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Dimensões plásticas do voluntariado na heterogeneidade do terceiro setor brasileiro

Plastic dimensions of volunteering in brazilian third sector heterogeneity

Les dimensions plastiques du bénévolat dans l'hétérogénéité du secteur tertiaire brésilien

Dimensiones plásticas del voluntariado en la heterogeneidade del tercer sector brasileño

Resumo:

O presente texto trata do voluntariado como chave analítica no entendimento das Organizações Não-Governamentais frente às interações de uma agência representativa de diversos papéis sociais de trabalho. Buscamos apresentar o voluntariado dentro de algumas contradições que lhes são inerentes em um terceiro setor heterogêneo, aqui chamado de plástico, mutável, bem como pensar sobre suas dimensões instrumentais e substantivas refletidas naqueles que o executam, assim como nas organizações que fomentam sua prática.

Palavras-chave:
voluntariado; ONGs; terceiro setor; profissionalização; instituições

Abstract:

This text aims about the volunteering as an analytical understanding of the Non-Governmental Organizations, considering the interactions among representative agencies in various kinds of social labors. We seek to present the volunteering in front its inherent contradictions on a heterogeneous third sector, here called plastic, changeable, and consider the reflects it has from the instrumental and substantives dimensions from its practical performances in NGOs.

Key words:
volunteering; NGOs; third sector; professionalization; institutions

Résumé:

Ce document traite avec le bénévolat comme une compréhension analytique clé des organisations non gouvernementales avant des interactions d'un organisme représentatif de divers postes de travail social. Nous cherchons à présenter le bénévolat au sein de certaines contradictions qui leur sont inhérentes à un troisième secteur hétérogène, ici appelé plastique, changeant,et de réfléchir à vos dimensions instrumentales et de fond reflètent dans ceux qui l'appliquent, ainsi que dans les organisations qui font la promotion de leur pratique.

Mots-clés:
benevolat; ONG; secteur tiers; professionnalisme; institutions

Resumen:

Este artículo trata sobre el voluntariado como una clave-analítica de las Organizaciones no Gubernamentales y de las interacciones de un organismo representativo en las diversas funciones de trabajo social. Buscamos presentar el voluntario dentro de algunas contradicciones inherentes a ellos en un tercer sector heterogéneo, aquí llamado plástico, mutable, y pensar en sus dimensiones instrumentales y sustantivas reflejadas en los que la aplican, así como en organizaciones que promueven su práctica.

Palabras clave:
voluntariado; ONG; tercer sector; profesionalismo; instituciones

1 O TRABALHO VOLUNTÁRIO COMO CHAVE ANALÍTICA 2 2 O presente texto é parte de um trabalho mais amplo a respeito da Profissionalização nas Organizações Não Governamentais, realizado no Brasil e Portugal de 2010-2013. Neste, analisamos as consequências do atual fluxo de profissionalização institucional das ONGs face a diferentes culturais organizacionais. A investigação revelou como e por que ONGs que não se fazem adequadas às exigências de profissionalização esmaecem diante das possibilidades de financiamento, bem como tais processos interferem nas perspectivas de trabalho dos agentes que às instituições de terceiro setor se dedicam. Nosso recorte espacial foi limitado à cidade do Recife, PE, Brasil, e em Braga, Portugal. Amparados por uma perspectiva metodológica de tipo qualitativa, utilizamos, como principais instrumentos de recolha de informação, as técnicas de observação participante em quatro ONGs (duas em cada país) e realizamos 34 entrevistas semiestruturadas com agentes de ONGs, voluntários ou não. Por fim, utilizamos a análise de conteúdo (BARDIN, 1977) como técnica de análise principal, em suas fases de codificação, categorização e inferência.

A estrutura clerical no Brasil foi a chave de entrada para o voluntariado que conhecemos hoje no País em que irmandades, ordens religiosas e confrarias dedicavam-se à abertura de hospitais, orfanatos e demais instituições beneficentes apoiadas num veio de caridade cristã (LANDIM, 1993 aLANDIM, Leilah. Para além do mercado e do Estado? Filantropia e cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: ISER, 1993a.). No século XX, todavia, presencia-se uma diversificação das formas associativas e, nomeadamente nas últimas décadas, pós-redemocratização, notam-se ingredientes adicionados às práticas tradicionais como os debates sobre participação e responsabilidade, a conferir uma transformação da ação voluntária que passava a se preocupar não apenas com os efeitos dos problemas sociais, mas igualmente, com suas causas (LIMA, 2004LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004., p. 12).

Lima (2004)LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004. mostra-nos um survey realizado em 1998 pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) e pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Pesquisa (IBOPE) em que os resultados apontam que 50% da população fazem doações em dinheiro ou em bens para entidades sendo que 21% doam dinheiro, e 29%, bens (por exemplo, alimentos). Dessa amostra, mais de 22% doam "tempo" através de algum tipo de trabalho voluntário para organizações ou para pessoas que não estejam ligadas a instituições formalizadas e que tampouco sejam parte de seus círculos próximos de relações (destes, 16% fazem voluntariado em instituições) (LIMA, 2004LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004., p. 14).

Essa pesquisa foi realizada em cidades com mais de 10 mil habitantes e fez parte da investigação sobre trabalho voluntário coordenada por Landim (ISER/IBOPE apud LIMA, 2004LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004.). Outrossim, ainda que esse tema, como bem coloca Lima, seja antigo na população brasileira, os dados para sua análise são, geralmente, parcos ou inexistentes. Se sobre o associativismo civil brasileiro do século XX temos pesquisas desenvolvidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2008INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Gerência do Cadastro Central de Empresas. As fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil: 2005. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. (Estudos e Pesquisas. Informação econômica).), sobre o trabalho voluntário não possuímos informações mais específicas. Outra fonte de dados possíveis, a Associação Brasileira de ONGs (ABONG) restringe-nos ao universo de suas associadas. Por outro lado, a Receita Federal também não possui dados particularmente voltados ao voluntariado, ainda que seja o órgão responsável pela declaração de isenção fiscal das associações no País.

Por tais motivos, os dados apresentados no survey realizado pelo ISER/IBOPE são as únicas pistas quantitativas com que contamos por ora, ainda que não sejam de estudo longitudinal a comparar diferentes épocas e possíveis tendências do voluntariado no Brasil (LANDIM; SCALON apud LIMA, 2000). No entanto, pela análise conjunta desses dados com as pesquisas sobre as associações, do IBGE, presume-se um aumento numérico no voluntariado haja vista que, na década de 1990, por exemplo, houve um crescimento expressivo do número de empregos criados nas ONGs, igualmente associado ao aumento da quantidade de organizações.

A considerar tal cenário, uma crítica incisiva ao voluntariado pode ser verificada pelo trabalho: "O voluntariado faz bem ao próprio voluntário" (BUCCI, 2005BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7.). Embora sob enunciado substancialmente lógico às questões transversais a este tipo de trabalho, designadamente confirmadas em outra investigação que realizamos, com campo em ONGs brasileiras e portuguesas, em que todos (nota-se: todos) os entrevistados diziam ser o trabalho voluntário uma via de duplo acesso, em que ambas as partes beneficiam-se das práticas exercidas, buscamos perceber que dimensões analíticas ligam essas duas esferas.

"O bem almejado pelo trabalho voluntário, portanto, seria o deleite daquele que a isso se dedica" (BUCCI, 2005BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7., p. 180). O autor advoga que o trabalho voluntário funciona numa dimensão profilática à mentalidade das elites, a "varrer" a indiferença que a sociedade cultivou diante dos mecanismos, causas e efeitos da exclusão social. Argumenta que os pobres e excluídos necessitam de apoio material, de médicos, professores etc., ao mesmo tempo em que os "ricos e poderosos" precisam de ajuda existencial, de "reeducação do espírito e do caráter" e que por isso existem os voluntários e, sendo necessários à manutenção dessas partes, quanto mais voluntariado, melhor (BUCCI, 2005BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7., p. 180-1). Nesse sentido, entende que a responsabilidade social virou marketing, o que alega não ser um "problema em si", mas, um "problema fora de si", que vem de fora pra dentro, do mercado para as relações humanas a corroborar numa cena de solidariedade exibicionista. Nessa última, a solidariedade não precisaria ser sentida, tampouco vivenciada, porém, vista, ostentada. Solidariedade na perspectiva de Bucci (2005)BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7. é, pois, um investimento em que as marcas de Mercado que a utilizam ganham força numa imagem para o consumo, a expandir um fetiche em torno dessa solidariedade. "O fetiche é quem costura o nexo entre a prática do trabalho voluntário e o gozo (quase sempre oculto, de ordem inconsciente) que essa prática proporciona ao voluntário [...] Doar é uma forma de comprar o gozo" (BUCCI, 2005BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7.).

Ao mesmo tempo em que não podemos negar a existência dessas lógicas instrumentais mercadológicas, percebemos que não é prudente uma mera redução de aspectos instrumentais e utilitários a aspectos mercadológicos, mesmo porque, até quando diferentes racionalidades não são capazes de gerar unidades de ação? Aqui, podemos chamar à atenção de aspectos híbridos presentes no voluntariado e no terceiro setor em geral, quando nem tudo é somente substancialidade ou instrumentalidade (tampouco mercantilização). O argumento de Bucci (2005)BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7. nos impede de considerar, por exemplo, as sociedades em que o voluntariado é extremamente forte, a exemplo da canadense, de país desenvolvido. Igualmente, o autor parece-nos fazer uma espécie de "condenação", ou um julgamento moral inacabado, sobre as elites que considera ser as principais mentoras das práticas voluntárias, no que estas teriam, necessariamente, problemas existenciais ou algo que o valha, desconsiderando a heterogeneidade, também, dos grupos elitistas e, o que parece mais grave, julgando ser estes estratos os responsáveis pelo voluntariado3 3 As investigações empíricas que realizamos nos últimos oito anos corroboram com a literatura brasileira sobre o terceiro setor de que não é predominante no campo das ONGs este suposto perfil de voluntariado elitista a sustentar as práticas das organizações, ainda quando estas sejam pressionadas a modelos “mercadológicos” de trabalho. .

Embora considere ser o trabalho voluntário uma atividade formadora didática, Bucci (2005)BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7. insiste na lógica da responsabilidade social como quebra das relações humanas. No entanto lembramos que o mercado também é construtor de relações humanas, independentemente da forma como ocorram essas interconexões, ao mesmo tempo em que, quando salienta os ganhos de mercado pela visibilidade, finda por tirar a complexidade em que ocorrem tais relações. Adiantamos que as preocupações que apresenta sobre o fetiche que encobre o voluntariado e a expansão da lógica consumista desta então "mercadoria", não são, de fato, alheias ao voluntariado. Tampouco são exclusivas a ele, certa vez que o percebemos como uma dimensão social complexa, inserida em eixos analíticos sociais múltiplos que nos levam a pensar na condição humana por uma perspectiva de macro análise, como parece propor Bucci (2005)BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7..

"Minha crítica não quer ter razão. Quer apenas estimular que se fale sobre o que se esconde [...] encontrar na solidariedade abertura para um compromisso mais radical [...] Essa crítica que eu escrevi, escrevi voluntariamente" (BUCCI, 2005BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7., p. 187). E por que apresentamos esse texto crítico de Bucci? Crítico negativista? Apresentamos porque é um argumento que passa pelos principais pontos transversais ao voluntariado, altamente sujeito a tais críticas que não as negamos por completo, mas buscamos entender em seus aspectos mais complexos. Se o voluntariado for reduzido a uma ação em que ganha o pobre, ganha o rico, ganha o país, mas que tais ganhos ficam circunscritos aos problemas apontados, teríamos sua grande contradição e, de fato, ela existe. O ganho das partes envolvidas com o voluntariado é pressuposto, é óbvio, todavia, esse óbvio não constitui um problema a ser investigado, mas o que dele vem, sim. Tentemos perceber essas contradições do voluntariado nas ONGs a partir da análise sobre a profissionalização das organizações.

A ideia do trabalho voluntário (que também pode ser profissional) viabilizou a emergência das ONGs e não é uma página virada em suas histórias. Outrossim, surge um hibridismo nessas instituições,; afinal, como pode um voluntário atender às exigências técnicas presentes atualmente nas ONGs se ele não é um profissional assalariado ou meramente um prestador de serviços? O que existe na lógica do voluntariado que o sustenta?

Faz-se presente a necessidade de ponderar essas interações humanas para além do cálculo e do mero utilitarismo, algo que, muitas vezes, torna-se inviável porque a busca por profissionalização institucional à qual tendem a se submeter as ONGs atualmente, finda por desconsiderar tais vínculos, uma vez que também é regada pelo tecnicismo e por uma série de exigências. Podemos dizer que existe um modelo híbrido presente nas ONGs que faz com que as organizações tentem balizar o tecnicismo junto aos valores humanitários e ligados à benevolência. O trabalho voluntário atualmente tem se deparado com dois tipos de compromisso: o significativo e o utilitário. Não obstante, como dosar as medidas de um e de outro no dia a dia nas instituições?

Com o novo fluxo de profissionalização, o compromisso significativo tende a ficar cada vez mais preterido. Entretanto não estamos a dizer que o trabalho técnico não pode ser benévolo às instituições, mesmo porque, se afirmássemos isso, concluiríamos, paralelamente, que a profissionalização das ONGs é algo desvirtuoso para o terceiro setor. Versamos sobre práticas utilitárias e não utilitárias dentro de organizações consideradas "profissionalizadas", o que não nos leva a reduzir profissionalização a utilitarismo, mesmo porque, existem organizações "profissionalizadas" sem nenhum tipo de trabalho voluntário, bem como seu inverso. Consideramos, desde já, que, embora voluntariado e profissionalização sejam aspectos coexistentes no universo do terceiro setor, um não depende exclusivamente do outro, entrando demais dimensões particulares aos casos a possivelmente explicar as formas e razões do voluntariado a determinados tipos de entidades no que concerne à profissionalização institucional anteriormente citada.

Lima (2004)LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004. mostra como o voluntariado contribui para a formação de uma esfera que se afasta de lógicas sistêmicas instrumentais (mercantil/estatal). Para ela, ainda que as organizações aproximem-se de sociabilidades secundárias, o voluntariado gera mecanismos que abrem espaço para a criação de uma esfera pública a priorizar as relações intrapessoais e a oferecer um tratamento humanizado aos recebedores da ação, no caso do estudo dela, pacientes em tratamento de câncer. Advoga, também, sob um marco teórico apoiado na Teoria da Dádiva4 4 A Dádiva do “dar, receber, retribuir” de Marcel Mauss é aqui vista como uma teoria multidimensional da ação que permite pensar sua contradição como algo constitutivo da própria prática dos atores sociais para entender a complexidade da ação voluntária. , que a ação voluntária é movida por lógicas diversas e que sua mera instrumentalização seria a perda de seu sentido (LIMA, 2004LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004., p. 10). A tese de Vilma vai de encontro à lógica mais restrita do voluntariado, apontada por Bucci (2005)BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7., ao passo que concebe a ação voluntária como mais complexa do que sua aparente utilidade porque envolve uma multiplicidade de lógicas uma vez que se assenta no princípio de reciprocidade. O indivíduo, nesse sentido, parte a construir vínculos saindo de si ao encontro do outro e move-se, também, por interesses pessoais de participação cidadã, busca de resultados sociais e interesses pessoais variados (LIMA, 2004LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004., p. 16).

A lembrar que instituições filantrópicas não são sinônimas de instituições voluntárias (estas não estão, necessariamente, contidas naquelas), consideramos que há uma percepção do voluntariado, em certa medida, romantizada. Numa mesma organização, por exemplo, nem todos compartilham da mesma forma a missão institucional, o que nos impede a generalizações como "este tipo de instituição tem, necessariamente, este tipo de percepção dos voluntários com relação ao trabalho que desenvolvem". Todavia existem regulamentos e uma óptica que tendencia a considerá-los, haja vista a Lei do Voluntariado (Lei n. 9.608, BRASIL, 1998BRASIL. Lei n. 9.608, de 18 de fevereiro de 1998. Lei do Voluntariado. Brasília, 1998.). Tais aspectos têm aberto espaço para uma nova lógica do voluntariado, como ressalta Lima, com aproximações a modelos racionais de mercado, ainda que balizados no hibridismo que sustenta seu argumento. Veremos nos tópicos a seguir alguns elementos relevantes à cena do trabalho voluntário nessa perspectiva de possíveis contradições do voluntariado no terceiro setor.

2 PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS SOLIDÁRIOS E PLASTICIDADE DO VOLUNTARIADO

Dizer sobre o voluntariado é dizer sobre uma maneira de prestar serviços que tem flexibilidades e conteúdos diversos de acordo com o tipo de tarefa desenvolvida e com as condições de trabalho dos agentes. De acordo com o IBGE (2008), existe uma média de 5,1 pessoas assalariadas por ONG (Fasfil) no Brasil, número esse que varia em função da região analisada (sul e sudeste contam com mais assalariados, em média), com as áreas de atuação das entidades (as que prestam serviços de assistência social têm uma média nacional de 6,4 assalariados por organização, por exemplo).

Dadas as características dos serviços assistenciais, o atendimento a um número reduzido de beneficiários tende a ser mais adequado e mais freqüente, requerendo, assim, um número menor de pessoas ocupadas. Em segundo lugar, tais instituições contam com uma participação significativa de colaboradores voluntários. Os dados da pesquisa anteriormente mencionada, PEAS, sobre as entidades de assistência social, apontam que mais da metade (53,4%) das pessoas que trabalham nas entidades de assistência social privadas sem fins lucrativos são colaboradores voluntários / Segundo a Pesquisa das Entidades de Assistência Social Privadas sem Fins Lucrativos - PEAS 2006, apenas 32,1% dos colaboradores são funcionários das entidades. Além dos voluntários, 7,2% são cedidos de outras instituições, 4,4% são prestadores de serviços e 2,8% estagiários. (IBGE, 2008INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Gerência do Cadastro Central de Empresas. As fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil: 2005. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. (Estudos e Pesquisas. Informação econômica)., p. 38, grifos nossos).

Estão os assalariados concentrados em determinadas condições, a ver que 79,5% das instituições não contam com, sequer, um emprego formalizado (IBGE, 2008INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Gerência do Cadastro Central de Empresas. As fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil: 2005. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. (Estudos e Pesquisas. Informação econômica)., p. 38). O trabalho voluntário é então um dos principais responsáveis pela existência dessas organizações, especialmente porque grande parte das diretorias, sobretudo quando estamos a falar de organizações que não possuem o título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público - OSCIP (quando se tem a possibilidade de remuneração à diretoria da entidade), conta com uma diretoria categorizada como voluntária. Outra informação relevante é que no Brasil predomina uma nuvem de pequenas instituições: mais de 90% delas não chegam a ter cinco assalariados, todavia, 0,9% das entidades concentra cerca de mais de 100 empregados por organização (mais de um milhão de indivíduos empregados).

A média salarial dos trabalhadores do terceiro setor era de 3,8 salários mínimos nacionais em 2005. Dados dispersos, não nos podem responder sobre o que se entende, necessariamente, por trabalho voluntário, tampouco sobre a precarização desse tipo de serviço. Embora a Lei do Voluntariado de 1998, n. 9.6085 5 Lei que tem em seu escopo a promoção de serviços com objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos etc. , presuma proteções ao voluntário e à entidade que o recebe e estabeleça os limites da relação a partir de contratos não remunerados de prestações de serviços, nada nos indica que o tipo de voluntariado no Brasil esteja amparado, necessariamente, por essa burocratização.

O serviço existe, sabemo-nos na medida em que vemos o desenrolar dos trabalhos das organizações que pairam sobre toda a literatura do terceiro setor atualmente, ancorada em estudos de campo diversos. Entretanto percebemos como obscuros os pontos de diferenciação entre trabalho voluntário e trabalho informal. Pode o trabalho voluntário ser um trabalho informal? (e precarizado). Sim, e o primeiro indício está nessa pressuposta ausência de regularização trabalhista em muitas situações, notadamente aos casos de pouca burocratização organizacional, associadas a instituições com arquétipos de não complexidade ao que se refere à profissionalização institucional.

Como vimos no tópico anterior, não há estudos de grande abrangência consoantes ao voluntariado, o que nos gera uma incógnita sobre as reais lógicas de trabalho nessas organizações. O trabalhador voluntário, embora aparente motor das ONGs, é um elemento abstrato que existe enquanto agente que realiza serviços concretos sob determinadas condições, porém, forma uma força de trabalho flutuante e de complexa identificação/categorização. Ex: um diretor de uma ONG, não assalariado, é um diretor ou um voluntário? (isso para não falarmos sobre o profissional e o voluntário, categorias ainda mais difíceis de compreensão quando analisadas a partir da variedade de representações existentes no universo de uma dada entidade). Que motivos levam um agente a ser reconhecido (e reconhecer-se) como uma ou outra coisa, ou as duas? Ao que se refere o trabalho voluntário? Buscamos problematizar alguns desses quesitos, a ver como passam as relações que dizem respeito ao mundo do voluntariado. O caminho que tentamos formar para isso é a partir da profissionalização institucional, altamente concatenada à percepção do voluntariado não somente porque, como dito, o voluntário é uma mola propulsora de extrema importância para o funcionamento das organizações, mas também porque profissionalização e voluntariado compartilham dimensões analíticas no cotidiano das entidades.

Elisa Reis propõe uma análise da gangorra entre solidariedade e autoridade, especialmente no que diz respeito à lógica de Estado-Nação e que, todavia, toca na centralidade das ONGs mediante essas duas faces. Reis propõe que "a elevação de tais organizações à condição de par ceiro ou de alternativa para os mecanismos de autoridade sugere uma nova forma de enquadrar as relações entre Estado e sociedade" (REIS, 2011REIS, Elisa. Novas formas de relacionar autoridade e solidariedade: questões teóricas e empíricas. In: Sociologia & Antropologia, v. 1, n. 1, p. 91-118, 2011., p. 92). Ainda que não proposite aferir se as organizações voluntárias estão ou não a cumprir suas propostas de solidariedade social, salienta como mecanismos de autoridade e de interesse funcionam a "organizar e garantir" a solidariedade. Com o vagar, a solidariedade e a própria sociedade passaram a atuar como algo equivalente a uma dimensão lógica supostamente análoga à autoridade de Estado ou Mercado, ou seja, autoridade de Estado e interesses de Mercado não são suficientemente eficazes na resolução de problemas da organização social (REIS, 2011REIS, Elisa. Novas formas de relacionar autoridade e solidariedade: questões teóricas e empíricas. In: Sociologia & Antropologia, v. 1, n. 1, p. 91-118, 2011., p. 93).

Sentimentos de nacionalidade e pertencimento subsidiam a consolidação da ideia de Estado-Nação como instrumento de obediência e autoridade. Os indivíduos habituaram-se a pensar no desenvolvimento da sociedade moderna a partir da lógica circunscrita a tal Estado-Nação: "O Estado-nação bem-sucedido deveria ser capaz de transformar a cidadania no principal identificador de uma coletividade ou de uma "sociedade", ao passo que nações se tornavam sinônimos de sociedades" (REIS, 2011REIS, Elisa. Novas formas de relacionar autoridade e solidariedade: questões teóricas e empíricas. In: Sociologia & Antropologia, v. 1, n. 1, p. 91-118, 2011., 94-5). Solidariedade, logo, passa a ser não reduzida a uma matéria meramente "natural" de que seria feita a sociabilidade, como presumia a literatura clássica sobre o desenvolvimento dos anos 1950/60. Comunidade e solidariedade como elementos passíveis de racionalização e noções como capital social ou associativismo compõem uma cena recente.

Reis, diferentemente do que percebemos dos contributos de Bucci (2005)BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7., não está preocupada se as hipóteses sobre a ascensão das ações voluntárias via Estado e Mercado são ou não "verdadeiras", mas chama à atenção que "as soluções convencionais às quais a sociedade moderna havia se acostumado para o provimento de bens sociais passaram a ser questionadas". Reis toma as ONGs como uma espécie de Proxy da sociedade civil, em que o Estado não deixa de ser importante, mas que tem o papel de sua autoridade mudado, ao exemplo de que autoridades estatais recorrem às organizações como meio de legitimação própria. "O discurso oficial está repleto de exortações à parceria público-privada e de apelos para a solidariedade cívica" (BUCCI, 2005BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7., p. 99).

Nesse contexto, a autora investigou a relação entre a quantidade de funcionários pagos e o tempo das organizações e constatou que, quanto mais antiga, mais tendiam as instituições a terem funcionários pagos6 6 Ao que expõe Reis, sua pesquisa não responde que ter funcionários pagos é não ter voluntários. Embora importante, as informações carecem de certo cuidado na leitura porque a existência de um dado não significa a ausência de outro. É possível que, por exemplo, as ONGs grandes tenham muitos funcionários pagos e muitos voluntários, simultaneamente, ao que não podemos dizer apenas por essas informações as percepções e formas de lidar com o voluntariado por essas entidades. , corroborando com as pesquisas que citamos do IBGE. A isso, levanta a dúvida se, como nas burocracias, as ONGs tendem a expandir notadamente o número de funcionários quando envelhecem. Percebe que esse ponto deve ser investigado a verificar se a forte presença do voluntariado nas instituições mais recentes é devido a estruturas inovadoras ou apenas à falta de institucionalização de algumas dessas instituições (BUCCI, 2005BUCCI, Eugênio. A solidariedade que não teme aparecer: ou o voluntariado para ajudar a quem ajuda. In: BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 180-7., p. 106). Adicionamos que é preciso notar o tipo de voluntariado desenvolvido para fazer possíveis comparações, seus propósitos, a ver, à guisa de exemplo, se as novas instituições estão ou não amparadas por títulos como os de OSCIP, que lhes conferem a possibilidade de diretorias pagas e não apenas voluntárias.

Mais do que ser ou não uma característica da dialética das ONGs, importa-nos focar que falamos sobre o posicionamento destas instituições na sociedade atualmente e de como articulam o voluntariado diante de determinadas condições: "sociedade pluralista e coesa; uma comunidade disposta a mobilizar-se contra a exclusão que está na raiz da violência e da intolerância, traços nefastos de uma sociedade que promove espasmos de crescimento, sem um horizonte promissor [...]" (MARCOVITCH, 1997MARCOVITCH, Jacques. Da exclusão à coesão social: profissionalização do terceiro setor. In: IOSCHPE, Berg. Terceiro setor e desenvolvimento social sustentado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz E Terra, 1997., p. 121). Marcovitch, por exemplo, preocupa-se com o crescimento econômico desestabilizador que induz a tensões nestas lógicas que encobrem as ONGs e o voluntariado. Ao mesmo tempo em que cresce o número de iniciativas de combate à pobreza, cresce a complexidade da compreensão dos processos de empobrecimento (MARCOVITCH, 1997MARCOVITCH, Jacques. Da exclusão à coesão social: profissionalização do terceiro setor. In: IOSCHPE, Berg. Terceiro setor e desenvolvimento social sustentado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz E Terra, 1997., p. 121). Isso tudo, que toca ao que dissertamos até então sobre a moldura mais atual do terceiro setor, e de um terceiro setor profissionalizado, é um cenário de contradições em que o voluntariado também se enquadra. Nota-se o aumento da exigência de um voluntariado qualificado que detenha jurisdição sobre o trabalho a ser executado na ONG. O voluntariado, assim como os demais tipos de trabalho, passa logo a cumprir exigências de profissionalização dessas entidades (grosso modo, haja vista que não podemos dizer sobre o que pretende o "voluntariado" uma vez que ele, nos termos desta investigação, é uma lógica de ação transversal à lógica do terceiro setor, no que o faz pertencer a um modelo heterogêneo de possibilidades de ações, motivações etc.).

Um levantamento feito pela Kanitz & Associados revela que, em 1999, existia 59.899 profissionais em atuação e 2864 vagas abertas no Terceiro Setor. Levantamento feito pelo GIFE - Grupo de Institutos, Fundações e Empresas mostra que 53% dos colaboradores das organizações possuem ensino superior completo ou incompleto e 67% das entidades utilizam serviços de consultoria quando necessitam de mão-de-obra especializada que não faz parte de seu quadro de funcionários. (CADERNO DE EMPREGOS apud LOPES, 2012LOPES, Nilza. A migração de profissionais para o terceiro setor. 2012. Disponível em: < https://pt.scribd.com/document/41085982/A-migracao-de-profissionais-para-o-Terceiro-Setor >.
https://pt.scribd.com/document/41085982/...
, p. 2 ).

Entre esses profissionais, estão médicos, engenheiros, ambientalistas etc. O profissionalismo é aqui interpretado como um fenômeno individual, e não organizacional. Como disserta Svensson (2006)SVENSSON, Lennart G. New professionalism, trust and competence: some conceptual remarks and empirical data. Current Sociology, v. 54, n. 4, p. 579-93, jun. 2006.: "O conceito de profissionalismo não estava diretamente ligado a confiança ou crença, apenas indiretamente através de conceitos como ética e responsabilidade"7 7 No original: “The concept of professionalism was not directly linked to confidence or trust, but only indirectly through concepts such as ethics and responsibility”. . O autor procura analisar a relação entre profissionalismo, confiança e competência, a estabelecer um novo profissionalismo, pós-burocrático organizacional. Escreve ele sobre o controle da atual performance de trabalho, a demonstrar como as noções mais atuais de profissionalismo estão fortemente associadas à confiança e que, muito embora ele demonstre a importância de fatores como o capital social, estas noções são ancoradas em competências, sobretudo, individuais.

Quais seriam, então, as motivações a esse tipo de trabalho voluntário? Os motivos são variados, não poderíamos simplificar a conjuntura a apenas uma dimensão. Os aspectos mais gerais que nos levam a refletir sobre tais motivações podem ser erguidos por racionalidades instrumentais e/ou substantivas, ou seja, movidos por caracterizações espontâneas, desinteressadas etc., ao mesmo tempo em que podem ser centrados no interesse utilitário, como já tivemos ocasião de mencionar.

Ao mesmo instante, vontade em ajudar agrega-se a pressupostos de interesses egoísticos e à necessidade de maximização de resultados, o que, como ressalta Lima (2004)LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004., faz possível a justaposição desses comportamentos egoísticos atrelados ao altruísmo involuntário (LIMA, 2004LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004., p. 100). A intercessão entre essas duas dimensões pode ser conferida, por exemplo, quando um indivíduo dedica-se ao voluntariado por interesses de edificação pessoal mas que, pelo tipo de trabalho desenvolvido, finda por promover um bem social exterior àqueles interesses individuais. A questão está em como "dividir" esses aspectos. Dividir, estabelecer quando um e outro entram em cena nas motivações pessoais seria a grande contradição a perder a complexidade do fenômeno, alicerçado, sobretudo, na lógica híbrida desses elementos. Os agentes não são só um ou outro extremo, mas são complexos dependentes de condições estruturais e individuais, a ver de contextos diversos, como o da própria lógica de funcionamento das instituições de que fazem parte.

A explicação mecanicista do agente é, portanto, passível de ser suspensa a dar vez a elementos como generosidade e amizade, dentre outros laços de sociabilidade nitidamente primários e interessantes ao funcionamento da lógica voluntária, que se nutre destes elementos relativamente fortes, ao mesmo tempo delicados. Exemplificamos: ao mesmo tempo em que relações primárias e emocionais podem garantir a manutenção das atividades voluntárias diante de contextos conturbados de crises de sustentabilidade institucional, estes laços tornam-se frágeis quando aspectos particularistas entram em jogo como dimensões de dependência, a exemplo do voluntário que só permanece em uma atividade por ter laços emotivos na instituição. Nota-se ainda essa fragilidade quando o voluntário, como mostra Lima (2004)LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004., age somente por motivações pessoais e finda por desistir da ação, a gerar também um distanciamento do recebedor e uma falha na lógica "subjacente" ao voluntariado. Por isso, voltamos, a motivação sustenta-se no hibridismo dessas dimensões, principalmente porque é necessário que o voluntário sensibilize-se à missão e a aspectos latentes determinantes nas relações organizacionais. "[...] instrumentalizar essa ação na tentativa de maximizar a sua utilidade, pode provocar um esvaziamento de sentido da ação, por priorizar apenas um momento da mesma" (LIMA, 2004LIMA, Vilma Soares de. Dádiva e voluntariado: ações de apoio junto a portadores de câncer. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Permambuco (UFPE), Recife, PE, 2004., p. 105).

Para além do que chamamos à atenção, percebemos também que a motivação dos voluntários pode ser fomentada pelas entidades, no que tende a fazer com que esses agentes executem trabalhos de mais qualidade a mostrar eficiência na medida em que se sentem valorizados no que executam. Lima trabalha com as noções de "motivos pessoais" e "motivos solidários" nas motivações dos voluntários para perceber seu campo na pesquisa que estudou entidades a trabalhar com crianças com câncer, como já mencionamos. Assim, denota como a maioria de seus entrevistados aponta os dois tipos de motivação como relevantes ao processo de voluntariado.

Pensemos no olhar do recebedor da ação, afinal, o voluntariado não é um processo unilinear, em que o voluntário doa seu trabalho numa ação filantrópica sem uma resposta por parte do recebedor da ação (seja este o recebedor direto da causa social ou um intermediário, como a organização, nomeadamente aos casos de trabalhos voluntários burocráticos, trabalhos de gabinete das instituições). Posto que o trabalho voluntário é circunscrito a bens simbólicos, o voluntário tende a ser visto como aquele que oferta, dá apoio. O voluntariado pode ser uma fonte de fomento para que as relações interpessoais não sejam mediadas meramente por aspectos técnicos e utilitários, a caracterizar um campo de diferenças entre o terceiro setor e os demais.

O voluntário também, quando trabalha diretamente com os recebedores da ação, é veículo de ligação entre estes e a instituição, sobretudo quando goza de relações mais personalizadas. Lembremos que as instituições não possuem sentimentos, elas não "sentem" como os agentes, elas operam. Todavia o fazem alimentando-se dessas justificativas e ferramentas mais latentes proporcionadas pelos indivíduos que dela fazem parte, aqui, especialmente, falamos desses indivíduos voluntários. Como sugerimos no título deste texto, a plasticidade voluntária é então fruto desses elementos híbridos, hibridismo todavia não restrito à lógica voluntária, mas que diz respeito à própria lógica da profissionalização das ONGs.

3 O VOLUNTARIADO EM ROUPAGEM INSÓLITA

Como denotado, as motivações para o desenvolvimento do trabalho voluntário podem ser das mais diversas. Muitas organizações utilizam bancos de voluntariado, isto é, outras entidades que se designam a recrutar pessoas específicas para determinadas atividades e encaminhá-las para as instituições de acordo com os perfis apresentados e com as possibilidades de trabalho nas organizações. Nesse recrutamento, as entidades podem sensibilizar os voluntários em potencial através da mídia, por exemplo, a oferecer-lhes cursos de capacitação na tentativa de tornar o voluntário um agente multiplicador da causa da ONG.

Os bancos de voluntariado operam como um elo entre os cidadãos e as organizações e, bem como muitas agências de cooperação internacional, atuam como entidades trabalhando por entidades, em um serviço adicional a dar conta do atual complexo modelo de terceiro setor. Tudo isso diz respeito à profissionalização das ONGs e, por consequência, do voluntariado, que tem reivindicado a quebra do paradigma de atividade sem compromisso ou meramente cordial/emocional. Esse voluntário, inserido nas novas lógicas de profissionalização, tende a envolver-se com questões de formação continuada, com a quebra de uma postura tradicional de que o voluntário só dá e, também, é habilitado a compreender que os ganhos sobre seu trabalho doado podem ter alcance para além dos intramuros das instituições, a formar currículos mais interessantes ao mercado, por exemplo.

Essa visível racionalização do voluntariado que, embora dela falemos e que nos seja interessante aos propósitos da investigação, não é um fenômeno exclusivista e, por ser uma tendência, não finaliza as práticas de voluntariado mais tradicionais (exclusivas de relações filantrópicas assistencialistas). Ou seja, tem havido uma quebra de paradigmas sobre as interpretações do voluntariado e, sendo este um fenômeno que ligamos à profissionalização das ONGs e por sabermos que as tendências de profissionalização não cobrem todo o universo de organizações, não podemos igualmente generalizar tais tendências de quebras desses paradigmas (se assim o fosse, as ONGs "seriam como seriam", com fortes tendências à profissionalização institucional, sem as contradições de outras faces e não haveria complexidades a refletir, por exemplo, no voluntariado). O cenário de racionalizações de onde opera o voluntariado depara-se com as especificidades do terceiro setor e, por isso, não pode ser confundido como um elemento meramente instrumental de que o voluntário "também recebe". Por que "receber" dentro de um trabalho voluntário no terceiro setor e não dentro de uma lógica empresarial de segundo setor? A questão parece-nos mais complexa do que em geral se supõe.

A presença de voluntários exige da instituição dinâmicas de trabalho e relações específicas. Quiçá, um dos motivos pelo qual muitas organizações (mesmo quando reconhecem nas entrevistas que realizamos em estudo exploratório que o voluntariado é uma lógica nobre ao desempenho das funções do terceiro setor) não se veem preparadas para tê-la, alegando a não estrutura para lidar com os aspectos e problemas mais elementares passíveis à atividade, a exemplo da presença de voluntários que não cumprem com as obrigações ou que processam juridicamente as instituições após certo tempo de trabalho, ainda que diante de um aparato legal como o contrato de voluntariado. Soma-se que, nos arquétipos mais horizontalizados de organizações, os voluntários, assim como todos da instituição, fazem parte do processo decisório da diretoria em alguma medida. Podem eles compor a própria ONG o que, todavia, demanda uma lógica de gestão minimamente estruturada para lidar com os percalços que por ventura podem eclodir de tais relações entre voluntários e não voluntários.

Fábio Ribas (CAIRO; MENDES, 2005CAIRO; Nanci Garcia; MENDES, Karla Losse. Terceiro setor, responsabilidade social e voluntariado. Psicologia Argumento, Curitiba, PR, v. 23, n. 42, p. 11-4, jul./set. 2005. Disponível em: <http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/pa?dd1=172&dd99=view&dd98=pb>.
http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/p...
), quando perguntado sobre o voluntariado como exercício de cidadania, e não como prática meramente assistencialista no terceiro setor, considera que o voluntariado é um fenômeno em fase de reconstrução em que modelos mais tradicionais de filantropia assistencial tendem a ser substituídos por preocupações mais efetivas. Percebe o assistencialismo como algo arraigado na cultura brasileira e em suas políticas sociais, o que dificulta o processo de ligação do voluntariado à perspectiva de cidadania emancipatória, compreensão da realidade, empreendedorismo etc. A prática voluntária não pode ser limitada a processos que não agregam competências a ambas as partes, não deve substituir o trabalho profissional e, antes, o trabalho especializado. O voluntariado em países como Estados Unidos e Canadá, por exemplo, é parte de uma cultura escolar previamente instituída, incluído ao sistema educacional, o que agrega uma visão mais íntima com o fenômeno por parte da sociedade.

Esses passos, nomeadamente no Brasil, chegam-nos com reservas que, não à toa, pertencem à política de funções entre os indivíduos, sobretudo quando a segurança social estatal não prevê o cumprimento de itens a garantir o bem-estar social do voluntário que se depara com os problemas elementares de sustentabilidade pessoal: como ser voluntário se há que se sustentar? Ademais, o nexo do trabalho voluntário não é nítido para os indivíduos que vivem as facetas dos segundo e terceiro setores, especialmente quando funcionários de empresas privadas são "estimulados" a integrarem programas sociais desenvolvidos pelos institutos das próprias empresas. Isto faz com que o voluntariado finde por ser mais uma segunda obrigação do que uma atividade, de fato, voluntária, bem como contribui para se pensar no voluntário como uma peça não apenas associada ao terceiro setor. Igualmente, há exemplos de prestações voluntárias oriundas de grupos de funcionários que foram posteriormente apoiadas pela empresa, a criar espaços de ganhos sociais e aprimorando competências daqueles indivíduos. Em suma, sem querermos versar aqui diretamente sobre as relações entre segundo e terceiro setores, buscamos demonstrar que não existe um modelo linear de como ocorre o voluntariado, nem de suas consequências ao debate mais geral em que se enquadra a profissionalização das ONGs. As contingências podem ser das mais variadas, a legitimar as práticas para determinados grupos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evitamos elaborar neste texto uma tipificação de voluntários, isto é, um modelo de enquadramento dos possíveis tipos de voluntários existentes no universo das ONGs. Embora esse esforço metodológico pudesse nos ser útil, teria sido demasiadamente perigoso se fosse construído a focar nas possíveis categorias apenas voluntárias, sem considerá-las concatenadamente ao quesito da profissionalização institucional, a ele aqui relacionado.

O voluntariado, como vimos, é legitimado tanto por vínculos de sociabilidades primárias quanto secundárias, passa por lógicas racionais mercantis e burocratizadas como, também, por veios eminentemente personalistas. O trabalho do voluntário pode (todavia, não necessariamente) funcionar como elo entre essas esferas dentro das entidades, ou seja, ser o voluntário uma representação híbrida, plástica, que habita os dois campos e funciona como um ponto de equilíbrio para os imponderáveis da vida real das instituições. Outrossim, o que faz com que associemos essa capacidade/habilidade ao voluntário e não a um possível funcionário da instituição? Por que nele estariam mais fortes esses dois domínios? O que existe na lógica do voluntariado que o distingue de outras formas de trabalho para além do fato de não ser ele remunerado por seus serviços? Essas questões, extremamente amplas, são frutos de por que termos uma diferenciação entre as categorias de voluntário e não voluntário. Certamente não as responderemos por estas páginas, no entanto as utilizaremos como guias para localizarmos esses agentes dentro de diferentes quadros de profissionalização em futuros trabalhos de campo, a ver como podemos entender tal processo de profissionalização com voluntários que possuem esta ou aquela representação na organização, bem como no que isto acarreta em termos práticos para as associações.

Tentemos perceber um pouco da dinâmica voluntária pela localização desses agentes em processos não exclusivamente internos às ONGs. "Para o agente do terceiro setor, a escassez de recursos, que está na origem da análise econômica, não pode legitimar a exclusão. O agente do terceiro setor dá novo sentido à democracia" (MARCOVITCH, 1997MARCOVITCH, Jacques. Da exclusão à coesão social: profissionalização do terceiro setor. In: IOSCHPE, Berg. Terceiro setor e desenvolvimento social sustentado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz E Terra, 1997., p. 127). Novamente, chegamos às motivações e aos interesses sobre o voluntariado não apenas por parte do voluntário e das instituições, mas também de suas implicações a eixos sociais mais amplos. É sabido que jovens em processo de formação escolar/acadêmica ou egressos das universidades buscam, no terceiro setor, alternativas para aprimorar seus percursos e, por consequência, terem currículos mais interessantes à vida profissional, muitas vezes em fase inicial. O acesso ao mercado de trabalho pressupõe uma remuneração decorrente do desempenho das funções mas que pode ser "atrasada" em nome dessa busca por qualificação e reconhecimento de competências, porventura, oferecidas pelos serviços voluntários, em que ganha-se formação, experiência, conhecimento de possibilidades variadas de atuação no mercado profissional etc. Também, nota-se que não existe um perfil único de como se portam esses jovens nas ONGs, igualmente, suas perspectivas são das mais diversas.

Dentro dessa variedade de perspectivas nas atividades sociais, a formação acadêmica ganha moldes peculiares. Se, por um lado, os voluntários de/em formação acadêmica levam contributos aos seus percursos profissionais, as ONGs também os querem ao trabalho por razões notadamente práticas. De acordo com Santiago e Carvalho (2010)SANTIAGO, Rui; CARVALHO, Teresa. Mudanças na profissão acadêmica: uma perspectiva comparativa. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL GRUPOS PROFISSIONAIS, PROFISSIONALISMO E SOCIEDADE DO CONHECIMENTO: TENDÊNCIAS, PROBLEMAS E PERSPECTIVAS , 3. Anais... Aveiro, Portugal. 2010., a profissão acadêmica constitui um grupo profissional específico, detentor de um prestígio social elevado. Para eles, a profissão acadêmica chegou a esse reconhecimento social por três motivos. Primeiro, por sua estreita conexão com a especialização, que gera vínculos com a autonomia profissional. Segundo, porque o Estado promoveria uma espécie de proteção de mercado burocrático ao mundo profissional. E, terceiro, devido ao fato de a este grupo ser salvaguardado o status de "profissional orgânico", competente àquela especialização.

Evidentemente, mudanças passaram ao grupo profissional acadêmico, no que ganharam espaço outros grupos, como os de médicos, por exemplo, reivindicando o conhecimento especializado que possuem na legitimação do trabalho. Ainda assim, muitos profissionais acadêmicos buscam preservar valores e normas tradicionais ligadas ao status mencionado, contudo, salienta-se que os grupos profissionais não interpretam e respondem às mesmas pressões por reconhecimento de forma linear e/ou homogênea (SANTIAGO; CARVALHO, 2010SANTIAGO, Rui; CARVALHO, Teresa. Mudanças na profissão acadêmica: uma perspectiva comparativa. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL GRUPOS PROFISSIONAIS, PROFISSIONALISMO E SOCIEDADE DO CONHECIMENTO: TENDÊNCIAS, PROBLEMAS E PERSPECTIVAS , 3. Anais... Aveiro, Portugal. 2010.). Essa conexão ajuda-nos a pensar até que ponto o trabalho voluntário (especialmente porque não existe apenas uma forma de voluntariado) proporciona os benefícios da experiência, capacitação, formação etc. Qual o limite para se "testar" quando o trabalho voluntário desempenhado por um egresso universitário é de fato benéfico à formação de seu percurso profissional, ou quando entra no percurso apenas como um elemento a ser valorizado por este esquema representativo de manutenção/busca de status? O que faz com que um curriculum vitae, por exemplo, seja mais valorizado por conter uma dedicação voluntária? Essas perguntas são retóricas, e as são por negação, posto que esses limites são abstrações que caminham por instâncias tradicionalmente racionais, bem como valorativas (no que, também, não poderíamos dizer que esses elementos valorativos não façam parte de uma razão pré-estabelecida e interpretada em determinados meios, como por um possível empregador de um ex-voluntário).

Na França, já há um dispositivo de reconhecimento de competências (Validation des Acquis de l`Expérience), desde 2002, que confere ao voluntário um diploma com base em sua experiência benévola quando realizada por mais de três anos (SANTIAGO; CARVALHO, 2010SANTIAGO, Rui; CARVALHO, Teresa. Mudanças na profissão acadêmica: uma perspectiva comparativa. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL GRUPOS PROFISSIONAIS, PROFISSIONALISMO E SOCIEDADE DO CONHECIMENTO: TENDÊNCIAS, PROBLEMAS E PERSPECTIVAS , 3. Anais... Aveiro, Portugal. 2010., p. 159). Ainda que amparado nas certificações, há de se considerar a pressão que sofre o voluntário no processo de profissionalização institucional, notadamente quando se depara com pessoas que exercem as mesmas funções que as suas, mas que têm estatutos diferentes. "Segundo Per Selle, a relação do trabalho amador e profissional é mais complexa do que a relação trabalho pago e não pago" (REGO, 2010REGO, Raquel. A profissionalização do terceiro sector: o caso do associativismo. In: ALMEIDA, Paulo P.; FREIRE, João. Trabalho moderno, tecnologia e organizações. Porto, Portugal: Afrontamento, 2010., p. 158). Em muitos casos, versa Rego (2010)REGO, Raquel. A profissionalização do terceiro sector: o caso do associativismo. In: ALMEIDA, Paulo P.; FREIRE, João. Trabalho moderno, tecnologia e organizações. Porto, Portugal: Afrontamento, 2010., no processo de profissionalização, voluntários antigos são renunciados pelas ONGs por não atenderem às demandas das atuais disposições vistas no começo deste capítulo, por terem uma gestão de trabalho relativamente volátil às novas tendências de profissionalização.

Como contraposição à lógica de fomento ao voluntariado dentro do terceiro setor, também conhecido como o "setor voluntário", consideramos a possibilidade da existência de muitas organizações voluntárias sem voluntários, como uma pré-disposição de determinados modelos de profissionalização (SELLE apud REGO, 2010REGO, Raquel. A profissionalização do terceiro sector: o caso do associativismo. In: ALMEIDA, Paulo P.; FREIRE, João. Trabalho moderno, tecnologia e organizações. Porto, Portugal: Afrontamento, 2010., p. 159). Em pesquisas de campo que realizamos em ONGs (2008-2013), pudemos notar uma tendência de que não necessariamente as organizações sejam a favor do trabalho voluntário, embora reconhecendo a importância e a necessidade dessa prestação de serviços. Pelo contrário, muito registramos de agentes que gostariam para a ONG mais profissionais contratados, quando se evitaria o 'voluntariado descomprometido', noção complementada pela perspectiva do por que um profissional tem o direito de receber pelos contributos que oferece à instituição, e outra pessoa, o voluntário, não?

Pelo fio condutor da profissionalização institucional que citamos, sustentamos que a questão do voluntariado, seja ele desenvolvido com vistas no percurso profissional; no preenchimento de currículos; no intento de supressão da solidão ou depressão que acomete indivíduos que não possuem outra ocupação institucional; em preceitos morais de fazer o bem; etc, embora não possa ser reduzida a questões apenas instrumentais de "aquele voluntário interessa à entidade ao contrário deste" (porque presume, antes, o exercício do trabalho de agentes que demandam questões complexas sobre o desenvolvimento do setor), deve ser entendida como um fenômeno estrutural ao mesmo tempo que conjuntural. Dizemos sobre as transformações de um voluntariado que se voltou a ser insólito, repensado, reconstruído e que passa a colher das críticas que, muitas vezes, não são lançadas diretamente a si, todavia, às conjunturas em que se insere.

Quando se profissionaliza uma associação, profissionaliza-se o que e a quem? O que faz significar este ou aquele trabalho como interessante à manutenção de um sistema ainda não sólido, como é o atual processo de profissionalização das ONGs? Eis o porquê de estarmos diante de um debate imprescindível a toda e qualquer reflexão sobre o setor sem fins lucrativos, no que temos essa dimensão analítica do voluntariado como chave de visualização das contradiçoes evidentes ao passo que, também, mascaradas nas mudanças do terceiro setor.

  • 2
    O presente texto é parte de um trabalho mais amplo a respeito da Profissionalização nas Organizações Não Governamentais, realizado no Brasil e Portugal de 2010-2013. Neste, analisamos as consequências do atual fluxo de profissionalização institucional das ONGs face a diferentes culturais organizacionais. A investigação revelou como e por que ONGs que não se fazem adequadas às exigências de profissionalização esmaecem diante das possibilidades de financiamento, bem como tais processos interferem nas perspectivas de trabalho dos agentes que às instituições de terceiro setor se dedicam. Nosso recorte espacial foi limitado à cidade do Recife, PE, Brasil, e em Braga, Portugal. Amparados por uma perspectiva metodológica de tipo qualitativa, utilizamos, como principais instrumentos de recolha de informação, as técnicas de observação participante em quatro ONGs (duas em cada país) e realizamos 34 entrevistas semiestruturadas com agentes de ONGs, voluntários ou não. Por fim, utilizamos a análise de conteúdo (BARDIN, 1977BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.) como técnica de análise principal, em suas fases de codificação, categorização e inferência.
  • 3
    As investigações empíricas que realizamos nos últimos oito anos corroboram com a literatura brasileira sobre o terceiro setor de que não é predominante no campo das ONGs este suposto perfil de voluntariado elitista a sustentar as práticas das organizações, ainda quando estas sejam pressionadas a modelos “mercadológicos” de trabalho.
  • 4
    A Dádiva do “dar, receber, retribuir” de Marcel Mauss é aqui vista como uma teoria multidimensional da ação que permite pensar sua contradição como algo constitutivo da própria prática dos atores sociais para entender a complexidade da ação voluntária.
  • 5
    Lei que tem em seu escopo a promoção de serviços com objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos etc.
  • 6
    Ao que expõe Reis, sua pesquisa não responde que ter funcionários pagos é não ter voluntários. Embora importante, as informações carecem de certo cuidado na leitura porque a existência de um dado não significa a ausência de outro. É possível que, por exemplo, as ONGs grandes tenham muitos funcionários pagos e muitos voluntários, simultaneamente, ao que não podemos dizer apenas por essas informações as percepções e formas de lidar com o voluntariado por essas entidades.
  • 7
    No original: “The concept of professionalism was not directly linked to confidence or trust, but only indirectly through concepts such as ethics and responsibility”.

REFERÊNCIAS

  • BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo Lisboa: Edições 70, 1977.
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    » http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/pa?dd1=172&dd99=view&dd98=pb
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Gerência do Cadastro Central de Empresas. As fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil: 2005. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. (Estudos e Pesquisas. Informação econômica).
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  • ______. A invenção das ONGs: do serviço invisível à profissão sem nome. 1993. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1993b.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2017
  • Revisado
    04 Jun 2017
  • Aceito
    18 Jun 2017
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