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A física no contexto da biologia molecular

Physics in the context of molecular biology

Resumos

Nas últimas décadas tem havido uma crescente abordagem física no estudo de moléculas e sistemas macromoleculares de interesse biológico. Essa abordagem inclui tanto aspectos experimentais quanto teóricos. De fato, há um vasto campo a ser explorado pela física nessa área. Discutimos neste texto as características gerais e formação básica do profissional interessado em ter como objeto o estudo de sistemas biomoleculares, tanto em nível de graduação como na pós-graduação. Nessa linha de pensamento, assuntos como a formação básica e os fundamentos biológicos e físicos são discutidos.

física biológica; biofísica molecular; formação profissional


In the last decades the interest in the analysis of biological macromolecules by physical approach has increase. This analysis includes theoretical and experimental aspects of these systems. In fact, there is a large field to be explored in this direction. In this text, we discuss the basic formation to the professional who wants to study biomolecular systems and we present the general important aspects on biological and physical to work in this field.

biological physics; molecular biophysical; training program


ARTIGOS GERAIS

A física no contexto da biologia molecular

Physics in the context of molecular biology

Elso Drigo Filho1 1 E-mail: elso@ibilce.unesp.br.

Departamento de Física, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", São José do Rio Preto, SP, Brasil

RESUMO

Nas últimas décadas tem havido uma crescente abordagem física no estudo de moléculas e sistemas macromoleculares de interesse biológico. Essa abordagem inclui tanto aspectos experimentais quanto teóricos. De fato, há um vasto campo a ser explorado pela física nessa área. Discutimos neste texto as características gerais e formação básica do profissional interessado em ter como objeto o estudo de sistemas biomoleculares, tanto em nível de graduação como na pós-graduação. Nessa linha de pensamento, assuntos como a formação básica e os fundamentos biológicos e físicos são discutidos.

Palavras-chave: física biológica, biofísica molecular, formação profissional.

ABSTRACT

In the last decades the interest in the analysis of biological macromolecules by physical approach has increase. This analysis includes theoretical and experimental aspects of these systems. In fact, there is a large field to be explored in this direction. In this text, we discuss the basic formation to the professional who wants to study biomolecular systems and we present the general important aspects on biological and physical to work in this field.

Keywords: biological physics, molecular biophysical, training program.

1. Introdução

Um bom ponto de partida para a discussão sobre o olhar do físico sobre a biologia talvez seja o livro de Scrhödinger sobre a questão de "O que é vida?" [1]. Um dos fundadores da mecânica quântica discute com muita lucidez a questão genética e possíveis abordagens, sobretudo em termos da mecânica estatística, em uma época em que sequer a estrutura de dupla hélice do DNA era conhecida. Em termos nacionais, Mário Schenberg, na Ref. [2], toca várias vezes na possibilidade de descrição de sistemas biológicos com base nas leis físicas conhecidas, sobretudo no capítulo dedicado à Teoria do Calor, Termodinâmica e Mecânica Estatística. Assim, o avanço na seara biológica pelos físicos não é recente, embora tenha se intensificado tremendamente último terço do século vinte e começo do século vinte e um.

O desdobramento de revistas científicas tradicionais visando incluir tal temática e o número de periódicos novos criados para divulgar os avanços na compreensão dos sistemas biomoleculares fornece uma medida do dinamismo e do volume de conhecimento gerados nessa área. A American Physical Society (APS), por exemplo, mantém uma divisão voltada para física biológica que é responsável por uma publicação bimensal destinada a divulgar esta área [3].

Em grande parte devido ao crescimento acelerado da área é o destaque junto a comunidade científica que esse crescimento promove, muitos jovens e alguns pesquisadores mais experientes tem se dedicado a temas ligados aos sistemas vivos. As motivações se mostram variadas, entretanto o grande terreno inexplorado tanto experimental como teórico relacionado ás moléculas biológicas certamente é um fator importante. Diversas técnicas experimentais têm sido desenvolvidas ou adaptadas para explorar o mundo biológico, o que resulta em um imenso volume de dados experimentais novos e desafiantes. Esses resultados muitas vezes revelam comportamentos inesperados e novas fenomenologias, o que aponta para a necessidade de explicações inéditas. Um exemplo marcante é a própria transcrição genética: quais são os processos que ativam um gene específico em detrimento de incontáveis outros? Outro exemplo: quais são os mecanismos que dirigem o enovelamento protéico, deixando-o robusto o suficiente para levar sempre a uma mesma estrutura? Os sistemas biológicos estão repletos de perguntas fundamentais como estas e que aguardam respostas satisfatórias. Uma proveitosa parceria entre físicos e biólogos tem sido evidenciada em várias ocasiões, onde a visão do físico tem sido apresentada como de grande importância (como exemplo, vide o editorial da Nature indicado na Ref. [4]).

Recentemente, a questão do ensino de biofísica, especialmente no que se refere ás disciplinas ministradas na graduação e seu conteúdo, foi levantada sob o prisma dos cursos voltados à área da saúde e da vida [5]. Embora tratando de tema semelhante, o objetivo pretendido no presente texto é bastante distinto, qual seja a busca por desenhar a formação básica, tanto em termos de graduação como de pós-graduação, para o profissional que procura atuar junto á biologia com um enfoque físico. Nesse sentido, duas etapas da formação profissional são destacadas, a saber, a graduação e a pós-graduação strito senso. Exemplos desses tipos de formação podem ser encontrados tanto no Brasil como no exterior, mas ainda são poucos em relação ás formações tradicionais. No Brasil, pode-se destacar o programa de pós-graduação em biofísica molecular [6], iniciado em 1993, e do curso de Bacharelado em Física Biológica [7] que representam ações concretas de inserção da visão dada pela ciência física no estudo de sistemas biológicos.

A estrutura do presente texto compreende em primeiro lugar uma discussão geral sobre o curso de graduação em física biológica (seção 2). Em seguida, na seção 3, é apresentada uma visão crítica da pós-graduação sob a optica da física aplicada a sistemas biomoleculares. Finalmente, a última seção é dedicada a um aprofundamento da questão dos profissionais formados seguindo a visão apresentada e sua inserção no mercado de trabalho.

2. Graduação em física biológica

A formação básica do físico voltado para tratar sistemas biomoleculares requer antes de tudo uma sólida formação nos temas tradicionais da física. Assim, é importante o contato com mecânica clássica, termodinâmica, mecânica estatística, eletromagnetismo e mecânica quântica, além das ferramentas matemáticas apropriadas e uma boa vivência do método experimental. Os conceitos ligados a essas areas´fornecem um olhar específico sobre os fenômenos naturais e sua descrição, fazendo parte da formação tradicional de um físico.

Reconhecendo a importância da formação básica é preciso atentar também para a necessidade de um conhecimento específico acerca dos sistemas biológicos. Nesse sentido, conceitos ligados à bioquímica, biologia celular e biologia molecular devem estar presentes na formação do físico biológico. A área exige ainda obrigatoriamente algumas particularidades, tais como noções de biofísica molecular e bioinformática.

Considerando o preparo de bacharéis em ciências básicas, é bastante desejável o envolvimento dos graduandos em estágios de iniciação científica ou atividades similares. Uma maneira de assegurar tal envolvimento dos alunos é a confecção de um trabalho de conclusão de curso (TCC).

A descrição feita acima representa uma concepção, em linhas gerais, dos requisitos essenciais esperados para um curso de física biológica. Ela pode ser facilmente identificada na grade curricular de um curso dessa natureza [7]. Vale destacar que essa concepção não é única, algumas habilitações voltadas a física biológica possuem um caráter mais acentuado no conteúdo biológico. Entretanto, deixaremos de lado essas vertentes para concentrar nossa abordagem sob a ótica dos físicos.

Nesse ponto é prudente fazer uma distinção entre física biológica, física médica e bioengenharia. A física biológica se aproxima da ciência básica estando voltada para a investigação de aspectos fundamentais ligados a sistemas biológicos, sendo que essa investigação é conduzida usando os instrumentos teóricos e experimentais originários da física. Por outro lado, a física médica e a bioengenharia se caracterizam como ciências aplicadas que procuram conduzir o conhecimento adquirido para fins utilitários e/ou gerar produtos.

3. Pós-graduação em biofísica molecular

Em termos da pós-graduação, inicialmente deve-se lembrar que o estudo de sistemas macromoleculares de interesse biológico tem sido muito intenso nos últimos anos. Existem muitas questões em aberto, tanto experimentais como teóricas. Experimentalmente, podemos destacar a investigação do papel da água nos processos protéicos e análise do potencial transmembrana e sua importância nos transportes iônicos celulares. Muitas técnicas novas como microscopia de força atômica e fotoacústica, aliadas a técnicas já tradicionais, como MNR e difração de raio X, tem permitido explorar melhor e mais atentamente o comportamento de biomoléculas. Hoje já é possível encontrar vários textos técnicos sobre o assunto procurando juntar as informações e promover uma visão mais profunda sobre o sistema biológico (vide, por exemplo, a Ref. [8]).

Do ponto de vista teórico, existe uma grande ênfase, dado a complexidade dos sistemas estudados, no uso de simulações computacionais. Métodos estatísticos, como Monte Carlo, e determinísticos, como dinâmica molecular, tem sido largamente empregados como suporte á compreensão dos sistemas biológicos. De uma forma complementar, outras abordagens teóricas procuram identificar os ingredientes básicos dos processos biológicos e estabelecer modelos matemáticos funcionais para explicar a fenomenologia observada. Um bom exemplo dessa última abordagem é a "teoria do funil" [9] para descreve o enovelamento de proteínas ou o uso da equação de Poisson-Boltzmann para descrever a concentração iônica ao longo de membranas carregadas [10].

Uma vez reconhecido a grande quantidade de problemas em aberto, a área se mostra bastante promissora na formação de recursos humanos em nível de pósgraduação. Entretanto, um desafio que se coloca é a homogeneização da formação de mestres e doutores, considerando a interdisciplinaridade inerente a biofísica molecular, atrelada a uma sólida formação básica. O pesquisador nessa área deve ter familiaridade com o objeto de estudo (macromoléculas biológicas e suas propriedades) ao mesmo tempo em que se encontra capacitado a discutir os fenômenos analisados sob o ponto de vista da ciência física. Esse desafio se mostra mais evidente considerando que profissionais de diferentes formações buscam atuar na área; não apenas físicos tem sido atraídos para a biofísica molecular, mas também matemáticos, biólogos, químicos, bacharéis em ciências da computação, entre outros. Assim, delinear o perfil básico do egresso de um programa de pós-graduação com essas características é uma tarefa que exige atenção e cuidado.

A formação do pesquisador em biofísica molecular tem sido explicitamente analisada e implementada pela comunidade científica nacional [6] e internacional [11] em diversos momentos. Particularmente, o periódico Biopolymers dedicou uma seção de sua edição de 2008 (v. 89, n. 4) para programas de educação em biofísica. Nesse fascículo, três artigos [12-14] que discutem a formação dada aos pós-graduandos nessa area em três diferentes instituições (as universidades de Michigan e Northwestern nos EUA e Osaka no Japão) são apresentados.

Em linhas gerais, programas dessa natureza devem contemplar um conhecimento básico do sistema tratado (biologia molecular e bioquímica), fundamentos físicos (mecânica estatística, forças intermoleculares e mecânica quântica) e conhecimentos específicos da área (uma introdução biofísica molecular e as princípais técnicas experimentais usadas). Esses três aspectos devem ser compostos levando em consideração a formação original do aluno na graduação. Um físico, por exemplo, precisa reforçar seu conhecimento dos sistemas biológicos, enquanto um biólogo deve olhar com maior atenção os fundamentos físicos, mas todos devem passar por uma iniciação na área. A formação interdisciplinar, inata na biofísica molecular, é extremamente importante e esforços devem ser canalizados para fortalecer o vínculo entre os diferentes ramos do conhecimento humano para que se possa fazer uma ponte entre os diversos saberes de forma competente e complementar.

4. Conclusão

As últimas décadas têm evidenciado um interesse crescente da comunidade científica e das novas gerações de físicos pelo estudo de sistemas biológicos. Um dos fatores que podem ser identificado com agente motivador desse crescimento é o grande número de questões levantadas sobre os sistemas vivos e a dificuldade em estabelecer princípios gerais que norteiem tais sistemas. Assim, a área se mostra bastante desafiante e propícia à investigação.

De forma complementar, a busca por uma formação mais abrangente, nos vários níveis de ensino, para profissionais envolvidos na investigação científica tem sido motivo de debates junto à comunidade científica, principalmente na área de física. Há uma tendência a acreditar que a especialização deve ocorrer, mas alinhada a uma formação sólida e abrangente, preferencialmente interdisciplinar [15]. Na abordagem física de sistemas biológicos essa característica surge de forma natural, resultando em um profissional versátil e capaz de transitar entre diferentes áreas.

O acompanhamento dos egressos do curso de graduação em física biológica do IBILCE/UNESP mostra que muitos deles foram cursar programas de pós-graduação em diferentes áreas tradicionais da física e em ciências a fins, como bioquímica e farmacologia. Já os egressos do programa de pós-graduação em biofísica molecular dessa mesma unidade universitária têm conseguido colocações no mercado afinadas com sua formação, a grande maioria está trabalhando junto à docência e/ou pesquisa. O que, a nosso ver, reflete, é claro, a boa formação dos ex-alunos, mas também uma carência de profissionais no País para atuar na interface entre a física e a biologia.

É interessante notar um aspecto da área que parece indicar o início ou o reforço de uma tendência de empresas em contratar pesquisadores para desenvolver pesquisas em seus laboratórios, o que pode estar apontando para uma transição no processo de desenvolvimento do País. Caso essa tendência se confirme certamente a área de física biológica deverá ser um agente importante no processo.

Em termos de uso de abordagens físicas no estudo de macromoléculas biológicas, há muito que fazer no Brasil, um País reconhecidamente importante por sua biodiversidade. Assim, fortalecer o estudo de tópicos ligados ao assunto, além de representar um desafio pessoal excitante aos pesquisadores, também constitui importante tema no desenvolvimento estratégico nacional.

Recebido em 11/12/2011

Aceito em 6/2/2012

Publicado em 18/2/2013

  • [1] I. Schrödinger, O Que E Vida? (Ed. UNESP/Cambridge, São Paulo, 1997).
  • [2] M. Schenberg, Pensando a Física" (Landy Editora, São Paulo, 2001), 5ªed.
  • [3] Site contendo os boletins da Division of Biological Physics da American Physical Society: http://www.aps.org/units/dbp/newsletters/, acessado em 15/12/2011.
  • [4] Editorial, Nature 448,969 (2007).
  • [5] G. Corso, Revista Brasileira de Ensino de Física 31,2703 (2009).
  • [6] Site do Programa de Pós-graduação em Biofísica Molecular do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, campus da Universidade Estadual Paulista de São José do Rio Preto, http://www.ibilce.unesp.br/posgraduacao/biofisica/index.php, acessado em 15/12/2011.
  • [7] Site do curso de Bacharelado em Física Biológica do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, campus da Universidade Estadual Paulista de São José do Rio Preto, http://www.ibilce.unesp.br/graduacao/fisbio/index.php, acessado em 15/12/2011.
  • [8] D. Leckband and J. Israelachvili, Quarterly Rev. Biophys. 34,105 (2001).
  • [9] J.-E. Shea and C.L. Brooks III, Ann. Rev. Phys. Chem. 52,499 (2001).
  • 10
    [10] E. Drigo Filho and A. Agostinho Neto, Trivandrum: Research Trends 10,65 (2004).
  • [11] G.D. Glick, Biopolymers 89,243 (2008).
  • [12] H. Kondoh and T. Yanagida, Biopolymers 89,248 (2008).
  • [13] F. Neuhaus, J. Widom, R. MacDonald, T. Jardetzky and I. Radhakrishnan, Biopolymers 89,253 (2008).
  • [14] A. Gafni and N.G. Walter, Biopolymers 89,256 (2008).
  • [15] Editorial, Revista Brasileira de Ensino de Física 27,311 (2005).
  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      11 Dez 2011
    • Aceito
      06 Fev 2012
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