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Empreendimentos induzidos por políticas públicas: reflexões a partir do Programa de Combate à Pobreza Rural (PCPR) em Minas Gerais

Ventures induced by Public policy: reflections from the Programme to Combat Rural Poverty (PCPR) in Minas Gerais

Entreprises induites sur les politiques publiques: réflexions provenant du Programme de Lutte Contre la Pauvreté Rurale (PCPR) dans le Minas Gerais

Empresas inducida en las políticas públicas: reflexiones sobre el Programa de Lucha Contra la Pobreza Rural (PCPR) en Minas Gerais

Resumos

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a sustentabilidade de empreendimentos induzidos por políticas e programas públicos, tomando como referência empírica o Programa de Combate a Pobreza Rural do governo de Minas Gerais (PCPR). As análises demonstram que muitos dos empreendimentos encontram-se sem a mobilização e integração social necessárias a sua sustentabilidade. Conclui-se que o PCPR necessita de qualificar sistematicamente os processos de intervenção e planejamento das demandas dos agricultores familiares com vistas a promover a apropriação do projeto a ser implantado e evitar a mera formalidade dos empreendimentos.

Associações; Desenvolvimento; Políticas públicas


The goal of this work is to reflect on sustainability ventures induced by public policies and programmes, by reference to empirical programme of combating Rural poverty of the Government of Minas Gerais (PCRP). The analyses demonstrate that many businesses find themselves without the mobilization and social integration required for its sustainability. The PCRP needs qualify systematically processes and planning of the demands of family farmers to promote ownership of the project to be deployed and avoid the formality of ventures.

Associations; Development; Public policy


L'objectif de ce travail est de réfléchir sur la durabilité entreprises induites par les politiques publiques et les programmes, par référence empirique au programme de la lutte contre la pauvreté rurale du gouvernement de Minas Gerais (PCPR). Les analyses démontrent que beaucoup d'entreprises retrouvent sans la mobilisation et l'intégration sociale nécessaire pour sa durabilité. Le PCPR doit qualifier systématiquement les processus et la planification des exigences des agriculteurs familles pour promouvoir la propriété du projet pour être déployés et éviter la formalité de entreprises.

Associations; Développement; Politiques publiques


El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre sostenibilidad de empresas inducidas por las políticas públicas y programas, por referencia empírica al programa de la lucha contra la pobreza Rural del Gobierno de Minas Gerais (PCPR). Los análisis demuestran que muchas empresas encuentran sin la movilización e integración social necesaria para su sostenibilidad. El PCPR debe calificar sistemáticamente procesos y planificación de las demandas de los campesinos a promover la apropiación del proyecto para implementar y evitar la formalidad de empresas.

Asociaciones; Desarrollo; Políticas públicas


ARTIGOS

Empreendimentos induzidos por políticas públicas: reflexões a partir do Programa de Combate à Pobreza Rural (PCPR) em Minas Gerais

Ventures induced by Public policy: reflections from the Programme to Combat Rural Poverty (PCPR) in Minas Gerais

Entreprises induites sur les politiques publiques: réflexions provenant du Programme de Lutte Contre la Pauvreté Rurale (PCPR) dans le Minas Gerais

Empresas inducida en las políticas públicas: reflexiones sobre el Programa de Lucha Contra la Pobreza Rural (PCPR) en Minas Gerais

Alair Ferreira de FreitasI; Alan Ferreira de FreitasII

IProfessor da Universidade Federal Rural da Amazônia. Mestre em Extensão Rural, UFV. E-mail: alairufv@yahoo.com.br

IIProfessor da Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Extensão Rural, UFV. E-mail: freitasalan@yahoo.com.br

RESUMO

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a sustentabilidade de empreendimentos induzidos por políticas e programas públicos, tomando como referência empírica o Programa de Combate a Pobreza Rural do governo de Minas Gerais (PCPR). As análises demonstram que muitos dos empreendimentos encontram-se sem a mobilização e integração social necessárias a sua sustentabilidade. Conclui-se que o PCPR necessita de qualificar sistematicamente os processos de intervenção e planejamento das demandas dos agricultores familiares com vistas a promover a apropriação do projeto a ser implantado e evitar a mera formalidade dos empreendimentos.

Palavras-chave: Associações. Desenvolvimento. Políticas públicas.

ABSTRACT

The goal of this work is to reflect on sustainability ventures induced by public policies and programmes, by reference to empirical programme of combating Rural poverty of the Government of Minas Gerais (PCRP). The analyses demonstrate that many businesses find themselves without the mobilization and social integration required for its sustainability. The PCRP needs qualify systematically processes and planning of the demands of family farmers to promote ownership of the project to be deployed and avoid the formality of ventures.

Key words: Associations. Development. Public policy.

RÉSUMÉ

L'objectif de ce travail est de réfléchir sur la durabilité entreprises induites par les politiques publiques et les programmes, par référence empirique au programme de la lutte contre la pauvreté rurale du gouvernement de Minas Gerais (PCPR). Les analyses démontrent que beaucoup d'entreprises retrouvent sans la mobilisation et l'intégration sociale nécessaire pour sa durabilité. Le PCPR doit qualifier systématiquement les processus et la planification des exigences des agriculteurs familles pour promouvoir la propriété du projet pour être déployés et éviter la formalité de entreprises.

Mots-clés: Associations. Développement. Politiques publiques.

RESUMEN

El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre sostenibilidad de empresas inducidas por las políticas públicas y programas, por referencia empírica al programa de la lucha contra la pobreza Rural del Gobierno de Minas Gerais (PCPR). Los análisis demuestran que muchas empresas encuentran sin la movilización e integración social necesaria para su sostenibilidad. El PCPR debe calificar sistemáticamente procesos y planificación de las demandas de los campesinos a promover la apropiación del proyecto para implementar y evitar la formalidad de empresas.

Palabras clave: Asociaciones. Desarrollo. Políticas públicas.

Introdução

Com o processo de democratização e descentralização político administrativo do Estado brasileiro, o impacto e as mudanças políticas foram evidentes. Surgiram importantes inovações na gestão das políticas públicas, ampliando a participação dos beneficiários e provocando mudanças significativas na organização da sociedade civil. No meio rural essas mudanças são nítidas e as principais podem ser expressas com a criação de diversos conselhos, colegiados e instâncias de discussão e monitoramento de determinadas políticas públicas.

Desde a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) em 1996 (MÜLLER, 2007), o Estado brasileiro tem instituído várias ações que, por meio de programas, projetos e intervenções pontuais, buscam enfrentar os problemas socioeconômicos deste amplo segmento da agricultura, aportando, a partir de determinada leitura da realidade, soluções para enfrentá-los. As políticas públicas passam a incentivar a organização social do público beneficiário, criando mecanismos institucionais para garantir seus objetivos.

Neste contexto, a criação e o fortalecimento de organizações locais começam a integrar as exigências de diversos programas de políticas aplicadas ao meio rural1 1 Os estudos de Abramovay (2001) e Dias (2006) demonstram que com a criação do PRONAF se proliferaram os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS). Os estudos indicam que estes conselhos têm sem surgimento atrelado às exigências do programa. Trabalhos clássicos sobre o funcionamento destes conselhos como Abramovay (2001), e a coetânea organizada por Schneider, Silva e Marques (2009) avaliam que estas institucionalidades funcionam de forma muito precária e esvaziada. , estimulando, e/ou provocando o surgimento de organizações, muitas vezes, vinculadas apenas ao acesso a recursos e benefícios oriundos destes incentivos. Uma preocupação recorrente deste fato é a qualidade destas organizações e como elas conseguem se desenvolver como mecanismos integradores e promotores de desenvolvimento e qualidade de vida.

Muitos estudos tem se limitado a analisar a natureza dos processos que geram oportunidades e os impactos (avaliação) das políticas públicas (DELGADO; CONCEIÇÃO; OLIVEIRA, 2005; MÜLLER, 2007), mas poucos trabalhos (ALVES, 2002) tem se dedicado a um olhar mais apurado sobre a qualidade/sustentabilidade das organizações e principalmente sobre seu desenvolvimento enquanto mecanismo social de indução do desenvolvimento local.

Chamamos a atenção neste trabalho para a complexidade e possível fragilidade da constituição de organizações locais apenas como demanda de políticas públicas. Neste sentido, cabe levantar argumentos teórico-metodológicos, amparados por base empírica, que se constituam em subsídios a análises e questionamentos sobre esta temática e, também, sobre as possíveis implicações geradas na criação destes empreendimentos.

Este estudo trata do processo de formação de empreendimentos econômicos coletivos de agricultores familiares a partir da mobilização de associações comunitárias do vale do Jequitinhonha em MG, viabilizados por meio do Programa de Combate a Pobreza Rural de Minas Gerais (PCPR). O objetivo é refletir sobre a sustentabilidade de empreendimentos induzidos por políticas e programas públicos, tomando como referência empírica para balizar a discussão a análise da construção dos projetos do Programa de Combate a Pobreza Rural do governo de Minas Gerais (PCPR) e suas implicações sobre o enraizamento social dos empreendimentos constituídos a partir deste programa. Esta foi uma pesquisa exploratória de caráter qualitativo, que utilizou de conversas informais com membros das comunidades rurais e dirigentes de associações comunitárias beneficiadas, sendo realizado registro das conversas em diário de campo. Foram realizadas visitas às associações e empreendimentos e observação participante em reuniões das associações nas discussões sobre os empreendimentos. Foram visitadas, no segundo semestre de 2008, 23 associações comunitárias em oito municípios do território rural alto Jequitinhonha, nos quais os empreendimentos constituídos eram ligados a fabriquetas de farinha, unidades de resfriamento de leite, mecanização agrícola, fabriquetas de rapadura e granjas comunitária. Em todas as associações visitadas foram realizadas observações e registro das conversas com os representantes.

Para desenvolver as análises e indicar alguns caminhos este artigo se divide em seis seções além desta introdução. Na próxima seção se desenvolvem argumentos teóricos importantes sobre as políticas públicas, a constituição e o fortalecimento de organizações locais e os processos de desenvolvimento. Posteriormente, na terceira seção, apresenta-se uma breve consideração sobre a prática da participação e os processos de intervenção social com o intuito de compreender sua influência sobre a sustentabilidade das organizações. Na quarta seção são apresentadas algumas características do PCPR e, em seguida (quinta seção), é desenvolvida uma reflexão sobre a formação, desenvolvimento e enraizamento social dos empreendimentos pesquisados. Por fim são apresentadas as conclusões.

1 Políticas públicas, instituições e desenvolvimento

O tema da democratização do Estado e de seu principal mecanismo de ação, as políticas públicas, remonta, no Brasil, à década de 1980 e ao próprio processo de mobilização social que culminou com a transição democrática, pondo fim ao regime militar (1964-1985). A participação política foi, naquele contexto, alçada ao patamar de requisito essencial ao revigoramento da democracia. No campo da promoção do desenvolvimento2 2 Este campo é principalmente configurado pelas agências internacionais da Organização das Nações Unidas. , o tema ganhou força com a crescente percepção da falência de parte considerável das políticas de assistência técnica ao desenvolvimento dos países pobres.

A democratização do Estado – como demanda e agenda de movimentos sociais diversos – caminhou lado a lado, nas últimas décadas, com os preceitos neoliberais que apregoam a relativização do papel dos Estados nacionais na promoção do desenvolvimento. Este ambiente estimulou processos variados (e contraditórios) de inovação nas políticas públicas de promoção do desenvolvimento (NAVARRO, 2001; MÜLLER, 2007). A participação dos atores locais tornou-se essencial à distribuição de responsabilidades diante dos problemas sociais3 3 Outro movimento inovador a partir dos anos 1980 no Brasil foi o processo de descentralização do poder decisório administrativo sobre políticas públicas para as esferas municipais e estaduais, contrapondo-se à centralização como principal característica dos processos de elaboração e execução destas políticas durante o regime militar. Iniciava-se então a construção de outro imaginário sobre as esferas mais localizadas de governo, tentando afastá-las da imagem de lócus privilegiado de exercício de relações patrimonialistas e clientelista de poder. .

A criação e o fortalecimento de entidades locais tornaram-se idéias-força na elaboração, execução e gestão de políticas públicas. Esta mudança no papel do Estado e de sua ação fez com que se cristalizassem ao menos duas idéias consensuais: i) isolado, o Estado não é capaz de garantir bem-estar à sociedade; e ii) a participação efetiva dos beneficiários das políticas públicas potencializa bons resultados em processos de promoção do desenvolvimento. A adequação das instituições do desenvolvimento a este ideário vem se tornando paradigma dominante na formulação de políticas na agenda do desenvolvimento internacional. As políticas, neste sentido, têm focado na capacitação e no empoderamento dos atores locais para torná-los parceiros engajados dos esforços em prol do desenvolvimento (DIAS, 2006). De acordo com Peter Evans, para estas políticas passa a ser estratégico a constituição de entidades locais que sejam capazes de fortalecer mecanismos de governança. Estas idéias situam-se no contexto atual de revisão das teorias de desenvolvimento.

[...] a teoria do desenvolvimento começou a se desviar do "fundamentalismo do capital", primeiramente enfatizando a "tecnologia", e posteriormente, o papel de idéias que de forma mais geral enfocam as instituições. Esse movimento reforçou a convicção de que a qualidade de instituições básicas de governança deveria ser considerada o elemento chave para fomentar o crescimento. (EVANS, 2003, p. 20).

Nesta concepção de democratização radical, as políticas públicas são imaginadas a partir da noção de governança, ou seja, "um sistema de governo em que a inclusão de novos atores sociais é fundamental, por meio do envolvimento de um conjunto de organizações, públicas (estatais e não-estatais) e privadas" (GOHN, 2003, p.32). Isto implica fomento à criação de instâncias deliberativas do tipo conselhos, órgãos colegiados e organizações formais para representação de interesses. Entretanto, Evans (2003) sinaliza que a constituição de organizações meramente formais, demandadas pelas políticas públicas, pode levar à monocultura institucional. Com o conceito de monocultura institucional Evans (2003) argumenta sobre a predominância da implantação de planejamentos institucionais uniformes e exógenos aos contextos locais o que, segundo o autor, produz resultados negativos aos processos de promoção do desenvolvimento. Neste sentido, Evans alerta que as organizações surgidas desta demanda externa podem ser desenraizadas e não se adaptam ao ambiente sócio-cultural local. A noção de desenraizamento tenta traduzir o fenômeno no qual as organizações constituídas não são socialmente apropriadas, e nem contextualizadas às condições objetivas do ambiente na qual surgiram, tão pouco expressam a manifestação de interesses comuns e ações coletivas.

As instituições e organizações são construídas, mantidas e transformadas pelas interações sociais, levando, desta forma a um sentido de participação e pertencimento. Ao se desconsiderar as interações sociais, que neste caso não são somente a base da formação das associações, mas também a base da vida social, o processo se torna impositivo, correndo o risco do sentido de pertencimento, ou do próprio enraizamento assinalado por Evans, ficar à margem da própria constituição da organização local, podendo comprometer a sustentabilidade do empreendimento por dificuldades de adesão de seus membros.

Ao analisar este processo normativo de constituição de organizações formais pouco ou nada enraizadas, Evans (2003) argumenta que o mesmo conduz a um tipo de participação meramente formal pouco associada ao desenvolvimento de capacidades. Na visão do autor, a efetiva participação social requer a capacidade local de assumir como próprias as institucionalidades criadas, conferindo um caráter local e reconhecível aos processos de inovação que buscam reformular arranjos produtivos, meios de comercialização e até modos de vida em sociedade.

Considerando a importância da participação social na gestão local de políticas públicas – apesar das deficiências organizativas historicamente existentes – as exigências e imposições externas para a constituição de organizações formais deveriam favorecer e apoiar o desenvolvimento de instituições que permitam o exercício de escolhas sociais efetivas e apropriadas aos contextos específicos locais. Evans (2003) argumenta que a "monocultura institucional" é fator inibidor destas características.

Apropriando-se de escolhas sociais antes que os mecanismos para realizá-las tenham sido desenvolvidos, a monocultura reduz os estímulos para que Estados e cidadãos dediquem sua atenção à construção de instituições para a tomada de decisões e, portanto, reduz a probabilidade de que tais instituições possam de fato emergir como estratégias de desenvolvimento. (EVANS, 2003, p.34).

O vínculo entre promoção do desenvolvimento e organização sociopolítica é uma evidência normativa das políticas públicas atuais. Para alcançar bons resultados, parece ser imprescindível o apoio à constituição de organizações enraizadas ou apropriadas aos contextos culturais locais. São estas organizações, socialmente apropriadas, que fortalecem mecanismos de gestão social e governança e, por outro lado, tornam as propostas veiculadas pelas políticas públicas compreensíveis em termos de escolhas que podem ser feitas localmente. De acordo com Amartya Sen, a capacidade de fazer escolhas associadas ao tipo de vida que as pessoas valorizam é um dos mais importantes exercícios democráticos, indicando a ocorrência de processos sustentáveis de desenvolvimento (SEN, 2000).

Uma análise sobre as organizações locais, as formas de interação, os projetos políticos e as práticas organizativas se tornam preponderantes na construção de políticas públicas mais adequadas a determinados contextos e mais eficientes no combate a pobreza, sobretudo no meio rural. As práticas organizativas são caracterizadas por Appendinne e Niujtem (2002) como diferentes ações e estratégias construídas pelos atores locais para realizarem seus projetos de vida e manter suas condições de subsistência. Neste sentido, os programas que apóiam, garantem e fortalecem as práticas organizativas locais prescrevem melhores condições de êxito.

Desta forma, é importante dar atenção às práticas organizativas para constituir qualquer forma de institucionalidade em determinadas localidades. A compreensão destas práticas nos permite, de acordo com Appendinne e Niujtem (2002): (i) identificar o conjunto de regras e regulações estabelecidas pelo grupo, (ii) aprofundar o conhecimento sobre a consolidação das formas de organização, (iii) considerar conflitos e tensões, que são cruciais no desenvolvimento e na formação de grupos, (iv) impede a reificação das instituições, assim como são consideradas nas próprias políticas que atribuem a elas papel que não desempenham.

Estes autores nos trazem indicativos para análise das conseqüências da constituição de organizações formais que, a partir da compreensão de práticas locais e sua vinculação a agentes externos, condicionam as implicações deste processo aos contextos locais de operacionalização das políticas públicas. Ainda se insere a esse escopo de questões, a noção de participação, que se tornou comum nas políticas públicas e no discurso de agências de fomento ao desenvolvimento rural.

2 Intervenções sociais e participação

Vale ressaltar que essa discussão não intenta apresentar a participação sobre uma concepção ingênua, na qual ela [a participação] seria o fim dos projetos de desenvolvimento, tão pouco como uma solução para os problemas sociais e políticos. A participação é concebida aqui como uma ferramenta indispensável aos processos de intervenção social e operacionalização de políticas públicas, mas nem de longe o único motivo para a efetividade das ações e seu sucesso. Sob esta perspectiva, a participação apresenta limitações e possibilidades de perversão e cooptação de suas práticas, assim como assinalado por Sousa Santos (2005). Contudo, pretendemos discorrer sobre a dimensão estratégica que a participação ocupa nos processo de intervenção e fundamentar sua importância para as políticas públicas.

É recorrente em projetos e programas de políticas públicas, sobretudo no meio rural, a valorização e uso freqüente do termo participação. É comumente utilizado como slogan em estratégias políticas e, também, como forma de garantia de processos democráticos em diversas esferas da sociedade. Diante da amplitude e da significativa relevância que o termo tem ganhado no cenário nacional, em meio às políticas públicas, cabe-nos refletir sobre a compreensão do conceito de participação e sua operacionalização.

A noção de participação está relacionada a um processo no qual o indivíduo se sinta e se reconheça como parte de um grupo e do próprio processo. A motivação para fazer parte e ser parte deste processo esta relacionada a interesses pessoais e coletivos. O reconhecimento enquanto membro de um grupo é o primeiro indício a um ambiente favorável para desenvolvimento de ações coletivas.

Não obstante, é imprescindível reconhecer que a participação pode ser usada como slogan. Mas tão importante quanto saber reconhecer a participação é entender quando ela existe de fato e quando ela apenas fantasia relações de poder. Desta forma, consideramos que, a participação efetiva, livre de formas fantasiadas ou das "armadilhas" que ela pode esconder, só é possível quando se promove e garante a autonomia do grupo na condução dos processos de mudança.

Nos trabalhos de intervenção social balizados por uma concepção participativa, visando à conquista da autonomia, há princípios gnosiológicos e éticos que revelam o modus operanti da intervenção (COELHO, 2005). São tais princípios que possibilitam construir com (e não para) o grupo formas mais adequadas para a execução de determinadas políticas e práticas sociais.

Desta forma, os agentes externos que promovem apoio sistemático aos processos de organização social e de desenvolvimento rural devem ter a compreensão e visão ampliada sobre seu papel, em como promover a autonomia do grupo gerando apreensão dos conteúdos (ALENCAR, 1990). Assim, não se pode em um trabalho de intervenção social descaracterizar tradições e rotinas em prol de métodos e objetivos imediatos, previamente estabelecidos por agentes externos ao cotidiano que se pretende à mudança.

Para Paulo Freire, trabalhar métodos e técnicas com perspectiva participativa e crítica se trata de uma ação educadora (FREIRE, 1983). É necessário, neste sentido, criar e estimular interações que sejam dialógicas e problematizadoras, ou seja, estimular a reflexão das pessoas sobre sua realidade, a conscientização sobre as causas radicais de seus problemas e capacitá-las à ação transformadora. Numa proposta investigativa, há o esforço de propor aos indivíduos sua situação como problema, levando-os a uma reflexão crítica da realidade.

A criação de espaços dialogicamente interativos e discursivamente mediados pode estabelecer um processo no qual são gerados compromissos de responsabilidades, tanto entre indivíduos e o grupo social envolvido, quanto do profissional para com estes (COELHO, 2005, p. 87). Portanto, a ação de intervenção deve centrar-se numa ação comunicativa, balizada por uma racionalidade comunicativa, concebida como o elo entre os indivíduos, estabelecendo formas de garantir um processo democrático nas decisões coletivas, onde por meio de argumentos e contra-argumentos, livres de coerções, os sujeitos buscam conseguir seus acordos (HABERMAS, 1997). Neste caso, a intervenção só é considerada participativa ao possibilitar que o grupo tome parte, expresse visões, fale e reflita sobre sua própria realidade, suas experiências, conhecimentos, expectativas, desejos e necessidades mais imediatas. Essa participação ajuda a construir estratégias de ações mais próximas da realidade vivenciada e das necessidades prioritárias

Quando, por outro lado, o caráter da intervenção esta pautado apenas por problemas práticos, sob uma intervenção puramente imediatista, caracterizada por uma concepção reducionista e tutorial (ALENCAR, 1990), corre-se o risco de introduzir idéias previamente estabelecidas, incapazes de gerar a ampliação das capacidades e liberdades dos envolvidos no processo. Isso ainda reforça a dependência dos beneficiários tanto em relação aos mediadores externos, quanto das políticas públicas, minando, assim, a continuidade das relações sociais e a sustentabilidade das organizações.

3 O Programa de Combate a Pobreza Rural em Minas Gerais

O Programa de Combate a Pobreza Rural (PCPR) é viabilizado através da parceria entre Governo Estadual de Minas Gerais e Banco Mundial, e atua no financiamento de projetos comunitários. Esse programa é operacionalizado através da parceria entre Governo Estadual e sociedade civil, representada por entidades de representação política das comunidades rurais: como os conselhos municipais de desenvolvimento rural sustentável (CMDRS). Em Minas Gerais esse programa visa fortalecer uma região de economia historicamente defasada e considerada, especialmente no meio rural, em situação de pobreza.

Compreendendo 188 municípios do Vale do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus, Norte de Minas e parte da região central, o PCPR se torna mais que um programa, uma política pública de grande impacto devido a sua abrangência e se consolida, segundo seus idealizadores, como uma oportunidade de implementar arranjos produtivos locais, já que visa financiar investimentos comunitários, não reembolsáveis, de natureza produtiva, social e de infra-estrutura básica, sendo executado diretamente pelas comunidades rurais. O objetivo principal dos Projetos é "ajudar os agricultores a ver e entender melhor a realidade onde vivem, a participar mais da comunidade e, junto com as outras pessoas, buscar alternativas e soluções para os problemas locais" (PCPR - cartilha 4, 1995).

Para acessar os recursos desse programa a comunidade interessada deve se organizar e criar uma associação (caso ainda não possua uma. Se existir e ela estiver desativada, deve-se formalizar a associação novamente) com todos os documentos em ordem, conforme a legislação vigente. Feito isso, devem encaminhar seus subprojetos ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS), que define os projetos prioritários do município e em seguida remete-os a avaliação da Unidade Técnica do Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de MG (IDENE - UT) para formalização e liberação dos recursos. Cada município tem o direito de pleitear um montante limite de recursos, que varia de acordo com o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). A proposta do PCPR é que a gestão dos projetos seja feita pelo próprio município, através dos CMDRSs e das associações que lhe são componentes. Cada município define sua prioridade e utiliza o recurso no sentido de supri-la através de investimento em uma das áreas financiáveis. Desde a implantação do PCPR/MG, em 2006, foram assinados 1.283 convênios, beneficiando 74.678 famílias em 188 municípios. Desses convênios, 650 subprojetos estão implantados e em funcionamento de acordo com os dados do PCPR/MG (2008).

Para fins analíticos e práticos, faremos a seguir uma reflexão sobre os processos de organização de empreendimentos produtivos, os quais são maioria no PCPR e, de certa forma, mais complexos ao exigirem uma intensa interação e participação comunitária e a capacidade gerencial dos agricultores para desenvolverem competências estratégicas para a viabilização de uma atividade produtiva coletiva. Mais que quantificar o fluxo de recursos financeiros destinados pelo governo estadual, que pouco contribuiria para alcançar os objetivos traçados, a proposta é utilizar o PCPR como lastro empírico da discussão teórica, fundamento os argumentos expostos acima e complementando com a realidade dos projetos analisados em MG.

4 Organização e enraizamento social dos empreendimentos do PCPR

Para a realização da pesquisa e a coleta de dados foram visitadas, entre agosto e novembro de 2008, 23 associações que receberam financiamento para o desenvolvimento de empreendimentos produtivos enquadrados nas modalidades do programa. Para apresentar os empreendimentos analisados, expomo-los a baixo, de forma sucinta, indicando a quantidade e o tipo:

• uma possuía apenas fabriqueta de farinha: a fabriqueta de farinha consiste em um empreendimento cuja base produtiva se funda em um conjunto de instrumentos para processar a mandioca e transformá-la em farinha;

• duas possuíam apenas fabriquetas de rapadura: esses empreendimentos possuem um conjunto de instrumentos para processar a cana-de-açúcar e transformá-la em doce (rapadura);

• duas possuíam fabriquetas de farinha e de rapadura;

• quatro possuíam unidades de resfriamento de leite: refere-se à aquisição de um tanque para o armazenamento e conservação do leite recolhido;

• onze possuíam mecanização agrícola: este tipo de empreendimento é relativo à aquisição de um trator agrícola. Em algumas associações a máquina agrícola foi adquirida juntamente com implementos para a realização da aragem e outras atividades agrícolas;

• três desenvolviam granjas comunitárias: este tipo de empreendimento refere-se à estrutura de produção de frango caipira.

Estas associações estão situadas nas cidades mineiras de Aricanduva, Couto de Magalhães, Datas, Diamantina, Gouveia, Inimutaba, Itamarandiba e Monjolos. Estes empreendimentos possuem como objetivo produzir quantidade excedente para ser destinado ao comércio (local), gerando renda complementar aos envolvidos. Os empreendimentos financiados pelo PCPR, ao menos na retórica, são de base coletiva e a gestão é comunitária, ou seja, requer a participação de todos os beneficiários na condução de um empreendimento econômico.

Na base do PCPR está declarado o objetivo de garantir e fortalecer a organização sociopolítica dos beneficiários e melhorar a qualidade de vida das populações carentes. Não obstante, costumam desconsiderar a qualidade destas organizações e sua sustentabilidade para além dos recursos acessados e das instalações físicas construídas. Nas visitas às associações comunitárias foi constatado que a maior motivação para constituição de um empreendimento econômico coletivo é o acesso a recursos financeiros não reembolsáveis garantidos pelo referido programa. Diante desta informação uma pergunta seria cabível: Após o acesso a esses recursos e a constituição de um empreendimento produtivo (e muitas vezes de uma associação comunitária), estes teriam condições de se sustentar social e economicamente? A esta resposta é importante considerar ainda a atuação dos mediadores externos (quando presentes no processo) e do processo de constituição destas organizações.

Nos casos analisados a realidade dos empreendimentos produtivos é bem contrária às expectativas dos beneficiários quando da elaboração dos projetos. A escolha destes e dos tipos de financiamento não foi vinculada a reflexões e problematizações sobre os desafios e as possibilidades que o processo de formação destes empreendimentos requer. Uma primeira questão que deve ser levada em consideração é a participação dos atores no processo de elaboração e execução dos projetos, assim como preconizada por Coelho (2005). É válido enfatizar a dimensão das etapas do projeto como processos, pois devem ser construções socialmente enraizadas nas demandas locais e inter-relacionadas a fatores sociais, políticos, econômicos e culturais do local. Portanto, o caráter imediatista de algumas políticas públicas, como foi o caso do PCPR, para a elaboração dos projetos elimina, por uma questão técnica-operacional, algumas possibilidades de envolvimento dos conteúdos dos projetos às estruturas sociais que conformam os espaços vividos pela comunidade. A rapidez de escolha do conteúdo (tipo de financiamento) do projeto foi relata por um dos informantes como uma dificuldade à sustentabilidade do próprio projeto, pois se escolhem "temas" desvinculados da realidade local e ligados muitas vezes a grupos específicos ou a lideranças comunitárias.

Para muitas comunidades carentes, o discurso de "conseguir dinheiro fácil e sem ter que devolver" é muitas vezes uma "luz no fim do túnel" (agricultor beneficiário do PCPR). Por isso qualquer que seja a proposta/projeto a comunidade dificilmente iria recusar e facilmente se criaria uma grande expectativa. É justamente esse balanço de idéias que não foi identificado como presente no processo de construção dos projetos. Como exemplo tem-se uma comunidade pesquisada que mantém um tangue de resfriamento de leite, financiado pelo PCPR, mas pouquíssimas pessoas possuem vacas de leite com produção suficiente para ser comercializada, ou ainda associações que constituíram fabriquetas de rapadura e se quer possuem energia elétrica suficiente para moer a cana e continuar o processo de fabricação. São essas contingências que surgem como decorrência do caráter imediatista de elaboração de projetos e de métodos que muitas vezes desconsideram as aspirações, vocações e necessidades locais.

Contudo, nada impede que, mesmo sem essa mobilização inicial e sob o caráter imediatista, aconteça a apropriação do projeto pela comunidade. Isso se daria ao passo que as comunidades vivenciassem outro processo, ligado à formação para a emersão de suas capacidades e liberdades e o fomento de práticas cooperativas que serão o suporte da organização. Muitas vezes esse é um processo que pode ser induzido (mas não criado) por um agente externo, no sentido de que este seja um catalisador.

No Vale do Jequitinhonha os agentes de extensão rural pública são os mais importantes e prestam um serviço muito expressivo aos agricultores familiares. No entanto, sua inserção no PCPR é muito incipiente e se traduz pelo caráter esporádico e imediatista do trabalho técnico. Ao invés de instigar processos educativos, estes mediadores acabam introduzindo uma forma tutorial de intervenção (no sentido apresentado por ALENCAR, 1990) junto às comunidades rurais e delineiam processos decisórios centralizados. Este é um reflexo do próprio formato do PCPR, que não leva em questão a disponibilidade de técnicos específicos ao assessoramento dos projetos constituídos, ficando estes a cargo da condição operacional dos agentes da extensão rural pública, comprometida com uma realidade que está além de seus limites, tornando o acompanhamento aos empreendimentos cada vez mais defasado.

A atuação desses mediadores na escolha dos projetos acaba sendo orientada para alocação dos recursos financeiros através de projetos desligados das reais demandas das comunidades rurais. Assim, a sustentabilidade dos empreendimentos fica limitada à capacidade dos atores locais em superar as contingências do processo e muitas vezes às condições que lhes são externas (como a falta de energia elétrica, identificada em muitos casos) e que não podem ser resolvidas no curto prazo por que não houve articulações e parcerias necessárias para garantir condições gerenciais e de inserção nos mercados. Neste sentido, Freire (1983) ao abordar a educação e a construção do conhecimento afirma que, a conscientização não consiste em receber passivamente o conteúdo que lhe é imposto, isso requer ação. Da mesma forma, o papel dos mediadores neste caso, deve ser o de estimular a ação dos atores sociais em prol da apropriação de seus objetivos e de suas organizações.

O desenraizamento social dos empreendimentos está atrelado à falta de vinculação do conteúdo dos projetos às reais necessidades locais, bem como à falta de uma contrapartida que assessore, não só o acesso a recursos, como acontece em grande parte dos casos no PCPR, mas o desenvolvimento do empreendimento. As dificuldades produtivas, seja pela escassez de matéria prima ou pelas contingências técnicas (operação das máquinas, falta de energia elétrica, equipamentos inadequados para as instalações construídas, etc.) a serem superadas, é um empecilho a operacionalização dos empreendimentos econômicos.

A falta de organização da produção também é uma problemática em todas as associações. Atrelado a esta questão existe ainda a falta de compromisso e mobilização da comunidade em torno da atividade produtiva financiada. Em associações que adquiriram unidades de resfriamento de leite, 100% delas declararam de forma unânime em reunião não conhecer o custo de produção e não haver um responsável pela recepção do leite nestas unidades. O trabalho é feito pelos próprios produtores que entregam a produção, o que de certa forma pode comprometer a qualidade do produto por falta de padrões de higiene e de controles sanitários mínimos na recepção e manejo do produto e da unidade de resfriamento. Em associações que adquiriram fabriquetas de farinha, 50% declaram não conhecer os custos de produção e realizarem a produção sem nenhuma forma de controle. Nas associações que tiveram por base a fabricação de rapadura, apenas 50% disseram ter, ao menos minimamente, conhecimento do processo de produção da rapadura, incluindo a produção e maturação da cana-de-açucar, normas de higiene e de segurança no trabalho.

Como podemos notar no início desta seção, das 23 associações visitadas, 11 adquiriram o financiamento para mecanização agrícola. Este número em si já é expressivo. A aquisição de tratores é vista como a apropriação de infra-estrutura para o trabalho agrícola e representa o tipo de financiamento que dará "menos trabalho" (segundo o presidente de uma das associações). No entanto, como o bem é coletivo, nota-se que os tratores são os "empreendimentos" que encaram maior desafio na operacionalização e gestão dos serviços. Há problemas atrelados ao planejamento de seu uso. 40% das associações declaram em reunião que não conhecem os custos embutidos na hora de serviço, o que pode levar ao estabelecimento de preços que não condizem com os custos, não cobrindo a depreciação da máquina. Os conflitos que surgem do financiamento da mecanização agrícola são inerentes à falta de planejamento e reflexão sobre as possibilidades de seu uso.

Essas questões não são discutidas com freqüência nas reuniões das associações e falta informação para os agricultores sobre assuntos técnicos, principalmente ligados à gestão dos negócios coletivos. Isso causa pouca adesão à proposta coletiva da atividade econômica empreendida através do PCPR e desloca o poder de controle do mesmo para poucas pessoas, geralmente lideranças comunitárias.

As análises demonstram que muitos dos empreendimentos encontram-se sem a mobilização e integração social necessária a sustentabilidade socioeconômica do empreendimento coletivo. A falta de enraizamento social provocada pelo caráter impositivo dos conteúdos em certos projetos e pelo processo de intervenção estimula também a baixa apropriação da comunidade em relação à nova atividade econômica empreendida e à sua dimensão coletiva. Ao contrário disto, quando se leva em consideração as contingências, as práticas organizativas locais e se consegue fortalecer o tecido social em prol do objetivo constituído (formação do empreendimento), estas organizações podem se transformar em ferramentas do desenvolvimento e mecanismos da gestão social e de governança local. Da mesma forma, quando o empreendimento constituído, o é, apenas para atender a exigência da política pública (como no caso das associações), esta consegue apenas possibilitar, como mencionado por Evans (2003), uma participação meramente formal e pouco se associa ao desenvolvimento das capacidades de seus associados.

Ao mesmo tempo em que estimula a organização social dos agricultores, as políticas públicas de promoção do desenvolvimento rural e combate a pobreza, como o PCPR, podem estar estimulando a criação de organizações meramente formais e socialmente desenraizadas. A imersão da atividade econômica nas redes de relações sociais dos agricultores familiares é intrínseca a sustentabilidade de qualquer iniciativa coletiva. Infere-se, portanto, que a alocação de recursos para associações não garante o desenvolvimento das capacidades dos indivíduos e, por conseguinte, dos empreendimentos formalmente aceitos pelos membros da associação. O enraizamento social é tido aqui como a convergência e mobilização de recursos e de pessoas a um propósito comum. Desta forma, o critério de avaliação da eficiência e do próprio programa não seria medido apenas por indicadores quantitativos, mas deve levar em conta a qualidade dos mecanismos de participação social e política, o grau de apropriação e adesão pelos membros da comunidade e a efetividade da geração de ocupação e renda para o coletivo.

A aprendizagem coletiva seria, a partir de um processo educativo empreendido pelos mediadores externos, uma conseqüência do enraizamento social e condição necessária a viabilidade das atividades econômicas financiadas pelo PCPR. A produção e a produtividade, neste caso, não podem ser analisadas de forma isolada e reducionista como fatores de desenvolvimento local e combate a pobreza. Mas se envolvem em um sistema muito mais amplo, que circunscreve as relações sociais, o trabalho e condições ambientais, os quais determinam o sucesso ou o fracasso de um empreendimento econômico coletivo. O papel de mediadores externos no processo não pode ser desconsiderado, pois é de grande auxilio a manutenção dos empreendimentos. "Se com eles não está nada bom, imagine sem eles" (Diário de campo, 2008). A questão é vincular uma concepção de intervenção desligada de um caráter imediatista e tutorial e considerar a intervenção como um processo participativo de construção do conhecimento por meio dos atores locais.

Considerações finais

Diante dos fundamentos (teóricos e empíricos) apresentados neste trabalho percebemos que a constituição e ou formalização de organizações locais como instrumento de acesso a recursos financeiros e a políticas públicas, pode levar à formação de empreendimentos meramente formais e socialmente desenraizados, uma vez que a coesão social do grupo não propicia a formação de relações de cooperação e de sua apropriação integral. Portanto, pode gerar organizações desenraizadas e utilitaristas. O fomento à organização social não pode desconsiderar a necessidade de apropriação local do conteúdo e do formato dos projetos, sob pena de ferirem a possibilidade de auto-sustentação destas iniciativas.

Os empreendimentos constituídos em função de políticas sociais de combate a pobreza alcançarão sua sustentabilidade econômica se alcançarem primeiro sua sustentabilidade social. Os recursos financeiros, oriundos dos programas governamentais, são necessários a alavancagem do empreendimento, mas nem de longe são suficientes para o cumprimento de suas funções sociais junto ao público vivendo próxima a linha da pobreza. A inserção dos empreendimentos num arranjo institucional focado no combate a pobreza rural, envolvendo diversos atores da região ligados à agricultura familiar e a determinadas cadeias produtivas, podem potencializar as ações empreendidas e ampliar a governança sobre os processos produtivos.

Diante destas considerações o caráter analítico desse estudo assume forma propositiva no sentido de trazer para a discussão a crítica sobre elaboração de políticas que não levam em consideração o apoio estatal para as contrapartidas criadas, tais como a exigência de entidades mediadoras entre a sociedade civil e o Estado, ou a indução da constituição de empreendimentos como forma de obter recursos financeiros e que não refletem as condições objetivas da realidade que se pretende à mudança.

As formas legais assumidas pelas associações comunitárias permitem ajustes e adaptações que reflitam a forma organizacional local genuína, evitando assim alguns dos perigos da monocultura organizacional assinalados por Peter Evans. O PCPR necessita então, de qualificar sistematicamente os processos de intervenção e planejamento das demandas dos agricultores familiares com vistas a promover a apropriação do projeto a ser implantado. A mera formalidade de alguns empreendimentos coletivos constituídos através do PCPR pode ser evitada por meio de ações que busquem ajustar, adaptar e apropriar as demandas públicas às formas organizativas locais e à sua cultura política, potencializando, desta forma, processos de promoção do desenvolvimento rural.

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  • 1
    Os estudos de Abramovay (2001) e Dias (2006) demonstram que com a criação do PRONAF se proliferaram os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS). Os estudos indicam que estes conselhos têm sem surgimento atrelado às exigências do programa. Trabalhos clássicos sobre o funcionamento destes conselhos como Abramovay (2001), e a coetânea organizada por Schneider, Silva e Marques (2009) avaliam que estas institucionalidades funcionam de forma muito precária e esvaziada.
  • 2
    Este campo é principalmente configurado pelas agências internacionais da Organização das Nações Unidas.
  • 3
    Outro movimento inovador a partir dos anos 1980 no Brasil foi o processo de descentralização do poder decisório administrativo sobre políticas públicas para as esferas municipais e estaduais, contrapondo-se à centralização como principal característica dos processos de elaboração e execução destas políticas durante o regime militar. Iniciava-se então a construção de outro imaginário sobre as esferas mais localizadas de governo, tentando afastá-las da imagem de
    lócus privilegiado de exercício de relações patrimonialistas e clientelista de poder.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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