Acessibilidade / Reportar erro

Avaliação da perfusão renal pelo Power Doppler em pacientes transplantados renais

Assessment of renal perfusion by Power Doppler in renal transplanted patients

Resumos

OBJETIVOS: O objetivo deste estudo é testar a aplicabilidade do estudo ultra-sonográfico com Power Doppler na identificação das alterações da perfusão dos rins transplantados e sua correlação com a reserva funcional renal e microalbuminúria antes e após a infusão de solução de aminoácidos intravenosos. MÉTODOS: Vinte e três pacientes transplantados renais foram avaliados pelo Power Doppler antes (fase basal), após 120 minutos (fase 1) e após 240 minutos (fase 2) da infusão intravenosa de aminoácidos. Concomitantemente, foram realizadas, nas três fases, dosagem de creatinina, avaliação do índice de filtração glomerular, da reserva funcional renal e de microalbuminúria. RESULTADOS: De acordo com os padrões de perfusão na fase basal pelo Power Doppler, descritos por Hoyer et al. em 1999, os pacientes foram divididos em três grupos: 12 pacientes com escore I, seis com escore II e cinco com escore III de perfusão renal. Nos enxertos renais com excelente perfusão renal (escore I), observou-se variação significativa das variáveis estudadas, tanto na fase 1 como na 2 (P CONCLUSÕES: Os achados sugerem que os transplantes com escore I de perfusão apresentam reserva funcional renal quando submetidos a estímulo com aminoácidos. No entanto, com a progressiva diminuição no grau de perfusão renal pelo Power Doppler, observa-se perda da capacidade dos rins transplantados em aumentar o índice de filtração glomerular como resposta a estímulos externos, com seqüente ausência de reserva funcional renal. A partir deste estudo, será possível criar novos horizontes para o entendimento da evolução dinâmica do processo de perda da função renal nos transplantados renais.

Power Doppler; perfusão renal; transplante renal


OBJECTIVES: The aim of this study was to determine the applicability of Power Doppler ultrasound in the identification of changes in perfusion of renal transplants and their correlation with renal functional reserve and microalbuminuria before and after the infusion of intravenous amino acids. METHODS: Twenty-three renal transplanted patients were assessed by Power Doppler before (baseline), 120 minutes (stage 1) and 240 minutes (stage 2) after the infusion of intravenous amino acids. At the same time, during the three stages, we measured serum creatinine, index of glomerular filtration, renal functional reserve, and microalbuminuria. RESULTS: According to predefined patterns of perfusion by Power Doppler, described by Hoyer et al. in 1999, the patients were divided into three groups: 12 patients with score I, six with score II, and five with score III of renal perfusion. In the renal grafts with an excellent perfusion (score I), there was a significant variation of the variables in stages 1 and 2 (P CONCLUSIONS: The findings suggest that the transplants with perfusion score I have renal functional reserve when stimulated with amino acids. Nevertheless, with the progressive reduction in renal perfusion by Power Doppler, there is a loss in the ability of transplanted kidneys to increase the index of glomerular filtration in response to external stimuli, resulting in absence of renal functional reserve. This study allows for the further understanding of the dynamic evolution of the process of renal function loss in renal transplanted patients.

Power Doppler; renal perfusion; renal transplant


ARTIGO ORIGINAL

Avaliação da perfusão renal pelo Power Doppler em pacientes transplantados renais

Assessment of renal perfusion by Power Doppler in renal transplanted patients

Ana Luiza Engelhorn; José Gastão R. de Carvalho; Carlos Alberto Engelhorn; Maria Fernanda Cassou

Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR. Programa de Pós-Graduação em Medicina Interna, UFPR, Curitiba, PR. Laboratório Vascular Não Invasivo Angiolab, Curitiba, PR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Ana Luiza Engelhorn Rua Deputado Heitor Alencar Furtado, 1720/901 CEP 81200-110 - Curitiba, PR Tel.: (41) 3279.1241 E-mail: ana.engelhorn@pucpr.br

RESUMO

OBJETIVOS: O objetivo deste estudo é testar a aplicabilidade do estudo ultra-sonográfico com Power Doppler na identificação das alterações da perfusão dos rins transplantados e sua correlação com a reserva funcional renal e microalbuminúria antes e após a infusão de solução de aminoácidos intravenosos.

MÉTODOS: Vinte e três pacientes transplantados renais foram avaliados pelo Power Doppler antes (fase basal), após 120 minutos (fase 1) e após 240 minutos (fase 2) da infusão intravenosa de aminoácidos. Concomitantemente, foram realizadas, nas três fases, dosagem de creatinina, avaliação do índice de filtração glomerular, da reserva funcional renal e de microalbuminúria.

RESULTADOS: De acordo com os padrões de perfusão na fase basal pelo Power Doppler, descritos por Hoyer et al. em 1999, os pacientes foram divididos em três grupos: 12 pacientes com escore I, seis com escore II e cinco com escore III de perfusão renal. Nos enxertos renais com excelente perfusão renal (escore I), observou-se variação significativa das variáveis estudadas, tanto na fase 1 como na 2 (P < 0,05), com exceção da microalbuminúria, que apresentou tendência a alteração significativa com um maior tempo de exposição ao estímulo (fase 2). O mesmo foi observado com os pacientes com escore II, porém sem variação nos níveis de microalbuminúria. Já os pacientes com escore III não apresentaram variações nos parâmetros estudados, estando nesse grupo os dois únicos pacientes que não apresentaram reserva funcional renal.

CONCLUSÕES: Os achados sugerem que os transplantes com escore I de perfusão apresentam reserva funcional renal quando submetidos a estímulo com aminoácidos. No entanto, com a progressiva diminuição no grau de perfusão renal pelo Power Doppler, observa-se perda da capacidade dos rins transplantados em aumentar o índice de filtração glomerular como resposta a estímulos externos, com seqüente ausência de reserva funcional renal. A partir deste estudo, será possível criar novos horizontes para o entendimento da evolução dinâmica do processo de perda da função renal nos transplantados renais.

Palavras-chave: Power Doppler, perfusão renal, transplante renal.

ABSTRACT

OBJECTIVES: The aim of this study was to determine the applicability of Power Doppler ultrasound in the identification of changes in perfusion of renal transplants and their correlation with renal functional reserve and microalbuminuria before and after the infusion of intravenous amino acids.

METHODS: Twenty-three renal transplanted patients were assessed by Power Doppler before (baseline), 120 minutes (stage 1) and 240 minutes (stage 2) after the infusion of intravenous amino acids. At the same time, during the three stages, we measured serum creatinine, index of glomerular filtration, renal functional reserve, and microalbuminuria.

RESULTS: According to predefined patterns of perfusion by Power Doppler, described by Hoyer et al. in 1999, the patients were divided into three groups: 12 patients with score I, six with score II, and five with score III of renal perfusion. In the renal grafts with an excellent perfusion (score I), there was a significant variation of the variables in stages 1 and 2 (P < 0.05), except for microalbuminuria, which presented a tendency to increase with a higher exposure time to the amino acid (stage 2). This pattern was observed in patients with score II, but without statistical difference in relation to the levels of microalbuminuria. Patients with score III did not present variations in the parameters. The only two patients who did not have renal functional reserve were in this group.

CONCLUSIONS: The findings suggest that the transplants with perfusion score I have renal functional reserve when stimulated with amino acids. Nevertheless, with the progressive reduction in renal perfusion by Power Doppler, there is a loss in the ability of transplanted kidneys to increase the index of glomerular filtration in response to external stimuli, resulting in absence of renal functional reserve. This study allows for the further understanding of the dynamic evolution of the process of renal function loss in renal transplanted patients.

Key words: Power Doppler, renal perfusion, renal transplant.

INTRODUÇÃO

O transplante renal é considerado a melhor forma de tratamento para a insuficiência renal crônica, a de menor custo e a que tem a perspectiva de oferecer superior qualidade de vida, reintegrando o paciente à sua vida social e profissional1-5.

Fatores hemodinâmicos têm recebido especial atenção nos últimos ano, por contribuírem para a gênese da lesão renal. Brenner et al. descreveram que, caso ocorresse hiperfiltração glomerular, haveria quebra da integridade da barreira glomerular, resultando em proteinúria, acúmulo de depósitos mesangiais e, eventualmente, esclerose glomerular. Tal situação pode ser simulada pelo aumento do fluxo plasmático renal em razão da vasodilatação estimulada por fatores extrínsecos - por exemplo, o conteúdo de proteínas da dieta, não sendo observado em outros tipos de alimentos, como gordura ou carboidratos6.

Bosch et al. demonstraram que uma carga de proteínas, via oral, poderia estimular o índice de filtração glomerular (IFG) acima do estado basal, provocando uma hiperfiltração renal. O IFG é uma função que se correlaciona com o grau de lesão no parênquima renal. Quando houver estímulo com dieta protéica, o IFG estará acima do seu estado basal e revelará a capacidade de filtração e a reserva funcional renal (RFR)7.

Existe, atualmente, uma busca por métodos acessíveis e não-invasivos que forneçam subsídios confiáveis para a avaliação e monitorização dos transplantes renais. Em 1993, Rubim & Adler descreveram uma nova técnica, que aumenta os sinais de retorno dos sinais de Doppler, sem levar em consideração a velocidade ou direção de fluxo do sangue. Essa técnica ficou conhecida como Power Doppler8. A grande vantagem dessa técnica é a possibilidade de estudo do baixo fluxo nas diversas partes do corpo, especialmente nos locais onde os sinais são fracos, seja pelo calibre, seja pela profundidade dos vasos. Essa técnica apresenta um grande potencial na avaliação da perfusão renal, pela maior sensibilidade no estudo dos vasos intraparenquimatosos, principalmente dos pequenos vasos arqueados do córtex renal, sendo três vezes mais sensível do que o eco-Doppler colorido convencional8-10.

O objetivo deste estudo foi testar a aplicabilidade do estudo ultra-sonográfico com Power Doppler na identificação das alterações da perfusão dos rins transplantados e sua correlação com a RFR e microalbuminúria (µALB) antes e após a infusão de solução de aminoácidos intravenosos.

POPULAÇÃO E MÉTODOS

População

Foram estudados, prospectivamente, 23 pacientes consecutivos - 15 homens e 8 mulheres - com idade entre 22 e 57 anos (média de 44 anos).

Foram incluídos no estudo adultos de ambos os sexos, sem distinção de compleição física ou biótipo, submetidos a transplante renal, em acompanhamento no ambulatório de nefrologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, que concordaram em participar do estudo, de acordo com o termo de consentimento livre e esclarecido.

Excluíram-se pacientes com alteração de conduta, que poderiam impedir a colaboração durante a realização dos exames complementares; pacientes que não puderam ser submetidos completamente a todo o processo de avaliação; e aqueles que não concordaram em participar do estudo.

Métodos

Os pacientes selecionados foram submetidos à orientação nutricional, que incluiu dieta padrão de 2.500 kcal/dia, contendo em média 59 g de proteína, 62 g de lipídios, 380 g de carboidrato, 83 mEq de sódio e 70 mEq de potássio, e foi seguida por 5 dias anteriores ao procedimento.

Todos os pacientes aceitos no estudo, depois de submetidos à avaliação clínica e orientação nutricional, foram encaminhados ao Laboratório Vascular após período de jejum noturno. Os pacientes traziam urina coletada durante as 24 horas anteriores, e amostras de sangue foram coletadas para avaliação de creatinina, uréia, µALB, glicemia e hemograma. Calculou-se a depuração de creatinina endógena, e seu valor foi considerado o IFG basal, sempre corrigido pela superfície corporal e expresso em ml/min/1,73 m.

A avaliação pelo método de imagem foi realizada por um mesmo ultra-sonografista vascular, usando-se a técnica convencional (ecografia vascular com Doppler colorido e pulsado) e mapeamento da perfusão renal com Power Doppler em três fases:

- Paciente em jejum, após repouso de pelo menos 20 minutos (fase basal);

- Depois de 120 minutos de infusão intravenosa de solução de aminoácidos sem eletrólitos - Aminoplasmal L® - B. Braun S. A. (fase 1);

- Depois de 240 minutos de infusão intravenosa dos aminoácidos (fase 2).

Realizou-se a coleta de sangue e de urina para avaliação laboratorial completa, nas fases basal, 1 e 2, no mesmo momento em que estavam sendo avaliados pelo método de imagem. Nas fases 1 e 2, não se realizaram hemograma e glicemia, realizados apenas na fase basal.

Calculou-se a depuração de creatinina com 120 minutos e com 240 minutos de infusão de aminoácidos, e seu valor médio foi considerado como o IFG pós-estimulação. Definiu-se a RFR como a diferença entre o valor máximo do IFG obtido após a carga protéica intravenosa e o valor da IFG basal.

A avaliação pela ultra-sonografia vascular com Doppler foi realizada no momento de coleta de sangue e urina para análise laboratorial, para traduzir de maneira inequívoca os três momentos analisados. Os pacientes foram examinados em posição supina, com equipamento Siemens Sonoline Elegra®, inicialmente com transdutores curvos de baixa freqüência (3,5 MHz). Os ajustes de imagem priorizaram as estruturas mais profundas com ganho adequado, low dynamic range e foco na região de interesse. Os enxertos foram examinados pelo modo-B do ultra-som. Realizou-se a mensuração do tamanho do rim transplantado e a avaliação morfológica do parênquima renal. Com o auxílio do mapeamento colorido do fluxo, realizou-se o estudo da resistência vascular na artéria renal e em uma ou mais das artérias segmentares, interlobares e arqueadas, pelo cálculo dos índices de resistência (IR) e pulsatilidade (IP).

A avaliação da perfusão renal com mapeamento do fluxo com Power Doppler foi realizada com transdutor linear de 5 MHz, iniciando com uma varredura transversal de um pólo a outro do rim. Usando recurso de alta resolução para avaliar a área de interesse, ajustou-se o tamanho da caixa da cor, fixo para todos os pacientes, em 3 cm de profundidade e 2 cm x 2,5 cm de largura. Escolheu-se uma área de boa representatividade, incluindo uma região medular (cercada por vasos segmentares e interlobares) e uma região cortical (com vasos arqueados), tomando-se o cuidado de incluir na amostra aproximadamente 5 mm de tecido mole peri-renal superficial. Esse tecido marginal serve como "contraste", como uma região de controle para os sinais de artefato, permitindo, assim, melhor visualização da perfusão cortical.

A técnica padrão para avaliar detalhadamente os locais de perfusão dos enxertos foi obtida com o seguinte ajuste do equipamento: freqüência transmitida de 5,5 MHz, escala de cinza com cerca de 22 dB, ganho da cor em torno de 75 dB, 12 fps (número de quadros por segundo) e o botão de ganho do Doppler em posição neutra, que não foi alterada durante o exame.

Os rins avaliados foram categorizados dentro dos seis estágios de intensidade de perfusão, nas três diferentes fases de avaliação, considerando os padrões descritos por Hoyer et al.11.

Escore I - alta perfusão, perfusão de coloração homogênea na cortical, com limites bem definidos dos vasos em direção à cápsula e região medular;

Escore II - boa perfusão, fluxo em direção à cápsula apresenta leve irregularidade da cor nas bordas, com boa definição dos vasos do parênquima, e vascularização tem distribuição radiada;

Escore III - perfusão ligeiramente diminuída, redução não-homogênea da perfusão, mostrando áreas sem cor entre os vasos visíveis;

Escore IV - perfusão claramente diminuída, acentuada redução da coloração dos vasos interlobares, menos de 50% da camada cortical é colorida, observando-se apenas flash de cor;

Escore V - perfusão pobre, limitada aos vasos interlobares e parte dos vasos arqueados, quase ausência de fluxo diastólico mensurável;

Escore VI - ausência de perfusão visível.

Análise estatística

Foi utilizado teste não-paramétrico de amostras múltiplas de Friedman, com o qual se comparou cada variável em três momentos diferentes (fase basal, fase 1 e fase 2), havendo dependência entre elas, já que eram de um mesmo paciente.

Todavia, quando analisados os padrões de perfusão renal Power Doppler expressos em escores, optou-se por comparar os momentos de maneira pareada, utilizando-se o teste não-paramétrico de Wilcoxon.

RESULTADOS

Dos 23 pacientes estudados, 83% (19) receberam seus enxertos de doadores vivos, e 17% (4) de doadores cadáveres, com tempo médio de transplante de 66 meses (variando de 1 a 176 meses) e 46 meses (variando de 6 a 74 meses), respectivamente.

Embora estáveis, 43,5% (10) dos pacientes estudados já apresentavam µALB no momento de inclusão no estudo (fase basal), e 56,5% (13) apresentavam níveis de µALB dentro dos limites da normalidade, isto é, menor que 17 µg/mg Cr para homens e 25 µg/mg Cr para mulheres. Somente dois pacientes apresentavam macroproteinúria no momento de entrada no estudo, ambos do sexo masculino, com µALB superior a 250 µg/mg Cr.

Comparação entre os resultados das fases basal, 1 e 2

Variáveis relacionadas à função renal

Na Tabela 1, são apresentados os valores das médias, medianas e desvios padrão do IFG, RFR, creatinina, volume urinário, µALB e IR vascular renal nos 23 pacientes estudados nas fases basal, 1 e 2.

Para as variáveis creatinina, volume urinário e IFG, compararam-se os resultados dos momentos dois a dois. Os valores de P obtidos nos testes estatísticos estão apresentados na Tabela 2.

Escores de perfusão renal pelo Power Doppler

Nos 23 transplantes renais avaliados na fase basal, 12 pacientes (52%) apresentaram escore I de perfusão renal; 6 pacientes (26%), escore II; e 5 pacientes (22%), escore III. Não foi encontrado nenhum paciente com os escores IV, V ou VI. Após 2 horas de infusão intravenosa contínua de aminoácidos (fase 1), 18 pacientes (78%) apresentaram escore I de perfusão renal; 3 pacientes (13%), escore II; e 4 pacientes (19%), escore III. Finalmente, após 4 horas de infusão intravenosa de aminoácidos (fase 2), 12 pacientes (57%) apresentaram escore I de perfusão renal; 5 pacientes (24%), escore II; e 4 pacientes (19%), escore III.

As variáveis creatinina, volume urinário, µALB, índice de filtração glomerular e IR vascular foram comparadas entre as fases de estudo agrupadas, nos pacientes com escore I e II de perfusão pelo Power Doppler, conforme demonstrado nas Tabela 3 e 4. Nos pacientes com escore III de perfusão (Tabela 5), não foram observadas alterações estatisticamente significativas nas variáveis estudadas.

DISCUSSÃO

O aumento do fluxo plasmático renal, como conseqüência de uma vasodilatação renal, estimulada por fatores extrínsecos, como as proteínas, aumenta o IFG acima do estado basal, revelando, dessa forma, a RFR. A manutenção ou redução no IFG após carga protéica indica falta de resposta ao estímulo e conseqüente ausência de RFR, que pode ser equivalente à hiperfiltração sustentada. Isso pode sugerir que os nefros funcionantes estão trabalhando em sua capacidade máxima de funcionamento de maneira constante, embora se saiba que a RFR não é um marcador de função renal ou indicador de tecido renal remanescente. Entretanto, se for considerado que a hiperfiltração é nociva ao tecido renal, esta poderia estar envolvida na gênese ou na progressão da nefropatia crônica do rim transplantado.

Neste estudo, observou-se uma resposta positiva do enxerto renal ao estímulo com aminoácidos, com aumento do IFG durante a infusão e conseqüente RFR positiva, presente nas duas fases do estudo durante a infusão de aminoácidos, tanto entre a fase 1 e a fase basal, como entre a fase 2 e a fase basal, contudo, de forma mais acentuada na primeira fase, que se deu em 120 minutos de exposição ao estímulo. Tal resposta assemelha-se ao descrito na literatura, cujas mudanças hemodinâmicas renais são mais freqüentemente observadas nas primeiras horas de estímulo com proteínas. A resposta máxima da RFR ocorre geralmente 120 a 160 minutos após a ingesta de carne7.

Ao longo dos últimos anos, tem-se percebido a importância do estudo da µALB e seu valor prognóstico nas doenças sistêmicas com envolvimento renal como um prenúncio do desenvolvimento de proteinúria clínica e insuficiência renal crônica. A µALB reflete a perda da capacidade dos nefros em manter sua homeostase, evidenciando sua potencial deterioração funcional.

Durante o período de infusão de aminoácidos, não se observou diferença estatisticamente significativa nos níveis de µALB. Observou-se, entretanto, um aumento nas taxas de µALB, com maior perda na primeira fase do estudo, que não se manteve no final da intervenção, como se a perda da integridade da barreira glomerular fosse transitória e independente do aumento sustentado do fluxo plasmático renal e do IFG, que permaneceram elevados durante todo o estudo12.

Fatores hemodinâmicos têm recebido especial atenção nos últimos anos por favorecerem a gênese da lesão renal. A ultra-sonografia vascular com Doppler colorido ganhou importante espaço no acompanhamento dos enxertos renais, principalmente na identificação das complicações vasculares e da rejeição aguda, com o estudo do fluxo e da resistividade vascular nas artérias do parênquima renal e com o cálculo do IR e do IP nas artérias interlobares3,9,10,13,14.

Com o objetivo de identificar potenciais variações na resistência vascular intra-renal durante a infusão de aminoácidos, mensurou-se o IR durante a realização do estudo. Contudo, não foram observadas variações significativas no IR nas artérias interlobares. Ainda que o estímulo com aminoácidos tenha comprovada atuação sobre a circulação intrínseca renal - como mostra a presença de RFR pelo aumento de fluxo plasmático renal e do IFG - e os índices intra-renais devessem refletir a baixa da resistência vascular pela vasodilatação, isso não foi possível constatar. Mas como os índices hemodinâmicos do parênquima renal dependem mais da complacência vascular do receptor (circulação sistêmica) do que da própria função do enxerto, é possível que o fato de os índices não se modificarem de maneira significativa deva-se à baixa influência das proteínas na hemodinâmica sistêmica15.

Por outro lado, como a perfusão cortical depende da integridade das pequenas vênulas e arteríolas interlobares e arqueadas que são afetadas prematuramente em muitos casos de disfunção do enxerto, a avaliação do fluxo cortical torna-se importante.

Para o estudo da perfusão renal neste trabalho, utilizou-se o mapeamento do fluxo com o Power Doppler. Tal técnica mostrou-se capaz de avaliar baixo fluxo em vasos menores e mais profundos, pela maior sensibilidade no estudo dos vasos intraparenquimatosos e por aumentar a sensibilidade de detecção dos sinais, independentemente do ângulo de propagação do ultra-som. O Power Doppler exibe informações sobre a perfusão cortical que não se consegue obter com a ultra-sonografia com Doppler convencional. A grande desvantagem do método é a presença de artefatos gerados pela movimentação abdominal, que não têm importância no presente estudo em razão da posição extraperitoneal e superficial dos enxertos renais na fossa ilíaca.

Além disso, o Power Doppler apresenta boa correlação com o IFG e pode ser bastante sensível na detecção das mudanças de perfusão no rim transplantado, uma vez que a intensidade da perfusão percebida pelo Power Doppler é diretamente proporcional à função renal11.

Embora exista clara relação com o IFG, não se conseguiu reproduzir de maneira linear durante as fases do estudo a mudança nos padrões de perfusão renal pelo Power Doppler seguindo as variações observadas no IFG. Possivelmente, outras variáveis que não as estudadas influenciem direta ou indiretamente no grau de perfusão renal, ou talvez o pequeno número de pacientes estudados possa ter dificultado a visualização dessa relação.

Quando analisados apenas os 12 pacientes que receberam escore I de perfusão renal na fase basal e a forma de comportamento das diferentes variáveis durante a aplicação do processo de estudo, observou-se que, submetidos ao estímulo com a infusão de aminoácidos, responderam positivamente com melhora nos níveis de creatinina plasmática, na primeira fase do estudo (120 minutos), permanecendo estáveis durante o restante do protocolo. O aumento no IFG ocorreu durante todas as fases do processo, mostrando o grande potencial de resposta desse grupo de pacientes, com conseqüente presença de RFR. Ainda nesses pacientes, observou-se a RFR de forma mais significativa na fase inicial do protocolo, da mesma forma que o volume urinário, com variações significativas, mas não sustentadas com o passar do protocolo. Quanto à presença ou piora nos níveis de µALB, não se observou diferença significativa entre as fases estudadas, sendo possível traçar apenas uma leve tendência a ser mais acentuada na fase inicial, mas não sustentada, quando analisados os valores obtidos nas diferentes fases. Os pacientes desse grupo apresentaram um mesmo potencial positivo de resposta, como se o fato de apresentarem vascularização absolutamente normal, com alta perfusão renal "ao repouso", permitisse-lhes um comportamento semelhante ao esperado de um rim normal, com boa possibilidade de responder a estímulo externos.

Os seis pacientes que receberam escore II de perfusão na fase basal responderam positivamente com melhora nos níveis de creatinina plasmática, tanto na primeira fase do estudo, em relação à fase basal, como na fase final do estudo, apesar de, no período que compreende os dois principais momentos, não ter sido observada alteração significativa. Da mesma forma, o volume urinário também apresentou comportamento semelhante, provavelmente secundário ao aumento no fluxo plasmático renal. Já o IFG não apresentou variação estatisticamente significativa quando se avaliaram somente os pacientes com escore II, mas se observou uma forte tendência ao aumento nas fases 1 e 2, mostrando o grande potencial de resposta desse grupo de pacientes, com conseqüente tendência à presença de RFR, mais significativa na fase inicial. Quanto à presença ou piora nos níveis de µALB, não foi observada diferença significativa entre as fases estudadas nos pacientes com escore II, sendo apenas possível traçar uma leve tendência a ser mais acentuada na fase inicial, mas não sustentada. Portanto, esses seis pacientes que receberam escore II pelo Power Doppler não apresentaram o mesmo padrão de resposta que os anteriores (escore I), como se o fato de haver um ligeiro decréscimo no grau de perfusão, embora ainda dentro dos limites da normalidade, refletisse uma potencial perda de capacidade de apresentar RFR.

Finalmente, nos 5 pacientes com escore III de perfusão renal estudados na fase basal, pôde-se observar que, quando submetidos ao estímulo com a infusão de aminoácidos, não apresentaram resposta positiva. Não houve variação significativa em todas as variáveis consideradas, quando comparados esses pacientes agrupados nos três momentos do estudo. Para a creatinina plasmática, observou-se uma ligeira melhora na primeira fase, mas com retorno aos níveis basais no final, com a manutenção do fluxo de volume urinário durante todo o processo. Observa-se a tendência desses pacientes em perder mais proteína, principalmente no momento de maior tempo de exposição ao estímulo, conforme observado nas variações nos níveis de µALB. No entanto, o que mais chamou a atenção nesse grupo foi a falta de resposta ao estímulo com os aminoácidos, sem alteração significativa do IFG durante todo o protocolo. Questiona-se se esses enxertos estariam em regime de hiperfiltração máxima ou teriam perdido a capacidade adaptativa de responder à hiperfiltração diante de um estímulo externo, por já se apresentarem em início de falência renal, percebida antes mesmo de haver comprometimento clínico e laboratorial basal significativo.

Na literatura, demonstrou-se que o Power Doppler é diretamente proporcional às variações no IFG, embora não tenha sido possível provar tal relação durante o processo de estudo. Conseguiu-se identificar a proporcionalidade da RFR com o grau de perfusão renal pelo Power Doppler. Transplantes com excelente perfusão pelo Power Doppler (escore I) mantêm o mecanismo fisiológico de resposta ao estímulo com aminoácidos preservados, respondendo como rins nativos livres de doença. Todavia, com a progressiva queda no grau de perfusão, parece haver uma potencial falência desses mecanismos, passando a não mais apresentar variações no índice funcional renal e no RFR, refletindo o potencial de pior prognóstico evolutivo. Como, porém, se estudou uma população pequena, em apenas um momento de sua vida, não se pode afirmar, com certeza, que essa falha seja sustentada, já que pode ser transitória e influenciável por outras variáveis não aferidas. Além disso, há uma tendência de que os enxertos que apresentem melhor perfusão renal pelo Power Doppler possam evoluir de maneira mais favorável, e seria este, então, um reflexo da maior potencialidade de adaptação fisiológica.

Os autores concluem que, com o estudo da perfusão renal realizado por meio do Power Doppler nos rins transplantados, permite-se identificar a maneira com que tais rins irão responder ao estímulo de proteína. Rins com excelente perfusão (escore I) apresentam RFR, porém, com a gradual diminuição dos escores de perfusão, há uma proporcional redução da variação da IFG, com conseqüente perda da RFR a partir do escore III de perfusão. Portanto, o Power Doppler pode ser apontado como uma técnica promissora e confiável de acompanhamento dos enxertos renais, identificando em exames seqüenciais o momento de diminuição de perfusão como o momento de redução da variabilidade do IFG ao estímulo protéico. Porém, faz-se necessário o acompanhamento evolutivo desses pacientes a longo prazo, para se comprovar essa tendência. Ainda que não se possa provar que esse referido momento seja o início da nefropatia crônica do enxerto, que irá culminar com a perda da função renal, este trabalho poderá dar início a estudos subseqüentes que venham a comprovar esta hipótese.

Artigo submetido em 22.01.06, aceito em 24.04.06.

  • 1. Manns BJ, Taub KJ, Donaldson C. Economic evaluation and end-stage renal disease: from basics to bedside. Am J Kidney Dis. 2000;36:12-28.
  • 2. Kaufman DB, Matas AJ, Arrazola L, et al. Transplantation of kidney from zero haplotype-matched living donors and from distantly related and unrelated donors in the cyclosporine era. Transplant Proc. 1993;25:1530-1.
  • 3. Jakobsen JA, Brabrand K, Egge TS, Hartmann A. Doppler examination of the allografted kidney. Acta Radiol. 2003;44:3-12.
  • 4. Laupacis A, Keown P, Pus N, et al. A study of the quality of life and cost-utility of renal transplantation. Kidney Int. 1996;50:235-42.
  • 5. Russell JD, Beecroft ML, Ludwin D, Churchill DN. The quality of life in renal transplantation: a prospective study. Transplantation. 1992;54:656-60.
  • 6. Brenner BM, Meyer TW, Hostetter TH. Dietary protein intake and the progressive nature of kidney disease: the role of hemodynamically mediated glomerular injury in the pathogenesis of progressive glomerular sclerosis in aging, renal ablation, and intrinsic renal disease. N Engl J Med. 1982;307:652-9.
  • 7. Bosch JP, Lew S, Glabman S, Lauer A. Renal hemodynamic changes in humans. Response to protein loading in normal and diseased kidney. Am J Med. 1986;81:809-15.
  • 8. Rubin JM, Adler RS. Power Doppler expands standard color capability. Diagn Imaging (San Franc). 1993;15:66-9.
  • 9. Wang SM, Lai MK, Chueh SC, Chen J. The utility of resistance index of distal interlobular arteries in evaluating renal graft function. Transplant Proc. 2004;36:2184-5.
  • 10. Friedewald SM, Molmenti EP, Friedewald JJ, Dejong MR, Hamper UM. Vascular and nonvascular complications of renal transplants: sonographic evaluation and correlation with other imaging modalities, surgery and pathology. J Clin Utrasound. 2005;33:127-39.
  • 11. Hoyer PF, Schmid R, Wunsch L, Vester U. Color Doppler energy - a new technique to study tissue perfusion in renal transplants. Pedriatr Nephrol. 1999;13:559-63.
  • 12. Bigazzi R, Bianchi S. Microalbuminuria as a marker of cardiovascular and renal disease in essential hypertension. Nephrol Dial Transplant. 1995;10:10-4.
  • 13. Trillaud H, Merville P, Tran Le Linh P, Palussiere J, Potaux L, Grenier N. Color Doppler sonography in early renal transplantation follow-up: resistive index measurements versus power Doppler sonography. AJR Am J Roentgenol. 1998;171:1611-5.
  • 14. Datta R, Sandhu M, Saxena AK, Sud K, Minz M, Suri S. Role of duplex Doppler and Power Doppler sonography in transplanted kidneys with acute renal parenchymal dysfunction. Australas Radiol. 2005;49:15-20.
  • 15. Krumme B, Grotz W, Kirste G, Schollmeyer P, Rump LC. Determinants of intrarenal Doppler indices in stable renal allografts. J Am Soc Nephrol. 1997;8:813-6.
  • Endereço para correspondência

    Ana Luiza Engelhorn
    Rua Deputado Heitor Alencar Furtado, 1720/901
    CEP 81200-110 - Curitiba, PR
    Tel.: (41) 3279.1241
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      24 Abr 2006
    • Recebido
      22 Jan 2006
    Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular (SBACV) Rua Estela, 515, bloco E, conj. 21, Vila Mariana, CEP04011-002 - São Paulo, SP, Tel.: (11) 5084.3482 / 5084.2853 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: secretaria@sbacv.org.br