Marques não faz referência ao que ocorreu com o sincrocíclotron a partir de julho de 1954. Ana Maria Ribeiro de Andrade é quem informa sobre eventos do início de 1954 que resultaram no desmantelamento da equipe inicialmente encarregada pela montagem do equipamento:

Os engenheiros americanos Leroy Schwarcz e Richard Müller pediram licença por tempo indeterminado e o capitão-de-fragata Henry British Lins de Barros se afastou para assumir o comando do contratorpedeiro Baependi. Depois foi a vez de Helmut Schwarz5 5 Na 4ª reunião do Conselho Deliberativo do CPF-URGS, em 3/11/53, Antônio Cabral menciona convite feito a Gerard Hepp e Helmut Schwarz para trabalharem no CPF. O primeiro disse que em poucos meses poderia se transferir do CBPF para o CPF, mas o segundo disse que não poderia aceitar o convite. Todavia, na 6ª reunião do Conselho Técnico Científico do CPF-URGS, em 9/10/54, Antônio Cabral informa que recebera carta de Schwarz, oferecendo-se para trabalhar no CPF. Não sabemos as razões pelas quais ele resolveu ir para o CTA. - especialista alemão na tecnologia de alto vácuo - se transferir para o Centro Técnico da Aeronáutica e do engenheiro Frederico Wettler - admitido para estudar o sistema de radiofrequência do cíclotron de 170" e, com o cancelamento, encarregado da fonte de 18 kW para o oscilador do cíclotron de 21" - pedir demissão, diante de possibilidades de acompanhar a construção do bévatron europeu.

Amaury Alves Menezes foi designado Coordenador da Instalação do Ciclotron e Lattes, chamado da Bolívia para contornar a situação, acumulou interinamente a direção científica e técnica dos Serviços de Projeto e Construção do Sincrociclotron, em substituição a Leroy Schwarcz [13, p. 204].

A inexperiência do engenheiro Menezes e os desvios de verbas praticados por Álvaro Difini e descobertos por Lattes originaram a crise do sincrocíclotron [13, 41]. Na reunião do Conselho Deliberativo (CD) do CNPq, em 3/12/55, Marcello Damy de Souza Santos "sugeriu a paralisação da obra de Niterói, que empregava 61 pessoas contratadas pelo CNPq, além de outras dezenas pelo CBPF" [13, p. 220]. A sugestão foi acatada pelo CD, e o "ciclotron de 21" permaneceu inerte, sob a proteção da Polícia Militar e aos cuidados de vigias e jardineiros, faxineiros e encarregados administrativos" [13, p. 224], até agosto de 1958, quando o CNPq firmou o convênio com a URGS detalhado a seguir.

4. O convênio CNPq-URGS: última tentativa de renascimento do sincrocíclotron

Vários documentos mostram que a instalação de um acelerador de partículas no CPF-URGS foi uma ideia recorrente durante toda a sua existência. Vejamos os registros nas atas do Conselho Técnico Científico (CTC), em ordem cronológica.

1. 5/11/55: Luiz Pilla relata sua recente viagem ao Rio de Janeiro, para tomar posse como membro da Comissão de Energia Atômica (CEA) do CNPq, oportunidade em que tomou conhecimento da "instalação de um cíclotron de 20 polegadas em Niterói". Manifesta preocupação quanto a capacidade técnica do engenheiro Amauri [Alves Menezes] para coordenar a instalação, e menciona o relatório de Mário Amoroso Anastácio [no qual solicita demissão da equipe]. Hepp pede a palavra e sugere que o CPF adquira um acelerador de partículas.

2. 23/4/56: Por ocasião da divisão do orçamento (Cr$ 1.250.000,00), Hepp solicita a reserva de Cr$ 250.000,00 para a construção de um acelerador. Uma comissão foi formada para discutir o tipo de acelerador

3. 2/7/56: Encaminhamento à Companhia de Energia Elétrica de consulta sobre as possibilidades técnicas de instalação do sincrocíclotron.

4. 3/8/56: Relato de Hepp sobre sua recente viagem ao Rio de Janeiro. Exibe fotografias do cíclotron e diz que o destino do mesmo está em aberto. Motta Rezende deseja que o mesmo fique na Escola de Engenharia de Niterói. Por outro lado, os militares gostariam de usar o equipamento, enquanto José Goldemberg e Hervásio de Carvalho se opõem à vinda do equipamento para o sul. Bernardo Geisel sugere que o Reitor entre em contato com o presidente do CNPq, solicitando que o cíclotron seja instalado em Porto Alegre.

5. 24/6/57: Por ocasião da divisão de uma verba de Cr$ 1.800.000,00, Cr$ 500.000,00 foram reservados para o acelerador.

6. 26/3/58: Hepp informa que tomou conhecimento "do convênio a ser firmado entre a Universidade e o CNPq", referente ao sincrocíclotron. Informa também que a DE está "preparando um pequeno acelerador, mas vai devagar porque toda a elaboração depende do alto vácuo".

Esses temas foram eventualmente discutidos em reuniões do Conselho Deliberativo (CD) do CPF, e até mesmo em instâncias extraoficiais. Por exemplo, em carta dirigida a Roberto Salmeron, em 3/1/58, Hepp informa: "Estamos planejando agora e iniciando a construção de um pequeno acelerador Cockcroft-Walton."

É difícil estabelecer um contexto fiel ao que hoje sabemos sobre os eventos históricos da época, apenas utilizando os registros mencionados acima. Não resta a menor dúvida de que Gerard Hepp estava extremamente motivado para construir um acelerador de partículas em Porto Alegre. Não tinha certeza sobre que tipo de acelerador seria mais conveniente, até porque não havia físicos experimentais no CPF que pudessem colaborar no projeto, definindo linhas de pesquisa pertinentes. Por outro lado, determinados trechos das atas são enigmáticos. Um cenário consistente descortina-se quando os registros são colocados ao lado de informações contidas no livro de Ana Maria Ribeiro de Andrade [13]. Há uma frase no livro que dá grande significado aos registros do CTC-CPF, sobretudo considerando-se que o CBPF era o modelo seguido pelo CPF: "Em 1950, porém, um cíclotron se destacava entre os equipamentos prioritários para a pesquisa no CBPF, ao lado de uma encomenda feita à Philips holandesa de um acelerador de alta tensão" (p. 175). Convém lembrar que Gerard Hepp era engenheiro da Philips holandesa, e que viera para o CBPF para auxiliar na fabricação de pequenos detectores de radiação.

Gerard Hepp se transferiu do CBPF para o CPF em março de 1954, exatamente na mesma época em que a equipe responsável pela instalação do sincrocíclotron do CNPq se afastava do projeto, conforme relatado acima. É no contexto desse relato que se enquadram os registros das reuniões do CTC-CPF. Em 6 de outubro de 1956, quase um ano após a paralisação das atividades no sincrocíclotron, Elyseu Paglioli, Reitor da URGS, escreve para o Cel. Aldo Vieira da Rosa, Presidente do CNPq:

Ciente de que êsse colendo Conselho está estudando o destino a ser dado ao "ciclotron" de 12" de sua propriedade, tenho a honra de transmitir a Vossa Excelência o interêsse e o empenho desta Universidade em contar com o aparêlho acelerador de partículas, a fim de destiná-lo ao Centro de Pesquisas Físicas (...).

É uma feliz coincidência que o "cíclotron" esteja disponível justamente no momento em que os integrantes científicos do nosso Centro de Pesquisas Físicas estudam a possibilidade de construir um aparêlho acelerador nesta Universidade, em local já existente não só na atual séde provisória como na definitiva, cuja pedra fundamental será lançada ainda êste ano.

Permito-me esclarecer, ainda, que esta Universidade, pelas verbas específicas do orçamento do nosso Centro, no exercício corrente, está apta a custear as despesas de desmontagem, transporte e instalações iniciais nas mesmas condições, no mínimo, das já existentes.

Na resposta, em 22/10, João Christovão Cardoso, Presidente Interino do CNPq, escreve: "Em atenção a êsse pedido, informo a Vossa Magnificência que tão logo nos seja entregue o relatório da Comissão designada para opinar sôbre o estudo dêsse aparêlho, será a sua solicitação submetida ao Conselho Deliberativo dêsse órgão". Depois de várias cartas protocolares e ratificadoras do pedido, o Reitor da URGS recebe o Comunicado 1316, de 3 de setembro de 1957, assinado pela Secretária do Conselho Deliberativo do CNPq:

Tem este o fim de comunicar a Vossa Magnificência que o Conselho Deliberativo dêste Conselho, em sua sessão 387a. de 21 de agôsto próximo passado, resolveu não ceder o Sincrociclotron de sua propriedade, ao Centro de Pesquisas Físicas dessa Universidade, em virtude de poder o mesmo ser aproveitado em programas de iniciativa do próprio Conselho Nacional de Pesquisas.

Não há elementos precisos e esclarecedores sobre as razões que impediram a doação do equipamento para o CPF. No âmbito da URGS não havia rejeição oficialmente expressa. Os documentos indicam quase unanimidade quanto à aceitação do equipamento. Apenas Luiz Pilla mostra-se reticente, conforme consta na Ata da reunião do CD-CPF, em 28/6/56. Na reunião do CD-CPF, em 19/12/56, Ary Tietböhl relata reunião do CNPq, na qual foi discutido o destino do sincrocíclotron. Apenas o CPF e o Centro Técnico da Aeronáutica manifestaram interesse em receber o equipamento. A Comissão de Energia Atômica do CNPq foi contra a cessão para o CTA, conforme registro na Ata da

354ª. sessão do CD-CNPq, 12/12/56 .[13, p225]. Por outro lado, a Comissão de físicos designada pelo CNPq para decidir o que fazer com o equipamento recomendou sua transferência para o CPF ou para o CTA.[42]. Não são precisamente conhecidos os eventos ocorridos entre dezembro de 1956 e 23 de setembro de 1958, quando o CNPq firmou convênio com a URGS "para revisão total das instalações, e assistência no funcionamento do Sincrociclotron de 21", de propriedade do Conselho e que se encontra em Niterói, Estado do Rio de Janeiro." O convênio era válido por dois anos, sendo prevista a prorrogação, o que de fato ocorreu em termo aditivo de 1961, por solicitação do próprio CNPq (Fig. 5).


5. O dossiê Hepp

O Instituto de Física da UFRGS preserva em seus arquivos um dossiê preparado por Gerard Hepp.[42], detalhando o trabalho realizado por sua equipe, entre julho de 1958 e fevereiro de 1963 (Figura 6). Na carta de encaminhamento, enviada ao Reitor da URGS em 10/1/63, o prof. David Mesquita da Cunha, Diretor do IF, manifesta preocupação quanto ao não cumprimento, por parte do CNPq, da cláusula II do convênio, que no primeiro aditivo teve a seguinte redação:


A URGS prestará colaboração na constituição e treinamento de uma equipe de técnicos de operação e de manutenção do equipamento. As plantas e especificações continuam a fazer parte complementar do presente.

O CNPq não cumpriu sua parte, e a equipe de técnicos jamais foi constituída. O diretor reclama ainda de outras duas cláusulas não cumpridas pelo CNPq:

X - O Conselho Nacional de Pesquisas concederá um auxílio à Universidade do Rio Grande Do Sul, para a aquisição de equipamento para seus laboratórios, enquanto estiver recebendo assistência técnica da mesma Universidade, por fôrça dêste Convênio. O montante dêsse auxílio será fixado pelo Conselho Deliberativo do CNPq e as suas condições ficarão subordinadas à processualística e às normas em vigor, no Conselho.

XIII - Concluídos os trabalhos previstos neste convênio, o CNPq procurará proporcionar à Universidade do Rio Grande do Sul, para utilização pelo Centro de Pesquisas Físicas, um acelerador de partículas para execução de pesquisas projetadas pelo mesmo Centro.

A cláusula XIII confirma o que foi dito acima sobre a recorrência da ideia de se construir um acelerador no CPF. Todavia, consta no relatório Hepp que ao final do convênio, quando a possibilidade de ceder o sincrocíclotron para algum instituto voltou à baila, o IF já não mais estava interessado.

O dossiê contém o termo de convênio CNPq-URGS, assinado em 23/9/1958, uma descrição da instalação e outros detalhes técnicos do equipamento, 8 relatórios, 99 memorandos e um parecer de Gerard Hepp sobre o aproveitamento do sincrocíclotron. Alguns desses itens serão apresentados a seguir.

6. O equipamento em julho de 1958

A Fig. 7 é um esquema do sincrocíclotron, onde os principais componentes são representados. Não há indicação de autoria do esquema, que pode ter sido feito pelo pessoal ligado ao CBPF ou por alguém ligado a Gerard Hepp.


é quem fornece a corrente (≈ 600 A) para alimentar o eletroímã, responsável pelo campo magnético que agirá sobre o feixe de prótons em movimento no interior dos "dês". O eletroímã é constituído de duas bobinas. Por sua vez, cada bobina é constituída de 8 panquecas, cada uma de 34 espiras. Observe-se que os polos do eletroímã têm formato tipo escadinha. Esse formato é projetado para que o campo magnético não decresça muito, do centro para a periferia. A diferença de potencial entre os "dês" é aplicada com o uso de um oscilador de radiofrequência (R.F.). O dummy D é o "dê" ligado à terra. Os "dês", o tubo de extração dos prótons acelerados e a câmara de amostras ficam sob vácuo. Este é obtido com o uso de uma bomba mecânica e uma bomba difusora. Os prótons a serem acelerados são extraídos da garrafa de H2. O gás se ioniza sob a ação de uma descarga elétrica na fonte de íons, localizada no centro de um dos "dês". A Fig. 8 mostra o equipamento instalado pela equipe anterior.


No seu primeiro relatório, cobrindo o período de julho a dezembro de 1958, Hepp escreve:

Antecipando o fechamento do Convênio entre a Universidade do Rio Grande do Sul e o Conselho Nacional de Pesquisas, com autorização verbal do Reitor da Universidade e do Presidente do Conselho me dediquei no início dêste período ao estudo meticuloso de tôdas as instalações do sincro-ciclotron do Conselho Nacional de Pesquisas, chegando até a fazer pequenos testes e medições para determinar a qualidade e o estado de conservação de diversos componentes.

O trabalho de revisão pròpriamente dito sòmente começou no fim de julho depois da chegada e aclimatação do 1º auxiliar [Auxiliar Técnico] Engelberto Werckmeister [Fig. 9] e depois da entrada em serviço de um mecânico e de um eletricista-auxiliar.


O engenheiro Werckmeister trabalhava no CPF-URGS, mas permaneceu em Niterói durante todo o período de instalação do cíclotron. Em setembro de 1958, Hepp solicitou a colaboração do engenheiro Wolfgang Kolbe (Memorando 10),6 6 Outros memorandos de Hepp serão discutidos mais adiantes. também do CPF-URGS, mas as bases salariais exigidas pelo engenheiro não foram aceitas. Em dezembro do mesmo ano, Hepp solicita passagem para Ennio Ferreira Porto, 2º Auxiliar Técnico do CPF-URGS (Memorando 16). Ennio Porto (Fig. 10) era técnico em eletricidade e eletrônica, mas ao que tudo indica (Memorando 19), o "eletricista-auxiliar" mencionado acima era Elias Silva, contratado pelo CNPq para trabalhar na remontagem do equipamento. Ennio Porto retomou suas funções no CPF em novembro de 1959 (Memorando 26). Portanto, Gerard Hepp, Engelberto Werckmeister e Ennio Ferreira Porto eram os unicos funcionários da URGS a disposição do CNPq para a revisar e colocar em funcionamento o sincrocíclotron.


Eis as primeiras dificuldades enfrentadas e problemas detectados no manuseio do equipamento:

1. Testes com as bombas de vácuo e fechamento do cíclotron foram interrompidos porque o vácuo obtido não podia ser medido com os instrumentos existentes junto ao equipamento.

2. O retificador de 18 kW não se mostrou em condições de uso com o oscilador de R.F.

3. O fator de qualidade do sistema ressonante, fator Q, não ultrapassou 300, implicando na necessidade de reformulação desse sistema.

4. "Foi feito um 'coil-advancer' para bem localizar a bobina no ciclotron. Infelizmente o flux-metro, emprestado do CBPF estava com 'drift' proibitivo e os trabalhos foram descontinuados. Não obstante algumas tentativas, não conseguimos consertar o medidor." [42, relatório julho-dezembro de 1958]. Por causa disso, as medidas foram feitas com bobina rotativa.

5. As medidas com bobina rotativa confirmaram resultados apresentados no Final Report da Universidade de Chicago, que diferem daqueles apresentados no Progress Report, e que eram melhores.

6. "Em consequência destas medições foi concluído que o ferro do cíclotron é de qualidade inferior e que não adianta fazer instalações grandes para fornecer muita corrente. Foi instalada uma máquina de 75 kW numa sala adjacente à casa de bombas e construído um pequeno grupo excitador com dois enrolamentos para fazer as medições. Depois foi decidido usar esta nova instalação exclusivamente e de não tentar aperfeiçoar a instalação anterior, que satisfez as exigências americanas de 160 kW, mas que estava em condição precária e daria grandes despesas de demanda de energia." [42, relatório julho-dezembro de 1958].

O relatório de 1959 é um rosário de reclamações e arrependimentos de Hepp, por aceitar tarefa tão difícil.

Pois, já cedo se mostrou que não sòmente temos de fazer a instalação do ciclotron completamente de novo (com exceção, talvez, das tubulações de algumas bombas), mas, como parece, precisamos reconsiderar o projeto do próprio aparelho, em tôdas as partes, que precisam de um estudo mais elaborado. Não se trata de um aparelho pronto, liberado por uma firma de renome, mas sim de uma espécie de protótipo, que uma vez constatados, tinha que ser abandonado e substituído por um modêlo definitivo, com plena utilização da experiência, ganha com o protótipo [42, relatório janeiro-dezembro de 1959].

No fim de março, Hepp descobriu um curto-circuito na bobina superior do eletroímã. Ele já tinha percebido sinais na parte externa, indicando superaquecimento. De fato, fotografias apresentadas no Progress Report (março de 1953) e no Final Report (fevereiro de 1954), ambos da Universidade de Chicago, sugerem que no período decorrente entre o primeiro e o segundo documento as bobinas foram superaquecidas (Figura 11). Hepp ficou impressionado quando desmontou o eletroímã e verificou o péssimo estado das bobinas, dos polos e das armaduras. A ferrugem se espalhava por toda a parte (Figura 12). Foi uma trabalheira consertar aquilo tudo. Os isolamentos de todas as panquecas tiveram que ser refeitos. Os polos, que pesavam 500 quilos, tiveram que passar por um tratamento anticorrosivo.



Além do eletroímã, o sistema de tubulações de vácuo também estava em péssimas condições. Um engenheiro da Universidade de Chicago, idealizador desse sistema, escreveu para Hepp: Infelizmente a montagem é precária pois utilizamos tubulações de ferro galvanizado fixas umas às outras por meio de rosca (embebida em glyptal) e não tubulação de aço ou latão com flanges (e "o" ring) como deveríamos ter feito. Esta foi entretanto uma das limitações materiais que nos foi imposta". [42, relatório janeiro-dezembro de 1959]. Hepp enfrentou dificuldades para resolver esse problema. Em primeiro lugar, não foi possível evitar o uso de roscas em todas as partes, pois as entradas da bomba mecânica eram de rosca. Quanto ao material utilizado na construção, tiveram que se contentar com o ferro velho, pois foram "informados da impossibilidade de comprar no Rio matéria prima em pequena quantidade, o que mais tarde se provou não ser verdade". [42, relatório janeiro-dezembro de 1959].

Depois que refizeram todo o sistema de tubulação de vácuo, descobriram que o pré-vácuo da bomba mecânica não atingia o valor esperado. Atribuíram isso à qualidade do óleo, que poderia ter sido contaminado durante as experiências anteriores ou durante o período de inatividade. Para piorar a situação, existiam latas, garrafas e tambores de diferentes óleos, sem indicação de finalidade. Solicitaram análises no laboratório da Shell, mas este não tinha equipamentos para medir a pressão de vapor. Então, eles consertaram uma pequena bomba mecânica que estava estragada e a usaram para testar os diferentes óleos. Encontraram um tambor cujo óleo propiciou a obtenção de vácuo com a qualidade esperada. Imediatamente interditaram o uso de um tambor semelhante que se encontrava na oficina mecânica para uso em lubrificação! Com esse óleo, o sistema de vácuo funcionou normalmente.

Para testar o sistema de tubulação eles tinham que usar um detector de vazamento de vácuo, mas o pré-vácuo da bomba do detector apresentou o mesmo problema. No entanto, eles não quiseram substituir o óleo, porque neste caso as exigências de qualidade são muito estritas. Como se tratava de um aparelho caríssimo optaram por esperar pela chegada do óleo especial prescrito pelo fabricante.

Um outro "leak detector", mais simples, que o CNPq tinha comprado antigamente, junto com o primeiro, como também outro material de vácuo, inclusive o medidor de ionização do cíclotron não foi mais encontrado aqui. No início do nosso trabalho tinha ainda esperanças que o CNPq poderia conseguir a devolução dêste material. Ràpidamente porém aprendi que as minhas sugestões nêste sentido não foram recebidas com grande entusiasmo. Provàvelmente o CNPq não considerava vantagem reabrir uma discussão, há muito tempo encerrada, que, na melhor das hipóteses, acabaria prejudicando outro trabalho científico de igual importância que a instalação do cíclotron. [42, relatório janeiro-dezembro de 1959].

Com muita engenhosidade e paciência Hepp e seus auxiliares superaram a falta de um detector de vazamento profissional e conseguiram fazer com o que o sistema começasse a operar na região de alto vácuo. Tinham esperança de terminar o ano de 1959 com todo o equipamento funcionando, mas no último dia do ano quando tentaram extrair um feixe, a fonte de íons não funcionou.

Não fosse por todos os problemas surgidos, o resultado teria sido uma decepção. Pelo menos publicamente o trabalho não atendeu à expectativa. "O professor Cardoso7 7 João Christovão Cardoso, Presidente do CNPq de 1956 a 1961. tinha em outubro de 1958 prometido em diversas entrevistas, que o aparelho iria funcionar no primeiro semestre de 1959" [Ref. 42, relatório janeiro-dezembro de 1959]. E claro que ninguém tinha ideia do estado em que se encontrava o equipamento. Também estava ficando claro que o CNPq demonstrava pouco interesse e não cumpria suas obrigações contratuais. O interesse mais claramente demonstrado pela diretoria do CNPq era pela solenidade de inauguração, para a qual se pretendia convidar o presidente da República, o governador do Rio de Janeiro e a imprensa.

O primeiro feixe de prótons foi obtido na primeira semana de 1960. A indicação de sua existência foi dada pelo calor observado no termopar-alvo. A energia do feixe foi estimada em 5 MeV e a corrente em 1 µA [Ref. 42, memorando 31, de 1/2/1960]. Esses resultados são similares áqueles relatados no Final Report da Universidade de Chicago, incluindo aí o fato de que a energia do feixe era inferior áquela esperada para o correspondente raio do círculo. Descobriram que isso tinha a ver com a diferença de potencial entre os "dês". Ao resolver o problema, Hepp questionou:

Existe nos outros sincrociclotrons o mesmo efeito que aqui assinalamos? Acho que existe e que em certos casos valeria a pena considerar se não é desejável tomar medidas semelhantes ás que foram tomadas por nós, para obter uma energia mais homogênea das partículas aceleradas [Ref. 42, relatório janeiro-dezembro de 1960].

Com a extração dos primeiros feixes, descobriram que a fonte de íons tinha vida util de me desenvolver uma fonte de íons diferente. Outros problemas foram surgindo com o uso do equipamento. O alvo-termopar, usado para avaliar a energia das partículas, não aguentou as altas temperaturas. Igualmente problemático foi o isolador dos "dês", que não suportou as altas tensões do sistema de radiofrequência. Consultada para o fornecimento de novos isoladores, a Corning Glass Works não respondeu. Decidiram emergencialmente, para que o equipamento fosse inaugurado, construir "dês" mais leves, para aliviar a carga sobre os isoladores. Também tiveram de construir um novo oscilador de R.F., uma vez que o original tinha diversos defeitos.

No dia 15 de dezembro, o Presidente do CNPq foi comunicado que o equipamento poderia ser inaugurado.

No dia 22 o prof. [João Christovão] Cardoso [Presidente do CNPq] nos visitou e tudo indicou que estava satisfeito com a operação e o aspecto geral do aparelho. Prometeu convidar o Presidente da República para inaugurar as instalações no dia 10 de janeiro aproximadamente, escolhendo esta data para possibilitar uma coincidência com uma convocação normal do Conselho Deliberativo do CNPq [Ref. 42, relatório janeiro-dezembro de 1960].

7. O equipamento por ocasião da inauguração

Depois da visita do prof. Cardoso, referida acima, definiu-se o dia 10 de janeiro de 1961 para a inauguração. No entanto, o CNPq só voltou a se manifestar no dia 25, para comunicar que a inauguração seria no dia 27. Embora avisados, gestores da URGS não conseguiram participar do evento. Telegrama designando Hepp como representante da Universidade chegou ao destino minutos depois da cerimônia [Ref. 42, relatório janeiro-dezembro de 1961]. Durante as semanas que antecederam a inauguração, retoques foram providenciados para deixar o equipamento mais apresentável e uma exposição de fotografias e gráficos explicativos foi preparada. As fotografias exibidas na Fig. 13 mostram o equipamento e as instalações durante a inauguração.


No entendimento de Hepp, o ato de inauguração foi absolutamente decepcionante:

(...) ouvimos que o Presidente da República não iria estar presente. Isto significou que também o interesse da imprensa seria fraco(...) O público na inauguração foi pela maior parte constituído pela direção e altos funcionário do CNPq. Esteve presente também o almirante Alvaro Alberto, que estava como presidente do CNPq no tempo da iniciativa para construir os cíclotrons. O Sr. Nelson Lins de Barros representou o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. O Governador do Estado do Rio de Janeiro mandou um representante.

No dia 26 de janeiro ouvimos que no dia 28 o Presidente Juscelino Kubitschek iria receber o título de cidadão honorário de Niterói, e que foram feitas tentativas para conseguir do CNPq o adiamento da inauguração por um dia, infelizmente sem resultado.

O aviso em cima da hora, endereçado aos Institutos, que estavam por parte em férias e não aos endereços particulares dos diretores e pesquisadores de cujo interesse depende por grande parte o futuro aproveitamento do aparelho, impossibilitou a maioria deles de estar presentes.

Falaram unicamente o prof. Cardoso e o Almirante Álvaro Alberto.

A reação da imprensa foi fraca. Li nos jornais que o cíclotron tinha tido um erro de fabricação, agora por nós consertado e em outros que na viagem dos EEUU para cá se perderam algumas peças, que agora foram fabricadas no país.

As fotografias 1-4 [Fig. 14] foram feitas pelo serviço fotográfico do CNPq na ocasião da inauguração [Ref. 42, relatório janeirodezembro de 1961].


Depois da inauguração Hepp viajou para a Holanda, pois fazia anos que não visitava seu país. Deixou um extenso plano de trabalho que foi conduzido por Engelberto, seu assistente na Divisão dos Serviços do Acelerador (Sersin)8 8 O Sersin, Serviço do Sincrocíclotron, foi criado pelo CNPq logo depois do desmantelamento da equipe inicial, sob a responsabilidade do CBPF. . Tratava-se dos aperfeiçoamentos técnicos para deixar o equipamento em condições operacionais compatíveis com atividades de pesquisa. A situação política no Brasil naquele ano de 1961 retardou a volta de Hepp, que reassumiu a direção dos trabalhos apenas no início de setembro.

Os eventos ocorridos durante o ano de 1962 sinalizavam claramente que o CNPq não estava interessado na continuidade do projeto. Jamais foram atendidas as insistentes solicitações de Hepp para que nomeassem seu substituto, uma vez que ele deveria retornar à Holanda, para o seu antigo posto na Philips. Consistentemente com essa falta de providência, jamais contrataram a equipe técnica prevista na cláusula II do convênio. Uma série de rumores e boatos naquele ano indicavam que o projeto seria abandonado. As horas extras foram reduzidas, pessoas ligadas à Escola de Engenharia de Niterói desejavam "encampar o morro do cíclotron, não para continuar o nosso trabalho, mas para usar as instalações para outra finalidade (...) a 'operaç˜ào urubu' estava andando as mil maravilhas, e que só faltava o Presidente assinar um Convênio, que já estava tudo pronto, e que poderíamos fazer as malas e entregar o cíclotron aos seus algozes." [Ref. 42, relatório janeiro-dezembro de 1962]. Em julho, Engelberto, o único assistente de Hepp, abandona o projeto.9 9 Depois de se afastar do projeto, Engelberto trabalhou na Companhia de Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul e na Petrobrás. Em setembro, sem qualquer auxiliar qualificado, Hepp ainda fez algumas irradiações de antimônio, a pedido do IF-URGS. Naquela ocasião, o cíclotron produzia um feixe de aproximadamente 15 µA, o dobro do valor da instalação anterior.

8. Os memorandos de Hepp para o Presidente do CNPq

Os relatórios mencionados acima foram encaminhados ao Diretor do Instituto de Física da URGS. Além disso, por intermédio de 99 memorandos dirigidos ao Presidente ou Vice-Presidente do CNPq, Hepp solicitou autorizações para efetivação de alterações na máquina e detalhadamente prestou contas do andamento dos trabalhos.

Os dois primeiros memorandos de 1958 não foram datados, pelo menos no Dossiê não constam suas datas. O primeiro memorando era uma proposta para a transformação do sincrocíclotron em cíclotron. Pelo conteúdo do memorando, supõe-se que tenha sido encaminhado depois dos primeiros testes, pois já menciona a encomenda de aço para fazer novos polos do ímã, a necessidade de desenvolvimento de uma nova fonte de íons, entre outras providências mencionadas no relatório de dezembro de 1958. No entanto, o memorando 3 é de 30 de junho de 1958, antes dos mencionados testes. Os principais assuntos referem-se ás providências necessárias para a ida de Engelberto Werckmesiter para Niterói, mas Hepp adianta providências a serem tomadas em relação à instalação de bombas de água, bem como menciona defeitos observados em alguns equipamentos. Portanto, tudo indica que antes do início dos testes realizados com o auxílio de Engelberto, Hepp já tinha um bom conhecimento do estado em que se encontrava o aparelho. Neste memorando, Hepp pede providências "para obter de volta os 'leak-detectors' do S.C. [sincrocíclotron] (um com o CBPF e outro em São Paulo, com o prof. Sala)."

No memorando 5, de 17/7/1958, Hepp informa: "Foi retirado um 'flow-meter' do circuito de água para refrigerar a bomba grande de vácuo. Foi encontrado um outro medidor de mesmo tamanho, também com vidro quebrado. Parece que este medidor não pode suportar a pressão de ca. 5 atm. na saída da bomba." Informa também que será inevitável desmontar parcialmente o cíclotron, para substituir os anéis de borracha entre os polos e a câmara de vácuo. Na mesma data, Hepp informa, no memorando 6, que diversas máquinas da oficina do sincrocíclotron foram emprestadas ao CBPF. Solicita providências para a devolução dessas máquinas.

É provável que já em outubro de 1958 Hepp tenha sido pressionado pelo CNPq para estimar uma data de inauguração do equipamento. No memorando 12, de 4/11/1958, ele informa:

O prazo mínimo absoluto [para a inauguração] se compõe de três partes:

1. Revisão total dos diversos setores (alto vácuo, sistema de R.F., gerador ou retificador da corrente do ímã, forma dos polos, fonte de íons), em regime provisório e experimental até o primeiro funcionamento da máquina.

2. Aperfeiçoamento dos componentes essenciais conforme as necessidades encontradas durante o funcionamento do aparelho até que os resultados sejam considerados satisfatórios.

3. Adição de componentes menos essenciais. Execução definitiva das diversas partes do aparelho. Preparação da instalação para apresentação pública.

O prazo mínimo destas três partes é na minha opinião:

1. 6 meses.

2. 3 meses.

3. 3 meses.

Portanto, Hepp tinha a expectativa de que a máquina pudesse ser inaugurada no final de 1959, mas, como vimos acima, a inauguração só ocorreu em janeiro de 1961.

O memorando 31, de 1º de fevereiro de 1960, já mencionado acima, tem sua relevância associada ao fato de que se trata da primeira obtenção de um feixe de prótons, com valores de corrente e energia similares áqueles obtidos nos testes finais da Universidade de Chicago.

O memorando 39, de 28/3/1960, exibe claramente o descompasso entre o objetivo do CNPq e o trabalho de recuperação do cíclotron realizado pela equipe dirigida por Gerard Hepp. O CNPq informara que pretendia convidar o Presidente da República para inaugurar o equipamento em alguma data no mês de abril. Hepp lembra o memorando 12, no qual estabelecia três etapas a serem vencidas antes da inauguração, e que naquele momento eles estavam iniciando a segunda etapa. Como era de se esperar, ainda não tinham tido qualquer preocupação com a aparência do equipamento, nem com as medidas de segurança em vista da presença de pessoas não pertencentes à equipe técnica. Chama a atenção para o fato de que estavam sem pessoal com boa qualificação profissional para a oficina mecânica, sem equipamentos solicitados e não adquiridos pelo CNPq, e que o cíclotron poderia parar de funcionar a qualquer momento, pela falta de peças de reposição, tais como termopares, isoladores de pirex, entre outras. Conclui o memorando dizendo:

Achamos que visitantes oficiais querem ver uma coisa mais impressionante, que uma pequena deflexão do ponteiro de um milivoltímetro. Teríamos que preparar algum material alvo, p. ex. uma moeda, que tinha que entrar e sair facilmente do cíclotron e mostrar a grande radioatividade, dando éspeciais principais visitantes, oculos aos para proteger seus olhos contra as radiações. Mas tudo isto tem que ser preparado. E por isto temos que esperar os medidores de radiação, que foram encomendados.

Sobre o memorando 45, de 24/8/1960, caberia atualmente uma investigação detalhada.10 10 Na 15ªreunião do Conselho Técnico Científico do CPF-URGS (5/11/1955), o prof. Luiz Pilla, membro da Comissão de Energia Atômica do CNPq, menciona um relatório de Mário Amoroso Anastácio, sobre o cíclotron, bem como as razões do seu afastamento do projeto. O relato de Hepp sugere que este relatório encontra-se arquivado no CNPq. Refere-se a relatórios sobre medições feitas em Chicago. Eis o texto:

Me referindo ao memorando nº33 de 3 de fevereiro de 1960 e de diversas solicitações verbais desde o início de nosso trabalho, tenho que comunicar que ainda não consegui fotocópias dos relatórios do Sr. Mário Amoroso Anastácio, enviados de Chicago ao CNPq.

A oferta apreciada do Major Dirceu de Lacerda Coutinho para me mostrar pessoalmente estes relatórios na sede do CNPq não resolve o problema, a não ser que faça lá uma cópia à mão dos dados numéricos e gráficos contidos nestas cartas. Infelizmente não tenho tempo para fazer isto.

Solicito a V.S. examinar, se, qualquer que seja a razão das objeções de fornecer fotocópias, não poderia ser feita uma exceção neste caso.

Seguem-se vários memorandos relatando dificuldades para uma inauguração imediata, até que em 15 de dezembro, Hepp convida o Presidente do CNPq para visitar e examinar as instalações (memorando 51). O ultimo memorando de 1960, o de numero 52, de 28 de dezembro, foi tambem o ultimo dirigido ao prof. João Christovão Cardoso na qualidade de Presidente do CNPq. Hepp solicitava a transferência temporária de um desenhista da Marinha para preparar letreiros para os equipamentos, bem como cartazes e quadros explicativos para a solenidade de inauguração.

Em 26/3/1961, Hepp encaminha nove memorandos ao Almirante Octacílio Cunha, recém-empossado no cargo de Presidente do CNPq. Justifica o modo de comunicação iniciado com o prof. Cardoso, por meio de pequenas notas, tratando de assuntos específicos. No primeiro memorando Hepp lamenta que terá de viajar para a Holanda sem ter tido a oportunidade de apresentar ao Almirante Octacílio os trabalhos feitos até então, bem como discutir o que ainda deveria ser feito com o equipamento. No memorando 4, Hepp informa que cientistas do CBPF fizeram algumas irradiações no sincrocíclotron. No memorando 8, Hepp menciona as providências necessárias para o início das atividades nas dependências do laboratório do sincro-cíclotron, tais como pesquisas propriamente ditas, treinamento de cientistas e de alunos dos últimos anos de cursos universitários pertinentes. Menciona que o prof. Danon [Jacques] fará uma lista de aparelhos e instalações necessárias para as atividades supra. O memorando 10, de 4/10/1961, apresenta uma detalhada discussão sobre prevenção de incêndio, incluindo todas as instalações necessárias.

Em 11/1/1962, Hepp envia 7 memorandos. No segundo, ele expressa grande satisfação em anunciar apreciável melhora no funcionamento do cíclotron. Explica detalhadamente como aquilo foi conseguido. No memorando 4, Hepp mostra-se preocupado com as tentativas de professores da Escola Fluminense de Engenharia de ocuparem as instalações do sincrocíclotron para a realização de atividades alheias ao laboratório.

Em 2/4/1962, Hepp solicita que o Presidente do CNPq nomeie seu substituto na direção do SERSIN (Serviço do Sincrocíclotron), uma vez que se aproxima a data de seu retorno para a Holanda. Diz que gostaria de ter "bastante prazo para colaborar com o novo diretor a fim de colocá-lo a par de nossos planos, os pontos fracos da instalação, o trabalho de rotina (...) "(memorando 15).

Em 15/6/1962, Hepp menciona modificações que deverão ser feitas no equipamento para possibilitar os trabalhos do prof. George Bemski e do prof. Carlos Chagas Filho (memorando 30).

No memorando 33, o último contido no dossiê (5/2/1963), com assunto "sucessor", Hepp escreve:

Estando nas vésperas da minha partida para a Holanda e não querendo que fique parcial ou inteiramente perdido o nosso trabalho por falta de sucessor cientificamente idôneo, queria solicitar que V. Excia. estudasse a conveniência e possibilidade de nomear como Diretor do SERSIN, o Prof. Guenther Kegel,11 11 Conforme Simon Schartzman ¡ http://www.schwartzman.org.br/simon/int/int2.htm¿, Kegel foi contratado por Bernhard Gross para trabalhar em sua equipe no Instituto Nacional de Tecnologia. d a Universidade Católica,12 12 Provavelmente a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. que pelos seus amplos conhecimentos da Eletrônica e da Física Nuclear, pertence ao pequeno grupo das pessoas a ser consideradas em primeiro lugar.

9. Aproveitamento do equipamento

O último texto contido no dossiê, com data de 14/8/1962, é, tristemente, uma preciosidade para a história científica brasileira. Intitulado "Aproveitamento do equipamento do sincro-ciclotron", e elaborado por sugestão de Leite Lopes, em reunião do CDCNPq,13 13 Hepp refere-se ao ofício 1194, do vice-presidente do CNPq, e à 621ªsessão do Conselho Deliberativo do CNPq, na qual Leite Lopes chama a atenção para a conveniência de lhe solicitar um relatório esclarecedor das possibilidades de aproveitamento do equipamento, bem como das instituições ou pessoas que pudessem operá-lo. o texto é, juntamente com o memorando 17, que será descrito abaixo, verdadeiramente um epílogo da trágica história de um equipamento, concebido para ser ícone, mas que virou peça de museu sem um resultado científico que seja. Mesmo assim, ocupou quatro anos de árduo trabalho de uma pequena, dedicada e competente equipe do Centro de Pesquisas Físicas, depois Instituto de Física, da Universidade do Rio Grande do Sul.

No momento da entrega do equipamento recuperado pela equipe de Hepp, ele era capaz de acelerar apenas prótons a uma energia de 6 MeV, com feixe de no máximo 15 µA. Hepp deixa claro que para ser usado em projetos de pesquisa, "as pessoas que vão se dedicar ao cíclotron têm que desenvolver o aparelho, de modo que se pode satisfazer as exigências de todos os futuros utilizadores. A pessoa que vai dirigir êste trabalho já precisa ter bastante prática." Menciona as infrutíferas tentativas de George Bemsky e Carlos Chagas para a utilização do equipamento no estado em que se encontrava. Descreve o dimensionamento de uma equipe mínima para operar e manter o aparelho, as condições de trabalho necessárias e a instrumentação auxiliar, naquela época inexistente.

O SERSIN práticamente não tem instrumentário. Verdadeira acrobacia tem que ser feita as`vezes para executar uma simples tarefa (...). Um visitante, conhecedor do ramo, me disse uma vez: se eu fôsse o senhor fecharia as portas agora mesmo (...). Agora que voltou para Pôrto Alegre todo o material emprestado pelo Instituto de Física da Universidade do Rio Grande do Sul, estamos completamente desamparados de recursos instrumentários.

No que se refere às instituições que possam operar o sincrocíclotron, ele considera a possibilidade de se criar um instituto em Niterói, em convênio com o CNPq, bem como a transferência do equipamento para uma instituição que o queira. Lamenta que Porto Alegre não se candidate, pois estaria em ótimas condições para recebê-lo.

O único Instituto que se mostrou interessado em receber o cíclotron é o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Considero o C.B.P.F. um dos primeiros Institutos a ser contemplado para receber o cíclotron. Já tem um núcleo para eletrônica, que vai ser necessário para manter e consertar os numerosos aparelhos que o cíclotron vai usar. Porém não sei se o Centro realmente quer fazer do desenvolvimento do cíclotron um ponto de seu programa e não s`omente achar que é suficiente indicar um técnico 'para tomar conta'."

É interessante chamar a atenção para o fato de que parte do relato acima fora adiantado no memorando 17, presumivelmente enviado ao presidente do CNPq entre 24 e 26 de abril de 1962. No texto contido no dossiê (Fig. 15) está indicado que se trata de um documento confidencial, mas não há data de emissão. Todavia, o memorando 16 é do dia 24, e o 18 é do dia 26.


Hepp estava preocupado com uma matéria veiculada em jornal de Niterói, atribuindo ao presidente do CNPq a declaração de que o Conselho estaria apenas esperando que o governador do Rio indicasse uma pessoa para substituí-lo. Ora, se assim fosse provavelmente a pessoa indicada não seria alguém habilitado para o cargo. Após tecer considerações pertinentes sobre as possibilidades de aproveitamento do equipamento, Hepp se refere à Comissão de físicos, da qual fez parte, designada pelo CNPq em 1958 para dar recomendações sobre o destino do cíclotron. Todas as universidades e centros de pesquisa foram consultados, especialmente os do Estado do Rio de Janeiro.

Como nenhum Instituto no Estado do Rio se mostrou interessado e houve interêsse do lado do então 'Centro de Pesquisas Físicas da Universidade do Rio Grande do Sul', e da Escola Técnica da Aeronáutica de São José dos Campos, decidiu a comissão recomendar a cessão do material a um dêstes dois Institutos, que foram considerados capazes de aproveitar realmente esta doação.

Porém, por razões políticas, ou por não querer perder o terreno em Niterói, o CNPq não aceitou a sugestão. Isto agora se mostrou um grande êrro. Que Beleza de Instalação não seria criada em Pôrto Alegre ou em São José dos Campos (...).

Mais adiante sugere:

Na hipótese A [doação do equipamento a um centro de pesquisa fora de Niterói] convém lembrar que o C.B.P.F. está interessado em receber o aparêlho e instalá-lo num dos seus edifícios (...).

Também pode o CBPF calcular [sic] com a valiosa cooperação do Professor Roberto A. Salmeron, que depois de muitos anos de pesquisas na Europa, ùltimamente no C.E.R.N. em Genebra onde planeja pesquisas para os aceleradores e projetou câmaras de bolhas, voltará ao Brasil no fim dêste ano.

Provavelmente pelo fato de o equipamento não se prestar ao uso efetivo no estado em que se encontrava, como insistentemente salientava Hepp, o CBPF não se interessou em recebê-lo. Em 1963, uma comissão composta por Gerhard Jacob, Oscar Sala, Alfredo Marques, Elly Silva e Guenther Kegel consultou onze institutos de pesquisa sobre o interesse em receber o sincrocíclotron, sendo a oferta rejeitada por todos. Finalmente, "o equipamento foi transferido para o Museu de Astronomia e Ciências Afins, em abril de 1998" [Ref. 13, p. 228].

10. Comentários finais

É impossível saber o que teria sido da pesquisa em física na UFRGS se o acelerador do CNPq fosse cedido, ou se os recursos prometidos pelo CNPq tivessem sido transferidos para a construção de um acelerador no CPF ou no IF. Neste momento, é irrelevante especular sobre isso. O fato relevante nessa história é que o Centro de Pesquisas Físicas da Universidade do Rio Grande do Sul formou uma escola preparada para o desenvolvimento de pesquisa em física experimental e em tecnologia. A infraestrutura resultante dessa atividade foi de inestimável valor para o desenvolvimento da física experimental no Instituto de Física a partir de 1960. No período coberto pelo presente relato (1958-1962), coincidente com a extinção do CPF e a criação do Instituto de Física, a URGS demonstrou, em circunstância absolutamente singular, que estava preparada para cumprir um dos objetivos a que tinha se proposto no início dos anos 1950.

Os fatos relatados aqui descortinam um cenário inédito na historiografia brasileira e abrem à discussão questões, para as quais ainda não temos registros documentais. Por exemplo, as fontes disponíveis não esclarecem as razões pelas quais o Conselho Deliberativo do CNPq decidiu não doar o sincrocíclotron para os centros de pesquisa que o desejavam, Centro Técnico da Aeronáutica e o Centro de Pesquisas Físicas da URGS. Na 20ªreunião do Conselho Técnico Científico do CPF, em 3/8/56, Hepp informava que Motta Rezende desejava que o sincrocíclotron ficasse na Escola de Engenharia de Niterói. Por outro lado, os militares gostariam de usar o equipamento, enquanto José Goldemberg e Hervásio de Carvalho se opunham a vinda do equipa-`mento para o sul. Não consta na ata mais do que isso. Consultado recentemente pelo autor, o prof. Goldemberg declarou não se lembrar desse fato.

O Comunicado 1316, no qual o CNPq informa que resolveu não doar o "Sincrocíclotron de sua propriedade (...) em virtude de poder o mesmo ser aproveitado em programas de iniciativa do próprio Conselho Nacional de Pesquisas" é contraditório. Se o CNPq já tinha delegado a uma instituição privada, o CBPF, o direito de montar e explorar o equipamento, porque não o faria a uma instituição pública? Além disso, o CNPq era, e continua sendo uma agência de fomento. Os programas de sua iniciativa teriam, e continuam tendo que ser implementados pelos áos de pesquisa competentes. org˜Pelo que foi aqui relatado, Gerard Hepp e sua equipe14 14 Além de Hepp, a equipe contou com a participação de um engenheiro (Engelberto Werckmeister) e um técnico em eletrônica (Ennio Porto Ferreira) do CPF-URGS, cujos salários foram compartilhados pela URGS e pelo CNPq. Depois do trabalho em Niterói, Hepp voltou a Porto Alegre mas em seguida partiu para a Holanda. Engelberto foi trabalhar na CEEE-RS, e Ennio Porto permaneceu no IF até a sua aposentadoria. mostraram que o equipamento estaria em boas mãos se houvesse sido transferido para a URGS.

Agradecimentos

Ao professor Darcy Dillenburg, um dos fundadores do CPF, e aos professores Gerhard Jacob e Paulo Pedro Petry, membros do CPF logo depois da sua fundação, agradeço pelos valiosos depoimentos. Aos professores Darcy Dillenburg, Gerhard Jacob, Luiz Fernando Ziebell e Marcus Guenter Zwanziger, sou grato pelos comentários pertinentes e proveitosas sugestões.

Recebido em 8/12/2012; Aceito em 9/1/2013; Publicado em 18/3/2013

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  • [42] UFRGS, Trabalhos de Revisão do Sincrocíclotron de 21" em Niterói: 1958-1962 (Instituto de Física, Porto Alegre, 1962).
  • 1
    E-mail:
  • 2
    Embora federalizada em 1950, a Universidade do Rio Grande do Sul só adotou a denominação Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1968.
  • 3
    Em sua conferência Bakeriana, em 1920, Rutherford descreve como identificou o próton e previu a existência de uma partícula neutra. Na verdade, ele identificou mesmo foi a existência, no núcleo do átomo de nitrogênio, de algo como o núcleo de hidrogênio. Anos depois é que a denominação próton foi usada. Naquela conferência ele imaginou a existência de elétrons no interior do núcleo, e que a combinação desses com núcleos de hidrogênio resultaria em algo que ele chamou de "dubleto neutro".
  • 4
    O sincrocíclotron foi instalado em um galpão, no Morro de São João Baptista, onde hoje é o campus Valoguinho da Universidade Federal Fluminense [12].
  • 5
    Na 4ª reunião do Conselho Deliberativo do CPF-URGS, em 3/11/53, Antônio Cabral menciona convite feito a Gerard Hepp e Helmut Schwarz para trabalharem no CPF. O primeiro disse que em poucos meses poderia se transferir do CBPF para o CPF, mas o segundo disse que não poderia aceitar o convite. Todavia, na 6ª reunião do Conselho Técnico Científico do CPF-URGS, em 9/10/54, Antônio Cabral informa que recebera carta de Schwarz, oferecendo-se para trabalhar no CPF. Não sabemos as razões pelas quais ele resolveu ir para o CTA.
  • 6
    Outros memorandos de Hepp serão discutidos mais adiantes.
  • 7
    João Christovão Cardoso, Presidente do CNPq de 1956 a 1961.
  • 8
    O Sersin, Serviço do Sincrocíclotron, foi criado pelo CNPq logo depois do desmantelamento da equipe inicial, sob a responsabilidade do CBPF.
  • 9
    Depois de se afastar do projeto, Engelberto trabalhou na Companhia de Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul e na Petrobrás.
  • 10
    Na 15ªreunião do Conselho Técnico Científico do CPF-URGS (5/11/1955), o prof. Luiz Pilla, membro da Comissão de Energia Atômica do CNPq, menciona um relatório de Mário Amoroso Anastácio, sobre o cíclotron, bem como as razões do seu afastamento do projeto. O relato de Hepp sugere que este relatório encontra-se arquivado no CNPq.
  • 11
    Conforme Simon Schartzman ¡
    http://www.schwartzman.org.br/simon/int/int2.htm¿, Kegel foi contratado por Bernhard Gross para trabalhar em sua equipe no Instituto Nacional de Tecnologia.
  • 12
    Provavelmente a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
  • 13
    Hepp refere-se ao ofício 1194, do vice-presidente do CNPq, e à 621ªsessão do Conselho Deliberativo do CNPq, na qual Leite Lopes chama a atenção para a conveniência de lhe solicitar um relatório esclarecedor das possibilidades de aproveitamento do equipamento, bem como das instituições ou pessoas que pudessem operá-lo.
  • 14
    Além de Hepp, a equipe contou com a participação de um engenheiro (Engelberto Werckmeister) e um técnico em eletrônica (Ennio Porto Ferreira) do CPF-URGS, cujos salários foram compartilhados pela URGS e pelo CNPq. Depois do trabalho em Niterói, Hepp voltou a Porto Alegre mas em seguida partiu para a Holanda. Engelberto foi trabalhar na CEEE-RS, e Ennio Porto permaneceu no IF até a sua aposentadoria.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      08 Dez 2012
    • Aceito
      09 Jan 2013
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