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CONTINUUM DE PIADAS: DAS NARRATIVAS PLANEJADAS À ESPONTANEIDADE DO HUMOR

JOKES CONTINUUM: FROM PLANNED NARRATIVES TO THE HUMOR SPONTANEITY

CONTINUUM DE CHISTES: DE NARRATIVAS PLANIFICADAS HASTA LA ESPONTANEIDAD DEL HUMOR

Resumo

A proposta deste artigo é demonstrar que existe uma espécie de continuum de casos de piadas. Essa gradação iria de ocorrências mais narrativas e previamente conhecidas por quem as relata (casos das piadas prontas e das anedotas pessoais) a outras, menos previsíveis e próprias da interação verbal (situação das chamadas piadas conversacionais ou espontâneas). A análise é feita com base em enunciados orais, registrados em vídeos e veiculados na internet, de modo a identificar as marcas centrais das diferentes formas de apresentação da piada. O estudo ancora-se especialmente nos pressupostos teóricos de Raskin (1985), Norrick (1993), Marcuschi (2001) e Preti (2003).

Palavras-chave:
Piada Conversacional; Piada Pronta; Continuum

Abstract

The purpose of this article is to demonstrate that there is a kind of jokes continuum. This gradation would range from more narrative occurrences and previously known by those who report them (cases of canned jokes and personal anecdotes) to others, less predictable and proper to the verbal interaction (situation of conversational or spontaneous jokes). The analysis is based on oral statements, recorded in videos and broadcasted on the Internet, in order to identify the central marks of the different forms of joke presentation. The study is anchored especially in the theoretical assumptions by Raskin (1985), Norrick (1993), Marcuschi (2001) and Preti (2003).

Keywords:
Conversational Joke; Canned Joke; Continuum

Resumen

La propuesta de este artículo es demostrar que existe una especie de continuum de casos de chistes. Esta gradación iría de ocurrencias más narrativas y previamente conocidas por quienes las relata (casos de chistes listos y de anécdotas personales) a otras, menos previsibles y propias de la interacción verbal (situación de los llamados chistes conversacionales o espontáneos). El análisis es sobre la base de enunciados orales, registrados en vídeos y publicados en Internet, para identificar las marcas centrales de las diferentes formas de presentación de los chistes. El estudio se basa especialmente en los presupuestos teóricos de Raskin (1985), Norrick (1993), Marcuschi (2001) y Preti (2003).

Palabras-clave:
Chiste Conversacional; Chiste Listo; Continuum

1 INTRODUÇÃO

Este artigo tem dois objetivos, unidos por um aspecto comum, as piadas. Mas, para que ambas as propostas fiquem mais claras, faz-se necessário, antes, observar uma dupla de exemplos sobre essa forma de produção humorística. Consideremos inicialmente o texto (1)1 1 PIADEIROS. Diretor: Gustavo Rosa de Moura. Produtor: Gustavo Rosa de Moura. Local: Brasil. Data: 2015. Duração: 90 minutos. Suporte: YouTube. Duração do vídeo: 39”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zENcmGkxNxY. Acesso em: 30 out. 2018. Trecho transcrito: de 0’06” a 0’35”. , mostrado a seguir:

O texto (1) se aproxima de tantos outros que escutamos cotidianamente - e com os quais nos divertimos muito, não custa nada registrar. Eles têm a particularidade de serem histórias já ouvidas, armazenadas na memória a partir de outras conversas das quais participamos. Quem narra sabe de antemão de todos os elementos do relato e já antecipa qual será o ponto crucial que irá levar ao desfecho pretendido e que, espera-se, surpreenda seu(s) interlocutor(es), gerando o riso.

Esse excerto é uma transcrição de um trecho do filme-documentário “Piadeiros”, dirigido por Gustavo Rosa de Moura e exibido nos cinemas brasileiros nos meses finais de 2015. A proposta da produção era percorrer as cinco regiões do país e alguns municípios de Portugal para identificar em cada localidade pessoas comuns, conhecidas nas cidades onde moram por serem contadores de piadas - ou piadeiros, como indica o título da produção.

A história reproduzida aqui em (1) é uma das que compuseram o longa. Ela faz alusão a uma atração real, o Museu Vivo de Padre Cícero2 2 Museu Vivo de Padre Cícero. Prefeitura de Juazeiro do Norte. Disponível em: http://www.juazeiro.ce.gov.br/Cidade/Museu-Vivo-de-Padre-Cicero/. Acesso em: 30 out. 2018. , criado em 1999 em Juazeiro do Norte. Foi na cidade cearense que Padre Cícero (1844-1934) se instalou. Popularmente batizado de Padim Ciço e alvo de fervorosa devoção, o pároco se tornou uma das figuras mais conhecidas da cultura nordestina.

Apenas reforçando o que já foi lido na piada: um fictício senhor de idade, empregado da Prefeitura de Juazeiro do Norte, é realocado no museu dedicado à memória de Padre Cícero. É importante salientar: o funcionário não entende nada do tema. Durante visita de um casal paulista, ele é torpedeado por perguntas sobre os objetos ali presentes. Chapéu, bengala, máquina, tudo é creditado a ter sido de Padre Cícero.

A pergunta final era sobre dois esqueletos, um grande, outro pequeno. O primeiro, como de praxe, foi associado ao próprio pároco. À questão sobre quem seria, então, o menor, surge a resposta inusitada: teria sido do mesmo padre, só que criança. Esse desfecho surpreendente é o que gera o humor da história.

Vejamos agora esta outra situação, mostrada em (2)3 3 MARINA Silva vs. Eduardo Jorge - Debate Band 2014. Programa: Debate Band. Emissora: Band. Data: 27 ago. 2014. Suporte: YouTube. Duração do vídeo: 46”. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=3Ef4UCqNto8. Acesso em: 30 out. 2018. Trecho transcrito: de 0’00” a 0’17”. :

O texto de (2) também teve mote humorístico, tanto que provocou risos da plateia que assistia presencialmente ao debate presidencial de 2014, exibido pela TV Bandeirantes na noite do dia 26 de agosto daquele ano. Ao contrário do caso anterior, a situação engraçada surgiu durante a interação entre os então candidatos Eduardo Jorge, do Partido Verde (PV), e a concorrente Marina Silva, do Partido Socialista Brasileiro (PSB).

Como se depreende pela leitura da transcrição, trata-se de um momento em que os pleiteantes ao cargo presidencial fazem perguntas entre si com mediação do jornalista Ricardo Boechat. No caso em tela, Eduardo Jorge se dirigia à oponente, pessoa de estatura mediana e magra, características relevantes para elucidar o sentido humorístico provocado naquele texto oral. Isso porque, em dado momento, o candidato do PV usa o corpo dela para comparar a proposta de uma auditoria nas dívidas do país. Feito o procedimento, comparado a uma passagem por uma ressonância, como diz Jorge, o montante do que se deve ficaria magrinho, assim como Marina Silva.

A brincadeira feita pelo candidato foi compreendida como piada pelos interlocutores diretos, a plateia, que evidenciou isso com risos. Não seria equivocado supor que os espectadores indiretos, os que acompanharam a cena pela televisão, ao vivo, ou então por meio do vídeo reproduzido em páginas virtuais e em redes sociais, tenham tido reação semelhante, aspecto evidenciado pelo comentário deixado por uma das pessoas que assistiram ao vídeo, reproduzido no site YouTube - ela registrou sinais convencionados na linguagem da internet como sendo indicadores de riso (“kkkkkkkkkkkkkkkk”), seguidos da frase “isso é comédia pura”). Todos possivelmente fizeram a leitura de que se tratava de uma piada feita pelo candidato.

O ponto que procuramos demonstrar nesta exposição inicial é que os dois exemplos configuram casos de piada. Embora ambas se ancorem em um fragmento inesperado, elas se apresentam de maneiras distintas. Em uma, o contador sabe previamente o roteiro da história; em outra, a situação humorística é criada durante a interação verbal, sem que se tenha conhecimento de que ela fosse ocorrer. Em outros termos: elas são distintas na forma de apresentação e de estruturação, porém são semelhantes na maneira de nomeação e no uso de um elemento verbal inesperado.

Essa forma plural de construção da piada está na base do objetivo deste artigo. O tema já foi abordado em outros trabalhos, como os de Muniz (2004) e Ramos (2011RAMOS, P. Faces do humor: uma aproximação entre piadas e tiras. Campinas, SP: Zarabatana Books, 2011.), mas os pontos que se pretende discutir são outros. Como comentado, esta discussão traz duas propostas centrais, uma atrelada à outra. A primeira é entender teoricamente como seria o funcionamento humorístico de cada uma dessas ocorrências de piada, chamadas de piadas prontas e piadas conversacionais, respectivamente (cf. RASKIN, 1985RASKIN, V. Semantic mechanisms of humor. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1985.), com particular interesse pelo segundo caso, comumente menos explorado que o primeiro.

A segunda proposta - onde reside o aspecto inovador e original deste artigo - é demonstrar que elas podem ser observadas em um continuum. Parte-se da hipótese de que essa gradação seja pautada no aspecto narrativo (planejado e ficcional, no caso das piadas prontas, e real, como visto nas anedotas pessoais de cunho humorístico, como será visto mais adiante) e espontâneo (situação das piadas conversacionais, construídas durante a interação verbal). Essas premissas serão aplicadas tanto nos exemplos lidos até aqui - (1) e (2) - quanto em um terceiro caso, extraído de telejornal, textos que irão compor o corpus de análise deste artigo.

2 PIADA PRONTA

Os dois textos vistos no tópico anterior deixam claro que há um uso polissêmico do termo piada4 4 Este texto não pretende discutir a questão de gênero, ou seja, se os dois tipos de piadas constituem gêneros distintos. Convém, no entanto, explicitar que a piada tende a ser caracterizada como um texto narrativo de humor, que traz como traços a brevidade e o final inesperado. Esses são os ingredientes mais comumente destacados por alguns estudiosos do assunto quando buscam definir esse tipo de produção textual, caso dos trabalhos de Gil (1991), Possenti (1998, 2010), Muniz (2004), Ramos (2011) e Travaglia (2015). Carmelino (2014, 2015) acrescenta que, além de narrativo, o texto pode apresentar-se também como dialogal. . Ela pode tanto sintetizar os casos de narrativas previamente conhecidas quanto as situações conversacionais em que surge um chiste humorístico. Para distinguir uma situação da outra, cunhou-se a expressão piada pronta para o primeiro exemplo e piada conversacional para o segundo. Conforme Raskin (1985RASKIN, V. Semantic mechanisms of humor. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1985.), que recupera essas expressões, a proposta de nomenclatura havia sido utilizada inicialmente pelo professor de psicologia Willian F. Fry5 5 A referência de Raskin é à obra Sweet madness: a study of humor, de Fry, publicada em 1963. , um dos primeiros a defender o humor como uma área de estudos científicos.

No caso específico das piadas prontas, elas foram o alvo de estudo de Raskin (1985RASKIN, V. Semantic mechanisms of humor. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1985.), que tinha a preocupação de atribuir um olhar linguístico a textos assim. Ancorado na Pragmática e, principalmente, na Semântica, o pesquisador desenvolveu um modelo próprio para a análise dessas produções verbais. Segundo ele, as piadas obedeceriam a duas condições gerais:

  • a) conter dois scripts compatíveis, seja de forma parcial ou não;

  • b) haver oposição entre os scripts apresentados.

Percebe-se que o conceito de script é elemento nevrálgico para o autor. Isso fica explicitado, inclusive, no título de seu modelo de análise, batizado de Teoria Semântica do Humor Baseada no Script6 6 Script-Based Semantic Theory of Humor, no original. . Raskin (1985RASKIN, V. Semantic mechanisms of humor. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1985.) define o conceito como sendo uma estrutura cognitiva que os falantes de determinada língua possuem e que sintetiza um conhecimento do mundo, de ordem pessoal ou social.

Se o modelo teórico for aplicado à história ambientada no museu de Padre Cícero, vista anteriormente em (1), teríamos um script inicial relacionado à visita guiada ao museu ou a uma determinada localidade turística qualquer. Nesse cenário, é comum os visitantes tirarem dúvidas com o(s) funcionário(s) presente(s) que, ao menos em tese, teria(m) domínio do conteúdo ali exposto.

A esse script, sobrepõe-se outro ao final, o de alguém que tenta enganar determinada(s) pessoa(s) por desconhecer dado assunto e que é popularmente conhecido como “enrolador”. Isso é explicitado pela resposta absurda dada pelo “vovô”: haver dois esqueletos de uma mesma pessoa (Padre Cícero adulto e criança, no caso)7 7 O exemplo citado também poderia se enquadrar no que Travaglia (1989, p. 58) classifica como script do absurdo, já que “se contraria o senso comum, o conhecimento comum estabelecido, a razão, escapando a regras ou condições determinadas”. .

Ainda de acordo com Raskin (1985RASKIN, V. Semantic mechanisms of humor. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1985.), aliado ao conceito de script, haveria outro mecanismo presente na piada, chamado de gatilho (trigger). Seria um elemento linguístico, explícito ou implícito, que revelaria o segundo script, até então camuflado, e que apresentaria ao(s) ouvinte(s) a situação oposta, inverossímil, inesperada. O inusitado é que conduziria ao sentido humorístico, gerado por ambiguidade ou por contradição em relação ao conteúdo da narrativa apresentado até aquele ponto.

No exemplo com o qual estamos trabalhando, o gatilho fica presente na resposta dada pelo personagem “vovô”, alegando ser o esqueleto menor de Padre Cícero quando pequeno. O enunciado leva à revelação de que há, no relato, a presença dos dois scripts distintos e, por isso, incompatíveis. O contraste existente entre ambos é o que levaria à situação inusitada que revela o sentido humorístico.

A forma de análise pensada por Raskin (1985RASKIN, V. Semantic mechanisms of humor. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1985.) ajuda a explicar casos como esse, de piadas prontas. Mas não o segundo, o das conversacionais. Ou, ao menos, não por completo. Essa limitação foi um dos motivos que levaram a uma revisão e a um redimensionamento do modelo da Teoria Semântica do Humor Baseada no Script. As alterações ocorreram seis anos depois da primeira versão, em artigo escrito por Raskin em parceria com Attardo (1991ATTARDO, S.; RASKIN, V. Script theory revis(it)ed: joke similarity and joke representation model. Humor: International Journal of Humor Research. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, vol. 4-3/4, p. 293-347, 1991. ).

O modelo revisto foi chamado pelos autores de Teoria Geral do Humor Verbal8 8 General Theory of Verbal Humor, no original. e trazia como proposta ser mais amplo que o anterior. Os dois pesquisadores propuseram o cumprimento, de forma parcial ou completa, de seis parâmetros, que se fariam presentes em qualquer texto humorístico: língua; estratégia narrativa associada ao gênero ao qual a produção pertence; presença de um alvo da situação humorística; situação onde é produzido; mecanismo lógico que conduza ao sentido de humor; scripts opostos.

O que muda é não restringir toda a estratégia da produção do humor à oposição dos scripts. Estes ainda se fazem presentes, mas como um dos elementos a considerar. Esse roteiro de parâmetros poderia ser aplicado sem problemas ao caso da piada sobre o museu de Padre Cícero - texto (1):

  • a) o texto foi produzido em língua portuguesa, compartilhada por falantes brasileiros e portugueses;

  • b) tem como estratégia narrativa a revelação de uma situação inesperada no final, item próprio a piadas prontas;

  • c) o alvo, no caso, é a inabilidade de um senhor de idade em expor itens de um acervo que não domina;

  • d) relato apresentado em um filme sobre contadores de piada, estabelecendo interlocutores propícios para escutar tais histórias;

  • e) há o mecanismo linguístico de apresentar um gatilho que revela os dois scripts;

  • f) presença em si da dupla de scripts incompatíveis.

Por se propor a ser mais amplo, esse segundo modelo teórico teria também a incumbência de dar respostas teórico-metodológicas para casos de piadas conversacionais, como a do debate presidencial apresentado em (2). Aplicando o mesmo roteiro de análise sugerido por Attardo e Raskin (1991ATTARDO, S.; RASKIN, V. Script theory revis(it)ed: joke similarity and joke representation model. Humor: International Journal of Humor Research. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, vol. 4-3/4, p. 293-347, 1991. ) ao exemplo do debate eleitoral - texto (2), também integrante do corpus de análise -, teríamos:

  • a) texto produzido em português, língua compartilhada pelos interlocutores do debate e pelos demais participantes dele (mediador, plateia presente ao evento, espectadores);

  • b) estratégia narrativa se calca na presença de uma fala inesperada, explicitada em uma situação (debate eleitoral) em que não há a expectativa de um chiste; observe-se que não é algo comum ao gênero em questão;

  • c) candidata Marina Silva se torna alvo do chiste, ao ter a magreza comparada ao resultado da proposta de auditoria das dívidas;

  • d) ebate eleitoral, situação em que não se esperam falas chistosas;

  • e) não é evidente a presença de dois scripts; entende-se que haja apenas um, o do debate eleitoral, em que é utilizado um chiste em uma das falas;

  • f) não haveria scripts opostos.

Cabe reiterar que o novo modelo de Attardo e Raskin (1991ATTARDO, S.; RASKIN, V. Script theory revis(it)ed: joke similarity and joke representation model. Humor: International Journal of Humor Research. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, vol. 4-3/4, p. 293-347, 1991. ) não se obriga a que todos os parâmetros sejam cumpridos completamente. Apesar da ressalva, o exemplo ajuda a demonstrar que se trata de uma aplicação bastante pertinente para piadas prontas, que são tendencialmente narrativas e planejadas, mas não necessariamente para conversacionais, como fica evidenciado com o exemplo do debate eleitoral. Para situações como essa, há a necessidade de um outro olhar teórico para explicar a contento seu funcionamento humorístico.

3 PIADA CONVERSACIONAL

Até este ponto, parece ter ficado claro que o termo piada é polissêmico e que a classificação entre as prontas e as conversacionais revela serem distintas as formas de produção do humor nos textos. Restaria entender teoricamente, como já dito, como seria o funcionamento das conversacionais e de que modo se daria o processamento textual que levaria ao sentido humorístico, um dos dois objetivos deste texto.

Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.) ajuda a dar algumas respostas. O autor tem estudo específico sobre piadas conversacionais. A análise se baseou em corpus formado por gravações de situações informais e cotidianas de fala, como a de dois casais de amigos conversando na cozinha após um jantar. O pesquisador destaca que os áudios não tinham como finalidade inicial a investigação das piadas espontâneas, forma sinônima como ele se refere a elas. Mas havia ali casos suficientes para abordar também essas ocorrências.

O recorte de análise adotado, destaca Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.), tem o mérito de ser um registro concreto de falas do modo como efetivamente ocorreram, em situações pessoais de difícil captação. Ele divide a ocorrência das piadas conversacionais em três níveis de análise: 1) organização na conversação; 2) dimensão interpessoal; 3) função metalingual (e não metalinguística, para fugir da análise estrita do código e destacar o que é visto como risível entre os falantes). Vejamos o trio de níveis, um a um.

Os vários estudos de Sachs, Schegloff e Jefferson (1974SACHS, H.; SCHEGLOFF, E.; JEFFERSON, G. A simplest systematic for the organization of turn talking for conversation. Language, v. 50, n. 4, p. 696-735, 1974., entre outros) sobre conversação serviram de base para muitas das observações feitas por Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.) a respeito da organização da piada espontânea. Os autores serviram de alicerce para o modo como a Análise da Conversação se consolidou a partir da década de 1970, inclusive no Brasil. São creditados aos estudos deles o modo como se desenvolveram os conceitos de turno, pares adjacentes e as estratégias de tomada de turno e de correção (MARCUSCHI, 2001MARCUSCHI, L. A. Análise da Conversação. 5. ed. 3. reimpr. São Paulo: Ática, 2001.).

Especificamente sobre a questão do par adjacente, entendido como “uma sequência de dois turnos que coocorrem e servem para a organização local da conversação” (MARCUSCHI, 2001MARCUSCHI, L. A. Análise da Conversação. 5. ed. 3. reimpr. São Paulo: Ática, 2001., p. 35), como a pergunta e a resposta, Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.) delega a estudo de Schegloff a presença do par em algumas das situações humorísticas vistas na conversação. Nos casos em que a piada é vista em uma troca simples de turnos entre falantes, o primeiro trecho funciona como o cerne da ocorrência engraçada, chamado, assim, de primeira piada (joke-first). A segunda parte completa a ideia iniciada.

Um caso assim, bastante comumente ouvido em festas familiares brasileiras, é a sequência: “Alguém quer pavê?”; “Mas é ´pa vê´ ou ´pa comê´?”. A graça está na proximidade entre a pronúncia das sílabas que compõem a palavra “pavê” com a redução da preposição “para” (“pa”) e do final do verbo “ver” (“vê”), que, no caso, gera ambiguidade: “pavê” pode ser lida como o doce (que seria reforçado pela forma “pá comê”) ou a ação de “ver” (“olhar”). O turno inicial seria a primeira piada do par adjacente. O seguinte evidenciaria o sentido humorístico.

O riso suscitado, segundo Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.), não estaria vinculado ao par, mas seria uma consequência, uma resposta apropriada a ele - ou não, no caso de a piada não ser entendida, algo que o silêncio muitas vezes ajuda a evidenciar. De todo modo, o riso serviria como um marcador discursivo do fim do tópico de determinados trechos humorísticos.

O par adjacente, evidentemente, seria uma das possíveis ocorrências. O humor poderia estar contido também em frases jocosas, como “e falando no diabo, eis que ele aparece”, em exemplo dado pelo próprio Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993., p. 26). Em outras situações, no entanto, o trecho humorístico é perceptivelmente maior e pode ocorrer em diferentes momentos da fala, com distintas funções na organização da conversação. Segundo o autor:

Piadas espontâneas, claro, também ocorrem em pontos cruciais da fala: para quebrar o gelo nos inícios e nas boas-vindas a novos participantes, para encerrar um antigo tópico e introduzir um novo, ou para acalmar a conversa e se despedir. (NORRICK, 1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993., p. 27, tradução nossa9 9 “Spontaneous joking, of course, also occurs at crucial points in conversation: to break the ice in openings and in welcoming new participants, to close down an old topic and move into a new one, or to wind down the conversation and take leave.” )

As piadas espontâneas podem aparecer, portanto, em quaisquer trechos da conversação e tenderiam a compor um tópico próprio - ou, como registra Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.), levar à mudança de tópico. Ainda segundo o autor, muitas delas se mostram agressivas, por meio do uso de trocadilhos, jogos de palavras ou sarcasmo para usar algum aspecto do interlocutor - ou de outro - como alvo da exposição cômica.

A expressão usada por Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.) para o segundo nível de análise da piada conversacional, a dimensão interpessoal, é tomada de empréstimo de Halliday (2004HALLIDAY, M. A. K. An introduction to Functional Grammar. 3. ed. London: Hodder Arnold, 2004. ). Para este autor, a língua poderia ser dividida em três metafunções: 1) ideacional, que teria como foco a maneira como as experiências humanas são refletidas em palavras; 2) interpessoal, que se preocupa com a interação entre as pessoas; 3) textual, com interesse em aspectos estruturantes do texto, como a coesão.

Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.) entende que diferentes formas de piada podem ser construídas no contato interpessoal. Ele cita especificamente as anedotas pessoais, os jogos de palavras (como os trocadilhos, a hipérbole e a alusão), a zombaria e o sarcasmo. É relevante observar que a proximidade entre os falantes parece autorizar um uso maior de ocorrências de humor e até de depreciação em relação ao interlocutor. O histórico de contatos anteriores (baseados no uso do humor) também é um fator decisivo para isso. Segundo o autor,

alguns amigos e colegas desenvolvem o que eu tenho chamado de relação de brincadeiras habituais, onde a brincadeira rotineiramente toma a forma de ataque verbal, competição de jogos de palavras, provocações a assim por diante. (NORRICK, 1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993., p. 44, tradução nossa10 10 “[...] some friends and colleagues develop what I have been calling a customary joking relationship, where joking routinely takes the form of verbal attack, competitive wordplay, teasing, and so on.” ).

No caso das anedotas pessoais, merece menção que elas se aproximam do modo de contar uma piada pronta: trata-se de uma narrativa, da qual a pessoa tem conhecimento prévio, com a presença de uma situação jocosa. Seria um relato semelhante a este, vivenciado por um dos autores deste texto:

(3)

Outro dia, estava dando aula para uma turma do primeiro ano de Letras quando um aluno levantou a mão. Eu esperava uma pergunta sobre o tema da aula. Foi quando ele me surpreendeu: “Professor, é comum ter latas de lixo com o nome do curso?”. “Não”, respondi. “Por quê?”. “Porque a lata de lixo aí da frente da sala tem um selo escrito Letras.” O pior é que tinha mesmo. E o cesto estava cheio de papel e de embalagens de suco e de bolachas. Foi uma risada só.

A distinção entre a piada pronta e a anedota pessoal, como se vê, seria que o conteúdo desta é baseado em uma situação real - e não ficcional -, vivida por quem a relata e desconhecida pelo(s) ouvinte(s). Do ponto de vista de preservação da face do falante, esta muitas vezes é posta em risco, já que histórias assim costumam revelar momentos embaraçosos ou de inaptidão - seriam, enfim, exposições sobre os próprios erros.

Outro diferencial apontado por Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.) é que, em situações assim, ele registrou presença de risadas em momentos anteriores ao desfecho do relato. A leitura que faz é que as anedotas, diferentemente das piadas prontas, tem uma presença mais ativa do(s) interlocutor(es), o que fica manifestado na estrutura da troca de turnos (o ouvinte não aguarda passivamente o desfecho cômico, mas tende a coparticipar da exposição dele). Com base nessas marcas, o pesquisador sintetiza desta forma a produção da anedota pessoal:

O falante estabelece a trama básica ou o tema da narrativa, então conta (e recicla) a história, dramatizando o diálogo e enfatizando aspectos diferentes a cada vez. A participação da audiência pode suceder a qualquer momento depois da declaração inicial da trama ou do tema. Normalmente começa com risada, mas, uma vez que os ouvintes puderam rir, eles fornecem comentários livremente e inventam diálogos deles próprios. (NORRICK, 1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993., p. 51, tradução nossa11 11 “The teller states the basic plot or theme of the narrative, then tells (and recycles) the story, dramatizing dialogue and stressing different aspects each time. Audience participation can ensue any time after the initial statement of the plot or theme. It usually begins with laughter, but once the listeners have laughed, they freely offer comments and invent dialogue of their own.” )

O trecho de Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.) já deixa claro que se trata de um processo colaborativo entre falante e ouvinte(s), algo, aliás, próprio da interação oral. Haveria casos em que a cooperação é ainda mais acentuada. Seriam situações em que a narrativa humorística é produzida em conjunto entre os pares. Um determinado trecho é alvo de algum comentário jocoso ou irônico e os participantes da conversação passam a brincar verbalmente com aquilo.

O terceiro nível de análise de Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.), o da função metalingual, está preocupado em observar o que aquele grupo de falantes vai entender - e aceitar - como passível de riso. O foco da brincadeira verbal pode tanto ser um elemento interno ao grupo quanto externo, situação que se torna uma forma de teste prático dos conhecimentos prévios dos participantes daquela interação. Em qualquer dos caminhos, interno ou externo, percebe-se um diálogo muito estreito entre o conteúdo abordado e o fato de ser - ou não - socialmente compartilhado.

Embora percorram caminhos distintos, os três níveis propostos pelo autor não são excludentes. Na prática, somam-se à meta de dar luzes ao modo de funcionamento verbal das piadas conversacionais. Fica evidenciado que se trata de casos plurais, tanto no tamanho quanto na forma de apresentação - uma anedota pessoal, por exemplo, é distinta de uma brincadeira espontânea.

Articulando essa discussão à apresentada anteriormente por Raskin (1985RASKIN, V. Semantic mechanisms of humor. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1985.), partimos da hipótese, como já comentado, de que existe uma espécie de continuum de casos de piadas, indo de ocorrências mais narrativas e previamente conhecidas por quem as relata (as piadas prontas e as anedotas pessoais) a outras, menos previsíveis, próprias da interação. É a esse segundo grupo que se aproximam as piadas conversacionais, fenômenos linguísticos orais, presentes na interação conversacional e nela surgidos, em geral de situações verbais imprevistas.

4 PIADAS CONVERSACIONAIS EM ANÁLISE: ESPONTANEIDADE E HUMOR

Pode-se dizer que a piada conversacional é fartamente percebida em conversas cotidianas. Sua presença, no entanto, contrasta com a captação dela. Inesperada, é difícil saber quando será utilizada na conversação. Informal, ela é comum a situações de fala bastante corriqueiras, do dia a dia, em que, uma vez mais, torna-se difícil seu registro para eventual análise. Uma saída para análise delas é a apropriação de piadas conversacionais produzidas em cenas arquivadas pela mídia e por ela (re)produzidas.

Entendemos que determinados momentos da atividade jornalística contemporânea têm se valido da reprodução de situações informais de fala para criar junto ao espectador/ouvinte um efeito de proximidade. Um dos recursos seria justamente o emprego de piadas conversacionais.

Percebe-se nitidamente tal tendência em produções jornalísticas veiculadas por emissoras de rádio e TV. Será desta última o exemplo a ser analisado a seguir e que, somado aos textos (1) e (2), constitui o corpus deste artigo. O caso selecionado - que é do telejornal Bom Dia Brasil, programa exibido diariamente pela TV Globo no começo da manhã - foi ao ar no dia 14 de maio de 2015. Tratava-se da última reportagem mostrada naquela edição.

A matéria vinha de Recife e apresentava uma mãe que deu à luz a filha na calçada, enquanto esperava por um táxi. A mulher foi entrevistada no leito do hospital. Ela disse à reportagem que não desconfiava da gravidez e que não havia percebido a barriga crescer. “Minha barriga é assim, porque eu sou gordinha mesmo”, afirmou à jornalista que a ouvia. Ela também informou não ter tido enjoos durante a gestação de seu décimo terceiro filho.

A curiosidade que pautou a reportagem era o fato de ela ter dado à luz na calçada. Mas foi a não percepção de estar grávida o foco dos comentários dos jornalistas do estúdio ao final da reportagem, possivelmente motivados pela última fala da entrevistada: “O pai também não acreditou, ele ficou doidinho”.

Estavam no estúdio, em pé, os dois apresentadores do telejornal, Ana Paula Araújo e Chico Pinheiro, e seus interlocutores em São Paulo, Brasília e Londres, respectivamente Rodrigo Bocardi, Giuliana Morrone e Renato Machado. Estes eram mostrados em um telão. Em dado momento, todos riem. O motivo do humor foi um comentário feito pelo jornalista Rodrigo Bocardi a respeito da reportagem exibida há pouco no telejornal. À provocação do apresentador Chico Pinheiro sobre o susto que o marido daquela mulher deve ter tido ao saber do nascimento do décimo terceiro filho, Bocardi respondeu, em tom de brincadeira, que estaria com medo de ele mesmo estar grávido.

Foi a piada conversacional que motivou o riso dos colegas. Tudo isso ao vivo, não custa registrar, já que o telejornal era exibido em tempo real para todo o país. Vejamos na transcrição a seguir como se deu esse diálogo no exemplo (4)12 12 BOCARDI Piada Bom Dia Brasil. Programa: Bom Dia Brasil. Emissora: TV Globo. Data: 14 mai. 2015. Suporte: YouTube. Duração do vídeo: 2´58”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zOtEQ1ac6_U. Acesso em: 30 out. 2018. Trecho transcrito: de 1’36” a 2’14”. :

Percebe-se que havia uma clara tentativa da dupla de apresentadores em dar um tom mais informal à conversa com os demais jornalistas. Isso fica evidente ao observarmos os trechos indicados pelos números de um a seis. Foram temas do diálogo o ar gracioso da criança (linha um) e o susto que o pai deve ter tido ao saber do nascimento do décimo terceiro filho (linhas dois a nove).

É sobre os comentários a respeito da suposta reação do pai que surge a primeira piada conversacional, presente logo no início do diálogo. No segundo turno (linhas dois e três), Chico Pinheiro comenta que o nascimento inesperado seria algo para “ficar doidinho”, expressão que sugere a presença de alguma dificuldade ou contratempo por conta de uma situação inesperada.

A expressão provoca risos na apresentadora, que passa a trabalhar de forma colaborativa com a primeira piada conversacional criada. Ela afirma que o marido não ficaria apenas doidinho, mas “doidinho treze vezes”, posto que o casal já havia tido outros doze filhos. Nas linhas dez e onze, Chico Pinheiro se vale desse diálogo inicial para introduzir a fala final de Rodrigo Bocardi - no encerramento do telejornal, há os destaques finais dos jornalistas mostrados no telão, cada um expondo fatos da região de onde fala(m).

Pinheiro pontuava ao colega se ele não concordava ser motivo de susto aquela situação exposta na reportagem. Surge nesse ponto, como lido nas linhas 17 e 18, a afirmação que levou a outra piada conversacional. Bocardi fala que estaria, ele mesmo, com medo de estar grávido, e sem saber disso. Dado que levou os colegas, e ele próprio, a rirem uma vez mais.

O riso foi gerado, novamente, por uma fala inesperada, vista agora em um trecho mais adiantado do diálogo. O inusitado seria o jornalista, um homem, aventar, em tom de brincadeira, a possibilidade de estar esperando um filho. O conhecimento de mundo atesta ser impossível tal cenário, o que leva ao humor.

Pautando-nos no que descreveu Norrick (1993NORRICK, N. R. Conversational joking. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.), vê-se que se trata de situações construídas durante a conversação (próprias à dimensão interpessoal), ambas inesperadas e presentes em diferentes momentos da interação verbal. Elas evidenciam ainda uma proximidade entre os falantes, ainda que se trate de um telejornal. O recurso, como comentado anteriormente, é resultado de uma estratégia de dar maior informalidade ao contato entre os jornalistas, de modo a aproximá-los do espectador.

Não só os jornalistas que vivenciaram a cena enquadraram aquela situação como sendo uma piada. Os espectadores também. O que autoriza essa leitura é o título dado ao vídeo inserido no site YouTube sobre esse trecho do telejornal. A pessoa que colocou o conteúdo na página virtual intitulou o caso como “Bocardi Piada Bom Dia Brasil”. Ou seja: o jornalista teria feito uma piada durante a exibição do noticiário matinal. Piada conversacional, poderíamos acrescentar, aquela que se afasta das narrativas planejadas (caso das piadas prontas e das anedotas pessoais), já que consistem em fenômenos linguísticos orais, presentes na interação conversacional e nela surgidos, em geral de situações verbais imprevistas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos esta exposição com duas piadas (piada pronta e piada conversacional - terminologias recuperadas por Raskin), para mostrar que a leitura delas nos faz perceber que se trata de fenômenos com características distintas. Com base nisso, nosso foco foi abordar os casos de piadas surgidas na conversação, a fim de descrever e entender o funcionamento desse tipo de produção oral, bem como de verificar de que modo se dá o processamento textual que leva ao sentido humorístico.

Como exposto, consideramos a existência de um continuum entre os dois tipos de piadas, indo de uma situação mais narrativa a outra mais ancorada na conversação. No primeiro grupo, o narrativo, figurariam as piadas prontas e as anedotas pessoais. Estas se distinguiriam daquelas por se pautarem em relatos pessoais e supostamente reais, apesar de haver tendência de certa dose de exagero em determinados momentos da exposição. O interlocutor também é elemento presente no processo de condução da história.

As piadas prontas, por outro lado, mostram-se mais ancoradas em situações fictícias. Os dois casos (de anedota e piada pronta), no entanto, têm como elementos comuns o uso de narrativas e de apropriação de uma situação inesperada como parte relevante da trama - é nela, na surpresa, no inusitado, que se revela o sentido humorístico do texto.

No outro extremo do continuum, estariam as piadas conversacionais. Como dito, elas se baseiam em situações inesperadas surgidas durante a interação entre os falantes. Se as piadas prontas e as anedotas pessoais são contadas (trata-se de um relato sobre algo ocorrido e trazido em tela em um momento de fala), as conversacionais são feitas (improvisadas) no momento da fala (enunciação). As expressões “contar uma piada” e “fazer uma piada” talvez possam evidenciar as ações que distinguem os tipos de piadas em questão.

Nem todas as piadas conversacionais ou espontâneas conseguem ser explicadas pelo modelo teórico-analítico pensado por Raskin e Attardo. Norrick ajuda a lançar algumas luzes sobre o tema, clareando o modo como se processam na conversação. Para o autor, elas se constroem no contato entre as pessoas (dimensão interpessoal), em diferentes momentos e situações da fala (organização da conversação), podendo ser construídas por apenas um falante ou em coautoria com o(s) interlocutor(es).

Norrick destaca também que o nível de familiaridade entre as pessoas que participam da conversação e o histórico existente entre elas (de uso regular de piadas) são elementos que ajudam a fomentar tais ocorrências (função metalingual). Em muitas delas, ressalta o pesquisador, chega-se a situações que ficam no limite da ofensa ou do sarcasmo. Uma vez mais, a proximidade e a informação de outros eventos semelhantes entre os envolvidos autorizariam a apropriação desses processos, mesmo que excessivamente jocosos, não raras vezes sobre os próprios falantes. Essas seriam algumas das marcas que trariam regularidade às piadas conversacionais.

A reflexão sobre as piadas conversacionais nos permite dizer que elas são criadas e empregadas pelos falantes em situações conversacionais espontâneas e informais, sejam elas realizadas em ambiente pessoal (em casa, em reunião de amigos etc.) ou público (como os telejornais analisados ajudaram a evidenciar). Além de divertir e de mostrar uma situação inusitada, elas teriam também como função a busca em se aproximar do ouvinte/telespectador. Nesse sentido, podemos considerar que esta exposição procura não apenas sistematizar, mas também avançar a discussão sobre tais produções.

REFERÊNCIAS

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  • CARMELINO, A. C. Estereótipos do brasileiro em piadas. Intersecções (Jundiaí), 13. ed., n. 3, ano 7, p. 98-112, 2014. Disponível em: http://www.portal.anchieta.br/revistas-e-livros/interseccoes/pdf/interseccoes_ano_7_numero_3.pdf Acesso em: 15 dez. 2017.
    » http://www.portal.anchieta.br/revistas-e-livros/interseccoes/pdf/interseccoes_ano_7_numero_3.pdf
  • CARMELINO, A. C. Piada de brasileiro: para além da representação regional. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 44, p. 928-941, 2015. Disponível em: http://revistadogel.gel.org.br/estudos-linguisticos/article/view/1026/607 Acesso em: 15 dez. 2017.
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  • GIL, C. M. C. A linguagem da surpresa: uma proposta para o estudo da piada. 1991. 220 f. Tese (Doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.
  • HALLIDAY, M. A. K. An introduction to Functional Grammar. 3. ed. London: Hodder Arnold, 2004.
  • MARCUSCHI, L. A. Análise da Conversação. 5. ed. 3. reimpr. São Paulo: Ática, 2001.
  • MUNIZ, K. S. Piadas: conceituação, constituição e práticas - um estudo do gênero. 149f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2004.
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  • POSSENTI, S. Os humores da língua. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998.
  • POSSENTI, S. Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2010.
  • PRETI, D. (Org.). Análise de textos orais. 7. ed. São Paulo: Humanitas, 2010. (Série Projetos Paralelos, v. 1).
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  • TRAVAGLIA, L. C. O que é engraçado? Categorias do risível e humor brasileiro na televisão. Estudos Linguísticos e Literários, v. 5 e 6, p. 42-79, 1989.
  • TRAVAGLIA, L. C. Texto humorístico: o tipo e seus gêneros. In: CARMELINO, A. C. (Org.). Humor: eis a questão. São Paulo: Cortez, 2015. p. 49-90.
  • 1
    PIADEIROS. Diretor: Gustavo Rosa de Moura. Produtor: Gustavo Rosa de Moura. Local: Brasil. Data: 2015. Duração: 90 minutos. Suporte: YouTube. Duração do vídeo: 39”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zENcmGkxNxY. Acesso em: 30 out. 2018. Trecho transcrito: de 0’06” a 0’35”.
  • 2
    Museu Vivo de Padre Cícero. Prefeitura de Juazeiro do Norte. Disponível em: http://www.juazeiro.ce.gov.br/Cidade/Museu-Vivo-de-Padre-Cicero/. Acesso em: 30 out. 2018.
  • 3
    MARINA Silva vs. Eduardo Jorge - Debate Band 2014. Programa: Debate Band. Emissora: Band. Data: 27 ago. 2014. Suporte: YouTube. Duração do vídeo: 46”. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=3Ef4UCqNto8. Acesso em: 30 out. 2018. Trecho transcrito: de 0’00” a 0’17”.
  • 4
    Este texto não pretende discutir a questão de gênero, ou seja, se os dois tipos de piadas constituem gêneros distintos. Convém, no entanto, explicitar que a piada tende a ser caracterizada como um texto narrativo de humor, que traz como traços a brevidade e o final inesperado. Esses são os ingredientes mais comumente destacados por alguns estudiosos do assunto quando buscam definir esse tipo de produção textual, caso dos trabalhos de Gil (1991), Possenti (1998, 2010), Muniz (2004), Ramos (2011) e Travaglia (2015). Carmelino (2014, 2015) acrescenta que, além de narrativo, o texto pode apresentar-se também como dialogal.
  • 5
    A referência de Raskin é à obra Sweet madness: a study of humor, de Fry, publicada em 1963.
  • 6
    Script-Based Semantic Theory of Humor, no original.
  • 7
    O exemplo citado também poderia se enquadrar no que Travaglia (1989, p. 58) classifica como script do absurdo, já que “se contraria o senso comum, o conhecimento comum estabelecido, a razão, escapando a regras ou condições determinadas”.
  • 8
    General Theory of Verbal Humor, no original.
  • 9
    “Spontaneous joking, of course, also occurs at crucial points in conversation: to break the ice in openings and in welcoming new participants, to close down an old topic and move into a new one, or to wind down the conversation and take leave.”
  • 10
    “[...] some friends and colleagues develop what I have been calling a customary joking relationship, where joking routinely takes the form of verbal attack, competitive wordplay, teasing, and so on.”
  • 11
    “The teller states the basic plot or theme of the narrative, then tells (and recycles) the story, dramatizing dialogue and stressing different aspects each time. Audience participation can ensue any time after the initial statement of the plot or theme. It usually begins with laughter, but once the listeners have laughed, they freely offer comments and invent dialogue of their own.”
  • 12
    BOCARDI Piada Bom Dia Brasil. Programa: Bom Dia Brasil. Emissora: TV Globo. Data: 14 mai. 2015. Suporte: YouTube. Duração do vídeo: 2´58”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zOtEQ1ac6_U. Acesso em: 30 out. 2018. Trecho transcrito: de 1’36” a 2’14”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2018
  • Aceito
    25 Jul 2019
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