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Uma aproximação entre pragmática universal e economia solidária: o caso de Catende

An approach between universal pragmatics and solidarity economy: the case of Catende

Resumos

Este artigo objetiva aproximar a pragmática universal, elemento fundamental da racionalidade comunicativa habermasiana, e os conceitos de economia solidária defendidos por Paul Singer. No que diz respeito à teoria de Habermas, limita-se à ideia de reconstrução das condições universais de possível compreensão mútua, sem se dedicar ao entendimento das relações semânticas nos procedimentos dialógicos, que ocupam papel central na teoria habermasiana. A reflexão teórica adotou como instrumento empírico, por meio do estudo de caso não generalizável, o Projeto Harmonia, no município de Catende-PE. Para esse fim, foram realizados dois estudos de campo: entrevistas com questionário semiestruturado e pesquisa quantitativa com aplicação presencial de questionários. A pesquisa exploratória identificou quatro categorias de trabalhadores (de usina, com cana, sem cana, favoráveis à reforma coletiva), analisadas distintamente no levantamento de dados.

Jürgen Habermas; Economia solidária; Racionalidade comunicativa; Trabalhadores rurais


This article aims to make universal pragmatics, a key element of Habermas' communicative rationality, closer to the concepts of solidarity economy advocated by Paul Singer. Regarding Habermas' theory, it is limited to the idea of reconstructing the universal conditions of a possible mutual understanding, with no regard to understanding the semantic relations in dialogic procedures, which play a key role in Hagerman' theory. The theoretical reflection adopted as an empirical instrument, by means of a non-generalizable case study, "Projeto Harmonia", in the town of Catende, Pernambuco, Brazil. To do this, two field studies were conducted: interviews with a semi-structured questionnaire and a quantitative survey by applying questionnaires face to face. The exploratory survey identified four categories of workers (from mills, with sugar cane, without sugar cane, favorable to collective reform), distinctly analyzed during data collection.

Jürgen Habermas; Solidarity economy; Communicative rationality; Rural workers


ARTIGO

Uma aproximação entre pragmática universal e economia solidária: o caso de Catende

An approach between universal pragmatics and solidarity economy: the case of Catende

Fábio Gomes

Mestre em Gestão Empresarial pela Fundação Getulio Vargas/EBAPE; Especializado em comunicação política pela Universidade de São Paulo/ECA; Sociólogo pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Diretor-Presidente do Instituto Informa de Pesquisa. Endereço: Avenida Nilo Peçanha, 50 - Grupo 3213 - Centro, CEP 20020-100, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. E-mail: fabiogomes@institutoinforma.com.br

RESUMO

Este artigo objetiva aproximar a pragmática universal, elemento fundamental da racionalidade comunicativa habermasiana, e os conceitos de economia solidária defendidos por Paul Singer. No que diz respeito à teoria de Habermas, limita-se à ideia de reconstrução das condições universais de possível compreensão mútua, sem se dedicar ao entendimento das relações semânticas nos procedimentos dialógicos, que ocupam papel central na teoria habermasiana. A reflexão teórica adotou como instrumento empírico, por meio do estudo de caso não generalizável, o Projeto Harmonia, no município de Catende-PE. Para esse fim, foram realizados dois estudos de campo: entrevistas com questionário semiestruturado e pesquisa quantitativa com aplicação presencial de questionários. A pesquisa exploratória identificou quatro categorias de trabalhadores (de usina, com cana, sem cana, favoráveis à reforma coletiva), analisadas distintamente no levantamento de dados.

Palavras-chave: Jürgen Habermas; Economia solidária; Racionalidade comunicativa; Trabalhadores rurais.

ABSTRACT

This article aims to make universal pragmatics, a key element of Habermas' communicative rationality, closer to the concepts of solidarity economy advocated by Paul Singer. Regarding Habermas' theory, it is limited to the idea of reconstructing the universal conditions of a possible mutual understanding, with no regard to understanding the semantic relations in dialogic procedures, which play a key role in Hagerman' theory. The theoretical reflection adopted as an empirical instrument, by means of a non-generalizable case study, "Projeto Harmonia", in the town of Catende, Pernambuco, Brazil. To do this, two field studies were conducted: interviews with a semi-structured questionnaire and a quantitative survey by applying questionnaires face to face. The exploratory survey identified four categories of workers (from mills, with sugar cane, without sugar cane, favorable to collective reform), distinctly analyzed during data collection.

Keywords: Jürgen Habermas; Solidarity economy; Communicative rationality; Rural workers.

Catende e a usina harmonia: breve história da sua administração

Inicialmente, contextualizarei Catende e a usina Harmonia, objeto deste estudo. Cabe esclarecer, desde logo, que os dados encontrados nesta pesquisa não serão aplicáveis a outros casos de economia solidária. Essa limitação é fruto das características peculiares da Usina do Projeto Harmonia, da formação histórico-cultural e do contexto em que os trabalhadores estão inseridos. A premissa básica adotada é que o programa de transição entre a gestão dos usineiros e a autogestão utilizou métodos de conscientização e informação para criar um ambiente propício para a interação comunicacional, de forma homogênea, alcançando tanto os trabalhadores da indústria quanto os do campo. Dessa forma, pretendeu-se conhecer a eficiência do nivelamento de informação entre os agentes de um sistema autogestionário, sobretudo no que diz respeito à participação nas decisões.

As condições favoráveis para o plantio de cana na região, hoje denominada Catende, e nos municípios vizinhos logo atraíram a atenção dos senhores de engenho. Em 1892, no engenho de açúcar Milagre da Conceição, foi criado o distrito de Catende, pertencente ao município de Palmares. Em 1928, foi elevado à categoria de cidade.

Na década de 1930, a usina Harmonia já era a maior da América Latina e uma das maiores do mundo, com uma área que chegou a 70 mil hectares. O sucesso no volume de produção foi acompanhado de ações pioneiras, tais como, a produção de álcool e o uso de vinhoto como adubo orgânico. Igualmente pioneira foi a preocupação social de seu fundador, tenente Antônio da Costa Azevedo, que, entre outras medidas, implantou um sistema previdenciário que contava com abono anual e participação nos lucros. Havia, ainda, orfanato, auxílio à gestante e amparo à velhice. Entre vários fatores que chamavam a atenção na estrutura do complexo Catende, a rede ferroviária, com 150 km de extensão, é, sem dúvida, um forte argumento que comprova sua prosperidade.

Nos anos 1950, com a morte de seu fundador, os filhos herdeiros do patrimônio venderam o complexo para os irmãos Guerra. Os novos donos venderam lotes de terra e não implementaram nenhuma política de manutenção. Esse foi o início de um processo que culminou na década de 1990: dívidas com mais de sete mil credores, um montante que, em valores de 2007, representava cerca de 800 milhões de reais. Destes, 67 milhões em dívidas trabalhistas.

Em 1993, com a redução dos incentivos fiscais no Governo Collor de Mello e o fim do Pró-álcool, ocorreu a demissão de 2.300 funcionários, sem o pagamento dos direitos trabalhistas. Começou, assim, uma luta judicial promovida pelos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e a Fetape (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco).

Em 1995, os funcionários demitidos pediram a falência da usina. Um síndico foi indicado para gerenciar a massa falida assinada pelo Banco do Brasil, por meio de um acordo entre os funcionários, o banco (maior credor) e o Governo de Pernambuco, exercido na época por Miguel Arraes. Uma série de seminários e debates levou à construção de um plano de metas cujos principais itens eram: (a) manter em funcionamento a empresa; (b) manter o patrimônio; (c) manter os empregos e gerar novos postos de trabalho; (d) alcançar diversificação produtiva e da utilização da terra; e (e) organizar uma empresa autogestionária. No ano seguinte, o patrimônio já havia sido consolidado para a manutenção. Em 1998, constituiu-se a empresa denominada Companhia Agrícola Harmonia.

Em 2000,1 1 Relatório interno: Plano de Gestão - Projeto Harmonia. alguns progressos significativos haviam sido alcançados: os trabalhadores e os gestores da empresa conquistaram credibilidade junto a fornecedores e clientes em potencial, a fome foi erradicada nos períodos de entressafra, com a produção de seis mil hectares de canaviais gerando 1.400 postos de trabalho, mais 1.200 em períodos de safra.2 2 Ibid. Com as conquistas, a Usina Harmonia redefine seu projeto. Em uma placa na entrada da sede da empresa está escrito: "Uma Fênix nordestina, a usina de Catende: uma gestão cooperativa dos trabalhadores da cana-de-açúcar".

O conceito de cooperação não é novo. Aristóteles já salientava a importância desse fenômeno, afirmando que os homens deveriam cumprir juntos as jornadas, em vista de uma vantagem particular necessária aos propósitos da vida. O caso de Catende se encaixa nesses ideais, uma vez que, com a falência da usina, os trabalhadores se encontravam sem muita alternativa. O percurso foi árduo. Além de todas as dificuldades inerentes à administração de uma organização falida, em 2002, houve uma enchente e um incêndio. A convivência desses trabalhadores com todos os reveses e a forma como tratam de administrar tais problemas, aliados a um programa de interação comunicacional, descrevem o modelo de Catende e permitem a relação com a teoria habermasiana do pragmatismo universal.

Ao longo de 10 anos, os trabalhadores assalariados rurais foram transformados em agricultores familiares, com atividades diversificadas: criação de gado e peixe, e plantações de lavoura de subsistência em cerca de 2.200 hectares. Por meio de um programa denominado Cana do Morador, a agricultura familiar é gerida e acompanhada por uma coordenação própria, ligada a outros setores administrativos. No modelo autogestionário de Catende, o aprendizado é uma meta prioritária. Outro avanço do projeto foi a diminuição do índice de analfabetismo da população adulta na região que, em 1995, era de 82% e, em 2002, passou para 16,7%.3 3 Ibid O Método Paulo Freire foi o adotado pelos educadores. Outros avanços foram alcançados, como, por exemplo, dois mil hectares de lavoura de subsistência, 14 barreiros de peixes, 14 açudes nos terrenos da usina, Colégio Agrícola de Palmares, 500 hectares de mandioca plantada, fábrica de ração, quatro núcleos de vacas leiteiras.

A Usina Harmonia apresenta uma estrutura administrativa bem definida. Quanto à gestão agrícola, o território é subdividido em grupos de engenho, cada um com um administrador, formando seis Zonas de Produção Agrícola (ZPAs). As ZPAs são geridas por supervisores, pelo gerente agrícola e pelo síndico, indicado pela justiça para administrar a massa falida e operar a transição do empreendimento para os trabalhadores. Além da estrutura de supervisão, há um sistema de rádio comunicador interno que transmite informações e avisos para todas as ZPAs.

No que se refere à gestão na fábrica, o sistema se assemelha ao da gestão agrícola e obedece à seguinte hierarquia: o síndico supervisiona o gerente geral, este, os chefes de unidades, que coordenam os operários. Os operários se relacionam comunicacionalmente em debates sobre a gestão da usina, decidem juntos os caminhos a serem trilhados e, por intermédio de uma comissão de representantes, discutem o destino na usina conjuntamente com a direção, um processo configurado de gestão participativa.

Além do trabalho com os funcionários, os donos da usina, foi criada uma equipe de formação do Projeto Harmonia com o objetivo de desenvolver habilidades nos jovens, filhos dos trabalhadores, com atividades profissionais na usina, em regime de estágio. Em um programa denominado protagonismo juvenil, o projeto pretende preparar os herdeiros da Usina Harmonia para que, no futuro, assumam os papéis que hoje são desempenhados por seus pais. Em suma, a equipe tem um duplo objetivo: conhecimento profissional e inserção cidadã. Por trás desse duplo objetivo, está configurada a implantação de uma filosofia de trabalho, o aprendizado de um ofício para que se estabeleçam relações de competências profissionais e o engajamento essencialmente ligado ao conceito de cooperativismo. Outro projeto com a mesma finalidade de aprimoramento profissional foi a Escola de Informática e Cidadania (EIC), implantada com subsídios da Fundação Konrad Adenauer. Desejava-se também a implementação de um projeto ligado à disseminação do cooperativismo e à preparação de profissionais em produção de vídeo e de comunicação comunitária. Planejava-se ainda a criação de outros instrumentos para a mobilização social e a disseminação dos conceitos de cooperativismo e economia solidária. Notou-se, portanto, que o planejamento estratégico da Usina Harmonia estava visceralmente ligado aos procedimentos intersubjetivos de transmissão dos conceitos de cooperação para o enraizamento na cultura local.

A associação dos filhos dos trabalhadores da Catende foi batizada com o nome indígena Apuamã, que significa "rosa que nasce das pedras". Uma referência a toda dificuldade do processo de massa falida e da condução de uma ação educadora objetivando a autogestão. Os fundamentos da gestão da Usina de Catende (Companhia Agrícola Harmonia) e da cooperativa dos trabalhadores (Cooperativa Harmonia de Agricultores Familiares) estavam intimamente ligados ao caráter solidário e autogestionário, com forte vínculo com as atividades de preparo educacional que têm, por essência, a manutenção da filosofia construída.

Segundo os administradores, as bases administrativas não estavam ausentes no Projeto Harmonia. A eficiência e a qualidade eram gerenciadas de forma rígida e profissional. O conceito fordista-taylorista de cotas de produção estava presente e era rigidamente fiscalizado por representantes dos próprios trabalhadores. Desse modo, o termo autogestão não se confundia com nenhum processo anárquico e prevenia-se o surgimento de comportamentos egoístas.

O projeto Harmonia contava com uma equipe técnica que elaborou o plano de gestão e que acompanha o processo administrativo da massa falida. Eram quatro técnicos e um colaborador da Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão (Anteag), o síndico da massa falida, auxiliado por oito assessores (técnicos e jurídicos), três consultores técnicos independentes (engenheiros especializados no setor sucroalcooleiro), um consultor na área de planejamento econômico, uma equipe de educação (duas pedagogas, uma historiadora, três professoras e duas monitoras), além de sugestões elaboradas pelo professor José Francisco de Melo Neto (2002), doutor em Educação e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba.

A Usina de Catende possuía apenas uma unidade de produção, usina de moagem e produção de derivados. As terras da usina se situam em cinco municípios (Catende, Palmares, Água Preta, Jaqueira e Xexéu), divididas em 48 engenhos, ou fazendas, e seis ZPAs. A área total de terra, incluindo dois arrendamentos (engenhos Pau D'Óleo [882 hectares] e Humaitá [550 hectares]), é de 27.670 hectares, entre os quais, 40% eram para o cultivo de cana própria, 25% para o cultivo da cana do trabalhador, 11% de área florestal, 8% destinado à diversificação produtiva, 12% de área com aplicação não definida e 4% de área não aproveitável para produção. A água é farta em Catende - há quatro rios perenes, com cursos diversos cortando os engenhos, e cinco açudes que foram destruídos pelos usineiros, sendo recuperados pelos trabalhadores. Catende conta ainda com um dos mais elevados índices pluviométricos do Nordeste.4 4 Ibid. Dois regimes eram aplicados para a utilização da terra pelos trabalhadores: exploração coletiva (cana própria) e agricultura familiar, trabalhadores com cana do morador e diversificação produtiva.

A exploração coletiva se dava no modelo da tradição usineira, sendo que o resultado da produção dos trabalhadores financia os custos da produção, logo, não são apropriados por uma minoria. Os cerca de 2.200 trabalhadores credores, nesse regime, assumiam uma relação institucional tradicional, porém, fundamentada no modelo autogestionário de participação nas diretrizes da empresa. A exploração coletiva era obrigatória - todos os trabalhadores tinham o dever de participar. Dessa forma, a cana própria representava a maior porção da produção da usina de Catende, utilizando 40% de suas terras. Portanto, a ligação com os costumes latifundiários era estreita, causando uma desaceleração na mudança cultural e, por consequência, algumas dificuldades no entendimento na relação com a gerência. Uma comprovação disso é que boa parte dos empreendedores apresentava "alma de funcionário", ou seja, desejava apenas que o processo de massa falida fosse encerrado para se tornar empregado, como na época dos usineiros, o que era um risco para o sistema de autogestão. Os trabalhadores com essa postura geralmente aderiam à ideia de reforma agrária individual e não coletiva, como proposta por Catende. Outra característica dos contrários ao modelo implementado era a aversão à coletividade, logo, contrários aos projetos de autogestão. Em sua maioria, o trabalhador contrário ao modelo autogestionário não possuía cana do morador, desempenhava somente o papel de funcionário credor no regime da exploração coletiva. Essa categoria é aqui denominada de trabalhador sem cana. 5 Ibid. 5 5 Ibid.

O segundo regime, o da agricultura familiar, era composto por trabalhadores que aderiram ao programa opcional Cana do Morador, denominados aqui de trabalhador com cana. Caracterizados pela adesão à coletividade, tais trabalhadores, que representavam cerca de 54% do total de credores, não rejeitam o sistema autogestionário. O trabalhador com cana tem acesso ao crédito pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), via Banco do Brasil, que também fazia de Catende uma referência nacional: a inadimplência era zero. Enquanto o regime de exploração coletiva remetia ao modelo latifundiário, o regime da agricultura familiar oportunizava ao trabalhador a aproximação do modelo na relação entre fornecedores e usina. A cana produzida pelo regime da agricultura familiar representou, na safra 2004/2005, 34% do volume recebido pela usina, em 1998/1999 representava apenas 1,5%. Um sinal de que o sistema autogestionário, presente nesse regime, por toda rotina de decisão coletiva necessária, tem mostrado avanços em Catende.6 6 Ibid.

Outra oportunidade para o trabalhador com cana é a diversificação produtiva. Com 8% das terras destinadas a esse fim, a monocultura da cana tem evoluído para culturas de subsistências, como, por exemplo, a criação de gado e peixe, plantação de café, feijão, milho, frutas, entre outras atividades agrícolas que têm por meta garantir o aumento da renda das famílias e a sustentabilidade do Projeto Harmonia. A produção agrícola atende ao modelo de agricultura de subsistência e ao comércio informal em uma feira organizada pelos trabalhadores.

A capacidade de processamento da usina Catende é de 5.200 toneladas por dia. A produção ainda é menor do que a capacidade de moagem. A cana própria somada à cana do morador já representa, nas últimas safras, mais que 70% do processamento da usina e apesar de ser mais rentável, portanto, representar um maior investimento para o Projeto Harmonia, não atinge ainda a porção ideal na participação da produção da usina, o que reflete em dificuldades econômicas.

Dados contidos no relatório Plano de gestão de sustentabilidade autogestionária para a Usina Catende - Projeto Harmonia mostram o aumento significativo da participação da cana do morador no processo de produção. Indicam também a redução do volume de matéria-prima de fornecedores de outras origens (outras usinas e destilarias). No tempo em que não havia cana do morador, a maior parte de recebimentos de cana da usina era de fonte externa. O crescimento da produção do morador mostra o grau de adesão paulatina dos trabalhadores ao modelo de autogestão.

A diversificação produtiva também é um diferencial em Catende. Ainda sem uma estrutura de formação de cadeias produtivas e sem o beneficiamento da produção, funciona apenas como complemento de renda. Há um total de 3.641 hectares utilizados para a pecuária, piscicultura e agricultura familiar, e um total de 4.433 produtores envolvidos (trabalhadores e família). A piscicultura está inserida em uma área de 13 hectares, com 169 produtores e uma produção estimada de 47 mil alevinos/ano. Na pecuária, são utilizados 1.920 hectares, com mão de obra de 745 produtores e um rebanho de 2.740 cabeças distribuído da seguinte forma: bovinocultura - 63%; caprinocultura - 24%; e ovinocultura - 13%.7 7 As variáveis são fruto das questões do questionário aplicado na pesquisa quantitativa.

O complexo industrial de Catende produz açúcar cristal, melaço, torta, ração e adubo à base de bagaço de cana e melaço.

O faturamento da empresa deve ser analisado mediante o desafio de um processo de massa falida: muitos débitos, insolvência financeira, situação precária da usina com a falta de investimentos dos usineiros, ausência de recursos, falta de acesso ao crédito. Tudo isso gera uma desaceleração na recuperação.

As permanentes reuniões dos sindicatos, das associações, dos moradores, da administração judicial para a definição das diretrizes e para a gestão do Projeto acabaram por produzir uma série de procedimentos, rotinas e documentos, firmando um conjunto de normas e regras acordadas entre todos os setores envolvidos, e que constituem um exercício claro de atividade autogestionária. O documento central, denominado "termo de compromisso", é assinado pelas partes e assegura obrigações recíprocas e consensuais entre o coletivo e o indivíduo, disciplinando desde a assistência técnica ao transporte da cana, pagamento do preço de mercado, proibição de trabalho infantil, prevenção de danos ambientais, vedação à subcontratação de mão de obra, entre outros aspectos.

A teoria habermasiana e a economia solidária

Um recorte da Teoria de Habermas foi aplicado no presente trabalho. Muitos conceitos importantes não foram abordados. O trabalho limita-se à ideia de reconstrução das condições universais de possível compreensão mútua, sem se dedicar ao entendimento das relações semânticas nos procedimentos dialógicos, que ocupam um papel importante na teoria habermasiana. Outra questão que não foi abordada é a atualização da pragmática feita por Habermas. Nessa perspectiva, a situação ideal de fala é substituída por uma situação quase ideal de fala, incorporando noções de falibilidade. Tais ausências, desde já, ficam como sugestão para futuras pesquisas, com a contribuição do presente trabalho.

A primeira questão que Habermas estabelece como fio condutor para sua teoria é a dissonância conceitual entre orientação para o sucesso (ação estratégica) e orientação para o entendimento (ação comunicativa). Quando os atores sociais pautam suas ações objetivando o sucesso de cada uma delas, estabelecem relações conflituosas para o alcance de bens desejados e efeitos almejados por meio de cálculos egocêntricos na busca de interesses particulares. Essa orientação exclusiva para o sucesso, ação estratégica, não considera o bem comum via conceitos de reciprocidade e universalidade alcançáveis pelo entendimento. A teoria da ação comunicativa (TAC) de Habermas (1996) prestigia a ação comunicativa, voltada para as relações dialógicas, opondo-se à ação estratégica, voltada para as relações monológicas e hierarquizadas, pertencentes ao espírito capitalista. Trata-se de uma teoria social da modernidade fundamentada em um composto disciplinar que abrange a Sociologia, Filosofia e Filosofia da Linguagem. A TAC propõe, assim, a busca do conhecimento reflexivo para a prática comunicativa, objetivando o entendimento e satisfazendo interesses mútuos.

Habermas (1996) afirma que a racionalidade possui algumas raízes. A primeira é a racionalidade discursiva e reflexão, caracterizada pela performance comunicacional orientada para as pretensões de validade do discurso. A segunda é a racionalidade epistemológica, que se refere a uma atitude performática, em que não se pode provar incondicionalmente como verdadeiro o conhecimento argumentado. A terceira é a racionalidade teleológica, quando todas as ações-intenções objetivam alcançar a realização de algo preestabelecido. Finalmente, a quarta, racionalidade comunicativa, é a expressão da força unificadora do discurso orientado para o entendimento. Surgem aqui três aspectos: (a) um agente que se entende, (b) com alguém, (c) a respeito de algo. O autor aponta ainda uma relação tripla entre o significado e a expressão linguística: (a) aquilo que se pretende dizer com ela, (b) o que é dito nela e (c) a forma como é utilizada no ato da fala.

Habermas denomina seu trabalho "racionalidade e comunicação" de "caso idealizado de ação comunicativa", ou seja, o ideário de uma interação consensual. Ao propor uma ação racional não monológica, mas dialógica, o autor, em outras palavras, propõe um processo de intersubjetividade. O modelo é delimitado ignorando ações não verbais e expressões culturais. Habermas, opondo-se ao pessimismo de Horkheimer e Adorno (1985), reconhece a possibilidade de superação da racionalidade instrumental, ou estratégica, focada nos resultados e da racionalidade comunicativa focada no entendimento. O autor apresenta, assim, dois tipos básicos de ação social, como expostos no Quadro 1:


A ação estratégica, com perspectiva instrumental, objetiva uma relação social e tem como critério de racionalidade o êxito. De um lado, encontra-se o agente da ação racional e do outro, um participante considerado um meio para se alcançar o êxito. A manipulação do agente é a principal prática dessa ação.

Outro tipo básico de ação social é a ação comunicativa. Esse tipo considera pelo menos dois agentes capacitados linguisticamente. A base dessa racionalidade é o uso de argumentação válida orientada para o entendimento. A intersubjetividade tem por essência a observância das pretensões de validade do discurso. Tais condições universais são essenciais para uma ação comunicativa eficaz. Habermas denomina essas condições de pragmática universal: "A função da pragmática universal é identificar e reconstruir condições universais de possível compreensão mútua" (HABERMAS, 1996, p. 9).

O item "pragmática universal", da teoria de Habermas (1996), propõe-se a uma reconstrução racional da estrutura do discurso por meio do entendimento dos atos locutórios (sentido de referência - significado) e dos atos ilocutórios (força para conseguir entendimento). A pragmática universal consiste na interação comunicativa da linguagem via nivelamento de informação, ou seja, para que haja interação entre os indivíduos de uma organização, é necessário que estes se entendam. O pragmatismo universal vem a ser, então, um preparo dos componentes do grupo social para que possam interagir comunicacionalmente.

Uma teoria social emancipatória, promovedora de solidariedade, cooperação e liberdade. Assim, sumariamente, define-se a teoria habermasiana. Habermas propõe, dessa maneira, uma forma de ação social em que os componentes de um determinado grupo se relacionam com equidade, as manifestações de vontade e opinião não são tratadas coercivamente, todos têm voz e participam das decisões que envolvem a vida cotidiana de cada um.

O contraponto à ação teleológica é a ação coletiva mediada pela comunicação consensual, e não monológica, objetivando chegar ao entendimento comum nos questionamentos surgidos nas comunicações cotidianas. A reconstrução das condições para um relacionamento intersubjetivo equitativo, o pragmatismo universal, compõe assim o mundo utópico de Habermas, no qual todos participam e deixam participar, todos se interessam e promovem interesse, todos falam e permitem falar, ouvindo atentamente os argumentos de outrem. Enfim, um mundo no qual são eliminados os espíritos competitivos, a alma dominadora, a mente controladora. Não se pretende, aqui, comprovar a discutida quebra de paradigma - do fordista-taylorista, tutor do modo de produção capitalista e indutor da racionalidade instrumental para a racionalidade comunicativa em Habermas -, mas sim, estudar a aproximação de seu aspecto fundamental do modelo solidário (economia solidária). O modelo interacional habermasiano em si não é avaliado, mas o pragmatismo universal, o ambiente propício para o desenvolvimento de uma relação dialógica, sim. Habermas defende alguns pré-requisitos, pretensões de validade, que devem estar presentes no processo de interação comunicativa: enunciar de forma inteligível, gerar uma informação que o ouvinte compreenderá, entender a mensagem produzida e alcançar a compreensão mútua. Habermas (1996) apresenta a racionalidade comunicativa, que tem por essência o fator dialógico, em oposição à racionalidade estratégica, caracterizada pelo fator monológico. Para o autor, o homem encontra a possibilidade de emancipação da razão por meio da interação comunicacional.

A interação comunicacional habermasiana, na perspectiva de romper com a velha ordem do paradigma fordista-taylorista, tem na economia solidária a possibilidade de comprovação de sua existência e eficácia de sua aplicação. Considerando um processo autogestionário, a premissa básica adotada é que o ambiente de trabalho é essencialmente composto pelo interesse dos agentes em alcançar uma compreensão mútua dos mecanismos da gestão. Dessa forma, acredita-se que não estão presentes os mecanismos coercivos refletidos em uma interação-luta, mas um processo intersubjetivo de interação-permuta.

Sendo assim, a epistemologia crítica de Habermas se contrapõe ao modelo tecnoburocrático. Habermas propõe um avanço nas relações do homem com o mundo objetivo, além da observação, a compreensão via processo comunicativo.

Nessa direção, cabe examinar a ideia de cooperação. O termo cooperar é derivado do latim cooperari (cum - com e operari - trabalhar), ou seja, trabalhar em conjunto, interagir socialmente com interesses comuns. O termo cooperar se opõe ao termo competir, que tem como base as ações individualistas. A economia solidária necessita da interação comunicacional para existir. Contrapõe-se, assim, ao modelo da racionalidade instrumental no que diz respeito à separação hierarquizada da organização.

O elemento principal da interação social em forma de cooperativa, para Paul Singer (2004), é o problema comum de um grupo de indivíduos. O modelo lógico do autor consiste na indissolução entre propriedade e trabalho. O sistema democrático de organização do trabalho, que tem por essência a autogestão, é denominado, por Singer, de economia solidária, um modelo que objetiva eliminar as diferenças sociais por meio da criação de uma economia não capitalista.

O desafio do modelo proposto por Singer, mesmo que não se apresente como alternativa ao modo capitalista, é grande. Mancur Olson (1999) escreve sobre um problema possível nos sistemas de cooperação: o paradoxo da participação. Segundo o autor, o indivíduo pode racionalmente escolher não participar, uma vez que conclua que seus benefícios independem de sua ação. Olson denomina esse fenômeno de "efeito carona". Esse problema deve ser analisado tanto como uma possibilidade de ausência de cooperação no trabalho quanto de abstinência comunicacional. Dessa forma, o sistema de cooperação funciona bem até que alguém se deixa influenciar por desejos egoístas e pelo individualismo. Essa possibilidade é bem resolvida nas organizações regidas pela racionalidade instrumental, nas quais a coerção hierárquica neutraliza tais desejos.

A economia solidária defendida por Singer (2004) tem como fundamento a união dos que lutam para vencer as dificuldades econômicas, dos que lutam por sobrevivência no cada vez mais feroz modo de produção capitalista. Para Singer, a economia solidária é outro modelo, não capitalista.

"A solidariedade na economia só poderá realizar-se se ela for organizada igualitariamente pelos que se associam para produzir, comerciar, consumir e poupar. A chave dessa proposta é a associação entre iguais, em vez do contrato entre desiguais" (SINGER, 2004, p. 9). A economia solidária é a união de iguais, com as mesmas necessidades e objetivos compartilhados, porém, com a possibilidade de atribuições distintas. Mas a característica principal desse modelo, no que diz respeito à sua relação com a racionalidade comunicativa, é a interação entre os componentes dessa sociedade. O cooperativismo, uma organização configurada essencialmente pela economia solidária, fundamenta-se na participação dos atores sociais nas decisões da organização. Teoricamente, essa configuração organizacional é concebida de forma que os atores sociais a ela pertencentes, responsáveis pelas decisões e beneficiados pelos lucros, mas penalizados pelos prejuízos, interajam comunicacionalmente.

Singer salienta que a empresa solidária é gerida democraticamente: as pequenas empresas, por assembleias; as grandes, por intermédio de delegados eleitos em cada unidade de trabalho. As grandes estruturas solidárias, segundo Singer, têm em seus quadros gerentes, delegados, coordenadores, encarregados, gestores, entretanto, se diferenciam das estruturas capitalistas em um fator principal: as decisões, regras e ordens partem de baixo para cima. Assim sendo, a economia solidária demanda muitas informações que devem ser compartilhadas pelos sócios para que estes estejam aptos a participar de forma determinante em cada questão proposta. Para Singer, esse aspecto pode gerar a maior dificuldade dos sistemas autogestionários e o esforço adicional dos trabalhadores pode promover desinteresses dos sócios pela causa da práxis democrática.

A interação comunicacional, proporcionada pelas decisões coletivas, é mais do que um ambiente que propicia a motivação: na economia solidária, é a base para o desenvolvimento de um processo autogestionário com ações que visam o entendimento.

A economia solidária despreza a diferença entre o social e o econômico, promovendo para os cooperados o suporte em saúde, educação etc. Sem se limitar à autonomia, o que seria apenas um aspecto em oposição ao espírito capitalista, assegura também seus princípios básicos: propriedade coletiva, ou associada ao capital, e o direito à liberdade individual. Apesar do contexto igualitário, o grande desafio da economia solidária é gerar o ambiente para conseguir a predisposição para a cooperação no desenvolvimento das rotinas de trabalho.

A economia solidária não é uma teoria, mas uma prática social. Singer e Souza (2000) não consideram, assim, a economia solidária um modelo que representa uma quebra de paradigma, mas um modelo que se apresenta como alternativa ao capitalismo.

No Brasil, predominantemente, são três os formatos organizacionais de economia solidária praticados: associação, grupo informal e cooperativa. Os principais motivos para a criação de empreendimentos solidários referem-se a necessidades financeiras.

Conforme o Atlas da economia solidária no Brasil (2005), estudo elaborado pela Secretaria Nacional de Economia Solidária, são 14.954 empreendimentos em 2.274 municípios brasileiros. A maior parte dos empreendimentos solidários está concentrada no Nordeste (44%); 13% no Norte; 14% no Sudeste; 12% no Centro-Oeste; e 17% no Sul.

O encontro dos modelos

O desafio deste artigo é a aproximação entre um modelo social, a TAC de Habermas, que molda as relações sociais no sistema instrumental-estratégico, e um modelo econômico, a economia solidária de Singer, que se posiciona como alternativa ao capitalismo.

Qual é, afinal, o ponto de interseção entre tais modelos? A resposta mais direta e simples se resume-se a um termo: coletividade. Enquanto Habermas defende um processo de emancipação por meio da interação em prol de uma ideia socialmente aceita e coletivamente elaborada, Paul Singer descreve a economia solidária considerando a união de indivíduos com o intuito de sanar as necessidades econômicas comuns. Habermas prioriza a mudança de paradigma, pregando a razão comunicativa em substituição à razão instrumental. Para o autor, o homem é potencialmente capaz de ação, de alteração do modelo racional capitalista por meio da comunicação e do entendimento comum. Para Singer, a economia solidária é uma alternativa econômica ao capitalismo, um modelo de união de esforços para a obtenção de propriedade coletiva e partilha dos resultados e responsabilidades.

A utopia habermasiana naturalmente gera discussões no plano filosófico, mas o que se propõe aqui é a ligação entre tal formulação filosófica e a prática da economia social. O fundamento social essencialmente formado pelo conceito de cooperação, consubstanciado na prática intersubjetiva de natureza equitativa, é o que une tais modelos.

Os paradigmas da comunicação habermasiana e da economia solidária ligam-se também por meio da pragmática universal. Tanto a economia solidária quanto a racionalidade comunicativa dependem de um mesmo pré-requisito: a reconstrução das condições para o entendimento - pragmática universal. O Quadro 2 expõe as características de cada paradigma e a ligação, via pragmática universal, entre o paradigma habermasiano e o da economia solidária.


Para que a autogestão da empresa solidária tenha êxito, o processo de informação dos sócios é essencial. No ambiente autogestionário da economia solidária, as informações sobre a gestão devem fazer parte do dia a dia. Todos precisam informar-se e posicionar-se a respeito de cada um dos fatores em discussão. "O fato de todos ficarem a par do que está em jogo contribui para a cooperação inteligente dos sócios, sem necessidade de que sejam incentivados por competições para saber quem é o melhor de todos" (SINGER, 2004, p. 19).

A comunicação entre os sócios porta-se como o principal instrumento para o entendimento em uma ação cooperativa. Nesse ponto, defende-se a aproximação entre a ação comunicativa e a ação cooperativa. Na economia solidária, a ação comunicativa é a base para a interatividade, para a relação horizontalizada, enfim, para um ambiente das relações dialógicas necessário para a prática da ação cooperativa. Habermas também salienta a importância do processo cooperativo na ação comunicativa:

"A ação comunicativa se baseia em um processo cooperativo de interpretação em que os participantes se referem simultaneamente a algo no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo quando, em sua manifestação, somente sublinham tematicamente um destes três componentes" (HABERMAS, 2003, p. 171).

Singer salienta que a autogestão exige dos cooperados um esforço adicional. Além do trabalho e das tarefas da função que exerce, o cooperado deve também se informar sobre as questões referentes à empresa. Dois efeitos possíveis são apresentados pelo autor no que diz respeito ao esforço adicional: a motivação mediada pela noção clara dos desafios para os cooperados, uma vez que se informam sobre a situação da empresa, sobre seus propósitos e metas; e também um efeito colateral, pois a participação expõe os cooperados aos possíveis embates na apresentação de ideias contraditórias, gerando, assim, o desgaste do relacionamento. O grande desafio para uma ação cooperativa é a manutenção de um espírito de participação nas ações coletivas, por meio da busca de informação e debates para as decisões da empresa.

O que há em comum entre aqueles que se associam para o desenvolvimento de uma ação cooperativa, com uma intenção solidária, senão a busca de uma vida melhor? A aproximação entre a ideia de ação cooperativa e de ação comunicativa tem sua essência focada na resposta dessa questão. Ao conceber a teoria habermasiana essencialmente formada pela teoria da ação, sem se prender aos detalhes da teoria dos atos da fala, o presente estudo dedicou-se à dimensão de uma teoria da ação voltada para o entendimento, na busca do bem comum, para a aproximação entre a ação cooperativa e a ação comunicativa.

O motivo de aplicar o termo "aproximação", em vez da afirmação de que a racionalidade comunicativa somente se aplica ao modelo autogestionário, está no fato de que este trabalho deteve-se nos conceitos iniciais da teoria habermasiana, não se aprofundando nas relações semânticas que configuram os atos da fala.

Dessa forma, o termo "aproximação" é um primeiro passo no caminho da afirmação categórica de que o paradigma habermasiano aplica-se somente ao modelo solidário e é, portanto, a contribuição do presente estudo para pesquisas futuras.

Metodologia

Foram aplicados dois métodos de pesquisa para subsidiar o presente trabalho. Na primeira etapa, foi aplicado o método qualitativo (pesquisa exploratória) por intermédio de entrevistas em profundidade. Nessa etapa, foram sondadas as variáveis que determinavam as relações dos trabalhadores com os processos comunicativos voltados para a gestão. Na segunda etapa, o método aplicado foi o quantitativo (pesquisa descritiva), com duplo objetivo: quantificar os atributos identificados na primeira etapa e verificar as possíveis diferenças entre os segmentos de trabalhadores da usina.

Foram utilizadas duas estratégias de pesquisa: 1) exploratória, estudo de caso por meio de entrevistas com aplicação de questionário semiestruturado; e 2) descritiva, por meio de levantamento, metodologia quantitativa com entrevistas presenciais. Essas estratégias são ideais para as perguntas do tipo "como" e "por que", conforme o que se propõe o estudo. Após a leitura da sondagem qualitativa, foi construído o questionário para a pesquisa quantitativa. Foram realizadas 390 entrevistas, sendo 24 exploratórias, com as três categorias de trabalhadores identificadas: 105 com trabalhadores da usina, 144 com trabalhadores do campo com cana do morador e 141 com trabalhadores sem cana do morador. São três amostras independentes, portanto, não foi utilizada uma ponderação conforme a representação de cada categoria investigada. Cada categoria foi examinada separadamente. Os questionários foram aplicados por alunos do curso de Geografia da Universidade Federal de Pernambuco.

Quanto à região das entrevistas, o universo se dividiu geograficamente em duas partes (zona de cima - até 10 km de distância da usina; e zona de baixo - acima de 10 km da usina) e administrativamente em seis ZPAs. A lógica da distribuição amostral considerou apenas a questão geográfica, apesar de trabalhar com as comunidades de todas as ZPAs. A distância da usina pode afetar a forma de avaliação do modelo, já que quanto mais distante da administração, mais complicadas são as aplicações das contrapartidas. Nas duas regiões, foram sorteados os engenhos onde foram aplicados os questionários.

O universo pesquisado foi composto por 838 trabalhadores credores rurais e 451 trabalhadores da usina, somando um total de 1.289 trabalhadores credores da massa falida.

Não foram considerados na amostra os credores que não estão trabalhando de forma permanente, como, por exemplo, os trabalhadores demitidos pelos usineiros e que trabalham como temporários.

Os principais objetivos da pesquisa exploratória foram: 1) conhecer a forma como o público-alvo da investigação se porta ante ao desafio da prática comunicacional intersubjetiva; 2) conhecer as categorias de trabalhadores no que diz respeito à adesão ao processo de gestão solidária; e 3) conhecer os padrões de comportamento referentes ao esforço adicional para a participação no modelo autogestionário.

Resultados

Os principais objetivos da pesquisa exploratória foram atendidos. Em primeiro lugar, o conflito entre o conceito coletivo e o ímpeto individualista não foi considerado um insucesso do processo gestionário. O que se percebeu nas entrevistas é que essa diferença evidenciava a articulação dialógica dos trabalhadores na busca do entendimento na defesa das ideias em que acreditavam. Em segundo lugar, as entrevistas revelaram a diferença de comportamento dos trabalhadores da usina e do campo, além de distinguir dois tipos de trabalhadores do campo: os favoráveis ao processo autogestionário e à reforma agrária coletiva, e os desfavoráveis a esses aspectos. Em terceiro lugar, as entrevistas propiciaram o entendimento sobre os padrões de comportamento quanto à participação no modelo autogestionário. Concluiu-se que a não participação no programa Cana do Morador não se relacionava com o problema da negativa ao esforço adicional, mas sim, à crença de que o modelo coletivo não era satisfatório e que a cana era um bom negócio somente para os ricos.

O diagrama exposto no Quadro 3 esboça as principais conclusões que a pesquisa exploratória proporcionou para a construção do questionário do estudo quantitativo. O diagrama considera duas dimensões para a avaliação dos argumentos apresentados pelos entrevistados. Uma dimensão descreve a intensidade com que um determinado argumento esteve presente na comparação entre as entrevistas, sendo exposto com forte ou fraca intensidade (presença do tema nas entrevistas). Outra dimensão descreve a qualificação do argumento ante a perspectiva da economia solidária, assim, os argumentos foram pontuados como positivos ou negativos. Na conjugação das duas dimensões, o diagrama é composto por quatro tipos de argumentos na avaliação da intensidade/qualificação para cada categoria de trabalhador: argumentos positivos com forte intensidade; argumentos positivos com intensidade fraca; argumentos negativos com forte intensidade; e argumentos negativos com intensidade fraca.


Observa-se que, para a categoria de trabalhadores do campo, alguns argumentos na avaliação da intensidade/qualificação mostraram-se contraditórios como, por exemplo, o tema da reforma agrária, que apareceu tanto na defesa da reforma individual quanto na da coletiva.

Tal constatação levou à ideia de segmentação do trabalhador do campo em duas categorias para a investigação com o estudo quantitativo: trabalhadores do campo e trabalhadores da usina.

Os dados da pesquisa de campo evidenciam um estado de consciência que privilegia a ação comunicativa entre os trabalhadores de Catende. Entre as variáveis aplicadas, as associadas se referem, principalmente, ao tema da intersubjetividade, da valorização da transparência e do acesso às informações da empresa. Nas quatro categorias de trabalhadores investigadas, observa-se a associação entre duas variáveis que representam o domínio do trabalhador sobre o tema que se pretende debater com outros trabalhadores e a qualificação das informações recebidas da direção.8 8 Os dados foram analisados em uma perspectiva quantitativa, segundo o método de Análise Fatorial, que investiga as relações multivariadas, para identificar grupos de variáveis que formam dimensões latentes (fatores), ou seja, busca-se o menor conjunto de fatores, por meio da reunião de preposições, segundo a mesma tendência de correlação estatística, para que se possam fazer julgamentos de aspectos que têm a mesma relevância frente ao conjunto de assertivas. Utilizou-se, mais especificamente, o método Varimax de matriz rodada através do software SPSS (Statistical Package for the Social Sciences). Ver Hair, Anderson, Tatham et al (2005) para uma descrição clara sobre a aplicação da Análise Fatorial. Dessa forma, independentemente do local de trabalho, atividade ou nível de engajamento ao modelo solidário, os temas referentes à preocupação com o fato de ser entendido e com o enriquecimento dos repertórios informativos estão presentes. Entender e ser entendido são as preocupações centrais que perscrutavam o relacionamento dos trabalhadores com o sistema solidário. Três fatores afastavam os trabalhadores do conceito de indivíduo simplesmente performático: preocupação em entender o outro, ser entendido pelo outro e o aumento do repertório informativo. Tais preocupações aproximam o trabalhador de Catende do conceito geral de racionalidade comunicativa habermasiana, sobretudo no que se refere à pragmática universal: a expressão da força unificadora do discurso orientado para o entendimento.

Percebeu-se no trabalhador da usina a ligação com o "domínio do tema-contribuição das informações", o fato mais marcante do processo autogestionário que vive. Independentemente de suas insatisfações, por não encontrarem vantagens substanciais na comparação do modelo praticado com a gestão anterior, essa categoria de trabalhador valorizava os conceitos da interação comunicacional e a construção de normas consensuais. A insatisfação com os efeitos da gestão praticada, sobretudo ao observarem que a categoria de trabalhadores do campo alcança benefícios financeiros e oportunidades, ao contrário de sua própria categoria, não impediu que os trabalhadores da usina observassem e valorizassem o ambiente que possibilitasse a busca pela interação consensual.

O trabalhador do campo sem cana do morador, crítico ao modelo solidário implementado, além do binômio "domínio do tema-contribuição das informações", desenvolvia cognitivamente outras questões que se referiam à prática comunicativa: intersubjetividade e performance administrativa estavam também presentes no quadro de referência dessa categoria, seja para alcançar um maior nível de informação para reforçar as críticas e persuadir outros trabalhadores, seja para valorizar, entre os fatores rejeitados, os que se relacionam com a interação comunicativa. A diferença entre os dois comportamentos possíveis é o aspecto consensual da interação.

Análise fatorial

Além das questões de segmentação e de enquadramento conceitual, o questionário contou com 16 assertivas que deveriam ser respondidas por meio de uma escala de Likert. Os dados foram analisados em uma perspectiva quantitativa, segundo o método de Análise Fatorial, que investiga as relações multivariadas para identificar grupos de variáveis que formam dimensões latentes (fatores). Ou seja, busca-se o menor conjunto de fatores, com a reunião de preposições, segundo a mesma tendência de correlação estatística, para que se possam fazer julgamentos de aspectos que têm a mesma relevância frente ao conjunto de assertivas. Mais especificamente, usando o método VARIMAX de matriz rodada por meio do software SPSS.

Para descobrir a existência de correlações entre as variáveis e determinar a adequação da análise fatorial, utilizaram-se dois testes estatísticos: KMO (Kaiser-Meyer-Oklin) e Esferecidade de Bartlett. Em seguida, verificou-se o "enviesamento" dos dados, problema denominado "consistência interna"; um dos principais testes que medem este parâmetro é o Alfa de Cronbach.

Antes da aplicação dos testes, é necessário expor os resultados das questões aplicadas para cada categoria definida. Os resultados mostram diferenças entre as respostas das três categorias de trabalhadores. O Quadro 4 expõe o resultado da aplicação da escala, com o resultado médio da pontuação entre cinco e um.


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O trabalhador do campo sem cana do morador, como esperado, apresenta-se mais resistente ao modelo. A nota três na escala equivale ao ponto médio de aceitação. Entre esses trabalhadores, a nota média não passou de três em nenhuma das questões.

Para a Análise Fatorial, quatro categorias serão investigadas: trabalhador da usina, trabalhadores do campo com cana, trabalhador do campo sem cana e trabalhadores do campo a favor de uma reforma coletiva. São dois os objetivos da aplicação da Análise Fatorial. O primeiro é identificar, para cada categoria, as variáveis que se associam a outras em uma correlação estabelecida subjetivamente pelos entrevistados. A segunda, criar grupos de variáveis correlacionadas para que se interpretem tais associações subjetivas. Para cada uma das categorias, foi realizada a Análise Fatorial para cumprir os objetivos supracitados.

Outra definição importante para que se compreenda a Análise Fatorial, é a da rotação Varimax. Outros formatos de rotação são possíveis na Análise Fatorial. A compreensão do processo de rotação também é necessária: uma rotação dos eixos de referências dos fatores em torno da origem até alcançar outra posição. O efeito da rotação é redistribuir a variância para obter um padrão de fatores com maior significado. O critério da rotação Varimax concentra-se em simplificar ao máximo os vetores da matriz de fatores. A simplificação máxima é alcançada quando existem números 1 e 0 em uma coluna. O método Varimax maximiza a soma das variâncias das cargas requeridas da matriz de fatores. Com a abordagem rotacional, há uma tendência em obter cargas mais extremas (isto é, próximas de -1 ou +1) e algumas cargas próximas de zero em cada coluna da matriz. Assim, a rotação Varimax permite interpretar os fatores mais facilmente ao indicar uma associação positiva ou negativa clara entre a variável e o fator, ou uma ausência de associação se o valor está próximo de zero. Desse modo, a rotação Varimax proporciona a forma mais clara de separação dos fatores.

Levaram-se em conta, no presente trabalho, algumas informações que diferenciam significativamente os trabalhadores de Catende, no que diz respeito às questões investigadas. A primeira diferenciação é o local de trabalho: trabalhadores do campo e da usina, que avaliavam distintamente o processo, além de considerarem a vida da outra categoria melhor que a sua. Enquanto os trabalhadores do campo reclamavam dos salários maiores na usina, os trabalhadores da usina afirmavam que os trabalhadores do campo tinham maiores oportunidades de ampliar a renda por intermédio da cana do morador.

Os trabalhadores do campo não podem ser estudados como um todo. Como já explicado, há conflitos ideológicos internos. Desta forma, contemplando tais diferenças, três categorias de trabalhador do campo foram pensadas: trabalhador com cana do morador, trabalhador sem cana do morador e trabalhador do campo que é a favor da reforma agrária coletiva.

Considerando as categorias, ou tipos de trabalhadores, a análise dos dados, por meio do instrumento estatístico Análise Fatorial, será realizada segmentadamente. Ou seja, para cada categoria, será realizada uma bateria de testes para obter as variáveis subjetivamente correlacionadas pelos respondentes. Para a primeira categoria avaliada, serão apresentadas as análises mais detalhadamente. Para as demais, serão expostas as informações principais mais resumidamente.

Trabalhador da usina

Primeiramente, sonda-se se a base de dados está adequada ao uso da Análise Fatorial. As variáveis testadas (entre a questão 10 e 26 do questionário aplicado) foram submetidas inicialmente aos testes KMO e de Bartlett. O valor de KMO chancela a análise fatorial. O teste de Bartlett, com uma significância inferior que 0,05 indica ausência de correlação.

A partir daí, inicia-se o processo de exclusão das variáveis que enfraquecem o modelo. A primeira avaliação para a exclusão de variáveis foi realizada pela análise de communalidades, onde devem ser excluídas as variáveis com valor inferior a 0,500 (Quadro 4).

Como pode ser observado, esta avaliação sugere a retirada de duas variáveis: P10 e P26. Antes, porém, da exclusão das variáveis apontadas acima, outro teste para a avaliação deve ser realizado com o objetivo de testar a fidedignidade da relação entre as variáveis testadas e apontar outras variáveis que devem ser excluídas do modelo. Observa-se também que o valor do "Cronbach's Alpha" é inferior ao valor que se considera aceitável, 0,600 (Quadro 5).


O valor baixo pode ser proveniente dos efeitos das variáveis que enfraquecem o modelo que ainda não foram retiradas. Outra questão que deve ser avaliada antes do corte sugerido pela análise de communalidades é a avaliação do "Cronbach's Alpha if Item Deleted" - as variáveis que apresentam valores superiores ao "Cronbach's Alpha" devem ser excluídas.

Retiradas as variáveis sugeridas, os testes foram realizados novamente. O KMO, apesar de ter reduzido de 0,659 para 0,643, continua chancelando a utilização da Análise Fatorial. O indicador "Cronbach's Alpha" aumentou de 0,403 para 0,518, e o grau de fidedignidade continuou abaixo do valor de corte. A análise de communalidades sugere a extração de mais uma variável e a avaliação do "Cronbach's Alpha if Item Deleted", o corte de mais quatro questões. O Quadro 6 expõe as variáveis que devem ser retiradas por essa avaliação.


Efetuando a extração das variáveis sugeridas, apenas quatro questões permanecem no modelo. Porém, alguns efeitos indesejados ocorreram. O saldo de quatro variáveis é pequeno para avaliações mais profundas, mas se tratando do trabalhador da usina, pode-se considerar razoável pelo alto nível de rejeição às suas atuais condições de vida relacionadas ao trabalho constatado na etapa qualitativa. Outro aspecto é que o KMO foi reduzido de 0,643 para 0,498, ou seja, para um valor inferior ao limite do valor de corte. A análise de communalidades não sugere mais nenhum corte. O "Cronbach's Alpha" aumentou de 0,518 para 0,576, porém, a avaliação do "Cronbach's Alpha if Item Deleted" sugeriu mais dois cortes. Desta forma, a Análise Fatorial comprova uma real relação entre duas variáveis apenas.

Aplicando novamente os testes para as duas variáveis restantes, os resultados que comprovam a correlação são significativos. O percentual de explicação das variáveis para o modelo é de 88,4%, o KMO é de 0,500, o "Cronbach's Alpha" aumentou de 0,576 para 0,857 e a matriz de correspondência indica uma associação de 0,940 entre as variáveis restantes. Considerando o segmento avaliado e o grau de associação encontrado, foi aceito o resultado da Análise Fatorial como satisfatório.

De todas as questões sondadas e testadas, apenas duas se correlacionam significativamente e essa associação subjetiva apresenta-se fundamentada em uma base temática: a valorização da intersubjetividade nas relações de trabalho. O Quadro 7 expõe as duas questões apontadas pela Análise Fatorial.


O trabalhador da usina mostrou-se interessado na participação e no seu repertório de informações. O enriquecimento do repertório de informações desse trabalhador está intimamente ligado ao processo intersubjetivo. Ou seja, mostra-se interessado não em uma participação apenas performativa, mas em realmente contribuir com informações precisas e sobre as quais tenha domínio, para decidir e compartilhar. Por maior que fosse a insatisfação dessa categoria, eles percebiam satisfatoriamente os benefícios da participação, do conhecimento e das relações intersubjetivas patrocinadas pelo modelo solidário. Tais relações (conhecimento, participação e intersubjetividade) são questões-chave da ligação Economia Solidária-Teoria Habermasiana.

Trabalhador do campo sem cana do morador

O banco de dados das entrevistas com trabalhadores sem cana do morador apresenta o KMO com 0,655 e não sugere nenhuma extração pelo método communalities. O "Cronbach's Alpha" apresenta-se com um excelente nível, 0,890. A avaliação do "Cronbach's Alpha if Item Deleted" sugere a extração de três variáveis.

Após as extrações sugeridas, o KMO apresenta-se mais forte com 0,778 e o método communalities sugere o corte de mais uma variável do modelo. O "Cronbach's Alpha" evolui para 0,898 e a análise do "Cronbach's Alpha if Item Deleted" sugere a extração de uma variável, a mesma indicada pelo método communalities.

Com as extrações, o KMO apresenta-se com 0,776, a análise de communalities não sugere mais extrações, o "Cronbach's Alpha" evolui para 0,907 e a análise do "Cronbach's Alpha if Item Deleted" não sugere mais extrações. Dessa forma, a base de dados está ajustada para a avaliação das correlações.

A avaliação da variância total mostra que as variáveis são agrupadas em três fatores e que os três fatores (ou grupos de variáveis) explicam 72,15% das correlações existentes, como indica o Quadro 8.


A princípio, os entrevistados associaram subjetivamente as variáveis em três dimensões específicas. Comprovadas as associações em fatores, o passo seguinte é a interpretação das associações em blocos, em conformidade com o contexto em que vivem os trabalhadores e a relação com o sistema de Economia Solidária. A comprovação sobre os três fatores pode ser observada também de forma gráfica. O valor de corte, neste caso, é o de Initial Eigenvalues igual a 1. Portanto, os fatores inferiores ao valor de corte devem ser desconsiderados. O Gráfico 1 expõe o gráfico indicativo de que apenas três fatores apresentam valores acima de 1.


Apesar da indicação dos três componentes, as variáveis se associam apenas a um deles. Com isso, sugere-se a rotação Varimax para a observação do comportamento das variáveis com relação às associações nos três fatores. Com a rotação, confirma-se a formação dos três grupos de fatores que constroem as três dimensões subjetivas de correlação. O primeiro fator, composto por quatro variáveis correlacionadas, caracteriza-se por características relacionadas à participação, ao entendimento das informações relativas à empresa e ao entendimento dos discursos dos outros trabalhadores.

O segundo fator refere-se à avaliação performativa da empresa. Mostra-se, aqui, a preocupação destes trabalhadores, caracterizados em sua maioria pela não adesão ao processo solidário, desempenho histórico e expectativa com o desempenho futuro da instituição. Os valores destas respostas para o grupo de trabalhadores sem cana do morador são baixos, mostrando a insatisfação com tais quesitos.

O terceiro fator, assim como os trabalhadores da usina, mostra a preocupação da categoria com a construção do repertório informativo para a participação discursiva nas decisões. Independentemente da forma de uso do discurso, favorável ou contra o modelo, os trabalhadores valorizavam tanto o discurso quanto o repertório de informações para que a participação seja revestida de elementos relevantes.

O Quadro 9 expõe os três fatores subjetivamente constituídos pelos trabalhadores sem cana do morador.


Os fatores demonstram que, mesmo os que tendiam à insatisfação e apresentavam-se contrários ao processo autogestionário, relacionavam-se com variáveis que fazem parte da construção ideológica do modelo solidário. Ou seja, esses trabalhadores, utilizavam os mecanismos autogestionários para expor seus discursos contra o modelo solidário. Desta forma, o modelo servia aos insatisfeitos como manifestação de pensamentos, mesmo que contrários ao modelo solidário.

Trabalhador do campo com cana do morador

Após as sucessivas intervenções estatísticas no banco de dados, observou-se que os trabalhadores com cana do morador construíam subjetivamente quatro fatores. Com a rotação Varimax, é possível visualizar as variáveis correlacionadas subjetivamente. A intersubjetividade é bastante valorizada pelos trabalhadores, assim como o reconhecimento do papel da participação.

O Quadro 11 mostra os fatores e as devidas denominações, evidenciando os conceitos construídos no quadro de referência dos trabalhadores.


Trabalhador do campo que apoia a reforma agrária coletiva

Aplicados os instrumentos da Análise Fatorial, três fatores são expostos na avaliação de associações entre as variáveis. O quadro abaixo mostra os fatores construídos subjetivamente pelos trabalhadores que se mostram mais solidários:

Podem ser observados os atributos que fortalecem tanto os argumentos da aplicação da racionalidade comunicativa quanto os da implementação da gestão solidária. O primeiro fator expõe a associação entre as variáveis relacionadas à construção de repertórios informativos, a participação e também a expectativa com os resultados do esforço adicional. O segundo fator relata a importância dada ao preparo dos atores sociais para a efetiva gestão participativa. O terceiro fator reforça o primeiro, com a questão do repertório informativo para eles se tornarem potencialmente capazes de participar efetivamente dos processos decisórios.

Conclusões

A mitologia grega conta a história de Eco, a jovem que encobria os erros conjugais de Zeus. Em suas fugas do Olimpo, Zeus contava com a ajuda de Eco para ludibriar sua mulher, Hera. Descoberta a farsa, Hera, não podendo se vingar de Zeus, lançou sobre Eco uma maldição, retirando seu poder de fala espontânea. Eco passou a repetir o que ouvia, o que era dito pelos outros. Eco se refugiou em um bosque, onde também estava Narciso, vítima de uma maldição. Depois de uma tentativa frustrada de se aproximar de Narciso, por quem se apaixonara, sendo rejeitada pela ausência de espontaneidade, entristecida, definhou, deixando apenas sua voz próxima aos lagos.

Antes das primeiras entrevistas em Catende, temia-se um possível efeito: a possibilidade de um arranjo coletivo de reproduções discursivas, ou seja, reprodução do discurso de terceiros sem a racionalização do que se diz. O que foi desmentido ao final da investigação. "A maldição de Eco" não está presente em Catende.

A presença de pensamentos díspares e de discursos que se opõe ao pensamento da Economia Solidária entre os trabalhadores de Catende é o maior exemplo de que há um ambiente que propicia o debate em busca do interesse comum. O trabalhador de Catende não repete simplesmente o que é dito pela administração. O ambiente está repleto de oportunidades para a participação discursiva dos credores da massa falida. O modo de pensar a empresa no mundo da vida em Catende é composto, além da rotina dos trabalhadores, pelo ambiente externo que promove impressões distintas da filosofia empresarial da Economia Solidária. Algumas influências externas devem ser consideradas.

Catende não está isolada do mundo objetivo. Não é fruto de uma ilusão coletiva, nem, tão pouco, de qualquer espécie de alienação. Os trabalhadores de Catende sabem o que querem, discursam suas vontades, permutam convicções, buscam informações. Na intensa busca do querer, informam-se sobre outras realidades, rejeitam ou deixam-se influenciar por outras opiniões e ideologias contrárias ao espírito comunitário. Está presente em Catende um composto de informações e formatos sociais que enriquecem o repertório dos trabalhadores, possibilitando a defesa e crítica de ideias e convicções. Se por um lado as ideias antagônicas soam como ameaça, por outro, são símbolo de um repertório de informação que faz do trabalhador de Catende um ator social potencialmente capaz de interagir comunicionalmente.

Como pode ser observado no Quadro 13, as categorias de trabalhadores menos críticas ao modelo de gestão social implementada (trabalhadores com cana e trabalhadores favoráveis à reforma coletiva) associam mais variáveis, tematizando outros aspectos do processo autogestionário e da comunicação consensual em si.


Dessa forma, os aspectos da racionalidade comunicativa apontados por Habermas (um agente que se entende, com alguém, a respeito de algo) encontram sua evidência intencional (necessitando de uma comprovação da eficácia das práticas discursivas) entre os entrevistados.

Alguns aspectos que perscrutam a teoria habermasiana estão presentes no Projeto Harmonia, sobretudo no que se refere às relações intersubjetivas, uma das funções principais da pragmática universal - fator este que permeia a teoria do agir comunicativo, possibilitando a descolonização do mundo da vida e exercendo papel essencial para o exercício das relações dialógicas. Tais evidências aproximam a teoria habermasiana do processo de economia solidária.

Os detalhes semânticos da prática comunicativa não foram objeto deste estudo. Mas sim, a investigação sobre a reconstrução de um ambiente no qual é possível a prática comunicativa (pragmatismo universal). Conclui-se aqui que tal reconstrução é observada no Projeto Harmonia. No entanto, como já mencionado, a conclusão se resume ao caso de Catende e não se aplica a outras realidades onde está presente a perspectiva da economia solidária. Considerado isso, pode-se afirmar que, no que diz respeito ao conceito de pragmática universal, a teoria habermasiana se aproxima da economia solidária.

Para o caso de Catende, as últimas notícias são desoladoras. O projeto se perdeu em meio a graves denúncias de má gestão dos recursos financeiros, com prisões dos gestores por desvio de verbas. Houve também denúncias sobre as condições impróprias dos trabalhadores e fraudes contra a ordem jurídica trabalhista. O projeto que foi avaliado em 2007 perdeu-se no tempo ou apresentava indícios de um fim indesejado não percebido.

A contribuição do presente trabalho quanto à aproximação entre os dois modelos sugere pelo menos quatro estudos futuros: 1) a evidência da reconstrução das condições para a prática intersubjetiva para a defesa da aproximação entre a teoria habermasiana e outras experiências de economia solidária; 2) a investigação sobre as relações semânticas habermasianas dos discursos na prática intersubjetiva nas economias solidárias; 3) a associação entre participação e razão comunicativa, bem como a investigação das relações de causa e efeito entre a participação e a presença de racionalidade comunicativa; e 4) investigação sobre a possibilidade de gerar uma escala contínua de racionalidade comunicativa associada às respostas do indivíduo aos instrumentos comunicacionais.

REFERÊNCIAS

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______; SOUZA, A. R. A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. Coleção Economia (Org.). São Paulo: Contexto, 2000.

Artigo submetido em 22 de abril de 2013

Aceito para publicação em 28 de janeiro de 2014

  • HABERMAS, J. Racionalidade e comunicação Lisboa: Edições 70, 1996.
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  • 1
    Relatório interno: Plano de Gestão - Projeto Harmonia.
  • 2
    Ibid.
  • 3
    Ibid
  • 4
    Ibid.
  • 5
    Ibid.
  • 6
    Ibid.
  • 7
    As variáveis são fruto das questões do questionário aplicado na pesquisa quantitativa.
  • 8
    Os dados foram analisados em uma perspectiva quantitativa, segundo o método de Análise Fatorial, que investiga as relações multivariadas, para identificar grupos de variáveis que formam dimensões latentes (fatores), ou seja, busca-se o menor conjunto de fatores, por meio da reunião de preposições, segundo a mesma tendência de correlação estatística, para que se possam fazer julgamentos de aspectos que têm a mesma relevância frente ao conjunto de assertivas. Utilizou-se, mais especificamente, o método Varimax de matriz rodada através do
    software SPSS (Statistical Package for the Social Sciences). Ver Hair, Anderson, Tatham et al (2005) para uma descrição clara sobre a aplicação da Análise Fatorial.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Ago 2014

    Histórico

    • Recebido
      22 Abr 2013
    • Aceito
      28 Jan 2014
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