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Do espírito do capitalismo ao espírito empreendedor: a consolidação das ideias acerca da prática empreendedora numa abordagem histórico-materialista

Del espíritu del capitalismo al espíritu emprendedor: la consolidación de ideas sobre la práctica emprendedora desde un enfoque histórico-materialista

Resumo

Objetiva-se perscrutar o deslocamento do espírito capitalista à ideologia do empreendedorismo mediante uma abordagem histórico-materialista, em busca de apreender a realidade com base em suas contradições ontogenéticas e em seu desenvolvimento social. Trata-se de ensaio teórico cuja análise parte da lacuna nas “abordagens críticas no empreendedorismo”, contribuindo para o aprofundamento da crítica à prática empreendedora, situando-a diante do estágio de desenvolvimento das forças produtivas em seu percurso histórico, e não apenas circunscrita ao realismo capitalista que delimita a ação humana ao agir de modo individualista, concorrencial ou liberal. Entre as conclusões, salientamos que o espírito do capitalismo corresponde ao movimento de expansão do capital, enquanto o empreendedorismo é a versão ideológica desse espírito hodiernamente, necessitando de um sistema de ideias que o coloque em movimento, dada sua efetividade como meio para subordinação e pauperização.

Palavras-chave:
Espírito do capitalismo; Materialismo-histórico; Crítica ao empreendedorismo

Resumen

El objetivo de este estudio es investigar el desplazamiento del espíritu capitalista a la ideología del emprendimiento, a través de un enfoque histórico-materialista, en un intento de aprehender la realidad desde sus contradicciones ontogenéticas y en su desarrollo social. Se trata de un ensayo teórico cuyo análisis parte de la brecha en los “enfoques críticos del emprendimiento” y que contribuye a la profundización de la crítica a la práctica emprendedora, ubicándola ante la etapa de desarrollo de las fuerzas productivas en su trayectoria histórica, y no solo circunscrita al realismo capitalista que delimita la acción humana al actuar de modo individualista, competitivo o incluso liberal. Entre las conclusiones, destacamos que el espíritu del capitalismo corresponde al movimiento de expansión del capital, mientras que el emprendimiento es actualmente la versión ideológica de ese espíritu, que necesita un sistema de ideas que lo ponga en movimiento, dada su efectividad como medio de subordinación y empobrecimiento.

Palabras clave:
Espíritu del capitalismo; Materialismo histórico; Crítica del emprendimiento

Abstract

This essay investigates the displacement of the capitalist spirit to the ideology of entrepreneurship through a historical-materialist approach, aiming to apprehend reality from its ontogenetic contradictions and in its social development. This is a theoretical essay beginning from the gap in “critical approaches to entrepreneurship”, contributing to deepen criticism of entrepreneurial practice, situating it before the stage of development of the productive forces in its historical path, and not only limited to capitalist realism that delimits human action by individualist, competitive, or even liberal acting. We emphasize that the spirit of capitalism corresponds to the movement of capital expansion while entrepreneurship is the ideological version of that spirit today, needing a system of ideas that puts it in motion, given its effectiveness as a means for subordination and impoverishment.

Keywords:
Spirit of capitalism; Historical materialism; Criticism of entrepreneurship

INTRODUÇÃO

O termo “espírito empreendedor” costuma ser explicado como a capacidade para criar negócios e perceber oportunidades (Filardi, Barros, & Fischmann, 2014Filardi, F., Barros, F. D., & Fischmann, A. (2018). Business strategies for the bottom of the pyramid: multiple case studies of large companies in the pacified communities of Rio de Janeiro. Rausp Management Journal, 53(1), 63-73.; Serafim & Feuerschutte, 2015Serafim, M., & Feuerschütte, S. G. (2015). Movido pelo transcendente: a religiosidade como estímulo ao “espírito empreendedor”. Cadernos EBAPE.BR, 13(1), 165-182.). No entanto, se existe um espírito empreendedor, para que(m) ele serve? Boltanki e Chiapello (2009) e o brasileiro López-Ruiz (2007López-Ruiz, O. (2007). Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo: capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro, RJ: Azougue.) sustentam que seria uma nova manifestação da subjetividade capitalista. Ou seria o mesmo espírito com uma nova aparência? Convencionou-se que se trata de uma ética “criadora”, que se assemelharia ao espírito do capitalismo de Weber (2004Weber, M. (2004). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

O fato é que as discussões acerca do empreendedorismo têm sido tão crescentes (Oliveira, Cabanne, & Teixeira, 2020Oliveira, X. L. C., Cabanne, C. S. M., & Teixeira, R. M. (2020). Metodologias qualitativas de pesquisa em empreendedorismo: revisão de estudos nacionais publicados de 2010 a 20151. Revista da Micro e Pequena Empresa, 14(1), 3-36.) quanto conceitualmente difusas (Bittar, Bastos, & Moreira, 2014Bittar, F. S. O., Bastos, L. T., & Moreira, V. L. (2014). Reflexões sobre o empreendedorismo: uma análise crítica na perspectiva da economia das organizações. Revista de Administração da UFSM, 7(1), 65-80.; Corrêa, Vale, Melo, & Cruz, 2020Corrêa, V. S., Vale, G. M. V., Melo, P. L. R., & Cruz, M. A. (2020). O “problema da imersão” nos estudos do empreendedorismo: uma proposição teórica. Revista de Administração Contemporânea, 24(3), 232-244.). Assim, Costa, Barros, e Martins (2008Costa, A. M., Barros, D. F., & Martins, P. E. M. (2008). Linguagem, relações de poder e o mundo do trabalho: a construção discursiva do conceito de empreendedorismo. Revista de Administração Pública, 42(5), 995-1018.) têm apontado a falta de um tratamento crítico por parte dos pesquisadores brasileiros acerca do empreendedorismo, pois desconsiderariam as relações de poder e de dominação escondidos nos discursos sobre o tema. Para eles, seria um comportamento “ingênuo” importar e incorporar os conceitos estrangeiros. Entretanto, não se trata de ingenuidade nem de simples importação de conceitos. Na verdade, a prática empreendedora cumpre um papel na reprodução do sistema vigente, como demonstraremos. Mais recentemente, Sandoval (2020Sandoval, M. (2020). Entrepreneurial activism? Platform cooperativism between subversion and co-optation. Critical Sociology, 46(6), 801-817.) elucida que o empreendedorismo canaliza a atividade humana, dada a sua lógica capitalista, reduzindo-a ao individualismo, à competição e à racionalidade instrumental, não sendo possível, portanto, mobilizá-lo sob uma perspectiva progressista.

Estudos que de algum modo tencionaram o empreendedorismo foram elaborados por Bittar et al. (2014Bittar, F. S. O., Bastos, L. T., & Moreira, V. L. (2014). Reflexões sobre o empreendedorismo: uma análise crítica na perspectiva da economia das organizações. Revista de Administração da UFSM, 7(1), 65-80.), Boava e Macedo (2017), Ésther (2019Ésther, A. B. (2019). A política de identidade do empreendedorismo: uma análise na perspectiva da sociologia figuracional e da psicologia social crítica. Cadernos EBAPE.BR, 17(esp.), 857-870.) e Paiva, Almeida, e Guerra (2008Paiva, F. G Jr., Almeida, S; & Guerra, J. R. F. (2008). O empreendedor humanizado como uma alternativa ao empresário bem-sucedido: um novo conceito em empreendedorismo, inspirado no filme Beleza Americana. Revista de Administração Mackenzie, 9(8), 112-134.), além de Costa et al. (2008Costa, A. M., Barros, D. F., & Martins, P. E. M. (2008). Linguagem, relações de poder e o mundo do trabalho: a construção discursiva do conceito de empreendedorismo. Revista de Administração Pública, 42(5), 995-1018.), entre outros, e podem ser classificados, conforme Gimenez (2017), como “abordagens críticas no empreendedorismo”, tendo em vista que são “estudos e análises que abordam o empreendedorismo buscando evidenciar aspectos negativos do fenômeno e suas limitações”. Em síntese, a lacuna dessas pesquisas consiste em situar a crítica nos limites do modo capitalista de produção, pressupondo-as como coisa dada, restando aos críticos meios para neutralizar os aspectos negativos, a despeito do alerta supramencionado que faz Sandoval (2020Sandoval, M. (2020). Entrepreneurial activism? Platform cooperativism between subversion and co-optation. Critical Sociology, 46(6), 801-817.). Para alguns, é o caso de separar o “bom” do “mau” empreendedorismo; para outros, é preciso “humanizar” a competição e incluir os grupos sociais excluídos (Vinhas & Lopes, 2021Vinhas, V. Q., & Lopes, A. L. S. V. (2021). Fique em casa, a Casa Porto entrega: empreendedorismo humanizado na pandemia. Revista de Administração Contemporânea, 25(spe.), 1-15.). Há quem sustente que empreendedorismo é necessário e inevitável, já que supera a dicotomia trabalho-capital (Damião, Santos, & Oliveira, 2015Damião, D. R. R., Santos, D. F. L., & Oliveira, L. J. (2013). A ideologia do empreendedorismo no Brasil sob a perspectiva econômica e jurídica. Ciências Sociais Aplicadas em Revista, 13(25), 191-207.).

Não obstante, numa sociedade marcada pela desigualdade social crescente e erguida sobre a exploração do trabalho, como aceitar passivamente um fenômeno da magnitude do empreendedorismo? Por isso, insistimos com a necessidade da crítica histórico-materialista e acompanhamos a desconfiança aventada por Ésther (2019Ésther, A. B. (2019). A política de identidade do empreendedorismo: uma análise na perspectiva da sociologia figuracional e da psicologia social crítica. Cadernos EBAPE.BR, 17(esp.), 857-870.):

A questão é o significado a que tal ação [o empreendedorismo] tem sido atribuída, e, sobretudo, por quê. A questão pode ser colocada de outro modo: a quem interessa tal significado? Se a uma classe dominante, que pretende e procura manter seu sistema de dominação, a construção ideológica do significado faz sentido enquanto uma política de identidade.

Para nós, no entanto, o problema não se trata de uma política de identidade, a qual poderíamos equiparar analogamente com a de um “espírito empreendedor”, que, sendo um modo de ser dominante, determinaria a subjetividade. A questão é que não é o espírito que cria o indivíduo; são as relações sociais que produzem um “espírito” que limita as condições de possibilidades de formação de subjetividades nos indivíduos (Marx & Engels, 2007Marx, K., & Engels, F. (2007).A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São Paulo, SP: Boitempo.). Assim, o problema está invertido. Se há uma ideologia e um espírito do empreendedorismo, é porque antes há relações materiais que condicionam, sem determinar, tais subjetividades - eis o materialismo-histórico e dialético contribuindo para nossa investigação.

Outra lacuna que os estudos que tencionam a prática empreendedora apresentam consiste numa análise idealista que toma a subjetividade (ou o espírito) como criadora da realidade, carecendo do movimento dialético (objetividade-subjetividade-objetividade), em sua historicidade para avançar sobre as apreensões que já foram realizadas nessas pesquisas. Além dos estudos já mencionados, recorremos ao ensaio de Carmo, Assis, Gomes, e Teixeira (2021Ésther, A. B. (2019). A política de identidade do empreendedorismo: uma análise na perspectiva da sociologia figuracional e da psicologia social crítica. Cadernos EBAPE.BR, 17(esp.), 857-870.), bem como ao artigo de Druck (2021Druck, G. (2021). A tragédia neoliberal, a pandemia e o lugar do trabalho. O Social em Questão, 1(49), 11-34.), para exemplificar tal gap. Ambos têm razão ao apontarem a profunda relação entre neoliberalismo e empreendedorismo e os efeitos sobre a subjetividade da classe e sua relação com o Estado capitalista. Entretanto, falta esclarecer que o que vem sendo chamado de neoliberalismo não é uma forma volitiva de funcionamento da economia política, e sim a exasperação das contradições capitalistas (Streeck, 2019Streeck, W. (2019). Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo, SP: Boitempo.). Assim, o neoliberalismo não é um ponto fora da curva; é o capitalismo de sempre diante do desenvolvimento das forças produtivas de hoje. Em outras palavras, o fim do neoliberalismo não representará necessariamente o fim do empreendedorismo - tampouco do capitalismo -, por isso precisamos inquiri-lo com base em sua efetividade.

Vivemos numa sociedade mediada por trocas mercantis que aparece como uma enorme coleção de mercadorias (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política (Livro 1: o processo de produção do capital). São Paulo, SP: Boitempo .). Numa sociabilidade em que tudo pode ter um preço, a ascensão do poder de compra, isto é, a ética da prosperidade, representada no nosso tempo pelo espírito empreendedor, esconde uma série de contradições inerentes à própria sociabilidade. Assim, este ensaio teórico objetiva perscrutar o deslocamento do espírito capitalista à ideologia do empreendedorismo mediante uma abordagem histórico-materialista.

Justificamos a pertinência deste artigo pelo crescente contingente da força de trabalho nacional - 52 milhões de pessoas, de acordo com o Global Entrepreneurship Monitor (GEM, 2018Global Entrepreneurship Monitor. (2019). Empreendedorismo no Brasil 2018: relatório executivo. Curitiba, PR: IBQP.) - envolvida com o empreendedorismo. Como pesquisadores, temos o desafio de ajudar a construir caminhos para esses e para os mais de 13 milhões de desempregados (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2020Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2020). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro, RJ: Autor.), cujo destino principal tem sido encontrar alguma atividade por conta própria (Antunes, 2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.) e/ou uberizada.1 1 “[...] a uberização do trabalho representa um modo particular de acumulação capitalista, ao produzir uma nova forma de mediação da subsunção do trabalhador, o qual assume a responsabilidade pelos principais meios de produção da atividade produtiva. A subsunção virtual do trabalho ao capital indica que o trabalhador está subordinado na relação de trabalho sob os moldes da uberização, ainda que a aparência imediata seja de autonomia e liberdade sobre a forma produtiva” (Franco & Ferraz, 2019). É crescente o contingente de pessoas trabalhando de forma “uberizada” (Druck, 2021), envoltos pela ideologia empreendedora que vende flexibilidade e ausência de patrão, mas que na verdade se converte em intensas jornadas de trabalho e salário abaixo do mínimo necessário para a reprodução da força de trabalho.

Quanto à contribuição científica, além das lacunas dos estudos críticos acerca do empreendedorismo, como apontado, convém mencionar as teses apoiadas em Schumpeter, de que o empreendedorismo seria o motor do desenvolvimento econômico (Autio & Fu, 2015Autio, E., & Fu, K. (2015). Economic and political institutions and entry into formal and informal entrepreneurship. Asia Pacific Journal of Management, 32(1), 67-94.; Barros & Pereira, 2008Barros, A. A., & Pereira, C. M. M. A. (2008). Empreendedorismo e crescimento econômico: uma análise empírica. Revista de Administração Contemporânea, 12(4), 975-993.; Fontenele, 2010Fontenele, R. E. S. (2010). Empreendedorismo, competitividade e crescimento econômico: evidências empíricas. Revista de Administração Contemporânea, 14(6), 1094-1112.; Griffiths, Gundry, & Kickul, 2013Griffiths, M. D., Gundry, L. K., & Kickul, J. R. (2013). The socio-political, economic, and cultural determinants of social entrepreneurship activity: an empirical examination. Journal of Small Business and Enterprise Development, 20(2), 341-357.; Naudé, 2011Naudé, W. (2011). Entrepreneurship is not a binding constraint on growth and development in the poorest countries. World Development, 39(1), 33-44.; Souza & Lopez, 2011Souza, E. C. L; & Lopez, G. S. Jr. (2011). Empreendedorismo e desenvolvimento: uma relação em aberto. Innovation and Management Review, 8(3), 120-140.; Van Stel, Carree, & Thurik, 2005Stel, A. van, Carree, M., & Thurik, R. (2005). The effect of entrepreneurial activity on national economic growth. Small Business Economics, 24(3), 311-321.) e o agente da inovação (J. L. Contador, J. C. Contador, Oliveira, & Sátyro, 2020Oliveira, X. L. C., Cabanne, C. S. M., & Teixeira, R. M. (2020). Metodologias qualitativas de pesquisa em empreendedorismo: revisão de estudos nacionais publicados de 2010 a 20151. Revista da Micro e Pequena Empresa, 14(1), 3-36.; Drucker, 2002Drucker, P. (2002). Inovação e espírito empreendedor: prática e princípios. São Paulo, SP: Pioneira.; Ferreira, Pinto, & Miranda, 2015Ferreira, M. P. V., Pinto, C. F., & Miranda, R. M. (2015). Três décadas de pesquisa em empreendedorismo: uma revisão dos principais periódicos internacionais de empreendedorismo. REAd-Revista Eletrônica de Administração, 21(2), 406-436.; Pio, 2020Pio, J. G. (2020). Effects of innovation and social capital on economic growth: empirical evidence for the Brazilian case. International Journal of Innovation, 8(1), 40-58.), uma vez que, ao contrário, Ferraz (2021Ferraz, J. M. (2021). Para além da prática empreendedora no capitalismo brasileiro. São Paulo, SP: Actual.) demonstra que esses elementos não correspondem ao empreendedorismo brasileiro. Passadas algumas décadas de promessas de desenvolvimento econômico não satisfeitas, não obstante as destacadas taxas de empreendedorismo no país, o que se vê é o crescente desemprego, o aumento da desigualdade social e a deterioração do meio ambiente, ratificando, portanto, a necessidade de realizar uma crítica radical.

O termo “empreendedorismo” representa o objeto em sua aparência com formulações gnosiológicas. Em seu lugar, oferecemos uma análise materialista, que admite a categoria “prática empreendedora” (Ferraz, 2021Ferraz, J. M. (2021). Para além da prática empreendedora no capitalismo brasileiro. São Paulo, SP: Actual.), como a reprodução ideal do movimento real em suas múltiplas mediações sintetizadas, que possibilitará um avanço rumo à essência que origina sua efetivação objetiva e subjetiva. Neste trabalho, pela estreiteza do espaço, atemo-nos mais ao segundo.

Assim, após essa Introdução, apresentaremos como o espírito empreendedor aparece hodiernamente dialogando com Schumpeter. A seguir, voltaremos no tempo para demarcar a transição do espírito do empreendedor (capitalista) para o empreendedorismo como um fenômeno ideológico relacionado com as mudanças estruturais do capital após 1970, demonstrando o descolamento do conceito de sua base material, quando o espírito do capitalismo é ensejado também pela classe trabalhadora. No quarto tópico, faremos um breve exame do surgimento da sociedade capitalista, buscando suas bases na economia política. As Considerações finais encerram a exposição.

A QUEM SERVE O “ESPÍRITO EMPREENDEDOR”?

A figura do “herói global”, como apontaram Campos e Soeiro (2016Campos, A., & Soeiro, J. (2016). A falácia do empreendedorismo. Lisboa, Portugal: Bertrand.), ao se referirem a personas como Steve Jobs e Oprah Winfrey, serve como uma fonte de esperança de dias melhores diante do crescimento da pauperização e da desigualdade econômico-social. Isso é a principal causa da adesão aos discursos da meritocracia e da exaltação à coragem de correr riscos como virtude social.

Essas figuras heroicas, todavia, embora o atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas apresente a possibilidade de um trabalhador se tornar capitalista - isto é, conseguir, mediante o autoesforço, mobilizar capital e conseguir, por meio da exploração, acumular mais-valor -, são uma exceção, não uma regra. A possibilidade existe, ainda que se trate de um outlier. Porém, é importante para “inspirar” os demais valentes em busca da glória.

Para entender como a efetivação desse espírito empreendedor está afastado da realidade da imensa maioria da população, convém lembrar que a maior parte dos que se aventuram a empreender não ascendem à condição de capitalista - capital que se valoriza e acumula. A alta taxa de mortalidade dos pequenos negócios (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas [Sebrae], 2016) não encerra a questão, mas é um forte indício. No Brasil, essas pessoas seguem numa peleja exaustiva para manter aberto um pequeno negócio, geralmente com ajuda dos familiares, sem empregados, sem perspectiva de crescimento, sem inovação tecnológica e com rendimentos abaixo de R$ 24 mil anuais (GEM Brasil, 2019Global Entrepreneurship Monitor. (2019). Empreendedorismo no Brasil 2018: relatório executivo. Curitiba, PR: IBQP.).

Assim, o espírito empreendedor traduz os anseios e as contradições da imensidão de indivíduos diante da condição concreta de incerteza e competição características desse modo de produção: viver com mais conforto e ser reconhecido como alguém que cultiva os valores capitalistas. Se bem que tais anseios não costumem se efetivar, as contradições se fazem presentes, como veremos.

Antes de adentrarmos o espírito empreendedor, teremos de passar pelo espírito do capitalismo, cuja obra mais proeminente é a de Weber (2004Weber, M. (2004). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), que, ao estudar a consolidação do protestantismo com base no teólogo cristão João Calvino, indica que o surgimento do capitalismo foi uma criação imprevista da ética protestante. Para Weber, a ética do trabalho ensejada pela religiosidade na modernidade pode ser sintetizada como o desencantamento do mundo - negar o misticismo do medievo -, por acreditar que, conquanto não seja possível conhecer os planos divinos sobre quem seriam os escolhidos para o reino dos céus, seria possível perceber indícios de “ser um eleito”, por meio de uma ética do trabalho, uma vida baseada no esforço individual, racional e metódica, com a negação dos sentimentos e das paixões carnais em nome de uma virtude racional. O indício de ser um escolhido é a prosperidade econômica.

Se tal noção parece anacrônica, a pesquisa de Serafim e Feuerschutte (2015Serafim, M., & Feuerschütte, S. G. (2015). Movido pelo transcendente: a religiosidade como estímulo ao “espírito empreendedor”. Cadernos EBAPE.BR, 13(1), 165-182.), que analisaram a relação entre a influência da igreja (crença religiosa) sobre os empreendedores-membros, demonstra que não é. Os autores concluem que a “tecnologia religiosa” pode desenvolver as seguintes aptidões:

A primeira - a aptidão desenvolvida de ter fé em momentos de incerteza, imprevisibilidade ou dificuldade - os impulsiona nesse particular a agir de modo semelhante ao empreendedor descrito por Schumpeter (1961)Schumpeter, J. A. (1997). Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico (Coleção Os Economistas). São Paulo, SP: Nova Cultural.. A segunda - a esperança na ação divina e em um horizonte de êxito - faz com que eles suportem consideravelmente e de maneira especial as possíveis adversidades que uma decisão acarreta.

Essa ética do trabalho e da prosperidade segue conformando os espíritos aos desígnios das relações de (re)produção da vida nestes tempos. Entretanto, aceitar que é o espírito (teológico ou ideal) quem cria a realidade seria considerar que há uma essência humana a priori, egoísta, e que seria esse aspecto da subjetividade o demiurgo da sociedade, quando na verdade ela é produto do que expressa, e não seu produtor. O espírito humano é autoproduzido mediante a exteriorização da subjetividade como atividade prática sensível, a qual, por sua vez, é condicionada pelo sociometabolismo entre indivíduos e natureza, do qual a objetividade é o momento preponderante (Marx & Engels, 2007Marx, K., & Engels, F. (2007).A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São Paulo, SP: Boitempo.).

Assim, o problema do idealismo na concepção weberiana é partir da subjetividade e nela permanecer, tornando-se incapaz de apreender a natureza ontoprática do pensamento, como temos visto nas “abordagens críticas no empreendedorismo”. Quando a aparência do fenômeno é tomada como essência, as reflexões e as práticas decorrentes podem se tornar meios de ocultamento e de esmaecimento dos enfrentamentos decorrentes das contradições inerentes à reprodução de dada subjetividade. Por isso, é necessário tomar a investigação com uma visão efetiva do mundo para desvendar o que a ideologia busca esconder, como faz Marx - antes e diferentemente do modo weberiano - ao discutir a questão judaica na Alemanha do século XIX, isto é, como as religiões seculares se integram na modernidade.

A necessidade prática, o egoísmo, é o princípio da sociedade burguesa e se manifestará em sua forma pura no momento em que a sociedade burguesa tiver terminado de gerar o Estado político. O deus da necessidade prática e do interesse próprio é o dinheiro. (...). O dinheiro é a essência do trabalho e da existência humanos, alienada ao homem; essa essência estranha a ele o domina e ele a cultua (Marx, 2010Marx, K. (2010). Sobre a questão judaica. São Paulo, SP: Boitempo.).

Há uma questão valorativa, isto é, a ética capitalista admite o dinheiro (e o mercado) como representação de um indivíduo virtuoso. Este valor social - de busca pela vantagem individual - encontra condições distintas dos modos de produção anteriores. A questão judaica trata de uma dupla negação do espírito, do catolicismo e do protestantismo, cuja superação de suas contradições propiciaram a aceitação do deus-dinheiro como valor capitalista. É também o motivo pelo qual permanece hodiernamente a perseguição à “ganância” dos judeus. Vale ressaltar que a palavra “princípio” se refere a valores, não a “começo”. Assim, o que Marx sustenta, baseado numa reivindicação do judaísmo, é que a ganância é anterior à sociedade capitalista, mas é nessa sociabilidade que tal predicado se torna uma virtude engendrada por relações estranhadas.

Ademais, o excerto esclarece que é com o avanço das relações capitalistas em seus estágios superiores (o “Estado Político”, que é laico) que o deus-dinheiro se impõe como um princípio da busca dos interesses particulares, ou seja, quanto mais capitalistas forem as relações entre as pessoas, mais elas “sentirão” que o destino da sua existência (o deus, o thelos, a força guiadora de suas ações) é mediado pelo acúmulo de dinheiro.

O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas - [de] seu possuidor - qualidades e forças essenciais. O que sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. [...] O que eu quanto homem não consigo, o que, portanto, todas as minhas forças essenciais individuais não conseguem, consigo-o eu por intermédio do dinheiro. O dinheiro faz assim de cada uma dessas forças essenciais algo que em si ela não é, ou seja, o seu contrário (Marx, 2015Marx, K. (2015). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo.).

Situando a discussão da ética capitalista com base num “espírito empreendedor”, é notório, no atual estágio desenvolvido do capitalismo global, o “espírito capitalista” ainda mais presente, e, se existe um espírito, ele deve corresponder a uma base material, ainda que no plano imediato sua aparência esteja invertida ou distorcida.

Tem sido socialmente aceito que o espírito empreendedor aparece como algo que dá sentido à vida, que cria riquezas e desenvolve a sociedade. Observemos um trecho da palestra Favela é bilhão, de Gilson Rodrigues, que se apresenta como empreendedor social, consultor e líder comunitário de Paraisópolis - maior favela da cidade de São Paulo e que ladeia o ostentoso bairro do Morumbi -, proferida num evento de empreendedorismo patrocinado pela Rede Globo:

Minha família mora há 60 anos em Paraisópolis e quando a gente veio da Bahia pra cá a gente tinha um sonho de ficar rico, cuidar da educação dos filhos. A gente chegou aqui e viu que não era bem assim, né? (...) O fato é que a gente nunca sonhou em morar na favela, ninguém sonha em morar em área de risco, em cima de córrego, passar dificuldade na enchente ou coisas desse tipo. A gente sonha em morar num bairro, em ser feliz, estar tranquilo, poder prosperar e ficar rico. Como todo mundo, né? Todo mundo quer ganhar dinheiro, poder prosperar, dar educação para os filhos (Rodrigues, 2020Rodrigues, G. (2020). Menos30 Fest: confira na íntegra a palestra Favela é Bilhão, com Gilson Rodrigues. Recuperado de https://youtu.be/6_mJm4sc5CU
https://youtu.be/6_mJm4sc5CU...
).

O líder comunitário/empreendedor social advoga pela capacidade econômica da favela de produzir riquezas capitalistas - o que é absolutamente real, tendo em vista que o Produto Interno Bruto (PIB) das favelas foi de R$ 120 bilhões em 2019 (Boehm, 2020Boehm, C. (2020, January 27). Moradores de favelas movimentam R$ 119,8 bilhões por ano. Agência Brasil. Recuperado de https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-01/moradores-de-favelas-movimentam-r-1198-bilhoes-por-ano
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/n...
). Suponhamos, assim, que se trate de um “espírito empreendedor” que busca a prosperidade da comunidade. Porém, o que o líder comunitário não questiona é porque existem favelas. Por que ele e sua família precisaram deixar o Nordeste para ficar ricos? Por que seus filhos não têm acesso à educação? No lugar de encontrar as causas das mazelas, a ética da prosperidade, representada pelo empreendedorismo no nosso tempo, aparece como solução. Em suma, a vida se resume em “ser feliz, estar tranquilo, poder prosperar e ficar rico” (Rodrigues, 2020Rodrigues, G. (2020). Menos30 Fest: confira na íntegra a palestra Favela é Bilhão, com Gilson Rodrigues. Recuperado de https://youtu.be/6_mJm4sc5CU
https://youtu.be/6_mJm4sc5CU...
).

O fato de o senso comum pairar sobre a aparência da realidade, diante da necessidade prática que urge como meio de sobrevivência, é algo plausível. A questão é que, para parte significativa dos cientistas, o “espírito empreendedor” não é substancialmente distinto, faltando um exame crítico o suficiente para entender que ele faz parte da causa dos problemas.

Comecemos, então, a desvelar o “espírito empreendedor” pelo seu mais célebre autor, Schumpeter (1997Schumpeter, J. A. (1997). Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico (Coleção Os Economistas). São Paulo, SP: Nova Cultural.):

Antes de tudo, há o sonho e o desejo de fundar um reino privado, e comumente, embora não necessariamente, também uma dinastia. O mundo moderno realmente não conhece nenhuma colocação desse tipo, mas o que pode ser alcançado pelo sucesso industrial ou comercial ainda é, para o homem moderno, a melhor maneira possível de se aproximar da nobreza medieval. [...] Há então o desejo de conquistar: o impulso para lutar, para provar-se superior aos outros, de ter sucesso em nome não de seus frutos, mas do próprio sucesso. Nesse aspecto, a ação econômica torna-se a fim do esporte - há competições financeiras, ou melhor, lutas de boxe. O resultado financeiro é uma consideração secundária, ou, pelo menos, avaliada principalmente como índice de sucesso e sinal de vitória, cuja exibição mui frequentemente é mais importante como fator de altos gastos do que o desejo dos bens de consumo em si mesmos. [...] Finalmente, há a alegria de criar, de fazer as coisas, ou simplesmente de exercitar a energia e a engenhosidade.

Para nosso entusiasta da inovação, o espírito empreendedor não se destinaria apenas ao lucro; o sucesso industrial e comercial, isto é, o prestígio de ser um empresário, é o horizonte de êxito destes tempos. O lucro seria apenas consequência. Schumpeter alerta que esse empresário (o empreendedor-inovador) não é um sujeito qualquer. Como ser empresário não é uma profissão nem, em geral, uma condição duradoura, os empresários não formam uma classe social no sentido técnico, como o fazem os proprietários de terra, os capitalistas ou os trabalhadores. Isso porque “os empresários são um tipo especial, e o seu comportamento um problema especial, a força motriz de um grande número de fenômenos significativos” (1997). Por essa razão, o que moveria o empreendedor seria o desejo de sucesso.

O que, porém, vem a ser sucesso nos dias de hoje? Não será necessário gastar mais do que algumas linhas para constatarmos que sucesso e dinheiro, em suas várias facetas, são 2 lados da mesma moeda, o valor social nevrálgico destes tempos (Ferraz, 2020Ferraz, J. M. (2020). A noção de sucesso na sociedade capitalista: entre o mérito e a impessoalidade no trabalho. Scribes - Brazilian Journal of Management and Secretarial Studies, 1(2), 69-89.). Vemos, portanto, que o postulado de Schumpeter é uma tautologia apologética ao espírito empreendedor. Ademais, ainda que delimitasse tal capacidade a um grupo específico de pessoas, os empresários-empreendedores com capacidade de inovar seriam poucos. Faltou o economista explicar que, se o espírito não encarna em todos, não é por falta de “fé”, e sim porque, para empreender, seria necessário uma série de condições materiais, cuja principal é ter capital acumulado ou meios para dele se apropriar e personalizar o movimento necessário da expansão capitalista, tendo a concorrência intracapitalista como obstáculo.

Se tomarmos por referência o momento histórico da teoria schumpeteriana, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial - quando o modelo liberal colapsava diante da crise econômica e a teoria de Keynes sobre o papel do Estado na recuperação econômica ganhava força, marcando o início do Welfare State dos países de capitalismo central -, poderemos perceber que Schumpeter está diante de uma mudança na dinâmica socioeconômica. Naquele momento de “oportunidade”, o economista austríaco celebrava a figura dos indivíduos que poderiam ascender socialmente - algo que se dá somente no modo de produção capitalista - e atribuía destaque ao papel da produção diante da crescente financeirização do mercado - lembremos que Schumpeter foi banqueiro.

Outro ponto da teoria schumpeteriana - pouco aludida nas pesquisas sobre a prática empreendedora realizadas no Brasil - é o papel do crédito nas inovações. Schumpeter (1997Schumpeter, J. A. (1997). Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico (Coleção Os Economistas). São Paulo, SP: Nova Cultural.) condiciona a realização desses saltos no desenvolvimento econômico à oferta de crédito, razão pela qual, para ele, capitalista é uma coisa e empresário é outro. Assim, todo empresário (empreendedor) pode ser um capitalista, mas nem todo capitalista pode ser um empresário. Não há, contudo, papéis solos no capital. O que há é que o capital se transmuta em diversas formas no seu curso para se reproduzir - capital produtivo, comercial, monetário, mercadoria etc. (Marx).

Schumpeter supera em profundidade os economistas de sua geração por compreender que a economia não é hermética. Entretanto, sua teoria tem alcance parcial e abrange apenas o desenvolvimento da produção especificamente capitalista, tomando a particularidade de uma sociedade cuja ética da prosperidade é admitida como pressuposto do gênero humano, isto é, a particularidade capitalista é tomada como universal, por isso padece das mesmas robinsonadas (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política (Livro 1: o processo de produção do capital). São Paulo, SP: Boitempo .) que os econômicos clássicos, mas é inegável sua proeminência frente à vulgata dos neoclássicos.

Por fim, é primordial combater a falsa ideia de que seria o modo de produção capitalista, em seu empenho por criar novidades, o responsável pela elevação média na qualidade da vida, ou seja, que só haveria tecnologia, medicina, artes etc. em razão do capitalismo, ou, dito de outro modo, por conta do espírito empreendedor. Um alto grau de desenvolvimento é decorrente da socialização do trabalho, e não necessariamente de sua submissão ao capital. Portanto, condicionar o progresso das produções humanas (materiais e imateriais) à paixão de um sujeito por sucesso e fortuna nos parece uma prerrogativa tacanha, bem aos moldes da decadência ideológica da burguesia, como assevera Lukács (1959Lukács, G. (1959). El asalto a la razón: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Buenos Aires, Argentina: Fondo de Cultura Económica.). Por essa razão, vamos adentrar a análise da consolidação do espírito empreendedor.

O ESPÍRITO EMPREENDEDOR SE DESLOCA PARA OUTRA CLASSE

Ascender na sociedade capitalista não significa necessariamente ser menos explorado. Na melhor das hipóteses, significa acesso a uma cesta de consumo maior e/ou de melhor qualidade, a fim de conseguir apresentar uma força de trabalho mais qualificada para determinada atividade social (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política (Livro 1: o processo de produção do capital). São Paulo, SP: Boitempo .).

A ausência de uma relação de personificação clássica entre capital-trabalho não reduz as intensas jornadas de trabalho, a condição precária de vida e trabalho e seu pertencimento à classe cuja única propriedade é a própria capacidade de trabalho: a classe trabalhadora. Por outro lado, a classe capitalista pode ser caracterizada como aquela que detém a propriedade dos meios de produção, mas que depende da outra classe para mobilizar o valor cristalizado nas matérias-primas e nos instrumentos de trabalho, adicionar novos valores e, por fim, realizar esse mais-valor na esfera da circulação para, assim, seguir acumulando (Marx, 2014Marx, K. (2014). O capital: crítica da economia política (Livro 2: o processo de circulação do capital). São Paulo, SP: Boitempo.), sendo este o papel efetivo do espírito empreendedor: possibilitar a reprodução do capitalismo.

Assim, o tal espírito empreendedor está presente desde os primeiros momentos da sociedade capitalista (Bittar et al., 2014Bittar, F. S. O., Bastos, L. T., & Moreira, V. L. (2014). Reflexões sobre o empreendedorismo: uma análise crítica na perspectiva da economia das organizações. Revista de Administração da UFSM, 7(1), 65-80.; Paula, Cerqueira, & Albuquerque, 2000Paula, J. A., Cerqueira, H. E. A. G, & Alburquerque, E. (2000). Teoria econômica, empresários e metamorfoses na empresa industrial. Belo Horizonte, MG: Cedeplar/UFMG.), embora no último século seu papel ideológico tenha se ampliado. Se no seu surgimento o empreendedorismo estava atrelado ao capitalista, nos dias atuais ele se afasta destes, e o espírito capitalista vai se transformando em espírito empreendedor.

Partamos da conhecida classificação dos estadunidenses Hisrich, Peters, e Shepard (2014Hisrich, R. D., Peters, M. P., & Shepherd, D. A. (2014). Empreendedorismo (9a ed.). Porto Alegre, RS: Amgh Editora.) sobre os tipos de iniciativas empreendedoras: estilo de vida, empresa de fundação e alto potencial. Observemos que o grande capital não aparece como empreendedor, ainda que seus líderes apareçam na mídia como símbolos do “heróis-globais”, como vimos.

Recuemos no tempo para analisar obras basilares acerca da noção de empreendedorismo, que datam do início do século XX, conforme o Quadro 1.

Quadro 1
Obras que legitimam o empreendedorismo

Durante esses primeiros decênios do século XX, não fazia sentido falar em empreendedorismo de trabalhadores. A virada do século XIX para o XX pode ser sintetizada como a expansão do capital monopolista, cujas relações de trabalhos, dada a expansão da manufatura e da classe trabalhadora, foi marcada pelas batalhas sindicais e pela ampliação do trabalho formal. O século XX foi marcado por crises recorrentes. Uma das principais ensejou o Welfare State, que durou por algumas décadas - em alguns poucos países - e logo encontrou seu limite. Por isso, segundo Streeck (2019Streeck, W. (2019). Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo, SP: Boitempo.), era necessário “impedir que o Estado atue sobre as injustiças sociais; garantir a expansão do mercado; democracia interna e limitada (poder exterior)”. O discurso da liberdade do mercado diante do Estado volta fortalecido. Trata-se da “retomada do liberalismo”, ou neoliberalismo, como tem sido chamado (Dardot & Laval, 2017Dardot, P., & Laval, C. (2017). A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo.), aqui já no último quarto do século.

Vemos que, desde o início do século XX, já havia uma série de teorias robustas que preparam uma avenida pela qual a prática empreendedora haveria de passar, como também apontaram Rattner (2004Rattner, H. (2004, dezembro). Empreendedorismo e capitalismo “tardio”. Revista Espaço Acadêmico, 43.) e López-Ruiz (2007López-Ruiz, O. (2007). Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo: capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro, RJ: Azougue.). Mas é só no fim do século que o empreendedorismo ganha os contornos que conhecemos hoje. Se o espírito empreendedor dormiu entre o início e o fim do século, o que o despertou?

O capital industrial passou por uma nova e profunda mudança no seu processo produtivo em meados de 1970, cujo marco foi a grande crise do petróleo, enquanto seu corolário foi a elevação da produtividade em decorrência do progresso tecnológico promovido pela microeletrônica e pela automação, que contribuem para a substituição do trabalho humano por máquinas e para a redução dos postos de trabalho.

Para os capitalistas individuais, isso representou a possibilidade de elevar a lucratividade. Mas, do ponto de vista econômico-social, trata-se de intensificar (e adiar) a crise da lei tendencial da queda da taxa de lucro. A contradição se resume no fato de que, se, no curto prazo, amplia-se o lucro individual, no médio/longo prazo a taxa de exploração do mais-valor é reduzida, assim como os lucros sociais médios, uma vez que é preciso menos capital variável (força de trabalho), fonte de geração do valor, cujo movimento contrarrestante é a expansão das atividades capitalistas e o redobramento de suas contradições.

Essa brevíssima síntese do século XX não teve outra finalidade senão apresentar o panorama socioeconômico que enseja os dias hodiernos que podem ser caracterizados pela redução dos postos de trabalho e pela crescente expropriação de direitos pressupostas pelas políticas neoliberais, enquanto engendra as condições materiais necessárias para que o empreendedorismo seja um meio eficiente de garantir uma sobrevida ao modo capitalista de produção. Conforme Wadhwani (2010Wadhwani, R. D. (2010). Historical reasoning and the development of entrepreneurship theory. In H. Landstrom, & F. Lohrke (Eds.), Historical foundations of entrepreneurial research (pp. 343-380). Cheltenham, Northampton: Edward Elgar.):

Ao contrário da pesquisa anterior, a recente onda de bolsas de estudo associou o empreendedorismo à pequenas empresas e à abertura de empresas. [Década de 1980 - hoje]. Essa inclinação foi o produto de desenvolvimentos históricos simultâneos, particularmente diante do desafio competitivo que grandes empresas diversificadas em indústrias maduras começaram a enfrentar no último terço do século XX.

Ainda para Wadhwani (2010Wadhwani, R. D. (2010). Historical reasoning and the development of entrepreneurship theory. In H. Landstrom, & F. Lohrke (Eds.), Historical foundations of entrepreneurial research (pp. 343-380). Cheltenham, Northampton: Edward Elgar.), esse período marca a associação entre empreendedorismo, pequenos negócios e startups, citando Ronald Reagan e Margaret Thatcher como referência de governos neoliberais, por ataques aos trabalhadores, privatizações e austeridade econômica, dando-nos uma ideia do surgimento da variação do foco do empreendedor e da adaptação da política para atender aos interesses econômicos. Nos países centrais, as micro e pequenas empresas e as startups atuariam no combate ao desemprego e como agentes de inovação, por serem mais “flexíveis” do que as grandes empresas. Por isso, houve uma ação explícita por parte desses governos para difundir e legitimar o empreendedorismo - eles massificaram a educação empreendedora nas escolas de negócios e vêm, desde então, fomentando o interesse da sociedade nessa área. Rattner (2004Rattner, H. (2004, dezembro). Empreendedorismo e capitalismo “tardio”. Revista Espaço Acadêmico, 43.) descreveu esse movimento no Brasil do seguinte modo:

As políticas de apoio às iniciativas de incentivar a criação de pequenas e médias empresas (PMEs), incubadoras e parques tecnológicos procuram refazer o que foi destruído pelas forças do “mercado”. Preso entre as pressões do capital financeiro, nacional e internacional, para manter as diretrizes da política macroeconômica e as reivindicações das massas deserdadas - os sem terra, sem teto, os desempregados e os excluídos - que cobram acesso aos benefícios do Estado de bem-estar, os governos, mesmo quando constituídos por partidos da “esquerda” ficam sem condições de mudar a política macroeconômica, sob o risco de causar instabilidade política, fuga de capitais e movimentos de sedição no Congresso e nas diversas regiões do país.

A prática empreendedora, portanto, foi uma saída para ratificar o enfraquecimento do Welfare State nos países centrais, buscando tanto lidar com o desemprego estrutural causado pelo novo arranjo das forças produtivas quanto fomentar as inovações com menor custo, em substituição aos grandes centros de Pesquisa e Desenvolvimento (vide inovação aberta, crowdfounding, transferência de conhecimento). Já em países dependentes, como o Brasil, onde não se pode afirmar que houve de fato um Estado de bem-estar, o empreendedorismo é mais uma ideologia acionada para conformar e ocultar a expropriação do que uma alteração estrutural na relação capital-trabalho (Ferraz, 2021Ferraz, J. M. (2021). Para além da prática empreendedora no capitalismo brasileiro. São Paulo, SP: Actual.).

A prática empreendedora expressa, sobretudo, a ampliação da exploração da classe trabalhadora, sendo um elemento decisivo na luta de classes nos dias correntes (Ferraz, 2021Ferraz, J. M. (2021). Para além da prática empreendedora no capitalismo brasileiro. São Paulo, SP: Actual.). Isso se dá pela pressão exercida pelo exército de reserva que rebaixa o valor da força de trabalho, ou pela expropriação dos direitos trabalhistas para que os indivíduos sejam “livres” do Estado para abrir o próprio negócio, ou submetendo um crescente contingente de pessoas a atuarem por conta própria se quiserem permanecer vivos, ou se valendo desses trabalhos precários para extrair um pouco mais do valor produzido, como nas taxas pagas pela mediação de aplicativos e das máquinas de cartão de crédito (Antunes, 2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.) e toda a imensidão de fontes de expropriação que os grandes grupos econômicos têm criado para sugar valor de trabalhadores precarizados, ou, como eles nomeiam, empreendedores.

Por essa razão, a crise de 1970 tem sido o ponto de partida para investigar a consolidação da prática empreendedora e sua ideologia correspondente. O período marca uma nova crise que se alastrou dos países centrais para os periféricos em busca de recuperação dos patamares de taxa de mais-valor (Streeck, 2019Streeck, W. (2019). Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo, SP: Boitempo.). Segundo López-Ruiz (2007López-Ruiz, O. (2007). Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo: capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro, RJ: Azougue.), o empreendedorismo ressurgiu como fenômeno de massa e “passou a ser a atitude de um povo, a atitude que se espera de um povo, como anuncia hoje a vasta literatura de negócio”. Nossa análise aponta, porém, que não se trata de um ressurgimento, e sim de uma nova conformação para as relações de trabalho correspondentes ao atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo.

Entre suas funções, a prática empreendedora visa (precariamente) substituir, em parte, o papel que antes era do Estado (Campos et al., 2021Campos, A., & Soeiro, J. (2016). A falácia do empreendedorismo. Lisboa, Portugal: Bertrand.), afastando ainda mais a esfera política para a esfera da vida privada, a fim de que saúde, educação, seguridade social e até desenvolvimento econômico sejam custeados individual, e não socialmente, como classe (Sandoval, 2020Sandoval, M. (2020). Entrepreneurial activism? Platform cooperativism between subversion and co-optation. Critical Sociology, 46(6), 801-817.). Se há poucas décadas o Estado atuava como um mediador contraditório que possibilitava a redução da taxa de mais-valor (via serviços públicos) e o barateamento do salário - por garantir parte dos meios de consumo da força de trabalho -, a extinção desses direitos intensifica a pauperização e a desigualdade social.

Podemos dizer, baseados nessas mudanças estruturais, que o espírito empreendedor se relaciona mais com a ética capitalista, enquanto o empreendedorismo pode ser caracterizado como ideologia produzida pelo atual estágio do desenvolvimento das forças produtivas das relações capitalistas. O tal espírito empreendedor é o próprio espírito do capitalismo. Todavia, o empreendedorismo, como fenômeno político, econômico e social, é a intensificação das relações de produção capitalistas atuais, que tendem a ser terreno da luta de classes neste século de trabalho intermitente, uberização, indústria 4.0, e cujo símbolo maior é o empreendedorismo: formas de extrair mais-valor sem que haja necessariamente a figura do patrão.

Observando as implicações da prática empreendedora, considerada aqui como os efeitos subjetivos de um “espírito empreendedor”, é possível inferir que sua ideologia atua de maneira potencialmente danosa na classe trabalhadora, ao elevar a pauperização. Enquanto, para a classe capitalista, o espírito se aproxima, em maior medida, do postulado Schumpeteriano - êxito, lucro, acúmulo de riquezas -, seu papel consiste em conformar as subjetividades dos trabalhadores para apresentar no mercado, objetiva e subjetivamente, demandas para o capital visando à venda da força de trabalho.

Por fim, convém afirmar que, embora Schumpeter e os neoclássicos tenham buscado derrubar no plano teórico os muros que separam capital e trabalho, na realidade, eles defendem um espírito empreendedor. Nas últimas décadas, o empreendedorismo cumpre uma função diferente do desenvolvimento econômico, servindo como justificativa para o aumento da exploração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O EMPREENDEDOR, A ECONOMIA POLÍTICA E A FILOSOFIA MODERNA

Há um consenso na academia brasileira de que foram os franceses Richard Cantillón e Jean-Baptiste Say os primeiros a introduzirem o conceito de empreendedorismo ao estudo da economia política (Bittar et al., 2014Bittar, F. S. O., Bastos, L. T., & Moreira, V. L. (2014). Reflexões sobre o empreendedorismo: uma análise crítica na perspectiva da economia das organizações. Revista de Administração da UFSM, 7(1), 65-80.). Entre os economistas clássicos, por sua vez, o termo aparece em Adam Smith (1982Smith, A. (1982) The theory of moral sentiments. Indiana, Indianapolis: Liberty Fund.) e em Karl Marx (2013Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política (Livro 1: o processo de produção do capital). São Paulo, SP: Boitempo ., 2017Marx, K. (2014). O capital: crítica da economia política (Livro 2: o processo de circulação do capital). São Paulo, SP: Boitempo.), que mencionavam o “espírito empreendedor” em suas obras.

Sobre a atribuição do conceito, há dois esclarecimentos que precisam ser feitos para desvelar o que “espírito empreendedor” oculta. O primeiro é que Cantillón antecedeu e influenciou a obra de Smith, ao passo que Say, leitor de Smith, formulou novas teorias menos rigorosas no que concerne ao desvelamento das determinidades do valor-trabalho, abrindo caminho para o surgimento da Escola Neoclássica, que desloca a discussão para o valor-utilidade. Se os clássicos se viram às voltas com a fonte do valor, mistério só resolvido por Marx ao demonstrar que se tratava da força de trabalho, os economistas que o sucederam não poderiam continuar desse ponto sem negar o próprio capitalismo (Paula et al., 2000Paula, J. A., Cerqueira, H. E. A. G, & Alburquerque, E. (2000). Teoria econômica, empresários e metamorfoses na empresa industrial. Belo Horizonte, MG: Cedeplar/UFMG.) em seu desenvolvimento contraditório: a criação de riqueza capitalista é igualmente a geração da miséria.

Distante de ser trivial, a mobilidade da base teórica (do valor-trabalho para o valor-utilidade) compromete a apreensão das relações sociais engendradas pelas trocas mercantis. Assim, em vez de compreender a produção da riqueza como social, o foco é projetado no indivíduo, como se suas vontades e decisões racionais (econômicas) determinassem os rumos do mundo. Saem de cena os economistas-políticos comprometidos com a apreensão das determinidades da sociedade nascente e surgem os economistas vulgares - como Marx nomeava - buscando legitimar o estado das coisas, e não as desvendar.

O segundo esclarecimento, que se relaciona com o primeiro, é que desde Smith o empreendedorismo tem sido encarnado na figura do indivíduo, e não como desdobramento de relações sociais que engendram e pressupõem tais atos. Não poderemos desenvolver esse ponto; apenas pontuar que toda tradição filosófica liberal, passando por Locke, Kant e o próprio Smith, pressupõe as liberdades individuais (formais) como limite e extensão da liberdade social. Ressalte-se que Marx também foi leitor de Smith e seu maior crítico, apontando o caráter reificante das relações capitalistas e desumanizante, seus efeitos sobre a subjetividade e a redução da liberdade humanas aos ditames da reprodução do valor.

Com a crítica da economia política, Marx (2013Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política (Livro 1: o processo de produção do capital). São Paulo, SP: Boitempo .) demonstra que a sociedade não se resume a um coletivo de indivíduos; ela consiste nas relações sociais entre os indivíduos. O indivíduo é ao mesmo tempo social e individual (Marx, 2015Marx, K. (2015). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo.). Ademais, “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (Marx, 2011Marx, K. (2011). O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, SP: Boitempo.). Ou seja, o social medeia nossa ação no mundo não como uma determinação, mas como limites de possibilidades, como escolhas possíveis, e é nesse movimento que se forma o individual.

Essa digressão nos ajuda a compreender que a noção de empreendedor aparece como uma possibilidade dada na sociedade capitalista - é o espírito empreendedor cumprindo seu papel. Entretanto, tal discussão tem se dado apartada do que funda a sociedade hodierna: a contradição da relação entre capital e trabalho. O indivíduo que busca lucro, inicia um negócio ou inventa algum produto visando mercantilizá-lo não é excepcional, herói, diferenciado; somente reflete em sua subjetividade os valores do seu tempo.

Tivemos por objetivo perscrutar o deslocamento do espírito empreendedor à ideologia do empreendedorismo mediante uma abordagem histórico-materialista e concluímos que o espírito do capitalismo corresponde ao movimento de expansão do capital, enquanto o empreendedorismo é a versão ideológica desse espírito, que expressa a prática empreendedora no atual estágio produtivo. Essa prática, em sua essência, é o trabalho precarizado submetido ao capital. E, por ser assim, necessita de um sistema de ideias que a coloque em movimento, ao mesmo tempo que reproduz sua condição de subordinação e de expressão.

Com base no materialismo histórico e dialético, buscamos contribuir para o aprofundamento da crítica à prática empreendedora, situando-a diante do desenvolvimento capitalista e da luta de classes, e não apenas circunscrita ao realismo capitalista (Fisher, 2020Fisher, M. (2020). Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que fim do capitalismo? São Paulo, SP: Autonomia Literária.) que delimita a ação humana ao agir individualista, concorrencial ou mesmo liberal. Assim, estabelecer a crítica ao empreendedorismo sem enfrentar conjuntamente o capital é buscar uma saída dentro do modo de produção que ensejou o fenômeno. Como vimos no início desta conclusão, o “espírito empreendedor” já nasceu imbricado com a noção de (mais)valor, por isso concordamos com Sandoval (2020Sandoval, M. (2020). Entrepreneurial activism? Platform cooperativism between subversion and co-optation. Critical Sociology, 46(6), 801-817.), quando afirma que não é por meio do empreendedorismo que conseguiremos pensar na transformação do mundo. Afinal, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? Fisher (2020)Fisher, M. (2020). Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que fim do capitalismo? São Paulo, SP: Autonomia Literária..

A prática empreendedora tem um duplo papel contraditório na sociedade atual. Por um lado, dado o desemprego estrutural decorrente da reprodução capitalista global, apresenta-se como meio possível para reprodução da existência (física e espiritual); por outro, é uma atividade que intensifica a condição de pauperização. Tal práxis contraditória faz com que seja produzida uma subjetividade estranhada no ser da classe trabalhadora, o espírito empreendedor - assim como o do capitalismo -, que atua no ocultamento da luta de classes, ao esmaecer as mazelas provocadas por relações de produção engendradas pela exploração humana.

Ademais, como Ésther (2019Ésther, A. B. (2019). A política de identidade do empreendedorismo: uma análise na perspectiva da sociologia figuracional e da psicologia social crítica. Cadernos EBAPE.BR, 17(esp.), 857-870.) salienta: “A defesa do empreendedorismo - entendido agora como ideologia - constitui a defesa de uma perspectiva excludente, pois, certamente, o mundo social não será constituído apenas por empreendedores - embora esse seja o discurso no plano ideológico e amplamente difundido.” O que temos presenciado na academia e nas políticas públicas é que os discursos apologéticos ao empreendedorismo acenam, com uma das mãos, para o livre mercado e, com a outra, mantêm a classe trabalhadora distante de disputa política. Portanto, não basta tecer uma crítica conciliadora pela manutenção do empreendedorismo, já que, ao se furtar de demonstrar as contradições da prática empreendedora, reforça-se a trincheira da classe capitalista, cuja base são as relações sociais mediadas pelas trocas mercantis, pelo lucro e pela prosperidade como se fossem os valores universais que guiam a existência humana.

O corolário da sociabilidade capitalista pode ser caracterizado pela crescente deterioração ambiental e pela desigualdade social. Mesmo assim, o crescimento econômico médio do PIB dos países segue estacionado, enquanto o endividamento dos Estados aumenta e as taxas de juros tendem a zero. Todos esses elementos estão relacionados. Visando apenas ilustrar tal contradição, em vias de uma quarta Revolução Industrial, ainda não superamos doenças transmitidas por mosquitos (dengue e febre amarela) e um número crescente de pessoas, cerca de 820 milhões, ainda passa fome (Food and Agriculture Organization of the United Nations [FAO], International Fund for Agricultural Development [IFAD], United Nations Children’s Emergency Fund [UNICEF], World Food Programme [WFP] & World Health Organization [WHO], 2018Food and Agriculture Organization of the United Nations, International Fund for Agricultural Development, United Nations Children’s Emergency Fund, World Food Programme, & World Health Organization. (2018). The state of food security and nutrition in the world 2017: building resilience for peace and food security. Rome, Italy: FAO. Recuperado de http://www.fao.org/3/a-I7695e.pdf
http://www.fao.org/3/a-I7695e.pdf...
). A pandemia da COVID-19 demonstrou que o vírus biológico é bem menos mortal do que o vírus social: o capitalismo. A vida tem valido mais que o lucro?

Por isso, reforçamos a necessidade de radicalizar a crítica, buscando meios possíveis para pensar em transformações substancialmente distintas e emancipatórias. Desse modo, sugerimos novas pesquisas de abordagem histórico-materialistas que desvendem temas como os desdobramentos da falência para os trabalhadores precarizados; temas emergentes pós-pandemia, como o empreendedorismo social, o crédito e a política de inovação voltada aos pequenos negócios; e temas que conectem o atual estágio do desenvolvimento das forças produtivas com a classe trabalhadora.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela bolsa de doutorado concedida à primeira autora e que possibilitou a realização da pesquisa.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2020
  • Aceito
    01 Abr 2021
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