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Miradas sobre educação e escola: sujeitos, espaços, tempos

Neste volume, Educação e Pesquisa apresenta ao leitor um conjunto de catorze artigos, seguidos de uma entrevista com o professor Max Butlen, da Universidade de Cergy-Pontoise, França. Sequenciados a partir de quatro blocos, eles trazem pesquisas relativas à história da educação, a um esforço em compreender os olhares juvenis sobre a escola, sobre a sociedade e sobre seu futuro, ao campo da estatística e, finalmente, às contingências contemporâneas do capitalismo e seus desdobramentos sobre a educação.

No primeiro bloco, quatro artigos me fizeram lembrar muitas vezes de uma passagem do livro As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Na obra, o viajante veneziano Marco Polo conta para Kublai Kahn, líder do império mongol para o qual trabalhou, sobre as cidades pelas quais passou, numa descrição que, muito mais do que aspectos físicos, atenta para os modos de vida dos habitantes e sua relação com os espaços. A certa altura do texto, quando o imperador lhe pergunta o motivo de tantas viagens, Polo responde: “Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá” (CALVINO, 1990, p. 28-29)1 1 - As referências bibliográficas presentes neste editorial são aquelas que usei diretamente na escrita do texto. Outros autores aparecem aqui para indicar os diálogos teóricos presentes nos artigos e, nesse caso, não estão referenciados. . De certo modo, é isso que o primeiro conjunto de artigos deste volume de Educação e Pesquisa oferece ao leitor: uma possibilidade de, por meio de aproximações e distanciamentos, reconhecer-se pela alteridade – espacial, temporal, social – em espelhos em negativo. Ao abordarem historicamente temas tais como a universidade, as diferenças entre a docência no campo e na cidade, o exercício profissional sob regimes autoritários ou democráticos, a relação entre escola e identidade e as questões de gênero e de geração, os artigos permitem que o leitor identifique mudanças espaço-temporais e, desse modo, reconheça também a historicidade de sua existência.

No primeiro desses artigos, Thiago Borges de Aguiar e Davi Costa da Silva analisam a relação entre religião, língua nacional e educação, entrelaçadas no estudo da fundação da Universidade de Praga, em 1348 e, depois, anos à frente, de sua nacionalização, mostrando o lugar de destaque daquela instituição na propagação de um sentimento de unidade tcheca. Ao ultrapassar os limites da historiografia clássica, que tradicionalmente localiza a emergência dos nacionalismos a partir da Idade Moderna, com a formação das monarquias nacionais absolutistas, “Identidade nacional na Boêmia do século XV e a formação de uma paideia tcheca” permite pensar a questão da nação para períodos mais remotos e para além da centralidade do Estado em sua articulação. Identifica, ainda, o papel central da língua na construção de um sentimento de pertença a um grupo e, nesse caso específico, além da língua, também da religião, recuperando uma longa tradição de luta pela afirmação da alteridade, que tem em John Huss um de seus mais evidentes expoentes. Língua, religião e educação, para os tchecos da Universidade de Praga, eram os eixos através dos quais uma paideia educativa poderia ser consumada. Na comprovação dessa hipótese, os autores tomam como fontes privilegiadas, para além dos documentos relativos à fundação da universidade e sua nacionalização, literatura acerca dos mitos fundadores tchecos e coletâneas de lendas, compondo um conjunto documental com peças que vão do século XII ao XIX. Nesse percurso, favorecem o reconhecimento de diferentes tradições universitárias e convidam à reflexão sobre nossa própria tradição.

O artigo seguinte – “Zeitgeist ou espírito alemão: etno-história de germanidade e instituição da escola em Santa Catarina” –, abordando período mais recente e espaço mais próximo, investiga o entrelaçamento da língua, da religião e da educação na manutenção de um espírito alemão naquele estado. Seu autor, Ademir Valdir dos Santos, explora um conjunto variado de fontes – relatos de viajantes, jornais, relatórios, textos legislativos, livros didáticos e um caderno escolar – para discutir a consolidação e a permanência, ainda hoje, de uma germanidade em Santa Catarina. Aponta também as transformações desse sentimento ao longo do tempo. Para isso, mostra como o aparecimento da escola, nessas áreas colonizadas por imigrantes alemães, esteve bastante atrelado à presença do ideário luterano e ao lugar da educação em tal ideário. Nesse processo, ressalta como a escolarização em Santa Catarina ocorreu, em grande medida, por meio de iniciativas autônomas dos próprios imigrantes, com a criação de escolas, utilização de material didático próprio, escolha de professores e práticas cotidianas que reforçavam uma identidade germânica na região. Para o autor, nem mesmo os golpes sofridos ao longo das primeiras décadas do período republicano, que culminam com o fechamento dessas escolas e a proibição do uso da língua alemã sob o governo Vargas, foram suficientes para suplantar esse Zeitgeist, ainda hoje bastante forte, ao menos em algumas localidades mais tradicionais. Desse modo, o texto amplia o conhecimento sobre a história da educação no Brasil Império e nos primeiros tempos da República, mostrando ações que, ainda que pontuais, não se enquadravam nem no âmbito das iniciativas do Estado nem na tradicional educação de matriz católica, entre nós já mais conhecida.

Terciane Ângela Luchese e Luciane Sgarbi Grazziotin voltaram-se também para comunidades marcadas pela imigração, mas o fizeram a partir das experiências docentes. Tradições, espaços e tempos, contudo, são diferentes daqueles do artigo anterior. As autoras analisam as memórias de professoras leigas que atuaram em escolas rurais isoladas, em comunidades de imigrantes italianos do Rio Grande do Sul, particularmente na região da Serra Gaúcha, entre 1930 e 1950. Para isso, consideram desde os tempos em que tais docentes foram alunas até o modo como ingressaram no magistério, mostrando uma diversidade acentuada de processos formativos, formas de ingresso no magistério e práticas cotidianas na escola. O artigo, intitulado “Memórias de docentes leigas no ensino rural da Região Colonial Italiana, Rio Grande do Sul (1930-1950)”, permite ainda reconhecer o papel determinante da comunidade na constituição da identidade docente; várias são as professoras entrevistadas que enfatizam, com alguma nostalgia, o lugar destacado que ocupavam nas comunidades rurais italianas e as muitas formas pelas quais o reconhecimento da profissão era manifestado, entre elas os presentes diversos e constantes, a participação na vida privada dos alunos e de suas famílias, as colaborações para a escola. Todavia, essas memórias exibem também a penúria enfrentada por alunos e professores, evidentes na escassez de materiais pedagógicos, na precariedade da infraestrutura da escola e no excesso de atividades aos quais os mestres eram submetidos. O recorte temporal estabelecido pelas autoras coloca em tensão o discurso da nacionalização do ensino e de sua expansão e, por outro lado, as muitas práticas escolares constituídas à margem desses intentos.

Também com base em memórias docentes, é escrito o último artigo deste bloco, que busca os entrecruzamentos entre biografias pessoais e acontecimentos sociais mais amplos. O texto “Madres sociales de la aldea: la maestra española durante el nacional-catolicismo” toma como ponto de partida as memórias de professoras da escola primária rural espanhola de duas gerações, formadas respectivamente antes e depois da Guerra Civil. Procura compreender o impacto desse acontecimento tão violento sobre a prática docente e o modo como a ideologia franquista interferiu no processo de construção da identidade docente. Mostra, ainda, os efeitos da longa ditadura franquista sobre o magistério feminino. Sua autora, Sansoles San Román Gago, da Universidad Autónoma de Madrid, toma como fontes textos de natureza autobiográfica, enfatizando recortes de gênero e de geração para compreender o lugar conferido à mulher na Espanha sob Franco. Ao longo do artigo, é possível verificar que o momento de formação docente interfere nas escolhas posteriores, por exemplo, quanto aos métodos de ensino. Todavia, em que pesem as diferenças, o texto expõe o impacto de uma longa ditadura, de forte viés religioso, na configuração de um lugar feminino marcado pela submissão.

O que pensam os alunos sobre a escola e a educação? E sobre a relação entre estas e seu futuro? O que desejam em suas trajetórias escolares e para suas vidas? Que valores compartilham? Essas perguntas orientaram a formação do segundo conjunto de artigos que apresentamos neste número. São textos que se voltam às perspectivas discentes, nem sempre adequadamente perscrutadas, quando comparadas às abordagens centradas na figura docente e em aspectos legislativos ou curriculares. Para além de suas especificidades, esses artigos ajudam na compreensão dos modos pelos quais a categoria juventude é construída historicamente e como se coloca no mundo contemporâneo, permeada por imagens contraditórias que ora apresentam os jovens como porvir esperançoso, ora os entendem como ameaça. São estudos que alertam, na contramão dessas generalizações, para a importância de abordagens não lineares e genéricas; abordagens que considerem, entre outros elementos, dimensões temporais, de gênero e de classe envolvidas nas representações de juventude (LEVI; SCHMITT, 1996LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. Introdução. In: LEVI, Giovanni, SCHMITT, Jean-Claude. História dos jovens. v. 1, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 7-17.).

No primeiro texto, “Ser alguém na vida: um estudo sobre jovens do meio rural e seus projetos de vida”, Juarez Dayrell e Maria Zenaide Alves analisam os sonhos e as expectativas de um conjunto de jovens da cidade de São Geraldo da Piedade, em Minas Gerais, atravessados pela experiência de vida em meio rural. O objetivo do artigo é propor uma tipologia dos projetos de vida, pensada a partir dos entrecruzamentos de biografias pessoais e campos de possibilidades. Atentos às falas dos jovens entrevistados, os autores advertem sobre uma certa visão reducionista que liga de modo direto o projeto de vida ao futuro profissional, dimensão que, presente sem dúvida, não exclui outras vontades e esperanças. A partir do conjunto documental levantado, o artigo propõe algumas categorias mais gerais nas quais esses projetos de vida juvenis, segundo os autores, podem ser ordenados: projetos de forma mimética, caracterizados por possuírem uma referência vista como positiva e que se quer seguir, um exemplo de alguém que, na ótica do entrevistado, pode ser tomado como modelo. A segunda categoria, a dos hipomaníacos, é caracterizada pelo excesso de otimismo e pela pouca consideração do campo de possibilidades efetivas enfrentadas pelo grupo. Além dessas duas, há: o que é definido no texto como projeto estratégico, estabelecido na intersecção entre a vontade e a possibilidade; os projetos de recusa, oriundos da negação de experiências próximas bastante conhecidas; e, por fim, o grupo dos fora de projeto, constituído por aqueles jovens que, irremediavelmente presos ao presente e suas urgências, de pouca energia dispõem para pensar no futuro. Na escrita do texto, os autores dialogam com Jean-Claude Boutinet, Nilson José Machado e Gilberto Velho, entre outros.

Nelson Pedro da Silva volta sua atenção aos valores apontados como mais relevantes por um grupo de alunos do primeiro ano de um curso de psicologia em uma universidade pública paulista. Tomando como uma de suas referências principais os trabalho de Yves de La Taille acerca do que denomina “psicologia das virtudes”, procura verificar quais são os valores que orientam a conduta dos alunos envolvidos na pesquisa, considerando esses valores a partir de três categorias mais amplas: valores públicos (valores morais ligados à dimensão do viver), valores privados (referentes à harmonia na vida e relações pessoais) e valores ligados à glória (por exemplo, beleza, força física e sucesso financeiro). O autor destaca outras pesquisas que caminharam na direção de identificar e analisar esses valores, diferenciando seu percurso, em particular, pelo modo de abordagem da questão. Neste caso, os alunos foram convidados a responder a um questionário que não inquiria sobre si e sim sobre o que julgavam mais importante em seus amigos, decisão tomada com base na premissa de que o que vemos no outro está também em nós. As conclusões apontam para a prevalência da vida privada sobre a pública, para um comportamento individualista e, segundo o autor, para uma certa “ética utilitarista”, centrada no eu e na satisfação de suas necessidades, em grande parte resultante das relações entre capitalismo e personalidade, tais como estudadas pelo historiador Richard Sennett (1988)SENNETT, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.. Para além daquilo que dá a conhecer sobre um grupo específico de futuros psicólogos, “Valores priorizados por estudantes universitários de um curso de psicologia de uma universidade pública” nos impele a pensar sobre como as mudanças no mundo do trabalho, do consumo e nas instituições interferem em nossos valores pessoais e sociais. E, num outro caminho, sobre o valor social da cooperação, fruto da insuficiência de nossos recursos individuais, mas também uma habilidade de “entender e mostrar-se receptivo ao outro para agir em conjunto” (SENNETT, 2012SENNETT, Richard. Juntos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 10).

Relações entre juventude, educação e trabalho também estão presentes em “Expectativas de jovens do ensino médio público em relação ao estudo e ao trabalho”, artigo escrito por Davisson Charles Cangassu e Daniel Arias Vasquez a partir do resultado de pesquisa com jovens estudantes do ensino médio em escolas públicas da região metropolitana de São Paulo. Os autores trabalharam com os dados obtidos em enquetes junto a mais de 1.300 estudantes, buscando conhecer e compreender como esses alunos pensam seu futuro, o lugar do estudo nesse projeto e as dificuldades a serem enfrentadas para a consolidação de seus planos. A discussão teórica está centrada em autores clássicos da filosofia e da sociologia da educação, tais como Althusser, Bourdieu, Passeron, Baudelot e Establet. Inicialmente, o texto levanta a hipótese de que, num futuro próximo, esses alunos optariam pelo trabalho em detrimento da educação, pressionados pelas necessidades econômicas mais prementes. Contudo, tabulando e lendo os dados obtidos, foi possível perceber, segundo os autores, que a maior parte dos alunos pretende dar continuidade aos estudos e deposita grande expectativa no ensino superior enquanto capaz de proporcionar-lhes um ingresso no mercado de trabalho em condições mais favoráveis. Por outro lado, apesar desse desejo e dessa intenção, tais jovens também identificam como dificuldade maior para a continuidade e sucesso nos estudos a necessidade de conciliar escola e trabalho. Desse modo, por um lado, indicam mudanças significativas no que diz respeito à possibilidade de expansão da escolaridade para as classes populares; e, por outro, salientam que esse pertencimento – e a desigualdade social que o constitui – são ainda entraves para a plena realização desses projetos juvenis.

Fechamos este bloco com o artigo de María Paula Pierella, “La autoridade de los professores universitários: un estúdio centrado em relatos de estudiantes de letras”, escrito a partir dos resultados obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas com estudantes da Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, particularmente alunos de pós-graduação, próximos da titulação, em cursos de letras. O objetivo do texto é buscar compreender o que esses estudantes entendem como autoridade docente e pensar as experiências universitárias em dimensões mais amplas que a formação stricto sensu. Analisando as respostas discentes, a autora observa um ponto comum, que se refere à crítica a uma autoridade alicerçada exclusivamente em posições institucionalmente hierarquizadas. Os alunos tampouco aceitam formas de autoridade baseadas em poder pessoal, que rechaçam veementemente. Por outro lado, sugerem uma grande variedade de motivos pelos quais reconhecem a autoridade de um professor e a tomam como legítima e, nessa gama de possibilidades, o respeito recíproco, a generosidade docente no fazer cotidiano das aulas, o domínio de um campo de conhecimento, a prática de pesquisa desinteressada, o reconhecimento acadêmico e certos traços de personalidade são destacados. O artigo nos convida, assim, a pensar tanto sobre as tradições de autoridade docente que a instituição universitária alimentou ao longo de sua história quanto sobre seus desafios contemporâneos.

Os três artigos seguintes tratam do tema da estatística e suas relações com o campo da educação. Eles ajudam a entender como a estatística foi se tornando, especialmente a partir dos anos 1930, no Brasil, um instrumento de autoridade, fundado na crença de que os dados estatísticos revelariam de modo neutro e objetivo informações capazes de orientar diferentes políticas públicas (GIL, 2012GIL, Natália de Lacerda. Campo educacional e campo estatístico: diferentes apropriações dos números do ensino. Educação e Realalidade, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 511-526, maio/ago. 2012., p. 524). A própria criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1934, reforça essa visão. Nesse percurso, as estatísticas educacionais foram pioneiras, vistas como capazes de conferir cientificidade e racionalidade às políticas públicas, especialmente a partir do governo Vargas (CALDEIRA-MACHADO; BICCAS; FARIA FILHO, 2013CALDEIRA-MACHADO, Sandra Maria; BICCAS, Maurilane de Souza; FARIA FILHO, Luciano Mendes. Estatísticas educacionais e processo de escolarização no Brasil: implicações. Cadernos de História da Educação, Uberlândia, MG, v. 12, n. 2, jul./dez. 2013.).

Nos dois primeiros textos, aparecem abordagens históricas que dialogam intensamente pela escolha do lugar a partir do qual são escritos – a Universidade de São Paulo –, seus personagens – com destaque para o professor Milton Rodrigues – e, ainda, pela historicização do processo por meio do qual a estatística foi transformada, de subsídio fundamental para a análise da educação nacional e elemento constitutivo da formação docente, em campo disciplinar autônomo. Nesse processo, revelam-se as tramas entre políticas públicas de educação, currículo e as relações de poder entre os sujeitos. Os artigos compartilham ainda de um mesmo referencial teórico, com um forte diálogo com as proposições do inglês Ivor Goodson e suas contribuições para uma história sociocultural dos currículos, evidenciadas no esforço de destrinchar os determinantes sociais que interferem na seleção dos conteúdos a ser ensinados em diferentes momentos históricos. Assim, por diferentes recortes, os dois artigos ajudam a compreender as relações entre conhecimento e poder, seja investigando sujeitos diretamente envolvidos nessas relações, seja pela análise de mudanças curriculares e contextos nos quais tais mudanças foram processadas (JAEHN; FERREIRA, 2012JAEHN, Lisete; FERREIRA, Marcia Serra. Perspectivas para uma história do currículo: as contribuições de Ivor Goodson e Thomas Popkewit. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n. 3, p. 256-272, set./dez. 2012.).

Em “Da estatística educacional para a estatística: das práticas profissionais a um campo disciplinar acadêmico”, Martha Raíssa Iane Santana da Silva e Wagner Rodrigues Valente investigam como as práticas estatísticas foram academicamente se transformando em disciplina científica, tomando como mote principal a atuação do professor Milton Rodrigues, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, entre os anos 1930 e 1960. A partir da consulta à documentação institucional, sugerem que esse professor foi responsável por um deslocamento no qual os saberes estatísticos, antes ligados e subsidiários a outros campos – educação, psicologia, sociologia –, ganharam autonomia enquanto campo de pesquisa.

A seguir, em “A disciplina estatística no curso de pedagogia da USP: uma abordagem histórica”, Viviane Lovatti Ferreira e Laurizete Ferragut Passos detêm-se sobre a trajetória da disciplina no curso de Pedagogia da Universidade de São Paulo entre 1939, data de sua criação, e a década de 1990, quando a fixação de um novo currículo a exclui. No estudo dessa trajetória, as autoras lançam mão de um conjunto diversificado de fontes, que envolve legislação educacional, currículos do curso de Pedagogia em diferentes momentos, ementas da disciplina, materiais didáticos e, ainda, as memórias de diferentes gerações de professores graduados na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, que informam sobre o lugar da estatística educacional em sua formação.

Uma questão mais contemporânea é analisada no último artigo deste bloco: o ensino de estatística e a formação do professor para esse ensino no Chile. Esse é o tema de “El conocimiento pedagógico del contenido de estadística en profesores de primaria”, escrito por Soledad Estrella, Raimundo Olfos e Arturo Mena-Lorca, da Universidade Católica de Valparaíso. Dentre outros aspectos, os autores se debruçam sobre as questões dos conteúdos estatísticos a ser ensinados, dos saberes necessários ao ensino desses conteúdos e da aprendizagem efetiva pelos alunos. Os dados da pesquisa foram obtidos por meio de um questionário respondido por 85 professores chilenos de educação primária e também por questionários destinados a seus alunos. A própria análise se vale da estatística e conclui, em concordância com outros trabalhos, que tanto são baixos os índices dos conhecimentos da estatística e das formas de ensiná-la por parte dos professores quanto são ínfimos os resultados por parte dos alunos, com grandes dificuldades no que se refere à produção e à leitura de dados estatísticos em suas variadas possibilidades de apresentação – tabelas, gráficos etc. Como proposta final, os autores destacam a importância da formação docente no sentido de operar com esse tipo de informação em três dimensões: a compreensão da formulação das variáveis em questão quando de um levantamento estatístico; a leitura dos dados obtidos; e o trabalho, mais difícil, de extrapolar a exposição do numérico e voltar-se para sua análise qualitativa.

Os três artigos finais deste número contemplam o tema das relações entre educação, trabalho no mundo contemporâneo e novas tecnologias. No primeiro, “El sistema dual de formación profesional alemán: escuela y empresa”, Jesús Alemán Falcón, da Universidade de Las Palmas de Gran Canaria, Espanha, analisa o modelo dual de formação profissional adotado em algumas regiões da Alemanha, constituído pela parceria entre escolas públicas e iniciativa privada no sentido de, a partir do nível secundário, favorecer uma formação que atenda às necessidades de mão de obra qualificada por parte das empresas do país. Segundo o autor, essa parceria é responsável pela pujança econômica alemã. Por meio da consulta de textos legislativos e de entrevistas com tutores dessa educação profissional, diretores de escola e empresários, argumenta sobre a importância da preparação prática da mão de obra por parte das empresas, seja no sentido do atendimento às demandas de mercado, seja na possibilidade de oferecer aos alunos um caminho a seguir. Nesse percurso, dá a conhecer, ainda, um pouco do sistema educativo alemão desde a escola primária.

A preocupação com a formação profissional do aluno é também o tema escolhido por Raquel de Castro Almeida e Miguel Chaves em “Empreendedorismo como escopo de diretrizes políticas da União Europeia no âmbito do ensino superior”. Segundo os autores, a tarefa de despertar nos alunos um espírito empreendedor foi tomada como diretriz de política pública em toda a Europa, promovendo alterações curriculares e administrativas nas diferentes instituições universitárias. Problematizando o conceito de empreendedorismo e trabalhando com aportes teóricos do campo da sociologia da educação, os autores analisam a emergência dessas orientações num contexto de transformação do capitalismo contemporâneo, com a intensificação de políticas econômicas marcadamente liberais e a diminuição da participação do Estado na esfera econômica, inclusive com a adoção de legislações trabalhistas mais duras e perversas para os trabalhadores. Como fontes, tomam os textos programáticos e relatórios de avaliação produzidos pela Comissão Europeia, órgão que representa os interesses dos países que pertencem à União Europeia, para pensar as relações entre a emergência dessas práticas voltadas a uma formação empreendedora no ensino superior e a dura realidade da crise do emprego e da flexibilização das relações de trabalho, interrogando sobre o sucesso, ou não, dessa iniciativa no sentido da inserção profissional dos egressos.

Michelle Prazeres estuda a relação entre educação e novas tecnologias na contemporaneidade, lançando um olhar crítico aos discursos – tão em voga – sobre a melhoria da qualidade de ensino e da qualificação profissional alicerçados na apologia do uso dos aparatos digitais. O título atribuído ao texto – “Empresa HD, aluno monitor: a Microsoft e a construção da crença nas tecnologias” – é já bastante esclarecedor quanto aos objetivos da pesquisadora, que, a partir de um corpo documental constituído por relatórios corporativos da Microsoft, procura conhecer a ação da empresa no campo da educação. O artigo mostra o lugar central da educação na plataforma expansionista da Microsoft e sua defesa da inclusão das tecnologias no que se refere a equipamentos, produtos e programas de ensino, bem como suas ações nas redes públicas e instituições privadas de ensino. Evitando tanto uma recusa absoluta das novas tecnologias quanto uma visão laudatória de sua adoção, o texto traz um olhar cuidadoso sobre as dimensões econômicas e políticas envolvidas nessa relação.

Os três últimos artigos citados apontam para aquilo que Richard Sennett (2006)SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2006. chamou de “capitalismo flexível” e suas consequências para os trabalhadores: exige que sejam ágeis, afeitos a rápidas mudanças, que pouco peçam das leis ou delas dependam; que sejam empreendedores de si mesmos, que busquem a qualificação profissional constante, que conheçam e dominem todas as novas tecnologias, na esperança – frágil – de uma empregabilidade em si mesma transitória. E, nessa direção, convocam a pensar também sobre outros modos de enfrentamento das relações entre educação e trabalho, pautados por outros compromissos, mais fraternos, solidários e de cooperação2 2 - Dentre os artigos deste número de Educação e Pesquisa ora apresentados, quatro são também publicados em inglês, na versão online do periódico. São eles: “Memórias de docentes leigas no ensino rural da Região Colonial Italiana, Rio Grande do Sul (1930-1950)”, “La autoridad de los profesores universitarios. Un estudio centrado en relatos de estudiantes de Letras”, “A disciplina Estatística no curso de pedagogia da USP: uma abordagem histórica”, “El conocimiento pedagógico del contenido de estadística en profesores de primaria”. .

Fechamos este número com a preciosa entrevista do professor francês Max Butlen, doutor em Ciências da Educação pela Sorbonne e pesquisador da Universidade de Cergy-Pontoise. Em seu diálogo com as professoras Belmira Bueno e Neide Rezende, ambas da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, revelam-se a generosidade com que partilha o conhecimento e a seriedade da pesquisa que realiza acerca dos processos contemporâneos de formação de professores e sobre a leitura e sua abertura para o novo e para o outro.

O pesquisador analisa os modelos – instâncias, instituições, práticas – adotados na França para a formação de professores da escola primária e secundária, ao mesmo tempo em que conta sua própria trajetória – desde os tempos de menino, aluno da escola pública francesa – e comenta alguns resultados do uso desses modelos; detém-se, ainda, na questão da leitura e das bibliotecas, em especial as escolares, e nos modos de avaliação das competências leitoras dos estudantes.

Sua familiaridade com o Brasil – ele foi consultor do Ministério da Educação na década de 1990 e mantém até hoje intensos contatos com diferentes universidades brasileiras – favorece abordagens comparadas, seja no que se refere à formação docente para a educação básica, seja na discussão sobre a leitura e as práticas leitoras dos alunos. Butlen rechaça a ideia, muito comum, de que os alunos são, via de regra, ineficientes e desinteressados diante da leitura, e discute mesmo a historicidade dessa prática e seus suportes. Por outro lado, reafirma a importância da escola para os alunos oriundos das classes populares e as possibilidades que ela pode oferecer em termos de ascensão social e formação cultural.

Maria Angela Borges Salvadori

Referências

  • CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • GIL, Natália de Lacerda. Campo educacional e campo estatístico: diferentes apropriações dos números do ensino. Educação e Realalidade, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 511-526, maio/ago. 2012.
  • CALDEIRA-MACHADO, Sandra Maria; BICCAS, Maurilane de Souza; FARIA FILHO, Luciano Mendes. Estatísticas educacionais e processo de escolarização no Brasil: implicações. Cadernos de História da Educação, Uberlândia, MG, v. 12, n. 2, jul./dez. 2013.
  • JAEHN, Lisete; FERREIRA, Marcia Serra. Perspectivas para uma história do currículo: as contribuições de Ivor Goodson e Thomas Popkewit. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n. 3, p. 256-272, set./dez. 2012.
  • SENNETT, Richard. Juntos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • SENNETT, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
  • SENNETT, Richard. A corrosão do caráter Rio de Janeiro: Record, 2006.
  • LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. Introdução. In: LEVI, Giovanni, SCHMITT, Jean-Claude. História dos jovens. v. 1, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 7-17.
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    - As referências bibliográficas presentes neste editorial são aquelas que usei diretamente na escrita do texto. Outros autores aparecem aqui para indicar os diálogos teóricos presentes nos artigos e, nesse caso, não estão referenciados.
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    - Dentre os artigos deste número de Educação e Pesquisa ora apresentados, quatro são também publicados em inglês, na versão online do periódico. São eles: “Memórias de docentes leigas no ensino rural da Região Colonial Italiana, Rio Grande do Sul (1930-1950)”, “La autoridad de los profesores universitarios. Un estudio centrado en relatos de estudiantes de Letras”, “A disciplina Estatística no curso de pedagogia da USP: uma abordagem histórica”, “El conocimiento pedagógico del contenido de estadística en profesores de primaria”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015
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