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Escrita de micronarrativas biográficas de viajantes luso-brasileiros: aproximações entre história das ciências no Brasil e ensino

Resumo

O presente trabalho sobre as Viagens filosóficas portuguesas ao Brasil no século XVIII tem o objetivo de expandir as temáticas e abordagens da história das ciências no Brasil, abrindo espaço para o debate sobre como o trabalho com as práticas, técnicas e representações científicas possibilita desenvolver metodologias de ensino que abordem temas brasileiros em seu contexto. A partir do material, retirado de um banco de dados biobibliográficos sobre os viajantes, traçamos redes de relações entre políticos, desenhistas, engenheiros, cartógrafos, gravadores, naturalistas e a população local. Para a divulgação dos dados, o material nos desafiou a pensar em propostas de escrita biográfica dos viajantes no ambiente virtual. O espaço permite que o trabalho afiance duas escalas de importância, ou seja, realce o papel particular dos viajantes, demonstrando singularidades, e garanta a análise dos contextos sociais pelas relações interpessoais na perspectiva espaço-temporal. No entremeio dos formatos biográficos e refletindo sobre o caráter híbrido do gênero, definimos que a formulação de micronarrativas asseguraria a escrita biográfica construída sobre os viajantes. A escrita de textos curtos será conduzida especialmente pela biografia modal, apontando as redes de relações sociais do sujeito, e pelos biografemas, caracterizados pela produção de uma impressão biográfica momentânea. Por um processo não-linear da História, a escrita biográfica e a criação de hiperlinks permitem que o caráter complexo das relações do período se reflitam nas micronarrativas formuladas.

Escrita biográfica; Ensino de ciências; Viagens filosóficas; Divulgação científica

Abstract

This study about the Philosophical Portuguese Journeys to Brazil aims at expanding the theme of and the approach to the History of Science in Brazil, promoting the debate about how the work on scientific practices, techniques and representations allows the development of teaching methodologies that encompass Brazilian themes in their context. From the gathered sources, obtained from a bibliographical database of travelers, we were able to draw relationship webs linking politicians, drawers, engineers, cartographers, engravers, naturalists and the local population. In order to disclose the data, this gathered material challenged us to think about proposals of biographical writings of travelers within the virtual environment. Such framework allows our work to ensure two scales of importance, i.e., to emphasize the particular role of travelers, demonstrating singularities, and to guarantee the analysis of social contexts via interpersonal relations from a space-time perspective. Within such biographies and elaborating on the hybrid character of the genre, we defined that the formulation of micro-narratives would grant the biographical writing constructed around the travelers. The writing of short texts will basically follow the modal biography, pointing to the network of social relations of the subject, and also by the biographemes, characterized by the production of a momentary biographical impression. Through a non-linear historical process, the biographical writings and the creation of hyperlinks allow the complex nature of the relationships of that period to be reflected in the micro-narratives formulated.

Biographical writings; Teaching of sciences; Philosophical journeys; Scientific publications

Introdução

As ciências desenvolvidas no Brasil durante o período colonial permanecem pouco conhecidas e valorizadas tanto nas escolas quanto em instituições não formais de ensino. Ao ser abordada no ensino, a história da ciência, na maioria dos casos, se restringe a aspectos biográficos de cientistas, aos quais foram atribuídas grandes descobertas ou teorias, criando um imaginário dos grandes gênios das ciências e acentuando a componente individual nas pesquisas, em detrimento das controvérsias e colaborações envolvidas na comunidade científica. A ciência de contextos periféricos, como é o caso do Brasil, é minimamente abordada em pesquisas sobre a história das ciências e o ensino (SILVA et al. 2008SILVA, Clarete Paranhos et al. Subsídios para o uso da história das ciências no ensino: exemplos extraídos das geociências. Ciência & Educação, Bauru, v. 14, n. 3, p. 497-517, 2008.).

Estudos sobre a história das ciências realizados até a década de 1970 construíam suas narrativas partindo de eventos científicos associados às ciências contemporâneas e, a partir daí, buscavam as origens dos grandes conceitos ou descobertas no passado. Nessa visão, as ciências europeias e norte-americanas eram sobrevalorizadas, por terem se tornado os paradigmas dominantes ao longo da história. Esse método historiográfico conduziu à omissão de vários acontecimentos relevantes na história das ciências brasileiras, consideradas atrasadas em relação às ciências europeias. Inclusive, pesquisadores que estudaram a ciência como manifestação cultural brasileira, como o caso da coletânea As ciências no Brasil, organizada por Fernando de Azevedo (1955)AZEVEDO, Fernando de. As ciências no Brasil. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1955., sobrevalorizaram o trabalho realizado nos países europeus em detrimento da produção de conhecimento nos países periféricos, nomeadamente do hemisfério sul do planeta.

Nos últimos anos, a historiografia brasileira está se transformando, revelando novas formas de governabilidade, de cultura e sociabilidade. Há uma renovação nos estudos em história da ciência desde a década de 1980, que passaram a considerar a relevância das atividades científicas realizadas no Brasil (FIGUEIRÔA, 2000FIGUEIRÔA, Sílvia Fernanda de Mendonça. Um olhar sobre o passado: história das ciências na América Latina. Campinas: Edunicamp, 2000.). A crescente institucionalização da área se constata em vários trabalhos que dão visibilidade às particularidades da ciência brasileira, fortalecendo sua identidade epistemológica, concretizada na realidade local e na construção social da comunidade científica. A expansão das pesquisas sobre história das ciências no Brasil torna bastante profícuo o desenvolvimento de metodologias do ensino que tratem de temas brasileiros em seu contexto.

Numa associação entre a história das ciências no Brasil e o ensino, neste artigo, concentramo-nos no relato e na análise sobre a criação de um material de divulgação científica, ainda em construção, com micronarrativas biográficas de naturalistas, desenhistas, engenheiros, artistas e matemáticos envolvidos na preparação e realização das Viagens filosóficas, que percorreram grande parte da América Portuguesa, em intensa relação com Portugal continental e as colônias portuguesas africanas e asiáticas. Trataremos, então, as dimensões locais das ciências desenvolvidas no final do período colonial brasileiro em associação aos projetos de dominação colonial traçados para o Mundo Português, destacando o contexto político do período, o quadro institucional, as práticas, técnicas e representações científicas desenvolvidas nas viagens e que podem ser abordadas no ensino.

Viagens filosóficas luso- -brasileiras

No final do século XVIII, Portugal realizou um esforço intenso de investigação natural e geográfica de suas colônias, materializado nas Viagens filosóficas, designação concernente ao seu principal objeto de observação e de interpretação da natureza nos diversos domínios da filosofia natural, como a física, a química, a zoologia, a botânica e a mineralogia (CARVALHO, 1987CARVALHO, Rómulo de. História natural em Portugal no século XVIII. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987.). As Viagens filosóficas, empreendidas entre o final do século XVIII e a Independência do Brasil, são reflexo da dinâmica colonial portuguesa, tanto política quanto econômica e cultural (DIAS, 1968DIAS, Maria Odília da Silva. Aspectos da ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 278: p. 105-170, 1968.).

Nosso período de análise compreende o ocaso do período colonial, desde a segunda metade do século XVIII à Independência do Brasil. Em Portugal e Brasil, nesse momento, as transformações sociais, culturais e políticas são muito intensas, criando novas configurações nas relações entre a metrópole e as colônias. Apesar do Iluminismo em Portugal e no Brasil já ter sido muito estudado1, devido à sua importância para a história das ciências e das artes, ainda há muito para se investigar. O momento é emblemático devido às reformas no ensino, com a introdução da ciência experimental e da lógica racional. Foram criados paradigmas educacionais concretizados em práticas inscritas na nova arquitetura do poder, configurada na criação de novas instituições científicas e espaços de sociabilidade essenciais para o desenvolvimento das Viagens filosóficas e das relações entre os viajantes (ARAÚJO, 2000ARAÚJO, Ana Cristina de (Org.). O Marquês de Pombal e a universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000.).

O material resultante das viagens consiste em variada documentação, englobando instruções, diários, memórias, relatórios, desenhos, mapas e coleções de história natural. Essas fontes documentais são representações sobre a natureza brasileira dos séculos XVIII e XIX e foram estudadas por historiadores interessados nos diversos ramos científicos abordados nas viagens. As possibilidades de criação de vieses educacionais sobre esses materiais são imensas e foram pouco abordadas no ensino.

Após constatar o imenso corpo documental resultante das viagens científicas portuguesas e a sua importância para o entendimento da dinâmica colonial portuguesa, os textos e imagens resultantes das viagens foram sistematizados e analisados nas pesquisas de mestrado e doutoramento de Ermelinda Pataca (2001PATACA, Ermelinda Moutinho. Arte, ciência e técnica na Viagem Philosophica de Alexandre Rodrigues Ferreira: confecção e utilização de imagens histórico-geográficas na capitania do Grão-Pará, entre setembro de 1783 e outubro de 1784. 2001. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2001., 2006PATACA, Ermelinda Moutinho. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2006.). A principal relevância desses trabalhos reside na grande sistematização dos dados dispersos em bibliotecas e arquivos brasileiros e portugueses e na análise das representações como textos, imagens e objetos, estabelecendo as conexões entre materiais de natureza distinta e interpretando a complexidade envolvida nos estudos de história natural e na investigação geográfica colonial. Para a contextualização das representações e sua ressignificação a partir da conexão entre as informações, realizamos análises detalhadas e circunstanciais sobre o conjunto de viagens que percorreu o Império Português na segunda metade do século XVIII. Com o objetivo de valorizar a história das relações entre arte e ciência no Brasil durante o período colonial, nossas pesquisas foram conduzidas no âmbito da história das ciências, de forma interdisciplinar, num diálogo com a história das artes, de forma contextualizada, ressaltando as questões políticas, geográficas, sociais e econômicas do período.

Nas análises do imenso corpo documental, foram ressaltadas algumas questões essenciais para a reconstituição do cotidiano das viagens, como as áreas geográficas exploradas, as instituições científicas e artísticas envolvidas, os produtos naturais pesquisados, a composição técnico-científica, a rede de relações entre os viajantes e o comando científico e político das viagens. Criamos um quadro geral das Viagens filosóficas portuguesas despachadas para as colônias, inserindo-as na política de exploração colonial do período, assim como no universo científico da época. Esse quadro será tomado como ponto de partida na produção do material de divulgação científica.

Da pesquisa documental à divulgação científica

Uma das formas de associação entre a pesquisa histórica e sua divulgação consiste no desenvolvimento de instrumentos, como dicionários e inventários biográficos e bibliográficos. Construído durante o processo de análise dos dados para a elaboração da tese de doutorado (PATACA, 2006PATACA, Ermelinda Moutinho. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2006.), o Dicionário biobibliográfico foi um instrumento essencial de pesquisa documental e possibilitou a investigação global de quem eram os viajantes. Em sua elaboração, foram determinados alguns descritores para a padronização dos dados entre os naturalistas, descritores esses apresentados a seguir:

Quadro 1
: Dados biográficos e bibliográficos para a elaboração do dicionário

As descrições sintéticas dos aspectos biográficos dos naturalistas permitiam traçar um quadro geral sobre sua formação e atuação, assim como os vínculos institucionais e as redes de relações dos viajantes. As detalhadas sistematizações sobre a produção bibliográfica trouxeram dados que não estão sistematizados nos principais dicionários biobibliográficos, pois apresentamos grande detalhamento das fontes escritas e iconográficas. Destacamos o detalhamento nas correspondências como documentação essencial para traçar as redes de relações interpessoais e interinstitucionais dos viajantes, por possibilitar a reconstituição do cotidiano das viagens, por apresentar informações sobre os locais percorridos, os produtos investigados, como condições do tempo, disponibilidade de suprimentos e mão de obra que viabilizassem a realização das viagens.

Nosso atual desafio consiste em utilizarmos os dados do Dicionário biobibliográfico para a criação de um material de divulgação científica sobre a vida e obra dos viajantes. Assim, elaboramos um projeto de implementação de dados biobibliográficos no site da Biblioteca Brasiliana (USP), com a criação do grupo Viagens, Arte e Ciência no Mundo Português, composto pelas bolsistas Cristiane Borges de Oliveira (graduada em letras), Fernanda Lara Brandão (graduada em história), Fernanda Felix da Conceição (graduada em pedagogia) e Camila Franco (graduanda em geografia). O grupo, de formação heterogênea, contribuiu para a análise mais completa dos dados: através de um olhar interdisciplinar, a releitura das Viagens filosóficas se tornou mais rica, pela multiplicidade de vozes. As bolsistas desenvolveram estratégias de divulgação dos dados biográficos e bibliográficos, de forma a atingir professores do ensino fundamental e médio. A partir dos materiais sistematizados, pensamos em abordagens de ensino que envolvessem temáticas brasileiras vinculadas às disciplinas de história, artes, geografia e ciências da natureza, além do ensino da própria língua materna a partir das fontes documentais em português setecentista.

O principal desafio foi ultrapassar a função de repositório de informações biobibliográficas do material, a qual poderia favorecer um ensino pautado na transmissão e memorização de informações. Passamos a pensar na criação de um material multimídia com proposições formativas, através de estratégias interativas e com textos que permitam a contextualização histórica das viagens científicas. Alguns autores argumentam que a história da ciência pode fomentar um ensino mais contextualizado e crítico sobre as atividades científicas. Hodson (2011)HODSON, Derek. Looking to the future: building a curriculum for social activism. Rotterdam, Sense, 2011. defende que o ensino de ciências deve ser construído em três grandes elementos: aprender ciência, ou seja, construir o conhecimento conceitual e teórico; aprender sobre ciência – desenvolver um entendimento da natureza e métodos das ciências, avaliando as interações complexas entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente; e, por fim, fazer ciência – desenvolvendo as habilidades de investigação científica e de resolução dos problemas.

A preparação do material de divulgação sobre as viagens baseou-se na reflexão de fatores diversos, considerando a acessibilidade ao acervo. A documentação das viagens está dispersa em arquivos, bibliotecas e museus brasileiros e europeus (principalmente em Portugal e na França). A dispersão documental das Viagens filosóficas iniciou-se durante as invasões do exército napoleônico em Portugal, em 1808, quando as coleções, desenhos e textos resultantes das Viagens filosóficas passaram para a mão dos naturalistas franceses do Museu de História Natural de Paris. Embora os manuscritos e a iconografia da expedição retornassem a Lisboa em 1814, com a queda de Napoleão, o material zoológico e o herbário ficaram em Paris (onde permanecem atualmente). Os espécimes e os desenhos das viagens foram então estudados por Etienne Geoffroy de Saint-Hilaire, Geoges Cuvier, Bernard Germain de Lacépède, que não mencionaram a origem dos exemplares trabalhados (TEIXEIRA, 1992TEIXEIRA, Dante. Um espelho distante: os resultados zoológicos da expedição de A. R. Ferreira. In: Viagem filosófica: uma redescoberta da Amazônia. Rio de Janeiro: Index, 1992. p. 29-61.; GOELDI, 1895GOELDI, Emílio A. Ensaio sobre o Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira. Pará, Alfredo Silva, 1895.).

Considerando tais características, a reflexão sobre o período das Viagens filosóficas pretende ampliar o acesso à documentação em vias digitais. O material valorizará a identidade da ciência no Brasil, complexificando as abordagens usuais das ciências no ensino, que consideram a universalidade e generalidade do conhecimento, para a exploração da diversidade cultural e natural local. Tal concepção será facilitada pela própria natureza do conhecimento científico construído durante as viagens, com base na história natural, que se caracterizava, no século XVIII, pelo desenvolvimento de práticas locais para a criação de coleções globais (LOPES, 2005LOPES, Maria Margaret. Culturas das ciências naturais. Ciência & Educação, Bauru, v. 11, n. 3, p. 457-470, 2005.).

Ao longo do processo, desenvolvemos estratégias que viabilizem a visualização da dialética entre o local e o global, ou seja, que partam do singular e atinjam uma generalização para a apreensão do todo. Assim, pensaremos nos deslocamentos dos viajantes, apresentados de forma georreferenciada, desde das escalas do lugar até as escalas globais, apresentando os movimentos pelo Império Português e as relações entre as colônias americanas, africanas e asiáticas.

Abordamos a complexidade da ciência, em suas dinâmicas epistemológicas e nas relações políticas e sociais. A compreensão sobre o contexto das viagens é facilitada através da escrita por vias biográficas, agregando às figuras dos viajantes a relação com o espaço e o tempo no processo de criação de práticas do período em questão, considerando que o uso da biografia, no contexto atual de formulação da história, respira em uma área de maior aceitação (DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009.). A ciência acerca do conteúdo das Viagens filosóficas permite a realização de uma nova leitura sobre a história da ciência brasileira de forma mais complexa.

A ampliação do interesse do público por questões históricas impõe uma reflexão sobre novas formas de escrita biográfica. Mary Del Priore defende a ampliação do interesse do público por questões históricas, e dentre elas as biográficas, demandando atualmente aos historiadores a necessidade de repensar a escrita e de criar formas de publicitar suas pesquisas, em veículos diversos como museus, na educação patrimonial, nos romances históricos etc:

Historiadores brasileiros terão que repensar que tipos de texto produzirão e entre eles, qual seria o papel da biografia histórica, tão eficiente para dar a conhecer o passado. Agora, não mais para atender exclusivamente às exigências herméticas da Academia, mas, também para responder a uma exigência ou demanda social. Há milhares de leitores para um tal produto cultural. (DEL PRIORE, 2009DEL PRIORE, Mary. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi, v. 10, n. 19: 7-16, 2009., p. 14).

Em concordância com a autora acima citada, defendemos aqui a necessidade de refletirmos sobre a escrita biográfica, buscando formas mais adequadas de sua publicitação, atendendo demandas expressas pelo público. Em nosso grupo, os debates sobre essa questão foram bastante amplos, até chegarmos a uma escrita que atendesse as especificidades do meio virtual.

A escrita biográfica: dos verbetes às micronarrativas

A proposição inicial do grupo foi a escrita de verbetes biográficos sobre os indivíduos envolvidos nas Viagens filosóficas, elaborados a partir das informações sistematizadas no Dicionário biobibliográfico, em que há descrições sucintas sobre a vida e a produção bibliográfica, cartográfica e iconográfica dos viajantes, organizadas em etiquetas (descritores).

A construção dos verbetes seria realizada em grupos sobre a atuação dos personagens envolvidos nas viagens. No entanto, no processo de construção teórica da escrita biográfica, deparamo-nos com novas questões, que nos fizeram pensar na pertinência da elaboração de verbetes, construídos em uma tradição de publicação impressa de dicionários, que não se adéqua completamente ao meio virtual e interativo que pretendemos utilizar. Além disso, a escrita sintética dos verbetes não permitia mostrar o complexo de relações de vida e obra dos viajantes em textos curtos, pois alguns tiveram uma atuação mais intensa do que outros, o que demandaria maior explanação biográfica.

O processo de construção dos verbetes demonstrou a necessidade de orientação teórica em áreas distintas. A evocação da leitura do livro O desafio biográfico, de François Dosse (2009)DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009. nos interessou pela presença da teoria sobre o gênero biográfico, que, por muito tempo, encontrou-se à margem, dificultando sua classificação como uma disciplina organizada, mas que, a partir das novas configurações sociais, passou a compor importante fonte de informações no que se refere a um sujeito (de modo singular), a uma sociedade (de modo plural) ou à relação entre ambos. A leitura de Dosse problematizou questões relativas à biografia. Partimos da característica híbrida da escrita biográfica, a qual envolve questões ficcionais, compostas pelo escritor, em relação às experiências reais do sujeito biografado, assim como dados ligados à memória, individual ou social, como elementos da biografia. A prática biográfica navega na relação entre fatos documentados e memória, ficção e realidade.

No entremeio de possibilidades tão distintas, optamos pelo estilo da biografia modal para a escrita, garantindo, por ela, a transição entre fatores particulares do sujeito biografado e as questões coletivas que se ligavam à sua figura. Ultrapassando a escrita da biografia centrada na narrativa linear de um único sujeito, o singular é descentralizado, de modo a representar sua figura por uma perspectiva mais ampla, que ilustra o coletivo.

A escolha da biografia modal expressou a ideia do grupo de repensar a história da ciência no Brasil de forma coletiva e não apenas a figura particular de seus viajantes. A importância da relação entre os viajantes e o meio nos permite analisar a configuração social do período das Viagens filosóficas. Nesse sentido, Miguel Faria (2001)FARIA, Miguel Figueira de. A imagem útil. José Joaquim Freire (1760-1847) desenhador topográfico e de história natural: arte, ciência e razão de estado no final do antigo regime. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2001. escreveu a biografia de José Joaquim Freire, desenhista da Viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, mostrando o papel social dos militares, cartógrafos e desenhistas de história natural em Portugal no período estudado, que permitiram expressar sua época e seu meio social. A rede de relações entre viajantes e indivíduos envolvidos nas esferas administrativas portuguesas também foi elaborada por Ângela Domingues (2000). Pensar em quadros de relações mais abrangentes, que apontem relações complexas entre naturalistas, desenhistas, militares, administradores, artistas, gravadores, cartógrafos e práticos, torna-se um grande desafio, que pode se materializar em meios virtuais que desenhem a trama e seus desdobramentos para compreendermos os papéis sociais dos naturalistas.

Nesse sentido, o gênero modal permitiu pensar nesta rede de relações sociais mais ampla, revelando o caráter coletivo da atividade científica, técnica e artística das Viagens filosóficas. Porém, esse gênero biográfico não se adequaria completamente ao recorte espacial e temporal que almejamos inserir no processo de georreferenciamento. Diante dessa necessidade, encontramos no formato de biografemas uma possibilidade interessante para a escrita biográfica sobre a percepção e as experiências dos viajantes em suas peregrinações pelo Mundo Português.

O biografema remete à ideia de uma memória que não se realiza na narrativa linear dos acontecimentos ou pelo quadro fixo da figura biografada; ou seja, a partir dos biografemas, é possível relatar pequenos retalhos de vida, sendo desnecessária a preocupação com a continuidade. Esse tipo de escrita, segundo Dosse (2009)DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009., nunca se cristaliza. Desse modo, garante-se que a análise opere pela fragmentação, na escolha de passagens pertinentes na construção dos verbetes, possibilitando, como citado acima, o acesso a informações mais amplas nos materiais de referência, digitalizados por bibliotecas digitais e/ou por outras unidades que forneçam materiais semelhantes, dentro ou fora do Brasil.

A mistura de dois modos distintos de biografia representa o caráter híbrido do gênero. Os modos de escrita biográfica servirão de suporte para uma análise que se construa de acordo com os objetos disponíveis e a contextualização necessária na feitura de cada narrativa biográfica. Dosse enfatiza a pertinência da mescla de modelos, ressaltando que a dinamicidade no uso dos mesmos impede a concretização de um único modelo de análise, tido como irrevogável, coloca em xeque o confronto de análises distintas, e permite, dessa forma, destacar as intenções implícitas nos modelos tidos como ideais. Dosse (2009, p. 214) pondera que:

Esses modelos devem se articular com a pesquisa de campo no curso da qual a teoria permanece ligada ao trabalho empírico de observação. São as circunstâncias que desempenham o papel principal quando se trata de determinar o comportamento e o ajustamento dos processos de justificação. Esse modelo dinâmico, articulado à inteligibilidade da ação, permite, de um lado, evitar o escolho da introspecção das intenções implícitas e, de outro, o escolho da objetivação mecânica que tende a atribuir a ação a causalidades sistêmicas.

No processo de escrita, definimos que a melhor forma de tratar a vida e obra dos viajantes seria pelas micronarrativas, em análises sucintas e construídas a partir das informações das representações elaboradas pelos mesmos, como diários de viagem, correspondências, textos, desenhos e mapas. As micronarrativas divulgam a percepção dos viajantes sobre o Mundo Português, ressaltando a dimensão espacial e temporal que caracteriza o fluxo e refluxo de ideias, produtos e populações pelo espaço colonial (RUSSEL-WOOD, 1998).

Para a divulgação das viagens, mostrou-se necessária a preocupação com a linguagem empregada na criação dos textos, a qual deveria conservar as características da época, mas, simultaneamente, ser clara e concisa, para compor os materiais de divulgação científica. Com referências explícitas aos materiais digitalizados e ofertados pela rede virtual, o leitor pode direcionar sua leitura de acordo com o seu empenho inicial ou encontrar fatos e fontes inesperados durante a pesquisa, aprofundando o conhecimento das Viagens filosóficas de acordo com seu interesse. Para que esse processo ocorra, selecionamos fragmentos de textos pertinentes que tragam ao momento atual o olhar do viajante no período das Viagens filosóficas, garantindo, a partir de hyperlinks, a ligação com os textos referenciais na íntegra – principalmente com os livros disponíveis em bibliotecas digitais. Há a preocupação, também, de conectar as micronarrativas com outros sites, criando referências a pesquisas que disponibilizam conteúdo similar na rede. Com a navegação disponível entre diferentes textos, o leitor realizará interação com o seu objeto de estudo, optando pelos caminhos a percorrer em sua leitura, de acordo com seu conhecimento e/ou interesse sobre as viagens ou sobre determinado personagem.

A escrita da micronarrativa possibilita a assunção de uma perspectiva social mais complexa da biografia, considerando as ações do indivíduo em ligação com as influências sócio-históricas e espaciais. Dessa maneira, pode-se pensar em uma escrita histórica que não é linear, que, pelo processo de interpretação e análise dos dados disponíveis, possibilita novos olhares para o mesmo período/objeto/espaço, através de outras análises e no contexto de ensino, em diferentes áreas do conhecimento.

Georreferenciamento das informações biográficas

Devido às possibilidades de relação intertextual e interacional que os textos virtuais geram, acreditamos que as biografias dos viajantes poderiam ser escritas em dimensões variadas e ressaltando as relações entre os vários sujeitos envolvidos na rede de relações coloniais. Para isso, a apresentação dos dados se dá em múltiplas escalas, desde aspectos particulares e detalhados da vida e da obra de cada viajante, até aspectos que definam elementos identitários de dimensões coletivas de grupos de viajantes. A própria escrita biográfica, que trata desde as dimensões particulares do sujeito até o contexto histórico em que este está inserido, torna-se facilitadora dessa abordagem.

Definimos que a apresentação dos dados na interface deve dar-se através de Sistemas de Informação Georreferenciada (SIG), apresentando os dados por meio das dimensões espaciais e temporais. Diante da percepção de que a elaboração de verbetes não seria adequada, pensamos na criação de micronarrativas, a ser inseridas na interface por meio do SIG, demonstrando desde a percepção instantânea de dimensões locais até as generalizações realizadas no conjunto das viagens. A construção das relações entre as micronarrativas se dá pela navegação dos usuários, que podem criar percursos diversos.

O movimento de navegação que permita ao usuário a visualização dos dados de escalas micro até macro possibilita um movimento de contextualização e de generalização no Mundo Português. Maurício Compiani (2007)COMPIANI, Maurício. O lugar e as escalas e suas dimensões horizontal e vertical nos trabalhos práticos: implicações para o ensino de ciências e educação ambiental. Ciência & Educação, Bauru, v. 13, n. 1, p. 29-45, 2007. aborda a importância da utilização de escalas no ensino e propõe dois movimentos para relacionar as dimensões do local ao global, quais sejam: da horizontalidade – ou contextualização da realidade com a definição de elementos singulares – e, posteriormente, da verticalidade – rumo à descontextualização e à generalização.

As dimensões locais e suas relações com o global podem ser abordadas pela história das ciências, especialmente das ciências naturais como a biologia e a geologia. Margaret Lopes, ao apresentar alguns subsídios para o ensino da história das ciências, constrói um quadro de desenvolvimento da história natural entre o Renascimento e o Iluminismo (séculos XV a XVIII), demonstrando a definição de áreas temáticas, como da botânica, da zoologia e da mineralogia como “conhecimentos apoiados em práticas locais e coleções globais” (LOPES, 2005, p. 459 ). A autora destaca as especificidades das ciências naturais, demarcando a importância do local na construção dessas ciências, em contraposição às ciências experimentais com método indutivo. Assim, a construção de uma plataforma que apresente as informações resultantes das viagens nos lugares explorados contribui para a construção de conhecimentos contextualizados.

As viagens tinham uma forte centralização política na figura do Ministro da Marinha e domínios ultramarinos, que as comandava a partir da metrópole. Constatamos uma diferenciação muito acentuada entre os dois ministros: Martinho de Melo e Castro (1777-1795) e de D. Rodrigo de Souza Coutinho, (1796 a 1802). Associados aos quadros políticos, investigamos a posição dos viajantes junto às esferas de poder em cada ministério. Alguns personagens que centralizaram o planejamento das viagens no primeiro período, como Domingos Vandelli, passaram a atuar de forma intermediária na administração de D. Rodrigo. Averiguamos que o controle científico das viagens a partir da metrópole estava condicionado à proximidade afetiva dos viajantes com seus mestres, da filiação institucional dos naturalistas antes de deixarem o Reino e das relações interpessoais.

Realizamos um mapeamento das viagens dos dois ministérios para as compreendermos num quadro geral. No ministério de Martinho de Melo e Castro, analisamos minuciosamente o cotidiano dos viajantes no campo e conseguimos traçar percursos mais detalhados do deslocamento dos naturalistas na América Portuguesa, como percebemos na figura 1. Utilizando como base a mesma carta geográfica, na figura 2, apenas distribuímos os viajantes pelas regiões percorridas na América Portuguesa durante a administração de D. Rodrigo de Souza Coutinho, sem nos atermos muito aos percursos.

Figura 1
: Mapa demonstrativo dos percursos dos viajantes durante a administração de Martinho de Melo e Castro (1777-1795).

Figura 2
: Regiões percorridas pelos viajantes na administração de D. Rodrigo de Souza Coutinho (1796-1805).

No primeiro ministério, o número de naturalistas foi menor e a ênfase foi dada à Amazônia Brasileira e às regiões de mineração aurífera, como Minas Gerais e Mato Grosso. A principal viagem foi comandada por Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792), que percorreu os rios Tocantins, Amazonas, Negro, Branco, Mamoré, Guaporé até Cuiabá, e realizou intensas investigações em regiões fronteiriças, complementando as comissões demarcadoras de fronteiras. A bipolaridade administrativa entre o Estado do Grão-Pará, com sede administrativa em Belém, e o Rio de Janeiro, configura-se na complementaridade às Expedições botânicas de Frei Veloso pelas capitanias do Rio de Janeiro e de São Paulo (1782-1790). Além dessas viagens, destacamos as investigações de Joaquim Veloso de Miranda em Minas Gerais, de Baltasar da Silva Lisboa no Rio de Janeiro, de Joaquim de Amorim e Castro na Bahia e de Manoel Arruda Câmara no nordeste brasileiro.

Nas viagens do ministério de D. Rodrigo de Souza Coutinho, verificamos uma cobertura mais abrangente do território, especialmente em regiões litorâneas. Nesse momento, a busca por salitre, necessário para a fabricação de pólvora, muito utilizada no contexto da eminência das invasões napoleônicas, foi valorizada no conjunto das investigações científicas do período, o que aparece muito claramente nas instruções e nas representações resultantes desse conjunto de viagens. O clima quente e seco do nordeste brasileiro seria muito propício à exploração e produção do salitre.

Não nos cabe aqui narrar em detalhes o cotidiano das viagens, mas destacamos que as características singulares naturais e geográficas dos lugares investigados pelos naturalistas foram determinantes no reconhecimento do território e que ele pôde ser descrito em minúcias nas micronarrativas.

Dimensões biográficas dos viajantes

Em nossas pesquisas, temos informações relativas a oitenta viajantes, dentre os quais cerca de quarenta foram registrados no dicionário biobibliográfico e mais quarenta já possuem os dados coletados e sistematizados. No trabalho de sistematização, analisamos as funções políticas, científicas, técnicas, artísticas, literárias e editoriais, caracterizando os personagens como governadores, naturalistas, matemáticos, médicos, cirurgiões, religiosos, desenhistas, preparadores, militares e engenheiros. Essa categorização em funções não é rígida, especialmente porque, durante as viagens, a equipe realizava ações integradas devido às adversidades enfrentadas ao longo do percurso. Porém, a nomeação das funções nos auxilia a definir as identidades dos viajantes, aprofundando a análise sobre os saberes e práticas dos mesmos.

Para a escrita de micronarrativas, definimos dimensões biográficas relacionadas a aspectos políticos, materiais, culturais e ambientais que foram determinantes na construção das micronarrativas, configurando as singularidades de cada indivíduo envolvido na trama das viagens, assim como as relações sociais estabelecidas entre eles.

O movimento dos viajantes entre metrópole e ultramar pode ser analisado em relação ao campo e ao gabinete. Distinguimos a atuação em três momentos determinantes, que desvendam características singulares do trabalho dos viajantes: preparação das viagens em Portugal; o trabalho de campo com a realização das viagens nas colônias; e, por fim, o preparo dos materiais para registro no pós-campo. Em termos culturais, nas três fases das viagens, os trabalhos dos viajantes se materializaram em práticas, técnicas e representações, condicionadas tanto pelos referenciais teóricos utilizados no período quanto pelas inovações tecnológicas advindas das práticas.

Em todos os momentos de atuação dos viajantes, a cooperação de equipes de sujeitos com habilidades e funções variadas possibilitou o desenvolvimento de saberes múltiplos configurados nas redes de relações interpessoais, expressos tanto nas instituições às quais os viajantes se vinculavam, quanto nas características dos locais explorados em cada momento. Analisando esses fatores e especialmente a conexão entre eles, constatamos a singularidade dos indivíduos, construída através de encontros e influências mútuas entre os viajantes em movimento pelo Império Português. Analisamos as viagens no contexto do Mundo Português do final do século XVIII, mas com características naturais e culturais singulares a cada local, nas circunstâncias do desenvolvimento da história natural e da geografia. Captar características locais constitui instrumento essencial para verificarmos as inovações científicas e o desenvolvimento técnico resultante do movimento dos viajantes pelo Mundo Português, de acordo com a própria definição da história natural do período, que se constituía em práticas locais para a criação de coleções globais (LOPES, 2005LOPES, Maria Margaret. Culturas das ciências naturais. Ciência & Educação, Bauru, v. 11, n. 3, p. 457-470, 2005.).

Dentre as práticas científicas, ressaltamos o papel da experimentação e da observação direta da natureza como condicionantes do trabalho dos viajantes. Segundo Antônio da Costa Sá (1783)SÁ, José Antônio de. Compendio de observações que formão o plano da viagem política, e filosofica, que se deve fazer dentro da patria. Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa, 1783., a viagem poderia ser caracterizada como uma “exacta observação dos países”, ou seja, da observação direta da realidade materializada no exercício da viagem.

De acordo com Jardine, Secord e Spray (1996), as práticas de história natural são analisadas através da perspectiva cultural ou antropológica. Assim, os autores caracterizaram os conjuntos de práticas em: materiais, sociais, literárias, corporais e reprodutivas. Abordamos aqui as práticas materiais, ou seja, o que é relativo aos modos de fazer, manufaturar e transformar objetos – realizados principalmente pelas atividades de coletar, transportar e preparar espécimes – ou de preparar livros, ilustrações e experimentos. No conjunto das Viagens filosóficas, que também tinham objetivo de abastecer os museus de história natural com coleções botânicas, zoológicas, mineralógicas e etnográficas, as práticas de coletar, preparar e transportar espécimes foram extremamente valorizadas, como explicitado nas instruções de viagens (PATACA, 2011PATACA, Ermelinda Moutinho. Coletar, preparar, remeter, transportar práticas de história natural nas viagens filosóficas portuguesas (1777-1808). Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p.125-138, 2011.).

Em relação à agricultura, havia um destaque ao estudo e à aplicação da tecnologia agrícola, preocupação presente no discurso da maioria dos naturalistas que debateram o assunto durante a administração de Martinho de Melo e Castro. Com uma política voltada à renovação da agricultura e à introdução de novas técnicas rurais, D. Rodrigo executou uma série de ações, como a requisição aos governadores das capitanias de relatórios sobre os processos empregados no preparo e cultivo dos gêneros exportáveis e a ordem para que se coletassem plantas nativas e minerais para serem enviados ao Reino (DIAS, 1968DIAS, Maria Odília da Silva. Aspectos da ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 278: p. 105-170, 1968.).

Quanto aos transportes, D. Rodrigo recomendava que fossem criadas estradas fluviais ou terrestres, aliando a navegação para transporte de mercadorias à irrigação para o desenvolvimento da agricultura. Os estudos hidrográficos também foram essenciais para o desenvolvimento de e investigação sobre as técnicas de mineração do ouro, registrados nas representações resultantes das Viagens filosóficas. Analisamos tais representações avaliando as referências técnicas e científicas, em associação com as políticas de ocupação e exploração colonial.

O intenso esforço de mapeamento mineralógico de Portugal e suas colônias revela a dimensão imperial e os intercâmbios de conhecimento entre a Europa, África e América no período. Nas investigações, os naturalistas seguiram as instruções de viagens, compostas com instrumental técnico-científico europeu, frequentemente referindo-se à mineração subterrânea e à aplicação da química, como a utilização do processo de amálgama do ouro com mercúrio. No campo, os viajantes encontraram situações específicas, especialmente na criação de técnicas de mineração, com a utilização de complexos processos hidráulicos a céu aberto, através da tecnologia desenvolvida no Brasil, utilizando máquinas para drenagem da água. Dessa forma, a implementação de técnicas e conhecimentos construídos na Europa não se encaixaram completamente nas condições locais, gerando algumas controvérsias e a sensação de atraso. O mapeamento dos locais onde foram realizadas investigações mineralógicas e as áreas de mineração auxilia na compreenção das estratégias de desenvolvimento da mineração no período.

A constituição das equipes se relaciona à criação dos trajetos das viagens, condicionados aos produtos que deveriam ser investigados, aos fenômenos observados e ao desenvolvimento de técnicas em história natural. Em linhas gerais, as questões orientadoras para os naturalistas no campo foram: ocorrências de salitre; introdução de novos gêneros agrícolas, especialmente a cochonilha, a quina, o anil, o cacau e o café; desenvolvimento agroindustrial impulsionado pelas inovações técnicas introduzidas na agricultura; um minucioso inventário dos recursos hídricos e de possíveis canais de ligação entre as capitanias. Verificamos, circunstanciadamente, as observações pormenorizadas dos naturalistas sobre os objetos de suas investigações concretas, a cada momento, avaliando como as realidades geográficas e geológicas, ou as condições ambientais locais, determinaram as dinâmicas e resultados das viagens, que se tornam essenciais para a construção de mapeamentos temáticos.

O conjunto de práticas foi sintetizado em várias representações, como imagens, coleções e textos elaborados pelos viajantes tanto no campo quanto no gabinete, materializando deslocamentos e permanências dos viajantes pelo Mundo Português. As representações também se caracterizam como práticas literárias (JARDINE; SECORD; SPRAY, 1996), mas, devido à amplitude e à diversidade de fatores envolvendo essas práticas, analisaremo-nas como uma dimensão separada.

No momento posterior às viagens, alguns dos viajantes estiveram empenhados na publicação do material resultante, o que demandou a criação de tipografias, dentre as quais, a de maior relevância foi a Tipografia do Arco do Cego, que operou entre 1799 e 1801. Além disso, novos profissionais passam a fazer parte das articulações da rede de relações envolvidas no trabalho de viajantes: gravadores, desenhistas, fundidores envolvidos na impressão das obras de história natural. Analisamos as representações impressas e o conjunto de práticas a elas associadas, especialmente pensando na associação intrínseca entre o desenvolvimento da história natural e a imprensa.

Podemos visualizar as dimensões biográficas dos viajantes na figura 3. Para cada indivíduo, pensamos em como se dão as relações entre as dimensões, determinando as singularidades biográficas. A criação de grupos de viajantes foi feita de duas formas: pelo estabelecimento de vínculos entre os indivíduos, através de suas relações interpessoais; ou de homologias de dimensões biográficas. Com isso, é possível compreender os papéis sociais dos viajantes.

Figura 3
: Dimensões biográficas dos viajantes em movimento pelo Mundo Português

Para compreendermos aspectos singulares e sociais dos viajantes, escolhemos de início um único indivíduo para o desenvolvimento das micronarrativas. A partir desse viajante, estabelecemos sua rede de relações, procurando desvendar os vínculos com indivíduos de dimensões biográficas variadas e homologias com outros viajantes. As relações interpessoais são descritas em micronarrativas e desvendam a cooperação entre indivíduos para o complexo de atividades envolvidas no longo processo das viagens e das práticas de história natural no período.

Considerações finais

A criação de micronarrativas biográficas, divulgadas em meios virtuais em conjunto com documentos sobre as Viagens filosóficas, contribui para a compreensão do grande projeto português de elaboração de uma História natural das colônias, ao mesmo tempo em que constitui um instrumento para a divulgação das viagens para públicos não-especialistas, ampliando o debate no contexto da educação básica. As possibilidades de utilização de meios virtuais trazem novos desafios em relação à escrita biográfica e à criação de vínculos entre as representações, rompidos ao longo dos últimos dois séculos em várias tentativas de conservação dos documentos e de sua publicação. A criação de micronarrativas adveio do debate sobre a criação de uma escrita biográfica para amplo conjunto de viajantes e suas relações, demonstrando as singularidades de cada sujeito em relação aos locais por ele percorrido e suas posições físicas e simbólicas nas instituições científicas e educacionais portuguesas do final do século XVIII. As micronarrativas apresentam momentos biográficos que podem tanto ser articulados à própria dinâmica de um indivíduo, revelando suas singularidades, quanto ser conectados às micronarrativas de outros viajantes, na construção de redes de relação bastante complexas, que demonstrem o caráter colaborativo das viagens na configuração de grupos sociais.

A criação das redes de cooperação entre equipes complexas proporciona uma compreensão mais abrangente da atividade científica, rompendo com visões tradicionais das grandes invenções e descobertas de indivíduos únicos, expressas nas imagens dos grandes gênios, para a criação de um quadro coletivo que permita a visualização das articulações entre os personagens que permaneceram ocultos no ensino de ciências.

As singularidades biográficas se deram especialmente no contato com a diversidade natural, social e cultural do império português e nas minuciosas descrições dos animais, vegetais, minerais e indígenas. A construção do referencial teórico dos naturalistas em grande medida se formou e transformou durante o processo das viagens, decorrente dos múltiplos encontros com a população local e da investigação da diversidade natural nas colônias. As associações entre os indivíduos se realizaram para a resolução de problemas vivenciados pelos viajantes no cotidiano das viagens e revelam atividades singulares à realidade da América Portuguesa, nas relações entre as diversas colônias do Mundo Português. Aqui, a historicidade da ciência é demarcada nas dimensões locais, criando situações contextualizadas de ensino. Apresentar os percursos dos viajantes, destacando sua mobilidade pelo Império Português, através do georreferenciamento, com sequências de micronarrativas que ressaltem as questões locais, permite demonstrar as singularidades dos sujeitos através de uma escrita de biografemas que detalhem a percepção instantânea dos viajantes sobre o local investigado.

Numa dialética de associação entre os diversos dados e realidades vivenciadas pelo Mundo Português, partimos para um movimento de verticalidade, ou descontextualização da realidade, percebendo as dimensões globais. Esse movimento permite passar das singulares às generalidades envolvidas nas atividades científicas e no conjunto das Viagens filosóficas. No quadro coletivo e generalizante das viagens, destacam-se as práticas para preparação e conservação das coleções, minuciosamente descritas nas instruções de viagens. Além disso, a padronização da linguagem se consolidava na classificação das espécies botânicas, zoológicas e mineralógicas, assim como na nova nomenclatura da química moderna.

O desenvolvimento de práticas científicas ocorreu tanto no gabinete quanto no campo, pela mobilização de profissionais que na época já assumiam atribuições distintas nos campos da história natural, do desenho e da cartografia. Abordar as Viagens filosóficas na educação básica pode ressaltar as relações interdisciplinares na produção do conhecimento científico. A partir da elaboração deste instrumental, esperamos que professores do ensino básico, em áreas distintas que abarquem a temática brasileira em seus currículos como história, geografia, biologia, artes e português, por exemplo, possam usufruir do material analisado para inserir a história das ciências do Brasil à realidade dos alunos, aproximando-os afetivamente pelo contato com a história de seu país e pela possibilidade de contato com materiais reais, pelos hiperlinks, do período das Viagens filosóficas.

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    - Consideramos que o principal trabalho de renovação historiográfica sobre o Iluminismo luso-brasileiro seja o de Maria Odila da Silva Dias (1968)DIAS, Maria Odília da Silva. Aspectos da ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 278: p. 105-170, 1968.. A partir desse trabalho, historiadores que se ocupam do período colonial buscam compreender como a inserção das atividades científicas foram determinantes para o contexto do final do período colonial brasileiro. Destacamos aqui os trabalhos de Ronald Raminelli (2008) e de Raminelli e Bruno Silva (2014), Lorelai Kury (2004)KURY, Lorelai B. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, ciências, saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, supl. 1, p. 109-129, 2004. e Magnus R. de Mello Pereira e Ana Lúcia Rocha Barbalho da Cruz (2014). Os historiadores portugueses também buscam a aproximação com o contexto científico brasileiro, como é o caso de Miguel Faria (2001)FARIA, Miguel Figueira de. A imagem útil. José Joaquim Freire (1760-1847) desenhador topográfico e de história natural: arte, ciência e razão de estado no final do antigo regime. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2001. na história das artes, João Carlos Brigola (2003)BRIGOLA, João Carlos Pires. Colecções, gabinetes e museus em Portugal no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003., que investiga o papel dos museus, e Ângela Domingues (1991)DOMINGUES, Ângela. Viagens de exploração geográfica na Amazónia em finais do século XVIII: política, ciência e aventura. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 1991. ao examinar as relações entre a Viagem filosófica e as comissões demarcadoras de fronteiras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2014
  • Aceito
    21 Out 2014
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