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Processos educativos e formação dos indivíduos na contemporaneidade

É tópico corrente nas discussões sobre a função social da universidade as observações quanto a seu caráter formativo, voltado para a produção da ciência e da cultura em benefício da sociedade, como resposta aos princípios que historicamente fundamentaram sua constituição; e, em contraparte, o caráter organizacional da universidade, posicionada – graças ao modelo institucional forjado desde a segunda metade do século XX, quando se intensificaram as políticas de caráter neoliberal – para a produção de conhecimentos aplicados, que contribuam para a competitividade das empresas no mercado e para a formação de mão de obra competente (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de S. A Universidade no Século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. 2004. Disponível em: <http://acervo.paulofreire.org:80/xmlui/handle/7891/3915>. Acesso em: 27/03/2017.
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; SILVA, 2006SILVA, Franklin L. Universidade: a ideia e a história. Estudos Avançados, São Paulo, v. 20, n. 56, p. 191-202, abr. 2006.).

Entre um e outro ponto, as práticas que se dão no interior da universidade e nas relações com o entorno social se desenvolvem tensionadas, em meio à diversidade dos jogos de força que se estabelecem. Nesse processo, em que a produção de conhecimentos e as ações formativas respondem às forças que se instituem na universidade, não prevalece a uniformização por via do controle, mas amplia-se a heterogeneidade, em movimentos de consonância, contradição, negação, ambiguidade etc., resultantes do trabalho dos sujeitos em seus embates com as forças sociais, políticas e ideológicas.

Os artigos reunidos neste número evidenciam a heterogeneidade no campo da pesquisa em educação no que se refere à construção do conhecimento e aos processos de reflexão ou de criticidade que a ele se associam, quer no ensino fundamental e médio, quer no ensino superior. A atenção a processos didáticos que proporcionem a construção do conhecimento – mais do que sua transmissão – e à promoção de competências leitoras (notadamente, pela ênfase às habilidades críticas) contrapõe-se aos projetos educacionais que determinam a formação de sujeitos para os meios produtivos (FREITAS, 2014FREITAS, Luiz Carlos. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez. 2014.).

Do primeiro conjunto de artigos que compõem esta edição emergem diferentes modos de relação do sujeito com o conhecimento a ser produzido, conhecido ou distribuído, focados mais especificamente no protagonismo do professor neste processo. Esse questionamento recupera as discussões sobre a formação docente que levaram a identificar o professor “como alguém que produz saberes, construídos em contexto e com base na reflexão e na pesquisa sobre a prática, à luz de referenciais teóricos” (MARQUES; PIMENTA, 2015MARQUES, Amanda C. T. L.; PIMENTA, Selma Garrido. É possível formar professores sem os saberes da pedagogia?: Uma reflexão sobre docência e saberes. Revista Metalinguagens, São Paulo, n. 3, p. 135-156, maio 2015., p. 136). Aproximam os artigos não apenas a preocupação com o trabalho pedagógico no que se refere à ação docente, mas a inquietude sobre de que maneiras essa ação responde a concepções existentes de ensino, aprendizagem e escolarização, e à necessidade de reconceitualizá-la em função das condições postas pela contemporaneidade.

Nesta edição, em “Diálogos em delay: especulações em torno de uma temporalidade outra do encontro pedagógico”, de autoria de Julio Groppa Aquino, tematizam-se as possibilidades que se encontram nos escritos de Foucault para o pensamento sobre o encontro pedagógico. No artigo, observam-se as diferentes características que se atribuem historicamente às relações pedagógicas, que se assemelham por fundamentarem-se no princípio de que a pedagogia se faz pela transmissão de conhecimento daquele que o possui àquele a quem ele (ainda) falta. Subjaz a essa concepção a ideia de continuidade, de progresso, de atualização e acúmulo, à qual o artigo contrapõe a impossibilidade da presentificação de um passado com vistas a (re)conhecê-lo. Daí a proposta de um encontro pedagógico sustentado na problematização, na inquietude cognitiva do professor frente àquele a quem se dirige. Desse encontro não resulta a submissão às verdades a serem conhecidas, mas instiga-se o movimento do outro para o questionamento, para a interrogação do que é consensual ou tomado como definitivo. Segundo o autor, ainda que Foucault não tenha escrito sobre o encontro pedagógico tal como tematizado no artigo, ele o teria exercido efetivamente em sua posição de professor.

No mesmo sentido de questionar os limites colocados por concepções de docência restritivas, Lisete Bampi e Gabriel Dummer Camargo, no artigo “Didática do meio: o aprender e o exemplo”, partem da percepção dos esgotamentos que os processos de didatização de metodologização impõem ao ensino e à aprendizagem, em decorrência do controle dos tempos e espaços escolares com objetivos de máxima eficiência e eficácia. Observam os autores as consequências da vontade de objetividade didática que historicamente têm orientado o ensino para a busca das explicitudes plenas, das explicações totalizantes, do planejamento exaustivo de todas as ações a se realizarem e de seus resultados esperados. Como alternativa, propõe-se fazer o novo surgir do próprio esgotamento, da própria falta de possibilidades com que se depara o professor aprisionado pelas grades da didática orientada a determinados fins. O esgotamento levaria os sujeitos à procura do que não é dado a ver claramente, à busca do que se encontra nas profundidades, à imaginação que se torna possível com os recursos da arte. O que é ensinado de modo convencional, em sua superfície, poderia então ser recriado em trabalhos que busquem a tradução dos signos para outros sentidos, ao encalço dos imprevistos.

Marcela Gaete Vergara e Johanna Camacho González, em “Vivencias de prácticantes de pedagogías en ciencias: prácticas de conocimiento científico y pedagógico”, também apontam para as limitações colocadas pelo apego às perspectivas tradicionais de ensino. As pesquisadoras investigaram, em contexto chileno, os modos como se posicionam os professores de ciências em formação inicial, nas disciplinas de prática de ensino, frente às demandas apresentadas para a atuação docente, no que se refere às experiências vivenciadas em sala de aula como professor e às modalidades de formação que lhes foram ofertadas em seu percurso universitário. As autoras analisam os tipos de organização dos cursos de formação de professores de ciências no Chile, quanto às diferentes associações que se fazem, curricularmente, entre disciplinas de conteúdo científico e as pedagógicas. Em relação a cada tipo de estruturação curricular, destacam as apreciações que os estagiários sujeitos da pesquisa fazem de seus sentimentos em relação às demandas que a atuação docente lhes apresenta. Os resultados mostram tendências ao desenvolvimento de angústia ou de tendência à adaptação, devido às expectativas de cumprir a tarefa de transmissão dos conteúdos científicos, num modelo de docência que se caracteriza pelo tradicionalismo, isto é, em que não se toma reflexivamente o fazer científico, nem se questionam os efeitos das condições sociais, ambientais ou culturais para o ensino e o aprendizado da ciência.

O questionamento das condições em que se desenvolvem o trabalho e a formação docente também é tema de “Arrastão ou lagarteado? Dinâmicas em torno da prática docente na Fundação CASA”, de Mauricio Bacic Olic, agora no contexto educativo das instituições de controle social. O autor tematiza as diferentes posições que pode um professor ocupar nas dinâmicas de relações estabelecidas entre os sujeitos que compõem o funcionamento dessas instituições. Observam-se as consequências sempre tensas, contraditórias, resultantes do estabelecimento de um ou de outro modo de interação do professor para com os educandos e os funcionários responsáveis pela organização das atividades. Aproximar-se ou distanciar-se dos adolescentes são decisões que podem resultar em efeitos que não se podem prever como positivos ou negativos, pois respondem a intrincados jogos de forças, em que o docente pode vir a estar submetido às vontades dos educandos que controlam parte da ordem institucional, e, com isso, contribuir para o enfraquecimento da instituição; ou estar em situação de confronto em relação a essas vontades, o que tensiona a relação professor-aluno e compromete as possibilidades educativas do processo de escolarização. Um modo de responder a esse contexto complexo, em que as posições dos sujeitos se definem em relações de forças que precisam ser compreendidas em sua dinâmica, e a partir de seu interior, seria lançar mão de práticas etnográficas, que ofereceriam recursos ao docente de não ser submetido às forças normativas de um ou de outro dos grupos em tensão nos processos institucionais. Trata-se de artigo que oferece subsídios ao trabalho pedagógico realizado não apenas em instituições de controle social, mas em contextos educativos de modo geral.

O segundo conjunto de artigos a compor este número reúne produções voltadas à discussão das práticas educativas no contexto do ensino básico. Neles se questionam modelos existentes de ensino, geralmente ancorados em práticas de transmissão unilateral de conteúdos e em relações de poder verticalizadas, e propõem-se novas possibilidades para o ensino e a aprendizagem em contexto escolar.

Em “La didáctica de la literatura: hacia la consolidación del campo”, Felipe Munita apresenta a progressão do ensino da literatura na escola básica, desde sua orientação por elementos de caráter historicizante, enfocando períodos e/ou escolas literárias; a crítica desse enfoque por perspectivas que se voltavam para a análise estrutural ou funcional dos textos, num sentido, ou na recepção desses textos pelo leitor; às proposições mais recentes, em que se consideram as condições de produção do texto literários e as competências leitoras que se devem desenvolver para que se realize de forma cada vez mais complexa a leitura do texto literário. Esse percurso é observado em suas aproximações primeiras e aos seus graduais distanciamentos em relação à didática geral, na direção da consolidação de um campo específico da didática da língua, a didática da literatura. Em sua parte final, o autor reúne as contribuições que têm sido oferecidas para o ensino nesse campo, organizando um quadro comparativo em que se entrelaçam os objetivos da educação literária – o corpus literário, os espaços e dispositivos didáticos, a postura de leitura privilegiada e a atividade mediadora –, considerados os dois eixos programáticos que organizam as ações propostas: o desenvolvimento da competência comunicativa e a formação do hábito leitor. Por fim, apresentam-se gêneros disciplinares constituídos no campo da didática da literatura que podem contribuir, em contexto escolar, para a formação do leitor.

Ainda no que se refere ao tema do letramento, Íris Susana Pires Pereira investiga os efeitos produzidos em ações pedagógicas para a aprendizagem de usos da escrita por alunos da escola básica, a partir de um programa governamental desenvolvido em Portugal com o objetivo de melhorar os níveis de aprendizagem da literacia. Em “O princípio de prática situada na aprendizagem da literacia: a perspectiva dos alunos”, a pesquisadora, que coordenou ações do programa em uma das regiões do país, buscou conhecer os motivos que teriam levado um grande número de alunos a manifestarem sua satisfação com a experiência vivida na participação em atividades desenvolvidas. Foi realizado um procedimento metodológico para a coleta de manifestações das crianças sobre o programa. A análise dos dados obtidos mostrou que o efeito positivo para os alunos teria se produzido, segundo a autora, pela presença do jogo, da ludicidade, nos trabalhos realizados, ainda que esses elementos não estivessem previstos, explicitamente, nas diretrizes do programa que ensejou sua realização.

O recurso às potencialidades dos usos de linguagem como fundamento para a aprendizagem é também tematizado no artigo “Argumentação na sala de aula e seu potencial metacognitivo como caminho para um enfoque CTS no ensino de química: uma proposta analítica”. Nele, Sylvia De Chiaro e Kátia Aparecida da Silva Aquino discutem possibilidades para o ensino de ciências, em resposta às necessidades que têm sido apresentadas de torná-lo mais sensível às suas relações com questões sociais. Essas possibilidades poderiam se constituir com o recurso a usos de linguagem que ampliassem os modos comumente utilizados para o ensino da química, apoiados em linguagem técnica, fundamentada em símbolos e fórmulas características das notações específicas dessa ciência. Assim, as pesquisadoras estudaram os efeitos, sobre as capacidades metacognitivas dos alunos participantes, de uma atividade de ensino conduzida por meio da argumentação. As análises se fundamentaram em conceitos produzidos pelos estudos da linguagem. As aulas realizadas em turma do Ensino Médio evidenciaram as contribuições que a participação em práticas argumentativas pode oferecer ao desenvolvimento de movimentos autorreflexivos nos alunos, assim como à percepção das relações que se estabelecem entre produção científica e desenvolvimento social.

Nos dois últimos artigos que compõem este conjunto de trabalhos voltados a discussões sobre o ensino básico tematizam-se as contribuições do uso de recursos digitais e suas tecnologias para as práticas de ensino e de aprendizagem.

Em “O impacto sobre estudantes brasileiros de uma linguagem visual para aprender a aprender conjuntamente”, os autores Deller James Ferreira, Kelly Ruas, Vivian Laís Barreto, Tatiane F. N. Melo, Mariana Soller Ramada e Rupert Wegerif observam, em contexto escolar, o uso de uma ferramenta digital de planejamento de ações, que possibilitaria aos alunos estabelecerem modos de organização de atividades em grupo sem a necessária tutela do professor. Os recursos oferecidos pelo sistema contribuiriam para a definição de funções e distribuição de tarefas monitoradamente, o que favoreceria o desenvolvimento de capacidades metacognitivas para a regulagem do trabalho cooperativo. Os autores chamam a atenção para os processos emocionais e motivacionais desenvolvidos ao longo do trabalho em colaboração estudado, nas relações estabelecidas entre os sujeitos da pesquisa. Os resultados teriam evidenciado a relevância da ferramenta digital utilizada para o desenvolvimento dos recursos de aprendizagem e de autorregulação das ações colaborativas pelos alunos.

No artigo “Reflexiones en comunidad de práctica sobre Triángulos imposibles en clase de matemáticas”, Luis Alexander Conde Solano, Sandra Evely Parada Rico e Jorge Enrique Fiallo Leal discutem as relações entre ensino de matemática e uso de tecnologias em uma comunidade de práticas de professores na Colômbia. Observam os autores as possibilidades de desenvolvimento do trabalho pedagógico quando apoiado em reflexões sobre o planejamento, a execução e os resultados das ações em sala de aula. A realização das reflexões com base em recursos digitais favorece a percepção dos docentes quanto aos aspectos positivos e negativos daquilo que foi proposto e concretizado, como também permite novos tipos de interação entre alunos e os objetos da aprendizagem: tanto docentes quanto discentes têm à sua disposição novas materialidades que evidenciam problemas antes não percebidos quando se utilizam recursos analógicos. Os problemas produzem imprevistos nas atividades planejadas para serem realizadas em sala de aula, exigindo respostas e revisões por parte do professor e dos alunos; tais respostas e revisões são o objeto das discussões na comunidade de prática, fornecendo subsídios para que se elaborem novas estratégias para o planejamento, a execução e a avaliação de futuras ações pedagógicas.

Os artigos do terceiro conjunto versam sobre o professor de ensino superior, com especial ênfase na didática e nas condições capazes de promover a aquisição de competências e a construção coletiva do conhecimento. Ainda que tenham o olhar voltado para as novas demandas, não deixam de responder criticamente ao velho preconceito –algo arraigado no ambiente acadêmico – de que ao professor bastaria conhecer bem o conteúdo da matéria a ensinar, prescindindo, sem prejuízo, de saberes pedagógicos e das artes didáticas na docência. Como apontou Castro (1992CASTRO, Amélia D. A memória do ensino de didática e prática de ensino no Brasil. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 233-240, jul./dez. 1992., p. 235), acreditava-se que “no mais, alguns ‘macetes’ transmitidos de professores mais antigos aos mais novos seriam suficientes para resolver o seu problema máximo: manter a disciplina para poder ensinar, ou seja, discursar”.

André Luiz Molisani mostra, em “Evolução do perfil didático-pedagógico do professor-engenheiro”, como tal perfil permaneceu substancialmente inalterado ao longo da história dos cursos de engenharia no Brasil. Aponta que o tradicionalismo dos métodos de ensino-aprendizagem empregados, compostos invariavelmente de aulas expositivas e práticas laboratoriais, bem se coadunam com as características do setor industrial brasileiro, pouco afeito à inovação tecnológica e centrado na reprodução de manufaturados. Estas práticas didáticas e seus efeitos formativos, ao mesmo tempo que denunciam o desinteresse dos professores e das instituições em que se formam pelos aspectos didático-pedagógicos de sua atuação, contrapõem-se às competências ligadas à inovação tecnológica e à resolução de problemas, reconhecidas nos profissionais formados em países cuja educação superior prioriza a mobilidade internacional de discentes e docentes. Argumenta o autor que, em vista de aprimorar a capacitação profissional do estudante de engenharia voltada à promoção do avanço tecnológico – entendido como elemento crucial para o desenvolvimento econômico –, o professor deve se apropriar de métodos de ensino-aprendizagem que permitam a construção do conhecimento, em vez de sua reprodução.

Convergindo para a ideia de que o trabalho docente que não se limita à transmissão unilateral de conteúdos e que a formação do professor deve ter sempre em vista os fundamentos de sua prática, Giseli Barreto da Cruz e Priscila Andrade Magalhães apresentam, em “O ensino de didática e a atuação do professor formador na visão de licenciandos de educação artística”, os resultados de estudo feito junto a estudantes de um curso de licenciatura em educação artística, com o intuito de analisar como a aprendizagem da docência teria se construído nas disciplinas de didática. Tendo identificado como “tecnicista” a estrutura curricular da instituição de ensino superior investigada, as autoras aplicaram um questionário e conduziram os estudantes a um grupo de discussão, tendo concluído a partir da análise que a didática é por eles considerada nuclear no ensino, ainda que não identifiquem diferenças entre as disciplinas didáticas e as demais; que o estágio é reconhecido como etapa indispensável da formação docente e que o envolvimento e a prática dos professores das disciplinas didáticas são balizas de referência para que reflitam sobre o seu processo de formação profissional.

No artigo “Contribuições de Georges Snyders para a pedagogia universitária”, Renata de Almeida Vieira e Maria Isabel de Almeida, em vista de uma melhor qualificação pedagógica da ação formativa no ensino superior, procuram apresentar as contribuições do pensamento do educador francês para a pedagogia universitária, dando destaque a suas teorizações em torno do saber ensinado e da alegria no aprender. Inquirem, além disso, sobre o potencial deste pensamento pedagógico em fomentar discussões contributivas no campo da pedagogia universitária e impactar práticas de formação inicial e continuada do professor de ensino superior. As perguntas feitas à pedagogia snyderiana emergem dos desafios que a massificação e a heterogeneidade do corpo discente apresentam à universidade atual, pondo em xeque a eficácia e o sentido de seu usual modo de ensino, fundado na transmissão do conhecimento e na relação unidirecional entre professores e alunos. A pedagogia de Snyders, apontam as autoras, tem como eixo a participação dos alunos, cabendo ao professor incitá-los a analisar lucidamente o que o saber acadêmico lhes proporciona, os êxitos que se podem obter e as alegrias resultantes do aprendizado.

O desenvolvimento da leitura compreensiva, outro aspecto da formação de profissionais no ensino superior, surge no artigo “¿Qué textos leen en primer año los estudiantes de psicología?”, de María Micaela Villalonga Penna e Constanza Padilla. Indagando sobre a organização e as características do que se dá a ler aos estudantes, analisam um acervo bibliográfico de 320 textos, prescrito para as matérias do primeiro ano do curso de psicologia de uma universidade pública argentina. Valendo-se da estatística descritiva e da análise de conteúdos, constatam o uso generalizado de apostilas compostas por súmulas de aula e capítulos de livros, raramente contendo apontamentos que diferenciem os textos científicos dos acadêmicos. Quanto aos tipos discursivos, o material é dominantemente expositivo, secundado pelo gênero argumentativo. As autoras concluem que aprender e ensinar a ler diferentes classes textuais e tipos discursivos é um desafio para que se promova a inclusão dos estudantes nas comunidades disciplinares, de vez que a apropriação da cultura acadêmica depende da preparação cuidadosa do material de leitura ofertado.

Com similares preocupações quanto às competências leitoras dos professores em formação, Márcia Gorette Lima da Silva, Conxita Marquez Bargalló e Begonya Oliveras Prat, examinam em “Análisis de las dificultades de futuros profesores de química al leer críticamente un artículo de prensa” as dificuldades que tiveram dezoito professores de química em formação em uma universidade brasileira diante do exercício de analisar criticamente um artigo de imprensa de conteúdo científico, selecionado por conter informações duvidosas ou superficiais a respeito de conceitos e conhecimentos da química. Mediante respostas a um questionário e transcrições do debate organizado após a leitura, as autoras identificam que os participantes, divididos em primeiranistas e concluintes do curso de licenciatura, apresentaram dificuldades de se posicionar e de analisar de modo crítico a informação do texto jornalístico. Embora não tenham detectado dificuldades da parte dos participantes em identificar as ideias principais e o propósito do texto, verificam que em sua maioria mostraram ter uma visão ingênua com relação à fidedignidade e à suposta neutralidade do autor e que a habilidade de leitura variou segundo o estágio no curso, de modo que os alunos do último período revelaram maior capacidade crítica, ainda que com argumentação pouco desenvolvida. Partindo da premissa de que conhecer as dificuldades de ler criticamente textos de conteúdo científico é o primeiro passo para superá-las, as autoras recomendam que tais obstáculos sejam considerados nos programas de formação, fomentando atividades promotoras do pensamento crítico.

O último conjunto de textos aborda o crucial problema da gestão da universidade, da governança e das políticas voltadas para o ensino superior, cujo impacto sobre práticas docentes e produção do conhecimento são, por vezes, diretos.

Em “Análisis sincrónico de la gobernanza universitaria: una mirada teórica a los años sesenta y setenta”, Francisco Ganga, Juan Quiroz e Paulo Fossatti procedem a uma revisão de papers dedicados à temática, com o objetivo de realizar uma análise sincrônica do conceito de governança e da constituição dos governos universitários. Os autores entendem o estudo das perspectivas no campo do governo das universidades como de grande relevância no cenário atual, especialmente quando consideram inexorável a necessidade de tornar essas organizações progressivamente mais eficientes e responsivas às expectativas depositadas pela sociedade. O estudo está centrado nos anos sessenta e setenta do século XX e aborda as raízes do conceito de governança universitária, delineando os atores e as relações de poder que se estabelecem nos governos universitários. Concluem os autores que ao longo de seu desenvolvimento, a complexidade organizacional das universidades aumentou consideravelmente, tornando necessário incorporar novos atores aos sistemas de gestão, antes monopolizados pelo estrato acadêmico. Argumentam, ainda, que dois fatores têm sido fundamentais para a sobrevivência das instituições universitárias: a legitimidade que lhes concede a sociedade e seus primeiros passos da elaboração e efetivação de estratégias na área de gestão.

Em “Indústria e universidade: a cooperação internacional e institucional e o protagonismo da mobilidade estudantil nos sistemas de inovação da Alemanha”, Joaquim Carlos Racy e Everton de Almeida Silva identificam na política de intercâmbio acadêmico e científico da Alemanha a expectativa desse país em captar as potencialidades técnico-cientificas ao redor do mundo em prol da manutenção de sua competitividade industrial. Pela análise articulada de dados relativos à circulação de estudantes, à ubiquação das instituições geradoras de inovação e ao papel do Estado e do setor privado na promoção de pesquisa e inovação, os autores avaliam o impacto desta política sobre a competitividade, iluminando as relações entre indústria e universidade, produção de conhecimento e geração de inovação. Discutem, pois, o papel da universidade no processo de produção e troca de conhecimentos, ressaltando o papel da cooperação internacional e interinstitucional para a mobilidade estudantil. Por fim, apontam a experiência alemã como um modelo possível de geração de inovação, a ser replicado por países em relativa desvantagem econômica e tecnológica.

Por fim, na entrevista conduzida por Teresa Cristina Rego e José Geraldo Vinci de Moraes, “Individualização e processos de construção identitária na contemporaneidade: a perspectiva de François de Singly”, o sociólogo francês analisa a individualização das relações familiares, estabelecendo associações entre as mudanças da modernidade e seus efeitos na família. Singly reflete sobre o tema da individualização relacional dos adolescentes na contemporaneidade, destacando as problemáticas do acesso à vida adulta e as tensões entre a cultura geracional e a cultura herdada; explora a relação entre os jovens, a escola, a família e o estado, tecendo comentários sobre os traços que a definem e os desafios a serem enfrentados na atualidade. Com argumentos sólidos, criatividade e uma consistência analítica solidamente ancorada em referências bibliográficas amplas e no trabalho empírico persistente, a entrevista promove uma frutífera interlocução com os que se interessam pelos complexos processos de formação do indivíduo contemporâneo, inserido num contexto hibrido de múltiplas referências identitárias.

O conjunto de artigos deste número de Educação e Pesquisa expressa o mosaico de dimensões implicadas na formação do indivíduo contemporâneo, destacadamente no âmbito das instituições formativas e dos processos de ensino e de aprendizagem. Nele se observa a preocupação dos autores com os processos de construção de conhecimento, a formação de leitores críticos, bem como a organização de contextos favoráveis à emergência de práticas significativas de ensino e aprendizagem. São aspectos que convergem para um relativo consenso em torno da necessidade de investir no desenvolvimento de um pensamento pedagógico que impulsione os sujeitos do processo educativo a uma condição emancipada.

Reunindo estas contribuições acadêmicas, a Revista Educação e Pesquisa espera estimular novas perspectivas e debates que fomentem a produção e circulação do conhecimento no campo educacional, em diálogo com os saberes produzidos nas diversas áreas, condição indispensável a uma atuação reflexiva diante da complexidade social contemporânea.

Bruno Bontempi Jr.
Emerson de Pietri
Editores de Educação e Pesquisa

REFERÊNCIAS

  • CASTRO, Amélia D. A memória do ensino de didática e prática de ensino no Brasil. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 233-240, jul./dez. 1992.
  • FREITAS, Luiz Carlos. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez. 2014.
  • MARQUES, Amanda C. T. L.; PIMENTA, Selma Garrido. É possível formar professores sem os saberes da pedagogia?: Uma reflexão sobre docência e saberes. Revista Metalinguagens, São Paulo, n. 3, p. 135-156, maio 2015.
  • SANTOS, Boaventura de S. A Universidade no Século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. 2004. Disponível em: <http://acervo.paulofreire.org:80/xmlui/handle/7891/3915>. Acesso em: 27/03/2017.
    » http://acervo.paulofreire.org:80/xmlui/handle/7891/3915
  • SILVA, Franklin L. Universidade: a ideia e a história. Estudos Avançados, São Paulo, v. 20, n. 56, p. 191-202, abr. 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017
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