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Regulação da educação superior brasileira: a Lei de Inovação Tecnológica e da Parceria Público-Privada

Resumo

O artigo problematiza as articulações entre o público e o privado, colocadas na pauta do debate sobre a concepção de educação superior a partir do marco regulatório inaugurado pela Lei de Inovação Tecnológica (Lei nº 10.973/2004) e pela Lei da Parceria Público-Privada (Lei nº 11.079/2004). Parte-se do pressuposto de que esse marco regulatório recupera as ideias-chave doPlano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (BRASIL, 1995), sobretudo a concepção de educação superior como um serviço comercializável, cuja regulação, no âmbito internacional, encontra-se noGeneral Agreement on Trade in Services (WTO, 1995) – acordo engendrado na Organização Mundial do Comércio (OMC). Os denominados serviços de educação superior terciária são vistos como um serviço não exclusivo do Estado na acepção do Plano Diretor no contexto brasileiro, diferentemente da concepção de educação superior como um direito garantido pelo ente estatal, conforme o art. 205, da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Aprofunda-se, nesse marco, uma concepção orientada pela produção da inovação tecnológica; a produtividade dos serviços da universidade passa a ser medida segundo a lógica regulada pela Lei de Inovação Tecnológica (2004a), a qual dita o estabelecimento dos contratos de parceria entre a instituição universitária e o mercado conforme as regras da Lei da Parceria Público-Privada (2004b). Tal marco regulatório traduz continuidades e aprofundamentos no tocante à construção de uma concepção de educação superior como um serviço comercial, redefinindo-se o cidadão como usuário ou consumidor desses serviços.

Educação Superior; Parceria público-privada; Inovação tecnológica; Serviço comercializável

Abstract

This article problematizes the public-private articulations included in the debate about the concept of higher education in virtue of the regulatory framework launched by the Technological Innovation Act (Act 10,973/2004) and the Public-Partnership Act (Act 11,079/2004). I start from the premise that this regulatory framework recovers key ideas from Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado [Master Plan for the Reform of the State Apparatus] (BRAZIL, 1995), particularly the concept of higher education as a tradable service, the regulation of which is established, at a global level, by the General Agreement on Trade in Services (WTO, 1995WTO. The General Agreement on Trade in Services (GATS):objectives, coverage and disciplines. 1995.) conceived at the World Trade Organization (WTO). The delivery of the so-called higher education services is not exclusively attributed to the State according to the Master Plan in the Brazilian context, which is different from the concept of higher education as a right granted by the State, according to Article 205 of the 1988 Brazilian Federal Constitution). In the current regulatory framework, a conception oriented towards the production of technological innovation is reinforced; the productivity of universities is measured according to the logic regulated by the Technological Innovation Act (2004a), which sets forth the establishment of partnership agreements between universities and the market according to the rules of the Public-Private Partnership Act (2004b). Such regulatory framework brings continuations and a deepening of the construction of a concept of higher education as a commercial service, redefining the citizen as a user or a consumer of those services.

Higher education; Public-private partnership; Technological innovation; Tradable service

Introduzindo o problema

No debate recente, sobretudo após a publicação da Lei de Inovação Tecnológica, Lei n° 10.973, de 02 de dezembro de 2004, e da Lei da Parceria Público-Privada, Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, problematiza-se, em novas bases econômicas, políticas e sociais, a constituição de um marco regulatório para a educação superior no Brasil, com a emergência de novas articulações entre o público e o privado nesse campo. Consolida-se, na pauta desse debate, uma concepção de universidade que alcança centralidade na educação superior. Diferentes protagonistas se esforçam para legitimar essa concepção de universidade, considerada necessária no contexto de maior pressão por esse nível educacional, no cenário de desenvolvimento de processos de globalização, hegemônicos e contra-hegemônicos, em suas múltiplas dimensões (SANTOS, 2002SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002.; SANTOS; CHAUÍ, 2013SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.).

Nesse âmbito, este artigo propõe-se a analisar uma concepção de universidade que tem lugar no campo da educação superior brasileira, sob o aspecto da sua regulação, tendo como referências as leis supracitadas. Concepção que traduz projetos de universidade em disputa e de suas relações com a sociedade capitalista.

Dessa forma, coloca-se a necessidade de refletir, crítica e analiticamente, sobre a concepção de universidade como “organização social”, proposta no bojo da reforma da administração pública brasileira, expressa no documento Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (1995)1 1 - O Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estadofoi elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado. Foi aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em 21 de setembro de 1995 e submetido à aprovação do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso. . A partir da Lei de Inovação e da Lei da Parceria Público-Privada, ambas de 2004, é pautado um debate sobre a concepção de universidade como Instituição Científica e Tecnológica (ICT), e a constituição da relação da parceria público-privada no âmbito da administração pública federal, debate que recupera e aprofunda questões colocadas no Plano Diretorde 1995, sobretudo a concepção de educação superior como um serviço não exclusivo de Estado, como um serviço subsidiado, diferentemente da concepção de educação como um direito garantido pelo Estado (BRASIL, 2014BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de dezembro de 1988. São Paulo: Saraiva, 2014.).

Nesse sentido, são analisadas as concepções de universidade propostas noPlano Diretor (1995), na Lei de Inovação Tecnológica (2004a) e na Lei da Parceria Público-Privada (2004b).

Universidade no Brasil: cenários

Falar em universidade na sociedade brasileira significa se referir a uma instituição tardia em comparação às instituições congêneres europeias. Por conseguinte, a análise das concepções de instituição universitária em disputa, no campo da educação superior, implica considerar essa questão como uma problemática também tratada analiticamente de forma tardia e que tem poucas recorrências na literatura acadêmica da área (BORGES, 2009BORGES, Maria Creusa de Araújo. A educação superior numa perspectiva comercial: a visão da Organização Mundial do Comércio. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Recife, v. 25, n. 1, p. 83-91, jan./abr. 2009.; BORGES, 2010BORGES, Maria Creusa de Araújo. A visão de educação superior do Banco Mundial: recomendações para a formulação de políticas educativas na América Latina. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 26, n. 2, p. 367-375, mai./ago. 2010.; BORGES, 2013BORGES, Maria Creusa de Araújo. Reforma da universidade no contexto da integração europeia: o Processo de Bolonha e seus desdobramentos.Educação & Sociedade, Campinas, v. 34, n. 122, p. 67-80, jan./mar.2013.). Nesse sentido, é necessária a consideração da universidade e de seus modelos de organização a partir de seus condicionantes políticos, econômicos e sociais, sobretudo aqueles que influenciam a configuração do marco de Reforma do Estado brasileiro, na década de noventa do século XX, cujo documento-símbolo constitui o Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (BRASIL, 1995BRASIL. Ministério da Administração e Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, DF: Mare, 1995.).

Assim, a reforma do Estado, proposta em meados dos anos 1990, no governo de Fernando Henrique Cardoso, insere-se no movimento de reformulação do papel do poder estatal no contexto de redução dos gastos públicos, recomendado por políticas de cunho neoliberal, encabeçadas por organismos multilaterais. Nesse cenário, a problemática referente à concepção de universidade proposta no contexto da reforma do Estado, no governo em tela, e a questão da crise da universidade, colocada como uma justificativa para a configuração da reforma dessa instituição, não podem ser analisadas exclusivamente como decorrentes da crise financeira do Estado e da adoção de políticas neoliberais no âmbito educacional. Tal problemática se insere no âmbito de crise da própria instituição universitária no quadro de desenvolvimento da sociedade capitalista, pautada na valorização de um tipo de conhecimento voltado à inovação tecnológica, que, assim, pressiona a universidade a se guiar por uma racionalidade externa à sua especificidade como instituição social (CHAUÍ, 1999CHAUÍ, Marilena. A atual reforma do Estado ameaça esvaziar a instituição universitária com sua lógica de mercado. Folha de São Paulo,São Paulo, 9 maio 1999. Mais!; 2001). Nessa linha de argumentação, esclarece Trindade (1999TRINDADE, Hélgio (Org.). Universidade em ruínas na república dos professores. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Rio Grande do Sul: Cipedes, 1999., p. 21):

Pela primeira vez na história, a crise da universidade é a crise da própria instituição multissecular na sociedade do conhecimento em que os mecanismos seletivos desenvolvidos, de financiamento da pesquisa científica ou social, básica ou aplicada, querem restringir a universidade à sua função tradicional de formar profissionais polivalentes para o mercado.

Alerta Santos (2004)SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI:para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004. que tem sido difícil operar uma definição de crise da universidade que não seja em termos de crise do Estado Providência e, consequentemente, de adoção de políticas neoliberais. Nesse sentido, “[...] é crucial definir e sustentar uma definição contra--hegemônica de crise” (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI:para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004., p. 63). Assim, nessa ótica, realiza-se uma definição de crise numa perspectiva multidimensional, analisada a partir de três aspectos: crise de hegemonia, de legitimidade e institucional (SANTOS, 2003SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.; 2004).

Essas crises constituem resultado do acúmulo de funções que a universidade veio a desempenhar, muitas delas contraditórias entre si. A contradição e a incompatibilidade entre as funções provocam pontos de tensão na relação entre a instituição universitária e o aparelho estatal e no interior das próprias instituições. O resultado disso, na perspectiva de Santos (2004)SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI:para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004., é a explosão da crise da universidade em três dimensões.

A crise de hegemonia é resultado de uma contradição entre a função social de uma instituição que esteve centrada, desde a Idade Média europeia, na produção de alta cultura, necessária à formação das elites, e que, agora, passa a ser pressionada a produzir padrões culturais médios, voltados à formação de mão de obra qualificada necessária ao desenvolvimento capitalista em curso. Assim, “em lugar de criar elites dirigentes, [a universidade] está destinada a adestrar mão-de-obra dócil para um mercado sempre incerto. E ela própria ainda não se sente bem treinada para isto, donde sua ‘crise’” (CHAUÍ, 2001CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora UNESP, 2001., p. 46). A crise de hegemonia é, portanto, ocasionada pelas transformações do sistema capitalista, em que a instituição universitária é desafiada a cumprir novos papéis, papéis esses que a universidade ainda não se sente preparada e, muito menos, confortável para desempenhar. Dessa forma, em face da crise de hegemonia,

[...] a universidade corre [...] o risco de perder seu monopólio tradicional nos campos do ensino e da pesquisa, diante de novas formas concorrentes geradas, especialmente, por instituições privadas empresariais, que utilizam novos recursos informacionais. (TRINDADE, 2003TRINDADE, Hélgio. O discurso da crise e a reforma universitária necessária da universidade brasileira. In: MOLLIS, Marcela (Org.). Las universidades en América Latina: reformadas o alteradas? La cosmética del poder financero. Buenos Aires: Clacso, 2003.).

A crise de legitimidade refere-se à contradição entre a hierarquização dos saberes produzidos e socializados pela universidade e as pressões pela abertura da instituição universitária para grupos sociais marginalizados do processo de educação superior. Essa crise se insere no contexto de explosão da demanda pela democratização do acesso à universidade e de implementação de políticas voltadas para o atendimento das reivindicações de igualdade de oportunidades para os grupos marginalizados da instituição universitária. Nessa perspectiva, a crise é

[...] provocada pelo fato de a universidade ter deixado de ser uma instituição consensual em face da contradição entre a hierarquização dos saberes especializados através das restrições de acesso e da credenciação das competências, por um lado, e as exigências sociais e políticas da democratização da universidade e da reivindicação da igualdade de oportunidades para os filhos das classes populares, por outro. (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI:para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004., p. 9).

A crise institucional coloca em xeque a natureza específica da universidade como instituição social. Esta passa a ser pressionada a adotar modelos de gestão exteriores à sua lógica institucional, ao seu éthos acadêmico – modelos esses importados de outras instituições, consideradas como mais eficientes – e a se submeter a critérios de produtividade de natureza empresarial. Nessa perspectiva, a lógica de organização gerencial das grandes empresas é colocada como alternativa para a reformulação da universidade em prol de sua eficiência e produtividade.

As três dimensões da crise da universidade constituem dimensões articuladas. Não se pode compreender a crise de hegemonia sem relacioná-la à crise de legitimidade, pois o questionamento da instituição universitária em relação ao cumprimento de certos papéis – não mais considerados consensuais e nem prioritários no atual estágio de desenvolvimento do sistema capitalista ao nível global –, a qual é pressionada a se responsabilizar sobretudo pela formação de mão de obra qualificada requerida pelo setor produtivo-empresarial e a produzir a investigação aplicada, é acompanhado do aumento da demanda em relação à educação superior. Tal demanda é caracterizada por grupos socioeconômicos tradicionalmente marginalizados da instituição universitária, grupos que passam a pressionar o Estado e as instituições a democratizar e ampliar o acesso à universidade.

Do mesmo modo, articula-se a crise institucional. O questionamento da lógica institucional da universidade insere-se no contexto de crise de hegemonia e de crise de legitimidade. Considera-se, pois, nesse contexto, que os novos papéis e as novas demandas colocados para a instituição universitária não podem ser cumpridos, de forma eficiente, com base na lógica acadêmica, característica da universidade como instituição social. Dessa forma, recomenda-se que a universidade adote modelos institucionais exteriores à sua lógica, advindos do setor produtivo-empresarial, e assuma a agenda de necessidades e de problemas vivenciados por esse setor.

A crise institucional tem vindo a dominar os propósitos reformistas a partir da segunda metade da década de noventa do século XX. Essa crise se insere no quadro de perda de prioridade da instituição universitária na agenda das políticas públicas estatais, resultado também, mas não exclusivamente, da adoção de um modelo de desenvolvimento econômico marcado por políticas de cunho neoliberal2 2 - Só para citar um exemplo, na reforma universitária de 1968 no Brasil, a questão da relação entre pesquisa básica e pesquisa aplicada se fez presente e, naquele contexto, não se falava em políticas neoliberais no campo da educação superior. Entretanto, não se pode esquecer que essa relação, na reforma em curso, realiza-se em outra conjuntura sócio-histórica, conjuntura essa marcada pela globalização neoliberal, na qual o discurso da “sociedade do conhecimento” tem sido adotado como justificativa para reformar a universidade a partir das necessidades e da lógica do setor produtivo-empresarial. . A partir desse contexto, o Estado passa a reduzir o seu investimento na educação superior, sobretudo na universidade, estimulando a sua oferta via setor privado-mercantil, no qual o lucro constitui o objetivo principal:

No momento [...] em que o Estado [...] decidiu reduzir o seu compromisso político com as universidades [...], convertendo esta num bem que, sendo público, não tem de ser exclusivamente assegurado pelo Estado, a universidade pública entrou automaticamente em crise institucional. [...] a crise institucional da universidade [...] foi provocada ou induzida pela perda de prioridade do bem público nas políticas públicas [...]. (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI:para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004., p. 13).

O discurso da crise da universidade consiste num discurso dominante, que integra os documentos dos organismos multilaterais e projetos dos interlocutores da reforma da educação superior no Brasil. “Universidade cativa” (LUCAS, 1987LUCAS, Philippe. L’université captive. Paris: Publisud, 1987.), “naufrágio da universidade” (FREITAG, 1996FREITAG, Michel. Le naufrage de l’université. Paris: Éditions La Découverte/M.A.U.S.S, 1996.), “universidade em ruínas” (READINGS, 1996READINGS, Bill. The university in ruins. Cambridge: Harvard University Press, 1996.) e “universidade na penumbra” (GENTILI, 2001GENTILI, Pablo (Org.). Universidades na penumbra:neoliberalismo e reestruturação universitária. São Paulo: Cortez, 2001.) constituem as metáforas que têm sido produzidas para caracterizar o estado de crise da universidade e as exigências que lhe são postas a partir do final do século XX (TRINDADE, 2003TRINDADE, Hélgio. O discurso da crise e a reforma universitária necessária da universidade brasileira. In: MOLLIS, Marcela (Org.). Las universidades en América Latina: reformadas o alteradas? La cosmética del poder financero. Buenos Aires: Clacso, 2003.). Não obstante a existência de um discurso em torno da crise da universidade, as concepções de instituição universitária e as respostas colocadas para que esta cumpra o seu papel na sociedade do conhecimento são divergentes. Configuram--se, portanto, concepções de reforma também divergentes, concepções que constituem objeto das lutas dos protagonistas no interior do campo da educação superior brasileiro.

Nesse contexto, há necessidade de discussão sobre a noção de reforma. Primeiro, como alerta Trigueiro (2003)TRIGUEIRO, Michelangelo Giotto Santoro. Reforma universitária e mudanças no ensino superior no Brasil. Iesalc; Unesco, 2003., o termoreforma tem sido bastante utilizado, no debate acadêmico e político, sem que seja objeto de uma elaboração conceitual. Nesse sentido, não é questionada a sua natureza semântica ou sua definição precisa. Segundo, a análise da reforma da educação superior em curso exige uma contextualização histórica, pois as mudanças propostas e o alcance das mesmas estão condicionadas historicamente. Terceiro, há que se considerar o nível de análise – macro ou micro e/ou a relação entre ambos – no estudo das propostas de reforma.

Poucos são os estudos que se dedicam à empreitada da elaboração conceitual da noção de reforma. Fernandes (1975FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução. São Paulo: Alfa-Omega, 1975., p. 69), no contexto de discussão da reforma universitária de 1968 no Brasil, define o termoreforma universitária como um conjunto de “medidas quantitativas e qualitativas a serem tomadas para adaptar o sistema de ensino superior às atuais exigências da situação histórico-social brasileira”. No entanto, nas décadas de sessenta e setenta do século XX, a adaptação desse nível educacional às novas exigências sociais teria que ser efetivada não por intermédio de uma reforma, mas de uma revolução (FERNANDES, 1975FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução. São Paulo: Alfa-Omega, 1975.).

Naquele contexto, as novas necessidades sociais demandavam uma educação superior modernizada e conectada ao desenvolvimento socioeconômico capitalista. A instituição universitária foi chamada a exercer um papel de destaque na promoção desse desenvolvimento, sendo, para isso, reformada, uma reforma que teve como foco a reorganização administrativa da universidade com vistas à sua modernização com eficiência e produtividade. A estrutura atual dominante de universidade brasileira é resultado desse processo de modernização.

Trazendo a discussão para a conjuntura de reforma em curso, Trigueiro (2003)TRIGUEIRO, Michelangelo Giotto Santoro. Reforma universitária e mudanças no ensino superior no Brasil. Iesalc; Unesco, 2003., ao discutir os processos de reforma em curso na América Latina, alerta que a noção de reforma remete a reestruturação. No caso do Brasil, o autor, referindo-se à juventude da instituição universitária brasileira, defende que não se pode falar em reestruturar algo que ainda nem bem se estruturou ou consolidou. Nesse sentido, esclarece que

[...] no caso preciso do ensino superior e das universidades no Brasil, o correto é dizermos que ainda estamos em processo de estruturação: em outras palavras, não tem muito sentido falar, aqui, em reformar ou (re)estruturar algo que nem bem se estabilizou, seja em razão de seu curto tempo de existência, seja em virtude das muitas medidas a que fora submetido o processo de amadurecimento interno e de consolidação de padrões institucionais. (TRIGUEIRO, 2003TRIGUEIRO, Michelangelo Giotto Santoro. Reforma universitária e mudanças no ensino superior no Brasil. Iesalc; Unesco, 2003., p. 4).

Nessa perspectiva, a análise da experiência de reforma há que considerar as especificidades históricas da realidade estudada. Assim, o surgimento tardio da universidade brasileira, o modelo dominante de formação da instituição universitária, por intermédio de aglutinação de cursos pré-existentes, e o movimento também tardio de reforma da instituição universitária no Brasil – a primeirareforma ocorre em 1968, no contexto da ditadura militar –, constituem questões a ser consideradas no processo de análise.

Na construção da concepção de reforma, são colocados alguns questionamentos. Em primeiro lugar, universidade e educação superior não significam a mesma coisa. Numa definição dominante e consensual de universidade, esta é caracterizada como uma instituição responsável pela produção de conhecimento avançado, por intermédio da pesquisa científica. No caso do Brasil, essa definição torna-se problemática pelo fato de a universidade ter-se formado predominantemente a partir da aglutinação de cursos de formação profissional pré-existentes (CUNHA, 1980CUNHA, Luiz Antônio. A universidade temporã: o ensino superior da colônia à era Vargas. Rio de Janeiro: UFC, 1980.). Fernandes (1975)FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução. São Paulo: Alfa-Omega, 1975., ao caracterizar a universidade brasileira, alerta que essa instituição se constitui como um conglomerado de escolas superiores. Dessa forma, denomina-a “universidade conglomerada”, local em que a pesquisa tem se colocado à margem das atividades universitárias. Assim, “as reformas devem partir do pressuposto que no século XXI só há universidade quando há formação graduada e pós-graduada, pesquisa e extensão. Sem qualquer destes, há ensino superior, não há universidade” (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI:para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004., p. 64-65).

Em segundo lugar, reforma da universidade e reforma da educação superior também não significam a mesma coisa, apesar de a reforma de um nível se encontrar relacionada àquela do outro nível. Nas palavras de Trigueiro (2003TRIGUEIRO, Michelangelo Giotto Santoro. Reforma universitária e mudanças no ensino superior no Brasil. Iesalc; Unesco, 2003., p. 6), “pensando em termos de conjunto, mudanças que afetam as instituições universitárias afetam também várias outras formas organizacionais, como estabelecimentos isolados, faculdades integradas [...]”. Nessa perspectiva, nas propostas de reforma, há que realçar as distinções entre universidade e educação superior e as alternativas de reforma de ambos os níveis (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI:para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004.; TRIGUEIRO, 2003TRIGUEIRO, Michelangelo Giotto Santoro. Reforma universitária e mudanças no ensino superior no Brasil. Iesalc; Unesco, 2003.).

Em terceiro lugar, na análise das propostas em curso no Brasil, é adotado como nível de análise o nível macro, em que é considerada a regulação por meio de leis, decretos e outros instrumentos normativos, bem como os condicionantes decisivos para o desenvolvimento do processo. Como enfatiza Trigueiro, essas são mudanças

[...] que atingem o aparato jurídico--normativo mais abrangente – que dá sustentação legal ao conjunto das instituições designadas por universidades (conforme definidas no Artigo 207 da Constituição Federal), em sua estrutura e em seus processos internos [...] (TRIGUEIRO, 2003TRIGUEIRO, Michelangelo Giotto Santoro. Reforma universitária e mudanças no ensino superior no Brasil. Iesalc; Unesco, 2003., p. 8).

Nesse cenário, insere-se a análise da regulação da educação superior a partir da aprovação da Lei de Inovação (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.) e da Lei da Parceria Público-Privada (BRASIL, 2004bBRASIL. Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2004b.). Parte-se do pressuposto de que há uma consolidação de uma concepção de universidade como um serviço comercializável, proposta, em 1995, noPlano Diretor e no GATS/OMC.

O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e a inserção da universidade no setor de serviços não exclusivos

Em meados da década de noventa do século XX, no governo de Fernando Henrique Cardoso, através do então Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, sob a liderança do Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, foi proposta uma reforma do aparelho estatal conforme a lógica de funcionamento dos setores fundamentais que distinguem a ação do Estado, nos quais são identificadas “[...] as estratégias específicas para cada segmento de atuação do Estado [...]” (BRASIL, 1995BRASIL. Ministério da Administração e Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, DF: Mare, 1995., p. 40), orientadas pelos princípios gerais da efetividade, eficiência e qualidade do serviço público.

Nessa perspectiva, essa reforma parte do pressuposto de que “[...] o Estado pode ser eficiente, desde que use instituições e estratégias gerenciais, e utilize organizações públicas não-estatais para executar os serviços por ele apoiados [...]” (BRESSER-PEREIRA, 1998BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma do Estado para a cidadania. São Paulo: Editora 34, 1998., p. 31).

Assim, ao lado da propriedade estatal e da propriedade privada, coloca-se a necessária atuação das organizações públicas não-estatais, simultaneamente com o Estado, configurando--se, dessa forma, uma espécie de propriedade intermediária no capitalismo contemporâneo, a propriedade pública não-estatal, recomendada para os setores de atuação do Estado em que não se exerce o poder extroverso. Este é definido como o poder do Estado “de constituir unilateralmente obrigações para terceiros, com extravasamento dos seus próprios limites” (BRASIL, 1995BRASIL. Ministério da Administração e Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, DF: Mare, 1995., p. 41), poder específico do Núcleo Estratégico e do Setor das Atividades Exclusivas do Estado. No setor de serviços não exclusivos, onde se insere a educação superior, justifica-se a presença estatal por se referir a um setor de serviços (grifo nosso) que envolve direitos fundamentais, como é o caso da educação e da saúde. Fala-se em “envolve direitos”, numa das raras passagens, no Plano Diretor, em que se remete à questão de que a educação se configura como um direito. Nesse caso, não obstante a educação se constituir como um direito a ser garantido pelo Estado (BRASIL, 2014BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de dezembro de 1988. São Paulo: Saraiva, 2014.), não se exerce o poder extroverso do ente estatal nessa área, segundo a proposta do Plano Diretor em comento.

Nessa perspectiva, é colocada uma proposta de divisão da administração pública em setores ou núcleos, conforme a possibilidade de delegação ou não das tarefas estatais. Assim, são estabelecidas as seguintes áreas de atuação: Núcleo estratégico; Setor de Atividades Exclusivas; Serviços não exclusivos; Núcleo de produção de bens e serviços para o mercado.

O Núcleo estratégico (as funções indelegáveis do Estado – Poderes Legislativo, Judiciário, Ministério Público e, no Executivo, Presidência da República, ministros e auxiliares diretos). define as políticas públicas e em que as decisões estratégicas são tomadas. O Setor de Atividades Exclusivasconstitui o setor em que são prestados os serviços que só o Estado pode executar, pois diz respeito ao exercício do poder extroverso, tais como as atividades de controle e fiscalização, bem como a cobrança de impostos. Os Serviços não exclusivos referem-se às funções em que o Estado atua juntamente com as organizações públicas não-estatais e privadas, nas áreas de educação, saúde, pesquisa científica, universidades, hospitais. O Núcleo de Produção de Bens e Serviços para o mercado é aquele em que se coloca a proposta de privatização das empresas estatais (BRASIL, 1995BRASIL. Ministério da Administração e Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, DF: Mare, 1995., p.41). A reforma da administração pública, nesse cenário, é feita, segundo a lógica da relação custo-benefício, na busca de qualidade, com menor custo, na prestação dos serviços públicos.

Para a universidade pública, foi colocada a proposta de integrá-la no setor dos serviços não exclusivos do Estado, sendo redefinida como organização social3 3 - As organizações sociais são formas jurídicas de direito privado voltadas para a prestação dos serviços públicos nas atividades integrantes do Núcleo de Serviços Não Exclusivos do Estado. Suas origens estão ligadas à reforma administrativa inglesa, adotada na gestão de Margareth Thatcher a partir de 1979. . Classificar a universidade pública como organização social significa que a instituição universitária deve buscar parcerias com o mercado para a sua sobrevivência institucional, o que inaugura relações entre universidade e mercado, e passa pela problemática da imposição de uma lógica do mercado no interior da universidade pública, uma lógica exterior a sua especificidade institucional.

No contexto de redefinição da universidade, duas concepções se colocam e constituem objeto de disputa: a universidade como instituição social e comoorganização social4 4 - A distinção entre universidade como instituição social e como organização social é realizada por Michel Freitag, no livro Le naufrage de l’ université (1996). . Nas palavras de Chauí (1999CHAUÍ, Marilena. A atual reforma do Estado ameaça esvaziar a instituição universitária com sua lógica de mercado. Folha de São Paulo,São Paulo, 9 maio 1999. Mais!, p. 3), a universidade como instituição social se constitui em:

[...] ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da ideia de autonomia do saber diante da religião e do Estado, portanto, na ideia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão.

Contrariamente, a universidade como organização social se fundamenta em critérios externos a ela. Esses critérios vão de encontro a sua especificidade como instituição social e passam a nortear as atividades desenvolvidas no interior da instituição, mas sob uma lógica diferente, uma lógica que enfatiza a produtividade marcada pelos princípios de mercado, pela relação custo-benefício.

A universidade como organização social traz em seu bojo uma concepção de universidade voltada para a prestação de serviços, definida pela lógica do mercado. Trata-se, como afirma Chauí (1999)CHAUÍ, Marilena. A atual reforma do Estado ameaça esvaziar a instituição universitária com sua lógica de mercado. Folha de São Paulo,São Paulo, 9 maio 1999. Mais!, de uma universidade operacional5 5 - Expressão de Freitag (1996). , dirigida a a definição de estratégias para a busca de receitas e parcerias com o mercado, preocupada com a consecução de meios para conseguir novas fontes de financiamento.

A universidade operacional estrutura-se por uma lógica que não se coaduna com a produção de conhecimento crítico, produção que passa a ser definida por setores externos a ela, setores esses responsáveis pela definição da agenda da universidade. A produção de conhecimentos é avaliada em relação ao tempo, ao custo e ao quanto foi produzido, não sendo objetivo primordial a criação de pensamento crítico. Contrariamente, a universidade, como instituição social, define-se como “uma instituição pública destinada à criação de conhecimentos e sua transmissão” (CHAUÍ, 2001CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora UNESP, 2001., p. 80), e não como uma prestadora de serviços guiada pelo princípio da relação custo-benefício.

A Lei de Inovação e a concepção de universidade como instituição científica e tecnológica

A Lei de Inovação Tecnológica, Lei n° 10.973, de 02 de dezembro de 2004, dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica em ambientes produtivos. Tem como objetivo favorecer o alcance da autonomia tecnológica e o desenvolvimento industrial do país, objetivo afirmado na Constituição Federal de 1988, nos art. 218 e 219 (BRASIL, 2014BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de dezembro de 1988. São Paulo: Saraiva, 2014.). Para efetivar esse objetivo, as universidades são chamadas a desempenhar novas tarefas ou as suas tarefas tradicionais, como a produção da pesquisa científica e a extensão, são reformuladas, na perspectiva de suprir as demandas de competitividade do setor produtivo.

Na lei em comento, são definidas algumas noções, tais como: Instituição Científica e Tecnológica (ICT); inovação; núcleo de inovação tecnológica; pesquisador público.

ICT consiste em “órgão ou entidade da administração pública que tenha por missão institucional, dentre outras, executar atividades de pesquisa básica ou aplicada de caráter científico ou tecnológico” (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.). Nessa perspectiva, as instituições universitárias integram a definição supra de ICT, pois à universidade cabe a produção de pesquisa, o ensino e a extensão, de forma indissociável, conforme regulado no art. 207, CF/88. É relevante enfatizar que, na década de noventa do século XX, a reforma da administração pública proposta por Bresser Pereira define a universidade como organização social, integrante do setor de serviços não exclusivos do Estado. Na Lei de Inovação Tecnológica (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.), a universidade passa a ser redefinida como ICT. Coloca-se, nessa linha de raciocínio, a seguinte questão: quais as implicações teórico-conceituais dessa redefinição, sobretudo pelo fato de a lei em exame dispor sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica em ambientes produtivos? A universidade seria, então, redefinida para se tornar um ambiente produtivo? Sob qual lógica de produtividade?

Na lei, a inovação é compreendida como “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produtos, processos ou serviços” (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.). Assim, o foco da pesquisa científica é a produção de conhecimento e de tecnologias passíveis de serem aplicadas em processos de geração de produtos ou serviços.

Por sua vez, Núcleo de Inovação Tecnológica constitui “núcleo ou órgão constituído por uma ou mais ICT com a finalidade de gerir sua política de inovação” (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.). Nesse sentido, para que as instituições de pesquisa científica e tecnológica, incluindo as universidades, desenvolvam atividades de pesquisa cujo foco resulte em inovação, faz-se necessária a criação de um núcleo de inovação tecnológica, de forma isolada ou em parceria com outras ICTs, para o desenvolvimento da política de inovação. De acordo com o art. 16, da lei supra, “a ICT deverá dispor de núcleo de inovação tecnológica, próprio ou em associação com outra ICT, com a finalidade de gerir sua política de inovação” (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.).

Pesquisador público consiste em “ocupante de cargo efetivo, cargo militar ou emprego público que realize pesquisa básica ou aplicada de caráter científico ou tecnológico” (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.). Nessa definição, cabe a atividade do docente universitário, que realiza atividade de pesquisa. Segundo Oliveira (2004)OLIVEIRA, Marcos Marques de. Ciência e tecnologia no governo Lula: a inovação do mesmo. In: NEVES, Lúcia Maria Wanderley (Org.). Reforma universitária do governo Lula: reflexões para o debate. São Paulo: Xamã, 2004., a Lei de Inovação introduz mecanismos de flexibilização da atividade dos pesquisadores das universidades federais, pois permite a sua participação em projetos do setor privado, ou mesmo a criação de suas empresas, sem a perda do vínculo com a instituição federal.

Percebe-se que a Lei de Inovação disciplina uma operação de reformulação conceitual – a universidade como ICT. São redefinidas também as atividades inerentes à instituição universitária no tocante ao processo de produção do conhecimento científico e à extensão. Esta última é repensada em termos de extensão tecnológica (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.).

A ênfase, portanto, recai na produção de pesquisa que possa resultar em novos produtos passíveis de serem explorados social e economicamente. A prioridade, assim, consiste na produção de conhecimento na universidade em termos de inovação tecnológica.

Constitui objeto de regulação da referida Lei a construção de ambientes especializados e cooperativos de inovação, por intermédio de parcerias entre Estado, empresas nacionais, ICT e organizações sem fins lucrativos. Essas parcerias têm como objetivo o desenvolvimento de pesquisas que possam resultar em produtos e processos inovadores (art. 3º).

Às ICTs é permitido o recebimento de remuneração na realização de contratos e convênios (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.). Os recursos financeiros recebidos pela ICT constituem receita própria e devem ser aplicados exclusivamente na concretização de objetivos institucionais de pesquisa, desenvolvimento e inovação (art. 18).

Contribuindo com a operacionalização da universidade como ICT, é publicada a Lei da Parceria Público-Privada, Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, que regula os processos de licitação e contratação de parceria público-privada na administração pública. Segundo redação dada no parágrafo único, do art. 1º, a referida lei “[...] se aplica aos órgãos da Administração Pública direta, aos fundos especiais, às autarquias, às fundações públicas, às empresas públicas, às sociedades de economia mista” (BRASIL, 2004bBRASIL. Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2004b.).

Em tal lei, parceria público-privada é definida como “[...] o contrato administrativo de concessão na modalidade patrocinada ou administrativa” (BRASIL, 2004bBRASIL. Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2004b.). Modalidade patrocinada consiste na concessão de serviços públicos ou de obras públicas em que existe a contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado. Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços em que a administração pública se constitui como usuária direta ou indireta, mesmo que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens (BRASIL, 2004bBRASIL. Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2004b.).

Entretanto, é vedada a realização de parceria público-privada quando: o valor do contrato for inferior a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais); envolver período de prestação de serviço menor que cinco anos; e tiver como único objetivo o fornecimento de mão-de-obra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública (BRASIL, 2004bBRASIL. Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2004b.).

A realização de contratos de parceria público-privada é norteada por algumas diretrizes, como a questão da indelegabilidade. Recupera-se, dessa forma, a discussão proposta no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995). Assim, quando a atividade se constitui em serviço não exclusivo, justifica--se a realização da parceria público-privada. Contrariamente, quando se constitui em atividade exclusiva do Estado, portanto, como um não serviço, a parceria em tela não é justificada. Como se pode notar, mais uma vez, os serviços desempenhados pela universidade não integram o rol das atividades exclusivas do Estado6 6 - O trocadilho de nomes não é aleatório. O termo atividadeé reservado para o setor exclusivo de atuação do Estado. Por sua vez, o termo serviço é utilizado para fazer menção à justificativa da delegabilidade, mesmo em se tratando de direitos humanos fundamentais. .

Na Lei da Parceria Público-Privada, é também regulada a atuação do órgão gestor das parcerias público-privadas federais, órgão esse instituído pelo Decreto nº 5.385, de 2005. Tal órgão tem sob sua responsabilidade a definição dos serviços prioritários, objeto dos contratos das parcerias, a regulação dos procedimentos para a celebração dos contratos, a autorização do processo de licitação e aprovação de seu edital e a apreciação dos relatórios de execução dos contratos (BRASIL, 2004bBRASIL. Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2004b.).

A Lei de Inovação Tecnológica e a Lei da Parceria Público-Privada, juntas, fornecem um conjunto normativo para a redefinição da universidade como ICT, no que tange à produção da pesquisa científica e da extensão tecnológica. A primeira lei o faz imprimindo uma nova ênfase ao processo de produção de conhecimentos e à extensão, na perspectiva de sua relevância econômica, traduzida na sustentabilidade financeira dos contratos de parceria. A segunda lei fornece a regulação para a celebração de contratos de parcerias entre as instituições universitárias e o setor privado.

Nesse cenário, a redefinição da universidade como organização social, integrante do setor de serviços não exclusivos do Estado, no contexto da reforma da administração pública, proposta no Plano Diretor (BRASIL, 1995BRASIL. Ministério da Administração e Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, DF: Mare, 1995.), é reiterada e até aprofundada com a Lei de Inovação Tecnológica (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.), complementada pela Lei da Parceria Público- -Privada (BRASIL, 2004bBRASIL. Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2004b.). Configura-se, dessa forma, um marco regulatório da educação superior em que as atividades desenvolvidas pela instituição universitária são concebidas como um serviço não exclusivo do Estado, atreladas às demandas do setor produtivo. Mais ainda, a própria universidade, sob a lógica mercantil, passa a ser reestruturada como um ambiente produtivo, e suas atividades, sobretudo as de pesquisa e de extensão, passam a ser redefinidas em termos de inovação tecnológica.

Considerações finais

A análise das concepções de universidade que têm lugar no marco regulatório inaugurado pelas Leis da Inovação e da Parceria Público-Privada, ambas de 2004, indica o aprofundamento de uma pauta iniciada no contexto da reforma da administração pública brasileira, cujo documento-símbolo constitui o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995).

A divisão das áreas de atuação do aparelho estatal conforme a lógica do exercício do poder extroverso do Estado, na verdade, constitui uma estratégia de redefinição de muitos direitos fundamentais, como a educação, como um serviço. No caso da educação básica, um serviço subsidiado. No caso da educação superior, é imposta a lógica da parceria público-privada e da inovação tecnológica.

Presenciam-se, dessa forma, continuidades e aprofundamentos no processo de redefinição da educação superior como um serviço a ser submetido à lógica da parceria público-privada, fundamentado na Lei da Parceria (BRASIL, 2004bBRASIL. Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2004b.), segundo os critérios de produtividade específicos da inovação, regulados na Lei de Inovação Tecnológica (BRASIL, 2004aBRASIL. Lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 3 dez. 2004a.). Operacionaliza-se, portanto, um aprofundamento de uma pauta – a educação superior como um serviço comercializável – segundo as regras do comércio internacional, além das fronteiras nacionais, conforme as recomendações da Organização Mundial do Comércio (OMC), regulamentadas noGeneral Agreement on Trade in Services (WTO, 1995WTO. The General Agreement on Trade in Services (GATS):objectives, coverage and disciplines. 1995.). O GATS (WTO, 1995WTO. The General Agreement on Trade in Services (GATS):objectives, coverage and disciplines. 1995.), nas palavras de Borges (2009BORGES, Maria Creusa de Araújo. A educação superior numa perspectiva comercial: a visão da Organização Mundial do Comércio. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Recife, v. 25, n. 1, p. 83-91, jan./abr. 2009., p. 85), constitui “um acordo que abarca a comercialização de novos setores, procurando efetivar a liberalização e a eliminação de barreiras”, sobretudo em áreas antes não reguladas no âmbito da OMC, como é o caso da educação.

Trata-se, portanto, de um marco regulatório que tem como cerne a operacionalização de um consenso ideológico em torno da constituição da educação superior como um serviço não exclusivo do Estado. Submete-se, dessa forma, a universidade aos critérios de produtividade específicos da inovação tecnológica, relegando-se a produção de conhecimento e a extensão que não se enquadram nessas regras e recomendações ao campo do improdutivo.

Referências

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  • WTO. The General Agreement on Trade in Services (GATS):objectives, coverage and disciplines. 1995.
  • 1
    - O Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estadofoi elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado. Foi aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em 21 de setembro de 1995 e submetido à aprovação do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso.
  • 2
    - Só para citar um exemplo, na reforma universitária de 1968 no Brasil, a questão da relação entre pesquisa básica e pesquisa aplicada se fez presente e, naquele contexto, não se falava em políticas neoliberais no campo da educação superior. Entretanto, não se pode esquecer que essa relação, na reforma em curso, realiza-se em outra conjuntura sócio-histórica, conjuntura essa marcada pela globalização neoliberal, na qual o discurso da “sociedade do conhecimento” tem sido adotado como justificativa para reformar a universidade a partir das necessidades e da lógica do setor produtivo-empresarial.
  • 3
    - As organizações sociais são formas jurídicas de direito privado voltadas para a prestação dos serviços públicos nas atividades integrantes do Núcleo de Serviços Não Exclusivos do Estado. Suas origens estão ligadas à reforma administrativa inglesa, adotada na gestão de Margareth Thatcher a partir de 1979.
  • 4
    - A distinção entre universidade como instituição social e como organização social é realizada por Michel Freitag, no livro Le naufrage de l’ université (1996).
  • 5
    - Expressão de Freitag (1996)FREITAG, Michel. Le naufrage de l’université. Paris: Éditions La Découverte/M.A.U.S.S, 1996..
  • 6
    - O trocadilho de nomes não é aleatório. O termo atividadeé reservado para o setor exclusivo de atuação do Estado. Por sua vez, o termo serviço é utilizado para fazer menção à justificativa da delegabilidade, mesmo em se tratando de direitos humanos fundamentais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2014
  • Aceito
    25 Nov 2014
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