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Dor visceral em pós-operatório complicado de cirurgia urológica: relato de caso

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: Os pacientes que sofrem de dor visceral podem apresentá-la em diferentes áreas do corpo. Este tipo de dor é percebido de forma difusa, diferente da dor por estimulação dolorosa cutânea, no que concerne a localização e intervalo de aparecimento. O objetivo deste estudo foi demonstrar um caso de dor visceral em paciente submetido a procedimento urológico seguido de complicação no pós-operatório RELATO DO CASO: Paciente do gênero masculino, 60 anos, em uso de varfarina, deu entrada no pronto-socorro apresentando quadro de dor abdominal com predominância em flanco esquerdo, 48 horas após procedimento urológico transuretral. Na investigação complementar foi identificada a presença de hematoma retroperitonial em loja renal esquerda. Inicialmente o paciente recebeu tratamento conservador, e foi iniciada analgesia com morfina por via endovenosa através de bomba de analgesia controlada pelo paciente. Com o aumento do hematoma, optou-se por intervenção cirúrgica para realização de nefrectomia esquerda. CONCLUSÃO: A convergência neurofisiológica dos aferentes somáticos e viscerais que adentram o sistema nervoso central parece explicar a dor visceral referida, onde estímulos nóxicos sobre as vísceras provocam dor referida em áreas somáticas. Este caso ilustra o manuseio de um caso de dor visceral aguda onde a utilização de analgesia venosa controlada por paciente com morfina associada à dipirona foi empregada como estratégia para o controle de dor, para o qual se mostrou eficiente.

Analgesia controlada pelo paciente; Dor aguda; Dor visceral; Dor pós-operatória; Morfina


BACKGROUND AND OBJECTIVES: Patients may have visceral pain in different parts of the body. This pain is perceived as diffuse, differently from painful skin stimulation pain, with regard to location and interval of presentation. This study aimed at showing a case of visceral pain in a patient submitted to urological procedure followed by postoperative complication. CASE REPORT: Male patient, 60 years old, using warfarin, entered the first-aid unit with abdominal pain predominantly in the left flank, 48 hours after transuretral urological procedure. Investigation has identified the presence of retroperitoneal hematoma in left renal lobe. Initially patient was conservatively treated with intravenous morphine by patient-controlled analgesia pump. Since hematoma has increased, we decided for left nephrectomy surgical procedure. CONCLUSION: The neurophysiologic convergence of somatic and visceral afferents entering the central nervous system seems to explain referred visceral pain, where noxious viscera stimuli induce referred pain in somatic areas. This report illustrates a case of acute visceral pain management where venous patient-controlled analgesia with morphine associated to dipirone was used to control pain, for which it was effective.

Acute pain; Morphine; Patient-controlled analgesia; Postoperative pain; Visceral pain


RELATO DE CASO

Dor visceral em pós-operatório complicado de cirurgia urológica. Relato de caso* * Recebido do Serviço de Dor da Universidade Federal do Maranhão, São Luis, MA, Brasil.

José Osvaldo Barbosa NetoI; Thiago Alves RodriguesII; João Batista Santos GarciaI

IUniversidade Federal do Maranhão, Liga Acadêmica de Dor do Maranhão, São Luis, MA, Brasil

IIFaculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: José Osvaldo Barbosa Neto Rua Parnaíba, n.02/1303 Ponta do Farol 65075-839 São Luís, MA, Brasil E-mail: osvbarbosa@yahoo.com.br

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: Os pacientes que sofrem de dor visceral podem apresentá-la em diferentes áreas do corpo. Este tipo de dor é percebido de forma difusa, diferente da dor por estimulação dolorosa cutânea, no que concerne a localização e intervalo de aparecimento. O objetivo deste estudo foi demonstrar um caso de dor visceral em paciente submetido a procedimento urológico seguido de complicação no pós-operatório

RELATO DO CASO: Paciente do gênero masculino, 60 anos, em uso de varfarina, deu entrada no pronto-socorro apresentando quadro de dor abdominal com predominância em flanco esquerdo, 48 horas após procedimento urológico transuretral. Na investigação complementar foi identificada a presença de hematoma retroperitonial em loja renal esquerda. Inicialmente o paciente recebeu tratamento conservador, e foi iniciada analgesia com morfina por via endovenosa através de bomba de analgesia controlada pelo paciente. Com o aumento do hematoma, optou-se por intervenção cirúrgica para realização de nefrectomia esquerda.

CONCLUSÃO: A convergência neurofisiológica dos aferentes somáticos e viscerais que adentram o sistema nervoso central parece explicar a dor visceral referida, onde estímulos nóxicos sobre as vísceras provocam dor referida em áreas somáticas. Este caso ilustra o manuseio de um caso de dor visceral aguda onde a utilização de analgesia venosa controlada por paciente com morfina associada à dipirona foi empregada como estratégia para o controle de dor, para o qual se mostrou eficiente.

Descritores: Analgesia controlada pelo paciente, Dor aguda, Dor visceral, Dor pós-operatória, Morfina.

INTRODUÇÃO

A maioria das pessoas já sentiu dor de origem visceral, desde o leve desconforto provocado por indigestão até a agonia provocada por uma cólica renal1. A região abdominal é uma localização muito frequente das síndromes dolorosas agudas ou crônicas originárias de afecções de vísceras. Entretanto, os pacientes que sofrem desse tipo de dor podem apresentá-la em diferentes áreas do corpo, como por exemplo: bexiga, referida na região perineal; coração, referida no braço esquerdo e pescoço; ureter esquerdo, no flanco esquerdo e região lombar.

A característica de apresentação difusa e de dificuldade na localização da dor visceral ocorre devido à pequena densidade de inervação sensorial nas vísceras e à grande divergência nas suas conexões com o sistema nervoso central (SNC). Por essa razão a dor visceral é percebida de forma difusa, diferente da dor por estimulação dolorosa cutânea, no que concerne a localização e intervalo de aparecimento2. O objetivo deste estudo foi demonstrar um caso de dor visceral em paciente submetido a procedimento urológico seguido de complicação no pós-operatório.

RELATO DO CASO

Paciente do gênero masculino, 60 anos, deu entrada no pronto-socorro apresentando quadro de dor abdominal com predominância em flanco esquerdo, em peso, intensa, contínua e progressivamente crescente, sem fatores de piora e com melhora parcial e transitória após uso de analgésico. O paciente referia que a dor teve início aproximadamente 48 horas após realização de procedimento urológico transuretral para retirada de cateter duplo J de rim esquerdo.

O paciente relatava como antecedentes mórbidos pessoais ser portador hipertensão arterial sistêmica, ter feito troca de valva aórtica (prótese metálica) há seis anos; e ter apresentado quadro de litíase ureteral havia dois meses, tendo sido tratado com ureterolitotripsia transureteroscópica, e sem relato de intercorrências durante o procedimento. Estava em uso regular de enalapril (20mg/dia) e varfarina em doses alternadas (1mg) às segundas, quartas e sextas e 1,5 mg às terças, quintas, sábados e domingos.

No exame físico o paciente apresentava pressão arterial de 170x100 mmHg, frequência cardíaca de 100 bpm, temperatura de 36,5º C, frequência respiratória de 20 irpm e escala analógica visual (EAV) de 8 na avaliação de dor. Apresentava-se ainda consciente e orientado, mucosas hipocoradas (+/4+), sinal de Giordano positivo à esquerda e abdômen difusamente doloroso, principalmente em flanco esquerdo. Os demais aparelhos não apresentavam alterações.

Para propedêutica diagnóstica optou-se pela realização de exames laboratoriais, radiografia de tórax, tomografia computadorizada (TC) de abdômen e ecocardiograma (ECO). O ECO demonstrou boa função cardíaca e da valva metálica; a radiografia de tórax se apresentava dentro da normalidade; a TC de abdômen demonstrava a presença de hematoma retroperitonial na região peri-renal à esquerda; os exames laboratoriais demonstravam disfunção renal discreta (creatinina=1,5m e ureia 98mg/dL), anemia (hemoglobina de 10,2mg/dL e hematócrito de 31%), e coagulopatia com a Relação Normatizada Internacional (RNI) de 1,7.

O paciente foi transferido para unidade de terapia intensiva (UTI) e foi proposto inicialmente tratamento conservador com suspensão da varfarina por 48 horas, seguida de ponte com heparina em dose plena por via subcutânea, e seguimento radiológico e laboratorial do sangramento.

Diante dos dados encontrados, foi feito o diagnóstico de dor visceral provocada por hematoma retroperitonial na loja renal esquerda como complicação de procedimento urológico. Essa complicação ocorreu por distúrbio de coagulação induzido pelo cumarínico utilizado para profilaxia de trombose da valva aórtica metálica.

Para o quadro de dor foi utilizada morfina por via endovenosa através de bomba de analgesia controlada pelo paciente (ACP), sendo iniciado fluxo de 0,5mg por hora e bolus de 2mg durantes as primeiras 12 horas. Após esse período o fluxo foi suspenso e mantido somente bolus por demanda. Foi associada ainda dipirona (2g) por via endovenosa a cada 6 horas, e ondansetron (4 mg) a cada 8 horas. O paciente foi mantido com cateter de oxigênio com fluxo de 2L/ min durante o período em que esteve com ACP.

Durante as primeiras 24 horas houve bom controle da dor visceral, porém detectou-se aumento do hematoma na TC de controle, associado à diminuição do hematócrito para 24%, sendo então indicada a nefrectomia total por lombotomia.

A cirurgia transcorreu sem intercorrências e o paciente foi mantido com ACP endovenosa para analgesia durante as primeiras 24 horas de pós-operatório. O paciente evoluiu com melhora e recebeu alta da UTI no segundo dia de pós-operatório, e alta domiciliar no 16º dia de internação, depois de reintrodução da terapia com cumarínico.

DISCUSSÃO

Neste caso, o paciente apresentou um quadro de dor em flanco esquerdo, difusa, intensa e contínua. Essa localização, juntamente com a correlação temporal com o procedimento cirúrgico, direciona a investigação diagnostica para a loja renal. No entanto, características que divergem de cólica renal, tais como a ausência de paroxismos de dor e a característica em peso, provocam confusão na origem anatômica da dor. Essa confusão decorre do fato de as fibras aferentes que inervam as diferentes vísceras se projetarem para o SNC através dos nervos do sistema nervoso autonômico simpático e parassimpático3,4. Alguns desses aferentes espinais se integram aos nervos hipogástricos, colônico lombar e esplâncnico de tal forma que terminam na região toraco-lombar, como parte integrante da inervação simpática, atravessando os gânglios pré e paravertebrais, em direção à medula5.

Essas vias servem tanto para função sensorial quanto para ativar a funcionalidade da víscera. Quando, por exemplo, as paredes do trato gastrointestinal ou urinário são distendidas, provocando a estimulação dos aferentes sensoriais, tanto as funções desses órgãos (absorção, secreção e motilidade) são ativadas quanto uma resposta sensorial consciente é evocada, podendo ser interpretada como dor ou plenitude6.

A transdução dos estímulos lesivos recebidos pelas vísceras é feita por receptores com alto limiar de excitação presentes em órgãos tais como coração, esôfago, cólon, ureter e útero. Os estímulos não lesivos que ocorrem em condições normais, no entanto, têm sua transdução realizada por receptores de baixo limiar. Os receptores mais importantes na dor visceral são: Receptor de Potencial Transitório Vanilóide do Tipo 1 (TRPV1), canais ASIC3, canais de sódio resistentes a tetrodoxina (NAV 1.8 e NAV 1.9) e canais de cálcio7.

Já a condução dos estímulos é feita por fibras esplâncnicas formadas quase exclusivamente por finas fibras mielinizadas do tipo Afonte symbol e por fibras não mielinizadas, as fibras C. Essas fibras provenientes da periferia se unem formando os aferentes cujo destino comum é o SNC. A convergência neurofisiológica dos aferentes somáticos e viscerais que adentram o SNC parece explicar a dor visceral referida, onde estímulos nóxicos sobre as vísceras provocam dor referida em áreas somáticas1. A convergência víscero-somática provavelmente decorre da escassez de fibras aferentes viscerais com terminação na medula espinhal1.

No presente caso, o paciente apresentava um hematoma retroperitonial na loja renal esquerda sem lesão do ureter, determinando assim uma dor em peso referida na região do flanco esquerdo, que é a área somática correspondente à inervação renal. Foi proposto inicialmente tratamento conservador no intuito de preservar o rim, por esse motivo, o tratamento de dor específico deveria ser empregado. Para tal, foi considerada a utilização de analgesia através de cateter implantado no espaço peridural, porém, devido à utilização de varfarina a implantação do cateter estava contraindicada. Por fim, foi indicada a analgesia endovenosa com morfina através da ACP associada a analgésico simples como estratégia.

Tratamentos para dor visceral foram raramente objeto de ensaios clínicos, por esse motivo, é difícil determinar um fármaco específico para esse fim. Ainda, considerando as diferenças que existem entre dor somática e dor visceral (neurotransmissão, neurotransmissores, canais e receptores), diferença na resposta aos analgésicos também pode ser esperada. Levando em consideração que a dor visceral possui múltiplos mecanismos, a terapia multimodal tem maior potencial analgésico do que a utilização de um único fármaco8. Dentre os analgésicos, alguns parecem ter melhor ação para esse fim: anti-inflamatórios não esteroides (incluindo paracetamol e dipirona), opioides, gabapentina, pregabalina, octreotide (indicado em casos de obstrução intestinal maligna), dexmedetomidina, antidepressivos tricíclicos, inibidores duais de recaptação de serotonina e noradrenalina, inibidores de canais de sódio e inibidores de receptor n-metil-d-aspartado cálcio. Combinações desses fármacos apresentam sempre superioridade em relação a quando são utilizadas isoladamente7. O principal fator limitante ao tratamento farmacológico está relacionado aos efeitos adversos causados pelos fármacos empregados.

No presente caso optou-se pela utilização de opioide potente, devido à grande intensidade da dor, associado a dipirona, obtendo bom controle de dor durante o período de observação que precedeu a decisão de intervenção cirúrgica e durante o período pós-operatório. Este tipo de estudo apresenta limitação por tratar da resposta de apenas um paciente, mas considerou-se importante apresentar essa estratégia como uma opção viável para o tratamento de dor visceral aguda. No entanto, ensaios clínicos direcionados a esse tema ainda precisam ser desenvolvidos.

A avaliação e o tratamento da dor visceral têm importância fundamental na redução de morbidade relacionada a diversas situações, tais como dor oncológica visceral, dor aguda visceral, síndromes funcionais. Este caso ilustrou o manuseio de um caso de dor visceral aguda, em que a ACP foi empregada como estratégia para o controle da dor, e para a qual se mostrou eficiente.

Apresentado em 13 de março de 2013.

Aceito para publicação em 12 de agosto de 2013.

Conflito de interesses: não há.

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  • Endereço para correspondência:
    José Osvaldo Barbosa Neto
    Rua Parnaíba, n.02/1303
    Ponta do Farol 65075-839 São Luís, MA, Brasil
    E-mail:
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    Recebido do Serviço de Dor da Universidade Federal do Maranhão, São Luis, MA, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      13 Mar 2013
    • Aceito
      12 Ago 2013
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