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A rotação estelar e seu efeito sobre os espectros

Star rotation and its effect on spectral lines

Resumos

Esta nota tem por objetivo tratar da determinação da taxa de rotação do Sol e outras estrelas. Após uma breve introdução histórica, é descrito o método da transformada de Fourier (TF) aplicada ao estudos dos perfis espectroscópicos, e discutidos os efeitos da rotação estelar sobre a forma dos perfis de linhas espectrais.

taxa de rotação do Sol; método de transformada de Fourier; linhas espectrais


This note paper deals with the determination of the Sun's rotation rate as well as for other stars. After a short historical introduction, it is described the Fourier Transform method applied to spectroscopic profiles, and also a discussion on the effects of the stellar rotation in the shape of spectral line profiles is presented.

Sun rotation rate; Fourier transform method; spectral lines


NOTAS E DISCUSSÕES

A rotação estelar e seu efeito sobre os espectros

Star rotation and its effect on spectral lines

R.S. Levenhagen1 1 E-mail: savarino@unifra.br ; R. Künzel

Centro Universitário Franciscano, Santa Maria, RS, Brasil

RESUMO

Esta nota tem por objetivo tratar da determinação da taxa de rotação do Sol e outras estrelas. Após uma breve introdução histórica, é descrito o método da transformada de Fourier (TF) aplicada ao estudos dos perfis espectroscópicos, e discutidos os efeitos da rotação estelar sobre a forma dos perfis de linhas espectrais.

Palavras-chave: taxa de rotação do Sol, método de transformada de Fourier, linhas espectrais.

ABSTRACT

This note paper deals with the determination of the Sun's rotation rate as well as for other stars. After a short historical introduction, it is described the Fourier Transform method applied to spectroscopic profiles, and also a discussion on the effects of the stellar rotation in the shape of spectral line profiles is presented.

Keywords: Sun rotation rate, Fourier transform method, spectral lines.

1. Introdução

Os primeiros estudos sobre a rotação das estrelas foram realizados através de observações do Sol, ainda no século XVII, com o advento dos primeiros telescópios refratores e a observação da fotosfera solar por Johannes Fabricius, Galileo Galilei, Thomas Harriot e Christopher Scheiner. O primeiro anúncio público da observação do Sol foi timidamente feito por Johannes Fabricius em seu panfleto De maculis in Sole observatis et apparente earum cum Sole conversione datado de 13 de junho de 1611, no qual atribuiu os padrões escuros observados a manchas solares em rotação. Contrariamente, esses padrões foram interpretados por Scheiner como pequenos planetas em órbita do Sol, considerado estático, e chamada hipótese planetária [1].

Em Istoria e Dimostrazioni intorno alle Macchie Solari e loro Accidenti, escrito em 1612 e publicado no ano seguinte, Galileo Galilei tornou públicas suas próprias observações do Sol. Em suas observações, as manchas tornavam-se aparentemente mais largas e aceleravam à medida que se deslocavam desde o bordo até o centro solar. Galileo também observou que as manchas deslocavam-se todas com aproximadamente a mesma aceleração ao longo do disco solar, cruzando-o em um período de cerca de 14 dias em trajetórias paralelas, postulando assim uma hipótese diferente, na qual os padrões escuros observados seriam manchas fixas na superfície do Sol em rotação. Com esse trabalho, Galileo definitivamente refutou a hipótese planetária de Scheiner.

As primeiras discussões sobre a plausibilidade do fenômeno da rotação em outras estrelas tiveram início no ano de 1667, com o trabalho do astrônomo francês Ismaël Boulliaud (1605-1694). Nesse ano, Boulliaud atribuiu a variabilidade das curvas de luz de algumas estrelas, como Mira Ceti, ao efeito da rotação axial, onde a estrela, ao rodar, exibe alternadamente hemisférios com e sem manchas. Essa idéia foi popularizada posteriormente por Fontenelle em Entretiens sur la pluralité des mondes, obra básica de astronomia que teve várias edições entre os anos de 1686 e 1742. Apenas a partir de 1850 a questão da rotação estelar foi reaberta e sofreu avanços significativos, com os trabalhos de Richard Carrington e Gustav Spörer, entre os anos de 1853-1861. De forma independente, ambos mostraram que o envelope externo visível do Sol não gira como um corpo rígido, mas o período de rotação varia com a latitude heliocêntrica.

Segundo o astrônomo francês Hervé Faye (18141902), essa dependência do período (Ω) com a latitude heliocêntrica φ é expressa por

e representa mais satisfatoriamente a dependência da velocidade angular com a latitude heliocêntrica, do que a obtida por Carrington.

O advento do espectroscópio representa o início da era da física estelar moderna. Em 1871, Hermann Vogel mostrou que a taxa de rotação do Sol pode ser determinada a partir do desvio Doppler das linhas espectrais provenientes dos bordos opostos do disco solar, onde um se aproxima e o outro se afasta do observador. Nils Dunér e Jakob Halm realizaram extensivas observações entre os anos de 1887-1906, demonstrando que a taxa de rotação determinada espectroscopicamente e a determinada a partir do estudo de manchas solares eram compatíveis. Em 1877, William de Wiveleslie Abney foi o primeiro a expor a idéia de determinar taxas de rotação estelar a partir das larguras de linhas espectrais [2].

Deve-se a Grigori Shajn e Otto Struve, do Observatório Yerkes (Wisconsin), o desenvolvimento, em 1929, de um método sistemático para determinação de velocidades de rotação, o qual veio a se tornar conhecido como "método gráfico" [3]. Com essa técnica, buscava-se determinar o valor da velocidade de rotação projetada (V sen i, onde i representa o ângulo de inclinação do eixo de rotação) a partir do ajuste do contorno de uma linha espectral observada a contornos teóricos construídos a partir de uma linha de igual largura equivalente à linha observada e convoluída com diferentes perfis de rotação Doppler. Esse método, contudo, não levava em conta diversos outros fatores que competem para o alargamento da linha.

Em 1933, um novo método foi proposto por John A. Carroll [4], o qual baseava-se na determinação da velocidade de rotação a partir da posição do primeiro zero da transformada de Fourier do perfil de linha observado. Esse método foi reconsiderado em 1973 por David F. Gray [5], o qual mostrou que para dados de alta resolução é possível distinguir entre o perfil de alargamento rotacional e outras fontes de alargamento, como por exemplo a macroturbulência, a microturbulência e o alargamento térmico, utilizando-se não somente o primeiro zero da transformada de Fourier, mas também os primeiros lóbulos.

2. Método da transformada de Fourier

2.1. Obscurecimento centro-bordo linear

Vamos considerar um perfil espectral dominado por uma lei de obscurecimento centro-bordo linear [6], dado por

onde µ = cos θ e o perfil de rotação assume a forma

onde e C1 e C2 são constantes que dependem do coeficiente de obscurecimento centro-bordo linear

e este coeficiente, por sua vez, é função da temperatura efetiva Teff , gravidade superficial log g e do comprimento de onda λ . A transformada de Fourier, nessas condições, será dada por

onde α =2π σ . Devemos então buscar as soluções para as quais a transformada acima é nula. Supondo-se = 0, 6 [6], temos

Supondo-se então que o processo físico dominante que produz o alargamento no perfil espectral estudado é o efeito Doppler devido à rotação da estrela, então a velocidade de rotação projetada pode ser deduzida a partir de

onde α corresponde ao primeiro zero da TF do perfil de rotação e ν corresponde ao primeiro zero do perfil observado.

2.2. Obscurecimento centro-bordo quadrático

Considerando-se como ilustração o caso em que a lei de obscurecimento centro-bordo não é linear mas apresenta dependência quadrática, temos [6]

onde I(1) representa a intensidade no centro do disco, I(µ)= I(cos θ ) é a intensidade em um ponto do disco situado a um ângulo θ relativamente ao centro do disco, e ω são respectivamente os coeficientes de obscurecimento centro-bordo linear e quadrático e dependem da temperatura efetiva Teff , da gravidade superficial log ge do comprimento de onda λ . Nesse caso, o perfil de rotação assume a forma

onde os coeficientes C1, C2 e C3 são funções de e Ω. A transformada de Fourier do perfil de rotação G(y) é, no caso de um perfil simétrico, dada por uma transformada cosseno

Lembrando-se da relação de recorrência das funções de Bessel , temos

Dada uma estrela com alto valor de V sen i, então o alargamento térmico e os movimentos turbulentos são cerca de duas ordens de grandeza menores do que o alargamento rotacional. Conhecendo-se os parâmetros de temperatura (Teff ) e gravidade (log g) relativos à fotosfera com precisão através de métodos independentes [7, 8], então pode-se obter os coeficientes de obscurescimento e ω para um dado comprimento de onda λ e assim calcular V sen i (Fig. 1).


2.3. Estimativa através de duas raízes

Nos exemplos anteriores, a determinação de V sen i é realizada utilizando-se apenas a primeira raiz da transformada de Fourier do perfil de rotação. Pelo teorema da convolução, a convolução de diferentes funções como perfis de alargamento térmico, macroturbulência, microturbulência e perfil de alargamento instrumental, equivalem, no domínio de Fourier, à multiplicação direta de suas respectivas transformadas. Assim, conhecendo-se o perfil instrumental empiricamente, e o perfil de rotação a partir de características do perfil de linha, então é possível determinar o perfil de alargamento térmico através de uma divisão apropriada no domínio de Fourier.

Como vimos anteriormente, a transformada de Fourier de um perfil de rotação simétrico G(λ - λ 0) é dada pela transformada de Fourier de cossenos

onde σ é o número de onda de Fourier (s.km-1). Assim, a TF se anula para números de onda específicos σ 1, σ 2, etc. O n-ésimo zero da TF é dado pela expressão

onde qn é um número adimensional que depende da lei de obscurecimento centro-bordo adotada. Considerando-se o caso de uma lei de obscurecimento linear (), então, segundo Dravins et al. [9]

Dados os dois primeiros zeros da TF do perfil observado, então a razão depende apenas de

onde a relação acima fornece a partir dos dois primeiros zeros da TF do perfil observado. Usando-se esse valor de na relação envolvendo q1 (16), obteremos o valor de V sen i. Nesse processo, o terceiro zero da TF não é utilizado, mas serve como parâmetro de checagem.

3. Rotação diferencial

A unica evidência de rotação diferencial provém de observações diretas da superfície do Sol, ou através de interferometria Speckle diferencial em algumas estrelas. O caso do Sol é único, pois sua superfície pode ser resolvida espacialmente, e para a qual considera-se hoje uma lei de rotação da forma

onde representa a latitude heliocêntrica. Atualmente, estima-se para o Sol , o que significa que o equador roda 20% mais rapidamente que os pólos. Segundo Reiners e Schmitt [10], para estrelas com V sen i 10 km.s-1, a razão entre as posições do primeiro (q1) e do segundo (q2) zero da transformada de Fourier de um perfil de rotação representa um indicador direto do grau de rotação diferencial de uma estrela, uma vez que essa razão é independente da presença de outras fontes de alargamento

q1 onde os parâmetros a e b são dados para diferentes modelos estelares com diferentes coeficientes de obscurecimento gravitacional (β ), segundo a relação de Von Zeipel [11]

onde g é a gravidade superficial da estrela.

4. Outras fontes de alargamento

Segundo Gray [6], o método da transformada de Fourier, quando aplicado a espectros de alta resolução, permite estimar também perfis de alargamento térmico, de macro e de microturbulência. Considerando-se que um perfil espectroscópico sofre, a priori, alargamento devido a esses três fatores (ignorando-se o grau de importância de cada um deles), devemos em princípio considerá-los simultaneamente.

A microturbulência é, usualmente, introduzida como um produto de convolução entre uma distribuição de velocidades de microturbulência Gaussiana e um perfil térmico (associado a um perfil atômico ou natural). Em um trabalho de 1973 [5], David F. Gray mostrou em detalhes o papel da microturbulência sobre os perfis de linha, partindo inicialmente da hipótese de inexistência da microturbulência. Nessa situação, o perfil observado é formado pelo produto de convolução entre um perfil térmico, um perfil de macroturbulência e um perfil de rotação. Em seguida, estimando-se a temperatura efetiva Teff da estrela a partir de seu tipo espectral (ou outro processo mais preciso), calcula-se o perfil térmico e sua transformada de Fourier. Finalmente, a divisão da TF do perfil observado (previamente dividida pela TF do alargamento instrumental) pela TF do perfil térmico fornecerá resíduos cujos valores excedem a unidade. Fisicamente, tal situação não é aceitável pois implica na existência de "áreas negativas" na distribuição de velocidades. Tal incongruência desaparece, contudo, ao se introduzir perfis de microturbulência.

5. Considerações finais

Nesta nota apresentamos um breve histórico sobre o fenômeno de rotação estelar, cujas origens remontam ainda ao século XVII, à época da invenção da luneta por Galileo. Apresentamos o método de determinação de velocidades de rotação projetadas (V sen i) através do uso da transformada de Fourier de perfis de linha. Esse método, aperfeiçoado por David F. Gray, representa um dos melhores e mais acurados métodos de determinação de velocidades de rotação estelar. Além de fornecer estimativas de V sen i, esse método possibilita ainda obter-se estimativas de velocidades de micro e macroturbulência, coeficientes de obscurecimento centro-bordo e perfis de alargamento térmico, bem como estimar os efeitos de rotação diferencial.

Agradecimentos

Os autores agradecem à UNIFRA o suporte dado para a realização deste trabalho. RSL agradece à FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) pelo suporte dado através do processo n. 04/14256-8.

Recebido em 2/7/2008; Aceito em 9/9/2008; Publicado em 27/2/2009

  • [1] Walter M. Mitchell, Popular Astronomy 24, 488 (1916).
  • [2] W. De W. Abney, Monthly Notices of the Royal Astronomical Society (MNRAS) 37, 278 (1877).
  • [3] G. Shajn and O. Struve, MNRAS 89, 222 (1929).
  • [4] J.A. Carroll, MNRAS 93, 478 (1933).
  • [5] D.F. Gray, Astronomy & Astrophysics 184, 461 (1973).
  • [6] D.F. Gray, The Observation and Analysis of Stellar Photospheres (Cambridge University Press, Cambridge, 1992).
  • [7] R.S. Levenhagen and N.V. Leister, The Astrophysical Journal 127, 1176 (2004).
  • [8] R.S. Levenhagen and N.V. Leister, MNRAS 371, 252 (2006).
  • [9] D. Dravins, L. Lindegren, and U. Torkelsson, Astronomy & Astrophysics 237, 137 (1990).
  • [10] A. Reiners, and J.H.M.M. Schmitt, A&A, 398, 647 (2003).
  • [11] H. von Zeipel, MNRAS 84, 684 (1924).
  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Recebido
      02 Jul 2008
    • Aceito
      09 Set 2008
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