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Relações de poder na dialética entre o lugar local e o lugar global

Power relations in the dialectic of local place and global place

OPINIÃO

Relações de poder na dialética entre o lugar local e o lugar global

Power relations in the dialectic of local place and global place

Sergio Wanderley I; Juliana MansurII; Frederico BertholiniIII; Vanessa BrulonIV

IDoutorando em Administração pela FGV/EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Endereço: Praia de Botafogo, 190 – 4º e 5º andares, CEP 22250-900, Rio de Janeiro – RJ, Brasil. E-mail: sergiow@tropical.com.br

IIDoutoranda em Administração pela FGV/EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Endereço: Praia de Botafogo, 190 – 4º e 5º andares, CEP 22250-900, Rio de Janeiro – RJ, Brasil. E-mail: juliana.mansur@fgvmail.br

IIIDoutorando em Administração pela FGV/EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Endereço: Praia de Botafogo, 190 – 4º e 5º andares, CEP 22250-900, Rio de Janeiro – RJ, Brasil. E-mail: fredbsr@gmail.com

IVDoutoranda em Administração pela FGV/EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Endereço: Praia de Botafogo, 190 – 4º e 5º andares, CEP 22250-900, Rio de Janeiro – RJ, Brasil. E-mail: vanessabrulon@gmail.com

Introdução

A discussão que aqui se apresenta teve origem na última disciplina ministrada pelo Professor Marcelo Milano Falcão Vieira – "Métodos de Análise, Apresentação e Avaliação de Dados Qualitativos" – no curso de doutorado da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (EBAPE/FGV). Embora a temática a ser analisada na disciplina fosse de livre escolha dos alunos que a cursavam, a paixão do professor pela problemática do espaço nos contagiou e nos levou a adotá-la como pano de fundo para nossas análises.

Um acontecimento que faz parte do cotidiano dos alunos, professores e funcionários da Fundação Getulio Vargas (FGV), a construção do seu novo prédio, tornou-se objeto de investigação, na medida em que passou a produzir em nós desconfortos e inquietações mais profundos do que aqueles gerados pelos ruídos da obra. Quando nossos olhares se voltaram para os moradores da Rua Barão de Itambi, inspirados pelas discussões sobre a temática do espaço e das relações de poder que o compõem, apresentada a nós pelo Professor Marcelo, pôde-se especular que o transtorno que a obra lhes traz provavelmente vai além dos barulhos de que tanto se ouvem reclamações dentro dos prédios da FGV.

Foi, assim, a partir da noção de espaço cunhada por Santos (2009) como um conjunto de sistemas de objetos e sistemas de ações, indissociáveis, que a Rua Barão de Itambi passou a ser observada. Tomando a obra como objeto de análise, pode-se percebê-la como uma grande transformação no sistema de objetos daquela localidade que, provavelmente, traz implicações para o sistema de ações, constituído, principalmente, pelas relações de poder dos atores que ali atuam.

Nesse sentindo, com base na ideia trazida por Santos (2009) de que fixos e fluxos são interdependentes, o objetivo dessa pesquisa foi identificar a relação entre a construção do novo prédio da FGV e as transformações nas dinâmicas das relações de poder do espaço da Rua Barão de Itambi, no que diz respeito aos seus moradores.

A importância das discussões acerca do espaço para a área de administração em geral e de estudos organizacionais, em particular, foi destacada e fundamentada pelo Professor Marcelo em sala de aula e em conversas particulares com alunos e orientandos em inúmeras ocasiões. Nesse sentido, pretendemos, por meio deste trabalho, fazer uma homenagem ao Professor Marcelo, na medida em que se objetiva discutir uma temática para ele de extremo apreço, mas que infelizmente ficou como um projeto inacabado. Embora essa seja uma reflexão preliminar – talvez ainda rasa em seu aspecto teórico, mas rica em afeto –, tem a intenção de instigar uma discussão que, tanto na visão do professor que aqui se pretende homenagear como também na daqueles que escrevem, tem grandes potenciais contribuições para área de estudos organizacionais.

Vale ainda ressaltar que essa homenagem traz com ela um ato de gratidão àquele que desempenhou em nossa formação acadêmica múltiplos papéis – de professor, orientador, mentor, amigo –, todos eles tão bem desempenhados que deixam uma enorme falta em seu lugar. Mas deixam também uma grande herança, e das mais preciosas: o conhecimento e a curiosidade acadêmica. E é em uma tentativa de fazer um bom uso dessa herança que esse trabalho se apresenta como um incentivo para que seja dada continuidade ao seu projeto inacabado.

A Dialética do Espaço: o Local e o Global em Tempos de Globalização

A temática do espaço, discutida pelo Professor Marcelo, principalmente em seu livro "Espaços econômicos: geoestratégia, poder e gestão do território", em parceria com seu pai, Euripedes Falcão Vieira, geógrafo de formação, pode ser usada de forma interdisciplinar e possui potenciais contribuições para a área de gestão e estudos organizacionais, como mostraram os autores no referido livro. Tomando a geografia como ponto de partida, a noção de espaço trabalhada pelos autores possui influências, especialmente, da obra de Milton Santos, muito admirada pelo Professor Marcelo.

Ao longo de seu percurso em busca de devolver à geografia seu objeto perdido, Santos (2008a) propõe que a categoria espaço seja pensada como um produto histórico, atentando para sua gênese, funcionamento e evolução. Como produto histórico, a definição de espaço geográfico torna-se ainda mais desafiadora, já que este muda com o processo histórico e é também um espaço social (SANTOS, 2008a). O autor reforça, diante disso, a impossibilidade de uma definição imutável do conceito.

Em seu primeiro esforço para uma definição de espaço, Santos (2008a, p. 153) o pensa como um conjunto de fixos e fluxos, e o define como "um conjunto de relações realizadas através de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma história escrita por processos do passado e do presente".

Em obra mais recente, "A natureza do Espaço", publicada em 1996, Milton Santos retoma a discussão e explica que os fixos estão se tornando cada vez mais artificiais, enquanto os fluxos, cada vez mais numerosos. Propõe, a partir disso, um outro par de categorias para se pensar a natureza do espaço, quais sejam, a configuração territorial e as relações sociais. A configuração territorial é pensada pelo autor como o conjunto de sistemas naturais e os acréscimos que os homens os impõem, possuindo sua existência material própria. Já as relações sociais são entendidas como aquilo que dá à configuração territorial a sua existência social.

Santos (2009) propõe, assim, uma nova definição de espaço. Para o autor, "o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá" (SANTOS, 2009, p. 63). O autor reforça a ideia de que os sistemas de objetos e os sistemas de ações não podem ser pensados um sem o outro. Os sistemas de objetos dão forma às ações, e os sistemas de ações criam novos objetos. Eles interagem e, por meio desta interação, o espaço se transforma. Diante dessa indistinguibilidade, o autor propõe que a interação entre os dois sistemas seja tratada, ao mesmo tempo, como processo e como resultado. O espaço é, então, dinâmico e unitário, contendo materialidade e ação humana (SANTOS, 2008b).

Ao destacar a globalização como uma nova fase da história humana, Santos (2008b) defende que nela o espaço geográfico sofre modificações. Tal transformação é denominada pelo autor como a mundialização do espaço, a qual ele caracteriza como, dentre outras coisas, a transformação de territórios nacionais em espaços nacionais da economia internacional, a aceleração das formas de circulação, bem como o aumento da tensão entre localidade e globalidade (SANTOS, 2008c).

É, assim, dentro da lógica da globalização que se constituem os lugares-locais e os lugares-globais, a partir desta tensão entre localidade e globalidade descrita por Santos (2008c). Segundo Vieira e Vieira (2003), os espaços-locais se transformam em espaços-globais por meio da apropriação de espaços produtivos e de circulação produtivo, e novas relações de poder são formadas. Os lugares-locais, como descrito por Goulart (2006, p. 4), "delimitam o espaço da herança histórica que, mesmo reestruturado em função de estratégias globais, mantêm uma identidade". Já os lugares-globais "são espaços definidos por consequência da globalização neoliberal, fundamentalmente separando o centro da ação da sede da ação" (GOULART, 2006, p. 4). Vieira e Vieira (2003) explicam que o lugar-global constitui-se como o espaço em que as grandes corporações multinacionais realizam suas estratégias mundiais. É nos lugares-globais, segundo os autores, que as redes se conectam. O lugar-global é, assim, "um espaço construído para a economia global ou um território em redefinição, transformando-se em espaço econômico de inserção global" (VIEIRA e VIEIRA, 2003, p. 73).

As grandes corporações que passam a atuar mundialmente, nesse contexto de globalização, incorporam os espaços e passam a exercer poder sobre eles. Este processo gera uma fragmentação do espaço, que define uma nova realidade em que "entre o espaço local e o espaço global se estabelece uma dialética que une e fragmenta ao mesmo tempo" (VIEIRA e VIEIRA, 2003, p. 22). Assim, para a nova estratégia de produção, o espaço passa a ser o espaço mundial, sem fronteiras (VIEIRA e VIEIRA, 2003).

O confronto entre espaço-local e espaço-global, típico da globalização, materializa-se no lugar (GOULART, 2006). A este respeito, Spink (2001) explica que o lugar pode ser entendido como um local povoado, um espaço ocupado. Assim, segundo o autor, há muitos lugares em um local. É um termo que auxilia na compreensão das contradições advindas da globalização, porque em um lugar é possível que atuem ao mesmo tempo o internacional, o nacional, o regional e o local, isto é, "o global e o local se entrecruzam no lugar" (SPINK, 2001, p. 16).

Método de pesquisa

A Rua Barão de Itambi é composta por somente uma longa quadra e é a primeira paralela atrás da Praia de Botafogo. A ocupação inicial da região por moradores se deu pela nobreza do período colonial que nela construiu palacetes. Um dos mais famosos foi ocupado pela princesa, e depois rainha, Carlota Joaquina, no qual a pequena capela ainda se encontra de pé. Na segunda metade do século XX, quando foi construído o atual prédio da FGV, os palacetes começaram a dar lugar a prédios residenciais que foram ocupados por moradores que podemos classificar como sendo de classe média. Durante a década de 70, a rua passou por grandes transtornos com a passagem do metrô por sob a via, que foi totalmente reconstruída. Um dos entrevistados, que mora há quase 50 anos na rua, relatou este estorvo. Depois da passagem do metrô, vários grandes prédios com até 19 andares foram construídos até que no ano de 1983 um novo plano diretor urbano, que vigora até hoje, limitou os prédios residenciais a 11 andares e os comerciais a 3 andares.

A primeira técnica de coleta de dados qualitativa utilizada para avaliar as relações de poder entre os agentes do entorno da obra da FGV na Rua Barão de Itambi foi a observação. Para tanto seguimos o protocolo indicado por Emerson, Fretz e Shaw (1995). Três pesquisadores foram a campo de forma isolada e em dias alternados. Posteriormente, analisamos conjuntamente as notas de campo apresentadas por cada um. Este conjunto de dados forma um total de 5h e 30 minutos de observação para 8 momentos, com 12 páginas de produto.

Esta técnica foi importante para avaliar a dinâmica do entorno da obra bem como para identificar os primeiros agentes e relações de poder. Foi a partir das observações que decidimos por realizar entrevistas com os vizinhos moradores do entorno da obra. As entrevistas foram realizadas, seguindo a técnica proposta por McKracken (1988). Realizamos no total 11 entrevistas com moradores de diferentes prédios, perfazendo um total de 450 minutos de gravação. Após análise dos conceitos apresentados no livro do professor Marcelo (VIEIRA e VIEIRA, 2003), chegamos às seguintes definições constitutivas para a análise de dados:

Figura 1


A análise de dados foi feita por meio da análise argumentativa, que consiste em um método que "tem como objetivo oferecer uma visão metodológica compreensiva da análise das estruturas da argumentação, com propósito de compreender melhor os parâmetros que influenciam os debates públicos" (BAUER e GASKELL, 2002, p. 219). Sendo assim, foi possível fazer uma análise mais profunda e detalhada das falas dos moradores entrevistados. Além disso, este método possibilitou compreender como as afirmações se estruturam, avaliando sua consistência, bem como a força dos argumentos adotados pelos moradores da Rua Barão de Itambi.

O lugar de cada um

É interessante que absolutamente todos os entrevistados, moradores do entorno, trazem a marca do lugar como arena de demandas em suas falas (SPINK, 2001). Ainda que não tenham levado a demanda a cabo, tanto individual, quanto coletivamente (através da associação de moradores, ou não), há uma evidente preocupação com os impactos provocados pelas organizações que atuam na produção do espaço, sejam os transtornos do presente, sejam as perspectivas de mudanças bruscas no local para o futuro.

Há ações individuais, desarticuladas e não contínuas, de curto alcance: "[ ] É, aí eu bati lá. [...] Eu bati 11h30 da noite lá. [...] Vocês vão parar com essa porra desse trator aí?! [...] Vou ligar para 190, cara. 'Não, espera 10 minutos'. Eu falei: Não, silêncio é 10h da noite, já são 11h30" (E1).

Há também ações individuais que acabam se desdobrando em ações coletivas e que se propõem de longo alcance: "[...] Aqui nesse caderno tem todos os horários, com os dias, que eu registrei [...] O Rogério (nome fictício) do 28 (apartamento fictício) entrou na justiça, eu entrei no MP [...] Isso aqui eu reuni todas as informações, liguei pra síndica, conversei com a Regina, da AMAB" (E2).

Existe, em todo caso, uma crítica à forma como estas demandas são trazidas à arena das demandas. Nem todos os entrevistados creem na capacidade e na boa vontade da Associação de Moradores e Amigos de Botafogo (AMAB): "A AMAB é, não dá sequência a nenhum dos serviços [...] Eu quero ver se vocês conseguem me dizer quem é o responsável, diretor responsável de obras, [...] que os moradores da Rua Barão de Itambi, não é a Associação dos Moradores de Botafogo, não, os moradores da Rua Barão de Itambi possam ir lá fazer uma reunião" (E3).

De todo modo, o direcionamento da demanda parece ainda difuso, especialmente porque, muito embora haja clareza da assimetria de recursos de poder, não há tanta clareza sobre o papel dos diversos atores institucionais e sua participação concorrente na produção do espaço.

Então eu estou até hoje, depois de quase um ano, tentando saber quem é a pessoa da Fundação Getúlio Vargas que a gente possa discutir e falar. Nós entramos em contato com a Carioca e nos foi é... quase dito que era proibido falar com a Fundação Getúlio Vargas, que a responsabilidade é deles, a gente entende que a responsabilidade técnica é da Carioca, mas o dono da obra é a Fundação Getúlio Vargas (E3).

Para cada lugar, um argumento

Analisando os argumentos presentes nas falas dos moradores vizinhos, é possível entender os diferentes posicionamentos que constituem as questões base para o que podemos chamar de uma hegemonia do lugar global. Surge, portanto, uma inquietação: essa identificação e percepção que os moradores têm de seu lugar, por si só, constitui-se como elemento desencadeador de resistência do lugar local ao lugar global?

Para tentar responder a esta pergunta, é importante retomar a forma como os moradores falam de si mesmos no lugar local, e sua relação com o lugar global. Apesar de os vizinhos apresentarem um argumento de inferioridade em relação à FGV, possuem condições de se articular a instituições em que passam a enfrentá-la. A articulação entre os moradores, a AMAB e o Ministério Público leva à mudança na dinâmica das relações de poder na construção do espaço e, por algum tempo, o espaço local consegue conter o avanço do espaço global. Assim, podemos verificar que "o domínio do espaço econômico gera, particularmente, na temporalidade correspondente, um poder que pode se expressar sob forte influência na vida social e política" (VIEIRA e VIEIRA, 2003, p. 30).

Os argumentos apontam recorrentemente a esta constatação, da dominação do global em relação ao local, pelo que é possível identificar, basicamente a partir de dois argumentos. Seja a partir de um argumento simples, de desistência anterior à tentativa, dada a constatação da assimetria de recursos (de poder): "Aí, começaram a botar os motoristas dessas famílias pra fora e derrubaram tudo, inclusive o que era tombado pelo Patrimônio Histórico, e o busto do Getúlio Vargas eu não sei onde é que anda. [E não deu em nada isso] [...] Claro que não. Porque a Fundação tem dinheiro à beça" (E2). Seja a partir do argumento mais elaborado, da tentativa incólume, pela assimetria verdadeiramente manifesta, originado dos resultados concretos de decisões desfavoráveis aos moradores (pareceres judiciais):"Mas era fácil, você vai num grande advogado, que você sabe que ele tem um perfil, que ele milita, vai, apresenta sua causa, o senhor podia dar um parecer? Ele vai. Agora, você sai pra Brasília, é tudo mais difícil" (E4)

Foto 1

Cumpre notar, destarte, que a primeira fala é oriunda de uma moradora que se relaciona apenas tangencialmente com a AMAB, muito embora participe, enquanto que a segunda fala é da presidente da AMAB. Quando pensamos os discursos, é fundamental levarmos em conta os tipos de interdiscursividades presentes em falas mais institucionais ou menos institucionais. Atestar a tentativa e justificar a não tentativa parece ser uma preocupação de quem seria, a priori, institucionalmente responsável por tal.

Essa subordinação do local ao global, ou das organizações (e não organizações) de moradores em relação à FGV, em todo caso, é originada da conjugação entre uma constatação de superioridade do lugar global e percepção de inferioridade da capacidade dos moradores em alterar esta relação. Pode-se notar, nas falas, tanto a superioridade do global: "Nós ganhamos em primeira instância e aí, na segunda instância, o que que aconteceu [...] A partir do momento que o filho do ministro assume a causa, a coisa toma outro rumo no tribunal. [...] O filho do ministro tá no Supremo, vai ser difícil pra gente, em Brasília" (E4). Quanto à constatação de inferioridade dos moradores: "A gente não tem condição de botar, sabe, um grande advogado pra ir em Brasília sustentar uma briga, principalmente que vai até o supremo e ainda vamos ter que bater no ministro" (E4).

Na perspectiva que adotamos, estas afirmações implicam que os moradores assumem a consciência desse "fato". Sendo assim, há necessidade de agir perante ele, embora nem sempre seja uma ação tomada pelos moradores. Pode-se interpretar a existência de uma inferioridade, como uma afirmação da necessidade de resistência, havendo então, tanto a possibilidade de passividade face à ideologia dominante, quanto de (re)atividade.

Entretanto, do ponto de vista dos efeitos discursivos relativos à relação com o lugar global, o argumento dos moradores não questiona a ordem social, isto é, o lugar dos moradores como prioritariamente associado ao local, subordinados ao global. Tal fala parece construir a identidade dos moradores em relação às normas sociais, com a adesão indiscutível ao papel hegemônico do lugar global. Ao manter a ideologia dominante, este discurso acentua essencialmente o individualismo, o que pode acabar por restringir de forma eficaz as aspirações da associação de moradores e o caráter de resistência e luta contra o global: "Eu entrei no ministério público sim, porque eu tinha o direito, eu entrei, o Marco do 402 também entrou [...] bem ou mal existe uma lei, que a gente ia lutar. E aí, como esse outro do 202 também disse que ia entrar na justiça..." (E2).

Em suma, na dinâmica das relações de poder entre os lugares local e global no entorno da obra do novo prédio da FGV, pudemos verificar, a partir das entrevistas dos vizinhos moradores, a formação de dois grupos, que podem ser visualizados na Figura 2. Representando a dinâmica do lugar local, em ordem crescente de capacidade de articulação, estão: vizinhos moradores, síndicos e a AMAB. De outro lado, representando o 'lugar global' nas relações de poder, em ordem decrescente de capacidade de articulação, estão: a FGV, a Wrobel e a carioca Engenharia.


Tanto o lugar local quanto o lugar global têm seus atores principais bem definidos, embora os coadjuvantes sejam os mesmos, isto é, os técnicos, profissionais liberais como arquitetos, urbanistas e advogados. Existe uma tendência natural a conectá-los única e diretamente com o global – já que a concentração do econômico/financeiro acontece neste lugar – sem levar em conta suas conexões com o local. Contudo, no caso que estudamos, o local possui um nível de articulação também elevado, são moradores de classe média alta, eventualmente ocupando posições relevantes, possivelmente fazendo parte deste conjunto de atores coadjuvantes. Assim, os técnicos ora fornecem subsídios que acrescem a capacidade do global, ora pareceres que fortalecem e protegem o local. Como bem recorda um entrevistado, "Advogado que fazia parecer de graça, juristas, urbanistas, todos os nossos amigos [...] das associações, OAB [...] muita gente ajudou, muita gente fez laudo, fez parecer, fez parecer urbanístico" (E4). Daí estarem presentes tanto no lugar local como no lugar global.

Já o poder público, representado pelos três poderes, que de fato participam nas três esferas na dinâmica das relações de poder, acaba por determinar a imposição do lugar global sobre o lugar local, embora também tenham se posicionado em alternância. O tombamento representa um favorecimento – dentro do previsto pela legislação – ao lugar local, enquanto o "destombamento" – aparentemente não previsto – ao lugal global.

Era tombado. Era tombado por iniciativa da FGV, eles pediram o prefeito, o prefeito retirou esse prédio do tombamento. Nós entramos com uma ação no ministério público, porque entendíamos que você não pode destombar o que você tombou. Então, como ele não conseguiu destombar, ele publicou o decreto novamente com tombamento daquele conjunto excluindo esse número [...] como se nunca tivesse havido tombamento (E4).

O posicionamento dos atores que fazem a mediação entre os lugares, embora favorecendo o lugar local em dado momento, firma-se definitivamente ao lugar global, com determinações positivas e decisivas a este. Ao que a representante da AMAB pontua: "[...] o Ministério, a Prefeitura sempre do lado deles. E eu tento, né? Mas fica difícil. [...] A gente tentou muito, mas aqui você vê pelo RGI que tinha os palacetes"(E4). Esta fala ilustra muito claramente o quão determinante é a ação governamental na reprodução das assimetrias entre os lugares, é sempre importante recordar que isto se deve ao fato de que "os governos se limitam a atender aos interesses multinacionais, concedendo-lhes benefícios que as tornem competitivas no mercado internacional" (VIEIRA e VIEIRA, 2003, p.25).

Conclusões

A pequena história que trouxemos, de forma breve, mais do que ser apenas a história de uma obra em uma rua, faz parte de uma grande história, a história de submissão do local, da fragmentação, da assimetria de poder. É destas grandes histórias que normalmente falava o professor Marcelo, porque acreditava que a mudança só poderia acontecer, se nos aproximássemos de forma crítica delas, desvelando relações encobertas, trazendo à tona situações que os olhos do senso comum não costumam enxergar.

O caso torna-se ainda mais emblemático quando pensamos no lugar que o lugar local ocupa nesta situação específica, com moradores altamente articulados e dotados de recursos, como renda e conhecimento, cuja resistência se esperaria, portanto, mais exitosa, capaz de fazer frente ao poder global. Acontece que o esperado não é o ocorrido e essa pretensa articulação não gera, concretamente, nenhum impedimento à expressão do poder global na transformação do lugar e na produção do espaço. Adicionalmente, a luta organizada, através da AMAB, acaba esvaziada, dada sua incapacidade de seguir medindo forças com a FGV nas diversas arenas de disputa. Muito embora nossa conclusão pareça pouco esperançosa, ela corrobora a defesa de que as mudanças sociais só são possíveis por meio de transformações nas estruturas sociais subjacentes.

Dentre as inúmeras contribuições que o Professor Marcelo deixou para a área de estudos organizacionais, esse trabalho teve a intenção de ressaltar sua proposta de que a noção de espaço seja utilizada de forma interdisciplinar, e que as potenciais contribuições do conceito para a área sejam exploradas. Fica aqui a esperança de que essa proposta seja levada adiante, não só por aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo, mas também por aqueles que venham a entrar em contato futuramente com seu trabalho, e, principalmente, a certeza de que sua obra será lembrada por muitas gerações de pesquisadores, dando base para futuros avanços teóricos, tão prezados pelo nosso eterno Professor.

Artigo submetido em 09 de fevereiro de 2012 e aceito para publicação em 09 de março de 2012.

  • EMERSON, R.; FRETZ, R.; SHAW, L. Writing Ethnographic Fieldnotes. Cap. 1. Chicago: The University of Chicago Press, 1995. p.1-38.
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  • McKCRACKEN, G. The Long Interview. Newbury Park: Sage Publications, 1988.
  • SANTOS, M. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica 6. Ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008a.
  • ______. Da totalidade ao lugar. 1. Ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008b.
  • ______. SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal Rio de Janeiro: Record, 2008c.
  • ______. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. Ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009.
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  • VIEIRA, E. F.; VIEIRA, M. M. F. Espaços econômicos: geoestratégia, poder e gestão do território. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2012
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