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"Adoro, faço com carinho, com amor": reza e benzeção em Irati, PR

"I love it, i do with affection, with love": pray and benzeção in Irati, PR

"J´adore, je fais avec soin, avec l´amour": prière et benediction à Irati, PR

"Me encanta isto, hago con cuidado, con amor": reza y benzeção in Irati, PR

Resumo:

O presente artigo, utilizando a metodologia da História Oral, busca analisar a trajetória de vida da benzedeira Leoni, moradora da cidade de Irati, PR, com seus mais de sessenta anos de experiência nesse universo da benzeção. Leoni é umas das benzedeiras mais procuradas pelos moradores da cidade e até de outros municípios, chegando a receber em sua própria casa até cento e vinte pessoas em apenas um dia.

Palavra chave:
benzedeira; Irati; religiosidade

Abstract:

This paper analyzess the trajectory of life benzedeira Leoni, a resident of the city of Irati, PR, with over sixty years experience in this universe of benzeção. Leoni is one of the most sought healers by city residents and even other municipalities, it gets in your own home one hundred and twenty people in one day.

Keywords:
healer; Irati; religiosity

Résumé:

Cet article cherche analyser la trajectoire de vie de Leoni une femme qui a le don de benir et ele habite à la ville de Irati, PR, avec ses plus de soixante ans d'expérience dans cet univers de benedictions. Leoni est l'une des femmes qui a le don de benir et est la plus recherchée par les habitants de la ville et encore d'autres villes, en recevant dans votre maison jusqu´à cent vingt personnes par jour.

Mots-clés:
benir; Irati; religiosité

Resumen:

El presente artículo, utilizando la metodología de la historia oral, analiza la trayectoria de vida de la sanadora popular Leoni. Esta es una moradora de la ciudad de Irati, PR, que tiene más de sesenta años de experiencia como sanadora popular. Leoni es una sanadora bien buscada por los habitantes de la ciudad y hasta de otros municipios. Ella llega a recibir, en su propia casa, hasta ciento veinte personas en apenas un día.

Palabra clave:
curadera; Irati; religiosidad

1 INTRODUÇÃO

"Eu te benzo, eu te curo" caracterizam-se como as palavras mais utilizadas pelos benzedores para a realização de suas orações e suas benzeções. A busca pela cura através da benzedeira ou benzedor fazem parte do cotidiano de muitas pessoas, independentemente do grupo social. Esses homens e mulheres são requisitados para auxiliar na cura de doenças físicas e espirituais.

Na cultura popular, corpo e espírito não se separam, tampouco desliga-se o homem do cosmos, ou a vida da religião. Para todos os males que atingem o corpo e a alma do homem sempre há uma reza para curar... acreditando ou não no poder da reza, tem sempre aqueles que procuram, nas rezas e nas benzeções, uma cura para sua doença ou um alívio para sua dor. (NERY, 2006NERY, Vanda Cunha. Rezas, crenças, simpatias e benzeções: costumes e tradições do ritual de cura pela fé. In: ENCONTRO DOS NÚCLEOS DE PESQUISAS DA INTERCOM, 6. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/120415399193864084132347838529996558992.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2016.
http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/...
, p. 1).

Neste artigo, iremos abordar a experiência de vida da benzedeira Leoni Ferreira Gasparetto, seu inicio no trabalho como benzedeira e algumas das práticas que executa. Essa benzedeira é moradora da cidade de Irati, no interior do Paraná, a qual, segundo o censo do IBGE de 2015INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Contagem populacional. 2015. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Estimativas_de_Populacao/Estimativas_2015/estimativa_dou_2015_20150915.pdf>. Acesso em: 4 fev. 2018.
ftp://ftp.ibge.gov.br/Estimativas_de_Pop...
, conta com 59.708 moradores, com 80% destes concentrados na zona urbana e 20% na zona rural.

Para a realização desta pesquisa, foi escolhido o método da História Oral. O método da História Oral se apresentou como o melhor e mais completo método para se pesquisar as benzedeiras e os benzedores de Irati. Pois, assim como citam Ferreira e Amado (2006, p. 14)FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. no livro Usos e abusos da história oral,

[...] possibilita a história oral esclarecer trajetórias individuais, eventos ou processos que às vezes não tem como ser entendidos ou elucidados de outra forma: são depoimentos de analfabetos, rebeldes, mulheres, crianças, miseráveis, prisioneiros, loucos... São histórias de movimentos sociais menosprezados; essa característica permitiu inclusive que uma vertente da história oral se tenha constituído ligada à histórias dos excluídos.

O documento da História Oral possui algo singular, é o resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado.

O benzedor ou benzedeira, para Moura, é o "sujeito que cura por meio de orações, simpatias e remédios naturais em sua própria casa, sem cobrar por isso" (MOURA, 2011MOURA, Elen Cristina Dias de. Eu te benzo, eu te livro, eu te curo: nas teias do ritual de benzeção. Mneme - Revista de Humanidades, Natal, RN, v. 11, n. 29, p. 340-69, jan./jul. 2011., p. 344). Os curandeiros seriam aquelas pessoas dotadas de poderes sobrenaturais e com condições de lançar mão de feitiços para solucionar alguns pedidos de seus clientes. Ainda, segundo Moura (2011, p. 345)MOURA, Elen Cristina Dias de. Eu te benzo, eu te livro, eu te curo: nas teias do ritual de benzeção. Mneme - Revista de Humanidades, Natal, RN, v. 11, n. 29, p. 340-69, jan./jul. 2011., "benzedores são capazes de desfazer um feitiço, mas jamais de fazer um".

É comum, em algumas regiões, ocorrer a prevalência das mulheres como benzedeiras, também porque existe um arquétipo sobre a mulher curadora, que possui naturalmente o dom da cura, e passa a ser entendida como especializada nos cuidados físicos, sexuais e alguns paliativos (AZEVEDO, 2015AZEVEDO, Gilson Xavier de. Das vassouras aos ramos: o arquétipo das benzedeiras nas antigas bruxas medievais. Mandrágora, v. 21, n. 21, p. 119-33, 2015.; OLIVEIRA; KAVILHUKA, 2014OLIVEIRA, Oseias; KAVILHUKA, Rosenilda. Cultura, memória e religião em Irati, PR: narrativas sobre Albertina Nascimento dos Santos. Multitemas, Campo Grande, MS, n. 46, p. 13-26, jul./dez. 2014.).

A partir concepção, sugerida por Moura (2011)MOURA, Elen Cristina Dias de. Eu te benzo, eu te livro, eu te curo: nas teias do ritual de benzeção. Mneme - Revista de Humanidades, Natal, RN, v. 11, n. 29, p. 340-69, jan./jul. 2011., podemos perceber que a Leoni se encaixa na categoria de benzedeira, pois suas práticas giram em torno de orações e simpatias. Ela utiliza sua própria casa e não cobra nada por seus serviços.

A benzedeira Leoni tem oitenta anos; começou com os benzimentos quando tinha por volta de vinte e dois anos e hoje já possui sessenta anos de experiências. Ela é moradora do bairro Rio Bonito; sua atividade é reconhecida por muitos moradores da cidade e até mesmo de outras regiões. Segundo ela, sua iniciação se deu através da prática de costurar machucadura e que isso ela aprendeu com outra benzedeira da cidade de Ponta Grossa, quando Leoni ainda morava naquela cidade.

A respeito do processo de iniciação das benzedeiras, Alberto Quintana (1999)QUINTANA, Alberto M. A ciência da benzedura: mau olhado, simpatias e uma pitada de psicanálise. Bauru, SP: EDUSC, 1999. sintetiza que podem existir dois tipos: ou imitativo e outro de experiência mística. O primeiro se caracteriza pela aprendizagem baseada no intermédio da imitação, de um outro benzedor, isso pode ocorrer, às vezes, em um ambiente familiar, quando ainda se é criança ou muito jovem. Já no segundo tipo, a aprendizagem ocorre pela transmissão de uma entidade espiritual, que pode ser entendida como um anjo ou um guia.

Leoni relatou que aprendeu a benzer porque necessitava tratar seus próprios filhos. Segundo a dissertação de Vania Vaz, As benzedeiras na cidade de Irati: suas experiências com o mundo, e o mundo da benzeção, a prática de costurar machucadura é muito comum entre os benzedores da cidade de Irati. "[...] os clientes alegam que machucam a "carne" e que só esse benzimento resolve. Para realizá-lo, as benzedeiras geralmente utilizam um pequeno pedaço de pano, que simboliza a parte do corpo machucada, fio e agulha, que representam a costura". (VAZ, 2006VAZ, Vania. As benzedeiras da cidade de Irati: suas experiências com o mundo, e o mundo da benzeção. 2006. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2006., p. 133).

Podemos observar que os utensílios utilizados para a costura de machucadura são associados a significados que os transformam em uma representação de uma extensão do corpo humano. Assim, o pano que simboliza a parte do corpo machucada é costurado, enquanto a benzedeira faz suas orações e seus pedidos.

A prática da costura das machucaduras ou quebradura, também, recebe um procedimento ritualístico, que inclui, além dos objetos em questão, uma postura específica e uma série de perguntas e respostas entre a benzedeira e o cliente, repetidas por um número de vezes; finalizadas com um Pai Nosso e uma Ave Maria (HOFFMANN-HOROCHOVSKI, 2015HOFFMANN-HOROCHOVSKI, Marisete T. Benzeduras, garrafadas e costuras: considerações sobre a prática da benzeção. Guaju, Matinhos, PR, v. 1, n. 2, p. 110-26, jul./dez. 2015.).

Como podemos perceber na fala da benzedeira, ela aprendeu a prática da benzeção com a ajuda de outra benzedeira. Esta é uma das maneiras de se iniciar nessa prática, mas que, segundo Leoni, não é qualquer pessoa que consegue aprender e que irá conseguir seguir com a benzeção. Existe a necessidade do dom:

Não é para qualquer um também, que você pode passar, porque já veio gente aqui. "você me ensina?". Eu posso até te ensinar, se você não tiver vocação para isso, resolve? Não resolve. Porque você fazer uma coisa a esmo, sem saber o que esta fazendo não adianta nada. E gente que vem aqui, que pede pra mim, "você me ensina?". Posso até te ensinar, mas você tem que ter o Dom, que quem não tem esse direito que é adquirido por Deus, não adianta. E tem outra coisa, a pessoa que se submete a isso tem que ter respeito, tem que ter uma cultura, tem que ter fé, muita fé e ser aquela pessoa de respeito. Porque isso exige muito da pessoa, exige muito, muito. Acaba tudo, você tem que se desligar das coisas, porque se não, não adianta nada. (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.).

Segundo Oliveira (1985)OLIVEIRA, Elda Rizzo. O que é benzeção. São Paulo: Brasiliense, 1985., a questão do dom é algo relacional para o benzedor ou benzedeira, pois não basta apenas que perceba sua manifestação, mas, fundamentalmente, que os parentes, os vizinhos, enfim, a comunidade reconheçam a posse do dom. Esse processo, segundo a autora, é marcado por alguns passos:

Primeiro, como já disse, quando ela [a benzedeira] percebe o seu dom. Segundo, quando ela começa a acreditar na sua capacidade de curar, reconhecendo-se preparada para tanto, ou seja, quando ela começa a produzir benzeções às pessoas da sua esfera familiar, às pessoas das suas relações consanguíneas, como aos filhos, irmãos e sobrinhos[...] Terceiro, quando ela estende a sua prática de benzeção aos vizinhos, amigos e familiares que moram na sua comunidade [...] Quarto, quando ela começa a ficar mais conhecida, sendo procurada por pessoas de fora da comunidade. (OLIVEIRA, 1985OLIVEIRA, Elda Rizzo. O que é benzeção. São Paulo: Brasiliense, 1985., p. 40-1).

Ao ser questionada se gostava de ser benzedeira, Leoni nos respondeu com um grande sorriso no rosto "adoro, faço com carinho, com amor porque eu to me dedicando a Deus. Tudo o que é feito com Deus é feito com amor" (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.). Sua devoção pode ser sentida nessas palavras, e, a todo momento, ela enfatizava que só era uma transmissora; quem curava, mesmo, eram seus santos e Deus. Dona Leoni já tem uma longa experiência como praticante da benzeção e vários pesquisadores a buscam para entrevistas. Ela conta com orgulho que uma das pessoas a quem ela concedeu uma entrevista logo lançaria um livro e que seu nome estaria lá. Durante a entrevista com ela, também pudemos perceber que já possuía certa experiência e não se sentia incomodada com a presença do gravador e enfatizou que poderíamos voltar lá, quantas vezes fosse necessário.

Quando perguntamos a Dona Leoni se muitas pessoas buscam seus benzimentos ela nos respondeu:

[...] nossa, você não imagina. É fora, é fora do normal, esses dias eu atendi oitenta e poucas pessoas. Até cento e vinte eu já cheguei atender em um dia. Já aconteceu, graças a Deus né, que é por Deus isso daí né e Ele me dá força. Porque é Ele que me dá força, porque tem dia que você tá baqueado. Porque a gente tem os problemas da gente, tem família, tem casa, tem tudo, mas Deus te dá força. (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.).

Durante a entrevista, quando perguntamos sobre o porquê essas pessoas buscam seus serviços, sua ajuda, suas rezas, ela nos respondeu que era a fé, desses indivíduos, que os movia na procura por esse caminho. Porém a benzedeira também enfatizou que, para determinadas "doenças", só os homens e mulheres benzedores teriam condições de "curar". Nesse sentido, é representativa a frase dita pela benzedeira. Em um determinado momento da entrevista, ela mencionou: "Que nem uma machucadura, um sapinho, um cobreiro, jamais um médico cura disso. Eles entender o corpo humano diferente, não como nos entendemos" (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.). Por essa frase da benzedeira Leoni, podemos compreender que para ela as doenças possuem duas causas, uma natural e outra sobrenatural, sendo que a primeira o médico pode resolver e, para a segunda, existe a necessidade de um benzedor.

Lidiane Alves da Cunha (2012)CUNHA, Lidiane Alves da. Saberes e religiosidades de benzedeiras. Anais dos Simpósios da ABHR, v. 13, 2012. Disponível em: <http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/anais/article/view/565>.
http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.p...
, no artigo Saberes e religiosidades de benzedeiras, escreve sobre as "perturbações/enfermidades/problemas" que acometem os seres humanos e apresenta uma espécie de distinção entre doenças tratadas por médicos e aquelas cuidadas por benzedeiras. A esse respeito, ela diz:

As benzedeiras alegam que existem "doenças de médico" e "doença de benzedeira". Essas doenças das quais se ocupam são mais do que conjuntos de sintomas e de sinais físicos. Elas se caracterizam por possuírem uma série de significados simbólicos - psicológicos, sociais e morais - para os membros de grupos sociais específicos. As doenças curadas pelas benzedeiras se configuram como perturbações que afligem não apenas o corpo, a esfera física, mas estão relacionadas a questões sociais, psicológicas e/ou espirituais que afetam a vida cotidiana como um todo. (CUNHA, 2012CUNHA, Lidiane Alves da. Saberes e religiosidades de benzedeiras. Anais dos Simpósios da ABHR, v. 13, 2012. Disponível em: <http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/anais/article/view/565>.
http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.p...
, p. 2).

Podemos perceber pelo argumento de Dona Leoni, junto com as reflexões de Lidiane Alves da Cunha, que existe essa separação entre a cura de um médico e aquela empreendida por um benzedor ou uma benzedeira. De certa forma, entende-se que a cura feita por esse segundo grupo estaria ligada não apenas ao corpo físico, ao mundo terreno. Mas existiria uma conexão com a esfera espiritual, numa ideia de que as "perturbações/enfermidades/problemas/doenças" seriam fruto de algum tipo de desequilíbrio. O praticante da benzeção, sendo visto como portador de um poder especial, é considerado como alguém capaz de controlar e manipular forças ocultas, tendo em vista a cura da pessoa que busca por sua ajuda.

Mas essa grande busca também pode causar alguns transtornos e muito cansaço, pois é uma atividade que também consome bastante energia física, tal como nos relatou a benzedeira que, antes de se aposentar, ela chegava do serviço e já estava cheio de gente para ser atendida. E que agora, já aposentada, tem dias que passa o dia todo benzendo:

[...] eu fico sem comer, sem beber, eu fico às vezes, quatro, cinco horas aqui fechada, sem tomar um gole de água, fico em jejum. Já fiquei, desde as sete da manhã até meio dia sem comer, sem tomar água, porque tinha muita gente, gente precisando de mim. Então me dedico ali, fico ali e não sinto fome, não sinto vontade de comer nada, já brigaram comigo por causa disso. De eu ficar sem me alimentar, que meus filhos me cobram né, "de onde já se viu, a mãe ficar sem comer". Se preocupam e ficam brabo comigo, eles não gostam que eu passe do horário de comer, mas as vezes é preciso. Às vezes eu to descendo, meio dia para almoçar, chega uma pessoa doente ou com alguma dor. Ai eu tenho que largar de tudo e vir aqui. Já deixei meu prato pronto de comida e vim aqui, porque é uma missão que eu tenho, como é que vou dizer "eu não faço". É o que eu sei, eu vou fazer, não posso dizer que não para ninguém. (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.).

Mesmo comentando que há dias em que chega a ficar sem comer e sem beber, para poder atender o grande número de pessoas que buscam suas rezas, podemos perceber que ela faz isso com carinho e que gosta do que pratica. Entende que é um trabalho extremamente gratificante "adoro, faço com carinho, com amor porque eu tô me dedicando a Deus. Tudo o que é feito com Deus é feito com amor" (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.).

2 ESPAÇO DE BENZIMENTO

Para os praticantes da benzeção, o local onde as pessoas são recebidas para os atendimentos é concebido como um lugar "santo", um ambiente especial em que se sentem mais próximos do sagrado e de suas divindades. Durante a pesquisa, percebemos que a escolha desse local pode variar de benzedor para benzedor. Pode ser um cantinho da sala com um sofá confortável, um quarto de visita pouco usado, a cozinha da casa ou até mesmo um local construído, separadamente da casa, para ser usado exclusivamente para a benzeção.

Neste estudo, entendemos o espaço a partir da ideia de que os significados atribuídos a este se configuram e reconfiguram a partir de práticas sociais (BRAZ; OLIVEIRA, 2013BRAZ, Graziele Margarida; OLIVEIRA, Oseias. Territorialidades religiosas e devoção privada em Irati, PR. Interações, Campo Grande, MS, v. 14, n. 1, p. 107-12, jan./jun. 2013.). Letícia Dias Fatinel, na tese Os significados do espaço e as sociabilidades organizacionais: estudo de um café em Salvador (2012), argumenta que essa operação de construção de práticas sociais acontece a partir de uma série de ações que

[...] colocam em relação o masculino e o feminino, a casa e a rua, o privado e o público, o local e o global, o jovem e o velho, nós e os outros, sagrado e profano, tempo e espaço, cotidiano e extraordinário, lazer e trabalho, e, também, sociabilidade. (MENEZES, 2009 apud FANTINEL, 2012FANTINEL, Letícia Dias. Os significados do espaço e as sociabilidades organizacionais: estudo de um café em Salvador. 2012. Tese (Doutorado em Administração) - Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2012., p. 45).

Para o entendimento do espaço sagrado, embasamos nosso estudo, também, a partir das considerações oferecidas por Mircea Eliade na obra O sagrado e o profano, na edição de 1992ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.. Eliade define o espaço sagrado como sendo aquele que se opõe ao profano. E esse processo de "sacralização" acontece quando há manifestação da hierofania, a qual é constituída por objetos do nosso mundo, como uma árvore ou uma pedra, mas que não constituem apenas como algo material. Para algumas pessoas, esses objetos têm um tipo de significado que os torna mais do que isso, que os transforma em algo sagrado. Eliade explica:

Mas [...] não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada, não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque 'revelam' algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado. (ELIADE, 1992ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 13).

Gilson Xavier de Azevedo e Janice Fernandes Azevedo, no artigo Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação possível (2014), desenvolvem um estudo sobre "aplicabilidade" da teoria desse pesquisador das religiões, no caso Mircea Eliade, em relação ao desenvolvimento do universo das benzedeiras e benzedores, buscando entender melhor como se dá essa prática milenar e como se constitui a figura dessas mulheres. No que se refere a hierofanias, os autores vão argumentar que a construção do sagrado é "justamente como se vê um fenômeno natural". Ou seja, o sagrado consiste em um objeto/acontecimento que se encontra no mundo natural, e não no sobrenatural. Todavia este algo do "mundo natural", do "mundo biológico e físico", é percebido de maneira diferente (AZEVEDO; AZEVEDO, 2014AZEVEDO, Gilson Xavier de; AZEVEDO, Janice Fernandes. Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação possível. Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 35, p. 54-64, set./dez. 2014., p. 60).

De acordo com a bibliografia estudada para a pesquisa, na maior parte dos casos, a prática de benzeção acontece dentro da casa dos benzedores. Hoffmann-Horochovski (2012, p. 131)______. Velhas benzedeiras. Mediações, Londrina, PR, v. 17, n. 2, p. 126-40, jul./dez. 2012., no já referido artigo Velhas benzedeiras, argumenta que "o caráter sagrado do benzimento é geralmente anunciado no próprio espaço físico".

No caso da Dona Leoni, o local utilizado para as benzeções foi construído fora do espaço doméstico e para ser utilizado exclusivamente para as benzeções. Segundo Leoni, ela sempre teve um lugar separado para trabalhar, pois para ela, isso precisa ser feito fora de casa, porque algumas pessoas chegam com "maus fluidos", e isso podia acabar ficando dentro do espaço domiciliar:

Porque tem pessoas que às vezes, tem mal fluído e, dentro de casa, aí fica na casa. E aqui já está preparado, com proteção do Divino Espírito Santo para não acontecer nada. Porque eu vou fazer as coisas em casa, fica às vezes, uma pessoa que chega aqui mal-intencionada, porque vem. Você não pense que não vem, porque tem gente que vem aqui para explorar, vem gente com segundas intenções, e isso não presta dentro de casa. Mistura com a família e isso não pode, tem que ter o lugar certo. (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.).

Azevedo e Azevedo (2014)AZEVEDO, Gilson Xavier de; AZEVEDO, Janice Fernandes. Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação possível. Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 35, p. 54-64, set./dez. 2014. afirmam que "o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo", e em relação às benzedeiras, os autores argumentam que a perspectiva do sagrado estaria relacionada com a saúde, felicidade, bem-estar, alegria, realização. Já o profano teria ligação com as palavras doença, sofrimento, dor, traição, reprovação e acidente (AZEVEDO; AZEVEDO, 2014AZEVEDO, Gilson Xavier de; AZEVEDO, Janice Fernandes. Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação possível. Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 35, p. 54-64, set./dez. 2014., p. 61). Assim, podemos entender a preocupação da benzedeira Leoni com os "maus fluidos", que denotam o significado de profano, descrito acima. Para ela ter um local separado, e principalmente, um "local já preparado e com a proteção do Divino Espírito Santo" (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.), é fundamental para defender sua família desses "maus fluidos" (HOFFMANN-HOROCHOVSKI, 2012______. Velhas benzedeiras. Mediações, Londrina, PR, v. 17, n. 2, p. 126-40, jul./dez. 2012.). Pois, nesse local, Dona Leoni poderá "manipular o profano, a força negativa do mundo presente do cliente" (AZEVEDO; AZEVEDO, 2014AZEVEDO, Gilson Xavier de; AZEVEDO, Janice Fernandes. Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação possível. Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 35, p. 54-64, set./dez. 2014., p. 62) sem se preocupar com que essas forças fiquem dentro da sua casa e a prejudique mais tarde.

3 PRESENTES DE AGRADECIMENTO

Em relação ao pagamento em dinheiro para a realização dos benzimentos, a benzedeira Leoni disse não cobrar por seus atendimentos. Mas muitos indivíduos, em forma de gratidão, dão alguma espécie de presente, já que muitos benzedores dispensam receber dinheiro. Segundo a benzedeira, não cobrar por benzimentos é umas das "regras" que os benzedores devem seguir.

Isso é lei de Deus, é uma lei de Deus. Deus nunca cobrou nada para fazer as caridades e nem os apóstolos. Então a pessoa que cobra, não tem valor. A gente faz com o maior carinho e se dedica com o maior carinho e tudo o que eu faço não tem preço. E não pode ter. (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.).

Os agradecimentos mais comuns são bens como cera de abelha, imagens de santos e velas. Durante a entrevista com a benzedeira Leoni, ela nos mostrou e comentou sobre os objetos que foi ganhando ao longo do tempo:

[...] esse Cristo, esse foi uma graça recebida por um rapaz também. Ele tinha pegado bugreiro, e o bugreiro, médico não cura, injeção não cura. Nada cura. Só cura com benzimento e daí ele estava cheio. Esse moço, um rico lá da cidade. [...] Fiz oração, ensinei os remédios para ele fazer e se defender daquilo. Porque cobreiro e bugreiro são quase a mesma coisa. Se não cortar, não curar, médico não cura. E daí quando foi a última cura dele, que ele estava bom, ele veio com essa imagem para mim também. Quando ele desceu do carro com esse Cristo, eu falei - 'ai, meu Deus, não é possível, não é possível que Deus é tão poderoso'. Tem o Sagrado Coração de Jesus, Sagrado Coração de Maria, as três pessoas da Santíssima Trindade. O mais de tudo, que tudo mundo se encanta aqui é com os três anjos que eu tenho, São Miguel, São Rafael e São Gabriel. [...] essas três imagens vieram de Curitiba para mim. (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.).

Podemos perceber que o sentimento de agradecimento é algo que a toca em especial, não apenas os objetos recebidos em troca de uma cura feita, mas palavras singelas como um obrigado ou um bom dia. Como ela nos relatou, tem dias mais movimentados em que fica o dia todo benzendo as pessoas que a procuram, mas, entre as pessoas boas que chegam lá, ela também percebe que, às vezes, chegam pessoas "mal encaradas".

Porque tem dia que não é fácil, tem dia que tudo bem, que chega as pessoas aqui que você atende, você conversa, você fala e tem dia que chega pessoas com uma revolta, uma coisa assim, uma maldade que Deus o livre. A gente enfrenta barra pesada, não é só benzer, não, não, tem pessoas humanas que você gosta de fazer, que você faz com carinho, você faz com amor. E tem outras que não diz nem bom dia e boa tarde, nem me agradecem um deus que te ajude ou um muito obrigado. Acham que a gente tem direito e aquela obrigação de fazer, não dão a mínima. (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da entrevista com a benzedeira Leoni, nos foi possível acessar dados, os quais julgamos importantes, passíveis a novas interpretações e novas pesquisas mais aprofundadas. Pudemos compreender que uma pessoa, ao aceitar seu dom da benzeção, pode acabar abrindo mão de seu dia a dia. E que, às vezes, em dias movimentados, mal consegue arranjar tempo para fazer suas refeições principais. Mas, ao mesmo tempo, para essa benzedeira é uma questão de solidariedade abrir a porta de sua casa para atender todas essas pessoas que a procuram por seus atendimentos. A benzeção é entendida como um trabalho extremamente gratificante "adoro, faço com carinho, com amor porque eu to me dedicando a Deus. Tudo o que é feito com Deus é feito com amor" (GASPARETTO, 2014GASPARETTO, Leoni Ferreira. Leoni Ferreira Gasparetto: depoimento [28/03/2014]. Entrevistador: William Franco Gonçalves. Irati, PR, 2014.).

Também notamos através da entrevista com essa benzedeira, que os benzedores estão cercados por elementos simbólicos. Os objetos usados para as benzeções podem se transformar e representar uma extensão do corpo humano, como é o caso da benzeção de costura de machucadura, no qual o pano costurado simboliza a carne da pessoa que busca a cura. E até mesmo o espaço onde as rezas e benzeções acontecem podem possuir um poder se transformar um local sagrado onde o benzedor se tornará um mediador entre as divindades e as pessoas.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2017
  • Revisado
    05 Set 2017
  • Aceito
    01 Out 2017
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