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A eficácia sociopedagógica da pena de privação da liberdade

Resumos

Este artigo recupera parte da pesquisa de doutoramento intitulada A eficácia sociopedagógica da pena de privação da liberdadeII, realizada no período de 1997 a 2001, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo e defendida em 21 de agosto de 2001. A pertinência de voltar a refletir sobre o tema decorre da aprovação das Diretrizes Nacionais para a Oferta da Educação em Estabelecimentos Penais, conforme Resolução no 3, de 11 de março de 2009, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e homologada pelo Ministério da Educação, por meio da Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação (CNE) em 19 de maio de 2010. Uma consequência prática dessa normativa é a elaboração do Plano Nacional de Educação no Sistema Prisional e a obrigatoriedade de que cada estado da federação tenha o seu Plano Estadual de Educação nas Prisões, de onde emerge, implícita ou explicitamente, a ideia de um projeto político pedagógico para a educação em prisões. A pesquisa foi desenvolvida em quatro unidades de privação da liberdade, no estado de São Paulo, com uma amostra que envolve adolescentes, mulheres, homens adultos no interior do estado e homens cumprindo mais de doze anos de sentença. Trata-se de uma pesquisa longitudinal, documentada da infância à fase adulta e que diagnostica o estado em que os indivíduos entraram na prisão, as transformações que sofreram e as condições objetivas que teriam ao saírem em liberdade. As conclusões da pesquisa constituem importante subsídio para o atual debate sobre a educação em prisões no Brasil.

Educação em prisões; Educação prisional; Regimes de privação da liberdade; Educação de jovens e adultos; Diretrizes Nacionais para a Educação em Estabelecimentos Penais


This article resumes part of the doctoral research titled The social pedagogical effectiveness of imprisonmentII, which was conducted from 1997 to 2001 in the Postgraduate Program in Education at Universidade de São Paulo and defended on August 21st, 2001. The pertinence of reflecting again on the subject is due to the approval of the National Guidelines for Education in Prison Facilities, Resolution 3 on March 11th, 2009, by the National Council on Criminal and Prison Policies (CNPCP), and ratified by the Ministry of Education by means of Resolution 2 of the National Council on Education (CNE) on May 19th, 2010. A practical consequence of this rule is the creation of the National Plan for Education in the Prison System, with the obligation for each state in the federation to have its own State Plan for Education in Prison Facilities, from which an idea emerges, whether implicitly or overtly, of a political-pedagogical project for education in prisons. The study was conducted in four prison units in the state of São Paulo, with a sample that included adolescents, women and adult males in the midland of the state, and with males who were serving over 12 years in prison. It was a longitudinal study which used documents from childhood to adult life and diagnosed the conditions in which individuals entered prison, the transformations they had undergone, and the objective conditions they would have by the time they are released. The study’s findings are a relevant foundation for the current debate on education in prisons in Brazil.

Education in prisons; Prison education; Imprisonment rules; Youth and adult education; National Guidelines for Education in Prison Facilities


Concepção teórica da pesquisa

A pesquisa tratada neste artigo foi realizada em continuação à dissertação de mestrado defendida em novembro de 1997 na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob o título A trajetória de institucionalização de uma geração de ex-menores.

Aquele trabalho mostrou como se configurou o processo de criminalização de parte da primeira geração de crianças do sexo masculino internadas sob responsabilidade do governo do estado de São Paulo na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), situando esse processo como resultado de uma política governamental, primeiro inspirada pelo regime militar, depois adotada por todos os estados brasileiros e até hoje mantida em alguns.

A pesquisa demonstrou que uma legislação civil – no caso, os códigos de menores de 1927 e de 1979 – permitiu a criação de instituições de confinamento, orientou o recrutamento e a formação de recursos humanos e suscitou a adoção de práticas institucionais que, sob a égide do Estado, resultou na criminalização de crianças órfãs e abandonadas colocadas sob seus cuidados, retroalimentando um sistema penitenciário que é a ponta mais visível de um aparato jurídico, policial e administrativo que opera preferencialmente junto aos segmentos mais pobres da população.

Tendo sido aconselhado pela banca examinadora a dar continuidade àquele trabalho de pesquisa em nível de doutoramento, o fio condutor da nova pesquisa foi proposto pelo orientador, ainda no período do exame de qualificação. Questionou ele se a tese da “relação de dependência orgânica do indivíduo em relação à instituição” seria aplicável a outros universos que não o de crianças órfãs e abandonadas que tivessem vivido dez anos ou mais em regime de institucionalização.

Por “relação orgânica de dependência do indivíduo para com a instituição” entendia eu as resultantes dos processos de institucionalização e de prisionização, considerando as variáveis precocidade e tempo de internação como fatores determinantes da dependência. Meus conhecimentos empíricos e a leitura de bibliografia específica indicavam que a incorporação dos códigos, símbolos e valores próprios das instituições totais (GOFFMAN, 1985GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.), somada à ausência de outros universos referenciais e à transformação da identidade para ajustar-se ao microuniverso institucional, cria no indivíduo a mesma relação umbilical que se observa em relação ao apego à mãe e à terra natal, suscitando o desenvolvimento de outros recursos adaptativos para a sobrevivência no meio institucional.

Essa passou a ser, portanto, minha hipótese preliminar de trabalho, tanto para explicar a reincidência institucional como mais importante do que a reincidência criminal na consolidação da carreira e da identidade criminosas quanto para estudar a eficácia da pena de privação da liberdade quando aplicada a indivíduos com histórico de longos períodos de institucionalização.

A trajetória de vida deste pesquisador (SILVA, 1998SILVA, Roberto da. Os filhos do governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas. São Paulo: Ática, 1998.), a militância social, o estudo, a reflexão e a posterior sistematização dessas experiências e conhecimentos contribuíram para consolidar uma visão analítica e crítica sobre os objetos de estudo aqui considerados: o sistema de internação de crianças e adolescentes e o sistema de internação de adultos e suas interfaces com as estruturas do sistema social mais amplo.

Quando, no mestrado, propus-me a investigar a trajetória de institucionalização da primeira geração de crianças – da qual fiz parte –, a intenção foi dissecar, a partir de uma experiência empírica vivida em São Paulo, as diversas dimensões e implicações da política de atendimento a crianças e adolescentes no Brasil.

Os objetivos estabelecidos para a pesquisa, a metodologia utilizada e o tratamento do tema mostraram-se coerentes, assim como o resultado final, os quais, ancorados em uma vasta bibliografia, provaram ser perfeitamente exequível a condução de um projeto de pesquisa em que o pesquisador serve-se de sua própria história de vida, de sua biografia pessoal e de sua forma particular de analisar os processos sociais para produzir conhecimentos cientificamente relevantes.

A pesquisa de doutorado foi conduzida a partir da percepção – consolidada no mestrado – de que, na formulação da política criminal e penitenciária e na administração da justiça criminal, o Estado cria as condições necessárias e favoráveis à estruturação, desenvolvimento e aperfeiçoamento de identidades e carreiras criminosas, dando outro significado à pena de privação da liberdade, diverso da recuperação, da reeducação e da ressocialização. Dentro da estrutura social brasileira, o sistema de justiça criminal é aqui entendido como composto de dois subsistemas, a saber: um subsistema de internação de menores de idade e um subsistema de internação de adultos, que inclui as mulheres.

O subsistema de internação de adultos é fundamentado no Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940) e regido pela Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de julho de 1984). O subsistema de internação de adolescentes é fundamentado e regido por uma mesma lei (8.069, de 13 de julho de 1990), que é conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente.

Em comum, ambos os sistemas são extremamente seletivos, com especificidade para as formas de julgar e de punir o negro, a mulher e o adolescente (ADORNO, 1996), e chama a atenção o fato de acentuarem a vulnerabilidade pessoal e social de seu público-alvo, o que configura tais sistemas, no conjunto das estruturas sociais, como mecanismos de rotulação e de marginalização do indivíduo.

A análise funcional, conforme conceituação dada por Merton (1970MERTON, Robert K. Sociologia, teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970., p. 85), torna-se implicitamente o referencial analítico empregado para investigar a eficácia de um dos instrumentos de controle social: a pena de privação da liberdade.

O mesmo objeto de estudos foi analisado em função dos objetivos propostos em lei, orientando-se por dois fatores que se revelaram preponderantes após a tabulação dos dados. O primeiro fator é a vulnerabilidade pessoal e social de quem é a ela submetido, sobretudo diante dos efeitos deletérios da dependência orgânica em relação à instituição. O segundo fator é o modelo de administração penitenciária, sustentada por um tripé cujos elementos estruturais são: 1) a excessiva tolerância com a violência, o que a torna o principal fator na mediação das relações entre os diversos atores do universo prisional; 2) a excessiva tolerância com a corrupção em todos os níveis, corrupção essa que afeta presos, seus familiares, técnicos, profissionais liberais, funcionários e até mesmo as famílias dos presos, e que não é só financeira, mas também subverte os valores éticos e morais, ao ponto de instalar na prisão uma contracultura que é a antítese dos valores socialmente aceitos; 3) a compra e venda de privilégios, em uma lógica de prêmio e castigo que substitui a promoção, garantia e defesa de direitos, propiciando a existência, manutenção e reprodução de uma cultura prisional que norteia a natureza das relações internas entre presos e entre presos e funcionários.

A socialização incompleta (ADORNO, 1991ADORNO, Sérgio. A experiência precoce da punição. In: MARTINS, José de Souza (Org.). O massacre dos inocentes: crianças sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1991. p. 181-208.) dos indivíduos que vão para a prisão apareceu como um dos elementos estruturais da vulnerabilidade pessoal e social que os afeta, e apontou para duas das conclusões desta pesquisa: a primeira é que o círculo das relações sociofamiliares está sendo gradativamente afetado pela pedagogia do crime, com graves repercussões na criminalização desses familiares; e a segunda é que, diferentemente de outros espaços nos quais a Educação de Jovens e Adultos foi implantada com sucesso, sem nenhuma alteração no meio, a prisão precisa ser modificada, sobretudo a cultura prisional, para tornar possível a consecução dos objetivos da educação, que são perfeitamente compatíveis com os objetivos da reabilitação penal (SILVA; MOREIRA, 2006SILVA, Roberto da; MOREIRA, Fábio Aparecido. Objetivos educacionais e objetivos da reabilitação penal: o diálogo possível. IN: Dossiê questões penitenciárias. Revista Sociologia Jurídica, n. 3. jul./dez. 2006.).

Metodologia da pesquisa

As unidades de privação da liberdade focadas nesta pesquisa foram a Penitenciária Feminina do Butantã, a Penitenciária de Franco da Rocha, a Cadeia Pública de Bragança Paulista e o Internato Encosta Norte, na época subordinado à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), hoje Fundação CASA.

A seleção dessas unidades no estado de São Paulo e a delimitação do número de entrevistados ao total de 240 sujeitos – adolescentes, mulheres, adultos no meio urbano e adultos no meio rural –, divididos em quatro grupos com 60 em cada um, teve apenas a propriedade de oferecer uma base estatística para a análise da pena de privação de liberdade aplicada a diferentes segmentos da população, e também constituir um corpus de conhecimentos que possibilitasse subsidiar ações e intervenções.

Como adverte Becker (1994BECKER, Howard S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1994., p. 157), tanto presos quanto técnicos, profissionais e administradores demonstraram receptividade às minhas abordagens e tiveram interesse em participar da pesquisa, movidos pela expectativa de que, ao pesquisar, discutir e devassar os meandros do universo das unidades de privação da liberdade, eu me posicionasse como uma espécie de porta-voz de seus anseios e angústias.

A pesquisa foi elaborada objetivando extrair uma massa muito grande de informações de uma amostra relativamente pequena e distribuída em quatro subgrupos com características muito específicas.

Em se tratando de investigação de um sistema extremamente hierarquizado, como o penitenciário, Becker (p. 162) chama a atenção para o problema da bias, sob todos os aspectos, inevitável na aplicação de uma metodologia de pesquisa para estudos sociais.

Se fosse possível proceder ao estudo da eficácia da pena de privação da liberdade limitando-me apenas às suas dimensões objetivas de intimidação, recuperação e ressocialização – sem abordar os fatores de ordem subjetiva –, como a cultura prisional, a hegemonia das ciências jurídicas sobre as demais ciências no universo penitenciário e o modelo de administração –, provavelmente eu não incorreria na bias e não estaria sujeito às interpretações divergentes, capazes de serem suscitadas por uma pesquisa qualitativa, e minhas conclusões finais responderiam às angústias de presos, técnicos, profissionais e administradores.

Deixar falar a equipe dirigente, assim como os subordinados e os presos, não assegura que uma das partes não identificará certa tendenciosidade na condução da pesquisa e nas conclusões e nem que tudo o que eles digam seja a expressão da verdade, mas há recursos metodológicos para fazer a depuração dos discursos.

Não me furtei, entretanto, a analisar o contexto sociocultural, político e administrativo em que se dá o cumprimento da pena de privação da liberdade e as condições estruturais que fundamentam sua existência, aplicação e crescente ampliação.

Se tais abordagens são capazes de suscitar incômodos aos operadores do sistema, a análise das relações sociofamiliares dos presos – vistas como elemento importante para sua reinserção social – levanta novas hipóteses, capazes de também gerar incômodos a estes, pois meu entendimento sobre a relação orgânica de dependência do indivíduo para com a instituição suscitou a percepção de uma cultura criminológica no contexto sociofamiliar.

Os questionários apresentados aos(às) presos(as) possuíam questões cujas respostas foram previamente obtidas através de consulta a documentos oficiais; as respostas às questões de caráter qualitativo foram extraídas de laudos e relatórios elaborados por técnicos e profissionais das próprias unidades de privação da liberdade e depois confrontadas com as respostas dos presos, assim como foram ouvidos todos os técnicos e profissionais responsáveis pela elaboração dos referidos laudos e relatórios.

Na pesquisa documental, a peça fundamental do prontuário carcerário foi a Folha de Antecedentes Criminais, emitida pelo Instituto Ricardo Gumbleton Daunt, da Polícia Civil do Estado de São Paulo, na qual estão detalhados todos os registros policiais da vida da pessoa.

Dela, foi possível extrair o número total de processos de cada preso, o número de processos absolvidos, as datas do primeiro, segundo e terceiro delitos, a data da condenação, as penas, os artigos infringidos, bem como o início e término da pena e eventuais incidentes de execução da pena.

Da Folha de Cálculo de Pena, inicialmente elaborada por um advogado da Fundação Manoel Pedro Pimentel (Funap) que atua na unidade, e depois homologada pela Vara das Execuções Criminais, foi possível extrair as progressões e regressões de regime, a remição de pena em função dos dias trabalhados, a remição eventualmente perdida em função de castigos disciplinares, bem como o total de dias com que o preso foi beneficiado.

O prontuário criminológico contém os relatórios dos estudos aos quais o preso foi submetido durante o período de cumprimento da pena, com informações passíveis de sistematização, como dados sobre sua vida familiar, local e condições de moradia, eventuais distúrbios de personalidade, relatórios disciplinares e avaliações quanto à evolução do preso no cumprimento da pena.

De modo geral, a estrutura dessas fontes documentais é a mesma em qualquer unidade prisional, em nada se diferenciando dos registros do Internato Encosta Norte para menores de 18 anos de idade.

A pesquisa documental foi realizada em dias úteis contínuos e em finais de semana até que se esgotassem os 60 prontuários em cada unidade. Concluídos todos os levantamentos e checadas todas as informações, foram feitas as entrevistas individuais com os(as) presos(as) e, em seguida, as entrevistas com os técnicos e profissionais de cada unidade.

Devido às necessidades de segurança interna e também à especificidade dos presos que estavam exercendo trabalho fora da prisão, foi preciso atendê-los em função de suas disponibilidades, por vezes, no próprio local de trabalho.

No Internato Encosta Norte, onde os internos não trabalhavam fora e somente alguns estudavam em escola da comunidade à noite, os adolescentes foram chamados um a um à sala da equipe técnica, onde foram por mim entrevistados.

Na Penitenciária do Butantã, entrevistei, na sala da equipe técnica, as presas que não estavam trabalhando fora, e as demais, no local de trabalho: algumas em empresas particulares e outras em órgãos públicos.

Em Franco da Rocha e Bragança Paulista, foi necessário proceder às entrevistas inclusive nos finais de semana, para atender aqueles que trabalhavam nas oficinas durante o dia e os que trabalhavam fora.

As entrevistas com os(as) presos(as) consistiram em passar a limpo (depurar) as informações criminais e disciplinares a seu respeito, registradas em documentos oficiais e colher com eles(as) informações sobre sua família e sua vida prisional.

As entrevistas com os técnicos e profissionais das unidades, segundo roteiro previamente elaborado, visou a colher deles suas posições e impressões sobre a administração prisional e sobre as técnicas de trabalho nos campos da psicologia, serviço social e psiquiatria, uma vez que estes últimos integravam a Comissão Técnica de Classificação, juntamente com o diretor geral, a quem compete atestar o grau de prontidão do preso, tanto para progredir de regime como para usufruir de benefícios e obter a liberdade definitiva.

Em cada unidade, foi entrevistado também o diretor de segurança e disciplina, visto ser ele o segundo elemento na hierarquia prisional e o diretor que mais diretamente mantém contato com os presos.

Todos os dados coletados da realidade paulista foram divididos em quatro unidades temáticas, agrupadas por afinidade, optando-se por referenciais teóricos específicos para fundamentar a argumentação e desenvolver a reflexão em torno de cada unidade. Tais unidades temáticas são: identificação civil, situação jurídica e processual, situação socio-familiar, vida prisional.

Identificação civil: submetida à análise multifatorial1 1 - Para esse procedimento, foi utulizado o software de processamento estatístico SPSS for Windows. , essa categoria reúne os dados referentes a cor, idade, local e condição de moradia, escolaridade e profissionalização ao entrar na prisão, condições de trabalho, exercício de direitos, o que fazia no momento da prisão e drogadição.

Situação jurídica e processual: reúne os dados referentes à primariedade e reincidência, progressão criminológica, tempo decorrido entre cada delito, número de processos com condenação e absolvição, sentimento de culpa, histórico infracional sem registro policial, extensão da pena e início e término da pena.

Situação sociofamiliar: analisada sob os conceitos de socialização de Peter Berger, essa categoria congrega os dados referentes ao estado conjugal, à condição do pai e da mãe, irmãos, filhos, situação do(da) companheiro(a), familiares presos, orientação e guarda dos filhos, motivação para o primeiro delito, responsabilidade do(da) companheiro(a) em relação aos filhos, com quem conviveu do nascimento ao momento da prisão, nível de conhecimento e de participação do(a) companheiro(a) e de familiares no delito e quem ficou com a guarda dos filhos.

Vida prisional: reúne os dados referentes ao tempo total passado na prisão, escolaridade e profissionalização obtidas na prisão, aos ganhos e perdas na prisão, de quem recebeu visitas, a situação em que estará sendo libertado, a forma de ocupação do tempo, testes e exames realizados, remição, constituição de pecúlio e condenação por crime cometido dentro da prisão. Essa categoria é analisada unicamente sob a ótica das “Regras mínimas para tratamento do preso no Brasil”, documento que contém as diretrizes básicas da ONU subscritas pelo governo brasileiro.

Análise e discussão dos dados da pesquisa

Por socialização completa, podemos entender o percurso traçado pelo indivíduo desde o seu nascimento até o estágio em que se dá a integração dentro do sistema de garantias de direitos, em se tratando de uma sociedade democrática.

Podemos delinear esse percurso como a passagem do indivíduo, sucessiva e concomitantemente, pela família, pela escola, pelo grupo social, pelo trabalho, pela comunidade e, finalmente, pela sociedade, através do exercício dos direitos básicos de cidadania, que consiste, pelo menos, em estar incluso no sistema de garantias de direitos individuais, sociais e políticos (MARSHALL, 1967MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.).

É importante notar que a inclusão do sujeito no sistema de garantias de direitos previdenciários, para nós, no Brasil, dá-se apenas com a inserção do indivíduo ou do provedor da família no mercado formal de trabalho, isto é, direitos como a proteção ao salário, férias, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, proteção em caso de acidente do trabalho, invalidez ou morte, só existem enquanto subordinados ao sistema de garantia dos direitos trabalhistas. Eventuais concessões feitas fora da legislação trabalhista, como políticas de renda mínima, Bolsa Família e ajuda de custo para idosos e deficientes, caracterizam-se como políticas compensatórias, exatamente pelo fato de essas pessoas estarem à margem do sistema de garantia de direitos sociais derivados do registro em carteira e das contribuições previdenciárias.

Por outro lado, a categoria família, em geral onde ocorre a socialização primária do indivíduo, pode assumir a configuração de família nuclear, de família recomposta, de família extensiva ou, ainda, de família monoparental.

O grupo social, onde, em geral, dá-se a socialização secundária, pode ser composto pelas relações de vizinhança, amigos de escola, ambiente de trabalho ou no exercício da vida social.

Da mesma forma, por comunidade subentende-se o grupo mais amplo, marcado pelas relações pessoais e de vizinhança, que se articula em torno de afinidades comuns, como questões locais do bairro, uma crença religiosa ou um tema sociocultural, esportivo ou político.

Mesmo tendo percorrido toda essa trajetória, como é de se supor no caso de jovens e adultos, o nível de coesão e a natureza das relações que se estabelecem na família, no grupo, na comunidade e na sociedade podem variar de um extremo a outro, sendo certo, entretanto, que sempre haverá um corpus de conhecimentos, composto por códigos, símbolos e valores que definem os esquemas interpretativos do indivíduo, estejam eles de acordo ou não com as convenções socialmente estabelecidas (GIDDENS, 1989GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1989.).

Tendo traçado o perfil dos subgrupos componentes da amostra, bem como o perfil de seus respectivos quadros sociofamiliares, foi necessário interpretar os dados e propor explicações para avançar no entendimento de por que a prisão e a pena de privação da liberdade são tão ineficazes para cumprir, junto a esses subgrupos – clientela preferencial do sistema penitenciário –, as suas finalidades objetivas de punição, reeducação e ressocialização.

O referencial teórico para desenvolver essa reflexão foi dado unicamente por Peter Berger e Luckmann, especialmente pelos conceitos de conhecimento, realidade, instituição e socialização primária e secundária, enunciados na obra A Construção Social da Realidade (1978), que entendi como suficientes para o propósito da pesquisa.

Mesmo sem a pretensão de discutir a questão do ponto de vista da sociologia ou da psicologia, não me passou despercebido que o grau de vulnerabilidade social dos grupos estudados constituiu uma limitação significativa à maior eficácia na aplicação da pena de privação da liberdade, assim como constituíram limitações para que pudessem ser bem-sucedidos na escola, no emprego e em outras esferas da vida social.

Berger e Luckmann sustentam que

o indivíduo não nasce membro da sociedade. Nasce com a predisposição para a sociabilidade e para tornar-se membro da sociedade. Por conseguinte, na vida de cada indivíduo existe uma sequência temporal, no curso da qual é induzido a tomar parte na dialética da sociedade. (1987, p. 174)

O ponto inicial desse processo que resulta na integração social é, ainda segundo os autores, a interiorização, a apreensão ou interpretação imediata dos acontecimentos objetivos como dotados de sentido. Somente depois de ter realizado esse grau de interiorização é que o indivíduo se torna membro da sociedade.

A formação do eu – mesmo no criminoso – deve ser compreendida em sua relação contínua com o desenvolvimento orgânico e com o processo social, em consideração à enorme plasticidade do organismo humano e às influências sociais.

Berger e Luckmann ensinam que a consciência é sempre intencional; sempre tende para ou é dirigida para objetos. Nunca podemos apreender um suposto substrato de consciência enquanto tal, mas somente a consciência de tal ou qual coisa. Essa circunstância faz com que a realidade do cotidiano seja a realidade por excelência.

Também ensinam que, mesmo concebendo o mundo como dotado de múltiplas realidades, a consciência é capaz de transitar pelas diferentes realidades – cognitiva, afetiva, espiritual etc. –, mas é a realidade do cotidiano que se impõe de maneira mais contundente, exigindo do indivíduo as respostas atitudinais e comportamentais adequadas ao meio em que está inserido.

Sendo a realidade cotidiana estruturada espacial e temporalmente, facetas de diferentes realidades interagem entre si, criando o que Berger e Luckmann chamam zona de manipulação, onde os dados da realidade de um interagem com os dados da realidade do outro.

Para os mesmos autores, a realidade social é aprendida em um contínuo de tipificações, que vão se tornando progressivamente anônimas à medida que se distanciam do “aqui e agora” da situação face a face.

Sendo a vida cotidiana a realidade por excelência, nenhuma outra forma de relacionamento social pode reproduzir a plenitude de sintomas da subjetividade presentes na situação face a face, mas a realidade da vida cotidiana contém esquemas tipificadores em termos dos quais os outros são apreendidos, sendo estabelecidos os modos como lidamos com eles nos encontros face a face (1987, p. 48).

A socialização é efetivada segundo instituições preexistentes que se ancoram em esquemas interpretativos capazes de atribuir papéis aos atores, em função da divisão social do trabalho. As instituições, sejam elas primárias, secundárias ou terciárias, possuem corpus de conhecimentos que são transmitidos como receitas, fornecendo as regras de conduta institucionalmente mais adequadas.

O processo de socialização é, antes de tudo, um processo de institucionalização, e as instituições implicam historicidade e controle. Pelo simples fato de existirem, as instituições controlam a conduta humana, estabelecendo padrões previamente definidos de conduta que a canalizam para uma direção, em oposição a muitas outras direções, teoricamente possíveis.

Berger e Luckmann intitulam controle social a soma de todos esses mecanismos derivados da institucionalização, inerentes à própria instituição e presentes em todas elas, qualquer que seja o seu nível de complexidade.

O processo de institucionalização é, por conseguinte, um processo de redução do indivíduo aos mecanismos de controle social. Berger e Luckamann advertem que novos mecanismos de controle somente se fazem necessários quando o processo de institucionalização não foi bem-sucedido. Talvez essa explicação possa nos ajudar a entender por que, preferencialmente, os mecanismos de controle social mais rígidos e mais suscetíveis de serem usados arbitrariamente e de ensejarem injustiças – como a lei penal, a polícia e a prisão – são direcionados para as chamadas classes pobres.

O perfil dos grupos sociais a quem se atribui comportamentos desviantes – prostitutas, viciados, traficantes de drogas, alcoólatras, delinquentes juvenis e condenados – sempre aponta para a desestruturação familiar como elemento intrínseco ao desvio social. As relações sociais são, por sua vez, e sobretudo, relações entre instituições. É o fato de as instituições possuírem “zonas de manipulação” (BERGER; LUCKMANN, 1978BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1987., p. 39) comuns que possibilita que seus esquemas interpretativos básicos amparem o indivíduo quando ele precisa transitar por diferentes instituições, sem grandes choques.

A eficácia coercitiva dos processos de institucionalização – no sentido gofmaniano – e de prisionização, por exemplo, decorre exatamente da baixíssima tolerância do universo institucional à violação de suas regras, que são extensivas às dimensões exteriores da vida do indivíduo, alcançando sua família e todos que interagem com ele em função de seu status institucional.

Os esquemas interpretativos apreendidos e incorporados durante a socialização primária estabelecem como que indicadores para as relações do indivíduo com a igreja, a escola, o trabalho, o namoro e o casamento etc.

Por socialização primária, Berger e Luckmann entendem a socialização efetivada no seio familiar durante a primeira infância (1978, p. 182). A socialização primária é muito mais do que aprendizado cognitivo e não é unilateral nem se dá de forma mecanicista. Ela implica uma sequência de aprendizado que é socialmente definida, começando com a apropriação do universo simbólico do pai, da mãe e dos irmãos mais velhos. Somente graves choques no curso de uma biografia individual poderiam desintegrar a realidade apreendida durante a primeira infância, visto ela impregnar a emotividade, o significado e a capacidade de elaboração da criança.

A socialização secundária, também ensinam os mesmos autores, dá-se sobre o pressuposto de que a socialização primária a precede, pois abrange dimensões de uma personalidade já delineada e de um mundo já interiorizado. A realidade enunciada na socialização secundária não surge do nada, e muitas de suas dificuldades consistem exatamente na descoberta de dimensões de outros mundos, que não correspondem necessariamente – e por vezes se contrapõem – ao mundo interiorizado a partir das ações socializadoras do pai, da mãe e dos irmãos mais velhos.

Os esquemas tipificadores atribuídos individualmente na relação face a face do sujeito com a polícia, com o promotor de justiça, com o juiz, com o agente penitenciário, com o diretor da prisão e com o outro condenado são plenos de significados para um e outro individualmente, mas a coletivização desses esquemas a todos os que habitam a mesma zona de manipulação atribui as mesmas características a todos indistintamente, da mesma forma como falamos em espírito brasileiro, modo de vida americano ou estilo inglês.

Berger e Luckmann concluem que uma estrutura social é a soma das tipificações e dos padrões recorrentes de interação estabelecidos por meio delas e que a estrutura social é um elemento essencial da vida cotidiana. Explanando como se dá a interiorização da realidade do cotidiano, de acordo com a estrutura social onde se está inserido, eles afirmam que a socialização pode ser melhor sucedida em núcleos com divisões simplificadas e onde a distribuição do conhecimento seja mínima, para concluir, por outro lado, que a socialização mal-sucedida acontece como resultado de acidentes biográficos, biológicos ou sociais.

O que se ressalta nesta amostra pesquisada são os acidentes sociofamiliares decorrentes da ausência do pai, do abandono da mãe, de mudanças de cidades, de prisão de um dos genitores, que, por sua vez, são entendidos como acontecimentos corriqueiros dentro da realidade social brasileira.

Sob essa perspectiva, analisados os dados referentes à vivência dos subgrupos nas faixas dos 0 aos 7 anos de idade, dos 7 aos 14 e dos 14 aos 18 anos, eles apontam para uma “socialização incompleta” (ADORNO, 1991ADORNO, Sérgio. A experiência precoce da punição. In: MARTINS, José de Souza (Org.). O massacre dos inocentes: crianças sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1991. p. 181-208.), corroborando diversas outras pesquisas que identificam os comportamentos delitivos como predominantes em pessoas que enfrentaram acidentes sociofamiliares.

Nossos dados indicam que, dos 240 sujeitos da amostra, 165 (68,75%) vivenciaram a fase dos 0 aos 7 anos com a família composta por pai e mãe. Desse mesmo subgrupo, 144 (60%) estavam com pai e mãe na fase dos 7 aos 14 anos de idade, 104 (43,33%) continuaram na fase dos 14 aos 18 anos e apenas 69 (25%) ainda moravam com pai e mãe no momento em que foram presos pela primeira vez.

Com o mesmo raciocínio, 39 (16,5%) indivíduos da amostra de 240 viveram a fase dos 0 aos 7 anos apenas com a mãe. Na fase dos 7 aos 14 anos, 48 (48%) estavam apenas com a mãe e, dos 14 aos 18 anos, 37 (15,41%) deles, sendo que, no momento da primeira prisão, 30 (12%) deles ainda moravam com a mãe, indicando que a mãe, para este subgrupo, foi um referencial permanente e constante e, por vezes, até um recurso ao qual recorrer, como indica o repentino aumento na faixa dos 14 aos 18 anos.

Curiosamente, é na fase dos 14 aos 18 anos que a rua constituiu a referência básica para 22 (9,16%) desses indivíduos. Dos 0 aos 7 anos, apenas 3 (1,25%) estavam na rua; dos 7 aos 14 anos, o número se eleva para 11 (4,58%), chegando ao ápice na fase inicialmente citada e depois decrescendo para 19 (7,91%) ainda na rua, no momento de sua primeira prisão.

Também é a partir dos 14 anos que um(a) companheiro(a) torna-se a principal referência para 15 (6,25%) desses indivíduos, subindo a 59 (24,58%) os indivíduos que conviviam maritalmente com alguém no momento da primeira prisão, o que indica que, a partir dos 14 anos, esses adolescentes começaram a procurar soluções e encaminhamentos para suas vidas, restando a rua para aqueles que não conseguiram desenvolver essas competências.

Deve-se pelo menos considerar como relevante que 75 (31,25%) dos 240 entrevistados tiveram sua socialização primária em famílias monoparentais, sendo que geralmente a mãe estava presente e o pai, ausente.

Para a socialização secundária – subentendendo-se dos 7 aos 14 anos –, os mesmos 75 indicados acima, e mais um, tiveram como referência apenas o pai ou a mãe para se contrapor aos efeitos das outras instâncias socializadoras, como a escola, o grupo social e as relações de vizinhança. Deve-se levar em consideração a própria vulnerabilidade social desse pai ou da mãe, provavelmente de menor escolaridade que os próprios filhos.

Ainda do total de 240 entrevistados, 28 (11,6%) indivíduos tiveram a socialização primária e secundária em instituições públicas ou particulares – em geral, abrigos vinculados ao sistema Febem – sendo que, no momento da primeira prisão, apenas um deles lá continuava vivendo. Estes são exatamente os que apresentam maior período de institucionalização, quando somadas as fases da menoridade e da maioridade, e são também os que se tornaram reincidentes e multireincidentes no menor período de tempo, o que corrobora a hipótese inicial da dependência orgânica em relação à instituição.

Quando se compara o motivo para cometimento do primeiro delito e se constata que 46 (19,16%) do total de indivíduos reincidiram e 82 (34,16%) destes multireincidiram, fica reforçada a percepção de que, para estes, a primeira finalidade objetiva da pena – a intimidação pela punição – não surtiu o seu desejado efeito, nem eventuais reprimendas familiares foram suficientemente contundentes para dissuadi-los das práticas delitivas ou eles efetivamente não tinham uma estrutura sociofamiliar ou comunitária de apoio para não reincidir.

Conclui-se que a finalidade objetiva da pena também não foi suficientemente eficaz para a reeducação no seu aspecto formal. De 60 adolescentes, 20 conseguiram acrescentar um ou mais anos de escolarização à sua formação escolar durante o período de internação. Dentre as 60 mulheres, apenas 2. Em Bragança Paulista, 47 dentre os 60, e em Franco da Rocha, 7 dos 60 presos enriqueceram sua biografia com acréscimo de escolaridade.

Franco da Rocha foi o contraponto para Bragança Paulista. Na primeira unidade prisional, 32 dos 60 presos estavam cumprindo mais de 10 anos de sentença e 28 estavam reclusos há mais de 20 anos, sendo que apenas 7 melhoraram sua formação, quando se compara a escolaridade inicial e a escolaridade final. Em Franco da Rocha, 10 presos declararam ter adquirido, na prisão, o gosto pelos estudos.

Em Bragança Paulista, apenas 12 dos 60 presos estavam reclusos há mais de 5 anos. Do total de 60 presos, a pesquisa identifica que 47 deles melhoraram sua formação, também se comparando escolaridade inicial e final e que 18 adquiriram, na prisão, o gosto pelos estudos.

Dentre as 60 mulheres – 34 estavam presas há menos de 5 anos e 26 reclusas entre 5 e 20 anos –, apenas 2 delas tiveram acréscimo de escolaridade, indicando um quadro contrário ao da sociedade em geral, onde não somente é maior a escolaridade feminina, mas também elas compõem a maioria nos bancos escolares.

Ainda no âmbito da educação formal, a profissionalização, considerada em sua finalidade terapêutica, mas fundamentalmente em sua função de dotar a pessoa dos meios necessários para seu sustento e de sua família de modo lícito, revela-se insuficiente para cumprir a finalidade objetiva estabelecida para a pena de privação da liberdade, se considerarmos não o número de certificados profissionais expedidos, mas, sim, a remuneração efetivamente paga, a reparação dos danos à vítima efetivamente realizada, o custeio da própria manutenção, o auxílio efetivamente prestado à família e a poupança realizada com o trabalho durante o período de aprisionamento.

No momento do aprisionamento, 38 dos 180 adultos estavam trabalhando com remuneração. Porém, nenhum deles destinou qualquer percentual de sua remuneração para a reparação de danos às suas vítimas nem apresentava saldo de pecúlio acima de R$ 1,00 no momento da entrevista. Mas todos contribuíram com percentual fixo retido pela administração penitenciária para o custeio de sua própria manutenção na prisão, sendo de R$ 38,00 o desconto em Franco da Rocha e de R$ 35,00 no Butantã.

Tanto entre as mulheres quanto entre os homens, apenas alguns raros eleitos contavam com a possibilidade de contratação, após a concessão da liberdade condicional, pela empresa onde prestavam serviços. Cento e setenta e um deles contavam com promessas de emprego ao sair, mas 105 dos adultos admitiram que sairiam da prisão sem nada, ainda que 179 deles tenham afirmado contar com residência ao sair.

Em termos de apoio sociocomunitário e familiar, 175 deles declararam poder contar com o apoio da família e 46, com apoio de alguma entidade, ainda que nenhum destes últimos tenha tido qualquer participação em atividades comunitárias ou associativas quando em liberdade.

O benefício mais visível do trabalho efetuado enquanto presidiários(as) refere-se à terapia carcerária propriamente dita – remição de pena –, com a ressalva de que o trabalho fora oferecido apenas quando progrediram do regime fechado para o regime semiaberto.

A condição especial em que é oferecido emprego ao preso não o contempla com nenhum dos benefícios da legislação trabalhista, limitando-se o empregador a fornecer uma carta de referência, quando solicitada, atestando o bom comportamento do preso trabalhador.

O saldo do aprendizado efetivado intramuros foi descrito por 178 entrevistados como mais experiência de vida, qualquer que seja o sentido dessa experiência, contrapondo-se, entretanto, com os 112 que indicaram ter perdido tudo em função do aprisionamento, dos 90 que se viciaram em drogas dentro da prisão e dos 36 que adquiriram alguma doença grave ou infectocontagiosa.

Os dados referentes ao nível de envolvimento de membros da mesma família nas atividades delitivas do sujeito preso, ainda que em outra faixa etária, também corroboram essa assertiva, apontando para um fato mais grave, que é a relação de cumplicidade tácita que se estabelece no seio familiar em relação a essas práticas e que preferimos denominar “solidariedade orgânica”, nos termos em que Durkhein a define.

Dada a presunção legal de que o desconhecimento da lei não exime o indivíduo de suas responsabilidades, suscita preocupações constatar que as famílias de 117 presos sabiam, bem ou mal, de suas atividades delituosas, que 56 dos cônjuges participaram direta ou indiretamente do crime e que 216 (90%) têm ou tiveram filho, cônjuge ou algum parente preso.

A configuração da amostra permite que falemos também da socialização terciária, da qual Berger e Luckmann não tratam diretamente, mas que permite subentender e relembrar Goffman (1985)GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985., quando se refere à força coercitiva da realidade objetiva do programa institucional que atua uniformemente sobre todos os indivíduos, dando os contornos da identidade institucional.

Com esse entendimento, a socialização terciária pode circunscrever o processo de socialização a que foi submetido o indivíduo durante o período de aprisionamento, enquanto submetido à pena de privação da liberdade.

O micromundo das prisões possui um corpus de conhecimentos que é do domínio de todos os seus integrantes, apreendido como verdade objetiva durante o curso da socialização e interiorizado como realidade objetiva.

No universo prisional, onde os esquemas tipificadores – historicamente construídos – são partes constituintes e inseparáveis da realidade cotidiana, a contracultura prisional se sobrepõe aos esquemas tipificadores atribuídos por outras instâncias socializadoras, como família, escola, igreja e trabalho, passando a ditar o teor das respostas objetivas que o indivíduo dá aos imperativos do dia a dia na prisão.

Nesse contexto de supremacia dos esquemas tipificadores impostos pela contracultura prisional, que redundam em fracasso nos esforços para erradicação dos comportamentos delitivos, é irrelevante suscitarmos os conflitos de identidades, na medida em que as respostas à realidade do cotidiano prisional se regem pelo papel efetivamente atribuído ao indivíduo e pelo que a massa carcerária pensa ele ser e não pela imagem que ele subjetivamente faz de si mesmo.

Esse corpus de conhecimentos, que insisto em chamar de pedagogia do crime, deixa de ser aquisição individual e passa a ser patrimônio coletivo, compartilhado por ascendentes, descendentes e colaterais. A objetivação desse conhecimento ocorre quando é transmitido de geração a geração ou por meio do recrutamento e do aliciamento de novos indivíduos nos círculos ampliados das relações sociais.

A configuração da nossa amostra indica que os elementos básicos da cultura prisional e de seu correlato – o submundo do crime – efetivaram a transmissão interpessoal e intergeracional, assegurando que, para cada indivíduo reabilitado, incapacitado ou morto na prisão, outros o sucederão.

Mesmo diante da contundência dos dados acima retratados, resisto ainda em admitir o conceito de família criminosa ou de trabalhar sob a perspectiva da genealogia de delinquentes. Mas já temos o instrumental teórico-metodológico que permite mapear o desenvolvimento da pedagogia do crime na esfera sociofamiliar, assim como mapear essa pedagogia dentro das instituições totais (SILVA, 1998SILVA, Roberto da. Os filhos do governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas. São Paulo: Ática, 1998.).

É forçoso insistirmos nessa linha de argumentação porque partimos do pressuposto de que, no contexto da realidade brasileira e para a maioria dos presos no Brasil, o comportamento delitivo não decorre de anormalidades individuais nem de patologias hereditárias, e sim das deficiências ocorridas na socialização primária e secundária, sendo a introjeção da identidade criminosa uma especificidade da socialização terciária, subordinada toda ela à pedagogia do crime reinante no sistema penitenciário.

No Brasil, o crescimento vertiginoso dos índices de criminalidade juvenil, feminina e adulta, particularmente em relação às drogas, furtos e roubos, não responde ao aumento do stress pessoal, do esgotamento das potencialidades individuais ou da incapacidade das pessoas de lidar com situações conflituosas, e sim às condições de vida familiar, da escolarização, do acesso ao mercado de trabalho e à carência de infraestrutura urbana e comunitária que permita minimizar as tensões e os conflitos sociais.

Se, no mestrado, tratamos do processo de criminalização de crianças órfãs e abandonadas pela ação direta do Estado enquanto seu tutor, agora estamos sinalizando para um amplo processo de criminalização de vastos segmentos da população que têm a pobreza e a miséria como principal referencial para sua socialização.

Em termos de política penitenciária, nenhuma terapia penal daria conta de intimidar, reeducar e ressocializar indivíduos com tão grandes deficiências de socialização enquanto pessoas livres. A apontada ineficácia da pena de privação da liberdade soa como sucedâneo da ineficácia das políticas industrial, fundiária, habitacional, educacional e social, sendo o sistema penitenciário a última instância por meio da qual se tenta corrigir essas deficiências estruturais.

Analisados os dados referentes a uma amostra em que as informações foram objetivamente colhidas no sentido de avaliar mudanças qualitativas em função do aprisionamento, a conclusão é pela ineficácia da pena de privação da liberdade enquanto remédio preferencial para a prevenção, controle ou repressão à criminalidade, com a agravante do envolvimento do círculo familiar no circuito da cultura criminológica.

Esse, entretanto, é um diagnóstico que se aplica apenas a segmentos com o elevado grau de vulnerabilidade social que aqui constatamos? Uma amostra que se revelasse menos vulnerável, com mais escolaridade, com maior capacidade de inserção profissional no mercado de trabalho, com maior aparato conceitual para resistir aos imperativos da prisionização e da institucionalização, enfim, com maior capacidade de barganha e de mobilidade no universo prisional, teria reagido de maneira diferente à pena de privação da liberdade?

Minha percepção é de que não são somente a pena em si ou o sistema penitenciário que são ineficientes. Essa ineficiência é potencializada quando o alvo preferencial da aplicação da pena e a clientela preferencial das prisões são exatamente os segmentos mais pobres e mais vulneráveis da população.

Este estudo me permite afirmar que a punição, a reeducação e a ressocialização, nos termos propostos pela legislação, como finalidades objetivas para a pena de privação de liberdade, não podem ser alcançadas em qualquer sistema penitenciário que tenha como clientela preferencial segmentos tão vulnerabilizados nos atributos básicos e necessários para a vida em sociedade, sobretudo em grandes centros urbanos altamente industrializados.

Sabemos que são poucas as perspectivas de que a perversidade dessa lógica seja modificada. Portanto, enquanto a prisão for o lugar predestinado e preferencial para o pobre ter acesso e direito a algumas garantias constitucionais e humanitárias, devemos insistir que a unidade prisional seja efetivamente transformada em unidade de reeducação, de ressocialização e de reinserção do cidadão na sociedade livre, pois punição por punição, a população pobre já a recebe na escola e no hospital públicos, no transporte coletivo, em casa e nas urnas.

Conclusão

Quando analisamos o tempo de duração da pena dos 240 indivíduos da amostra, a pesquisa indica que cerca de 19% deles tiveram ou terão o vencimento de suas penas depois do ano de 2010 até 2076, portanto, já na vigência dos marcos normativos aprovados para a educação em estabelecimentos penais.

Essa população, que não exerceu o direito constitucional à educação na idade escolar, identificada no final do século XX, em 2012, soma-se a mais de 550.000 outros presos cujo perfil aponta para uma população: predominantemente jovem (mais de 70% com idades entre 18 e 34 anos); analfabeta (5%), apenas alfabetizada (11,34%), sem ter completado o ensino fundamental de nove anos (46,42%), sem ter completado o ensino médio (17,32%); negra e parda (mais de 60% afrobrasileiros); com mais de 70% em total ociosidade e apenas cerca de 10% estudando regularmente.2 2 - Fonte: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen). Formulário Categoria e Indicadores Preenchidos. Todas UFs. Referência:12/2011.

Agrava sobremaneira a situação a forte presença, em todo o país, de grupos organizados que exercem controle quase absoluto sobre a rotina prisional e a vida dos presos, proporcionando significativa expansão do que antes denominei pedagogia do crime (DIAS, 2011DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. 2011. Tese (Doutorado em sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-13062012-164151/>. Acesso em: 2014-05-08.
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).

Como a mais nova fronteira da educação, a educação prisional possibilita a salutar complementaridade entre a legislação educacional e a legislação penal – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e Lei de Execução Penal –, favorece a articulação entre políticas setoriais – educação, trabalho, saúde, segurança pública e serviço social –, potencializa a sinergia entre duas ciências – pedagogia e direito penitenciário – e mobiliza distintos campos profissionais – professores e agentes penitenciários – em torno de objetivos comuns.

A criativa exploração dos dispositivos da LDB constitui a prisão como campo promissor para a experimentação de inovações pedagógicas que não foram implementadas na rede regular de ensino, não obstante serem autorizadas pela lei. A mesma liberalidade apresentada pela legislação de ensino não encontra correspondência nem na legislação penal nem na execução penal, que, não obstante, devem sofrer significativos impactos da educação, especialmente quanto aos regimentos disciplinares e à atuação do Conselho da Comunidade e do Patronato.

Dentre essas inovações, merece destaque a relação educação/trabalho, a qualificação técnica e profissional do preso para trabalhar ainda durante o cumprimento da pena e a integração deste à proposta de reabilitação penal dentro da própria prisão, como são os casos do monitor de educação e do agente prisional de saúde (Art. 11, § 2º das Diretrizes).

A educação consiste em projeto de médio e longo prazos, trabalha em função de objetivos e metas próprias, mas que podem ser perfeitamente compatíveis com os objetivos e metas da reabilitação penal (SILVA; MOREIRA, 2006SILVA, Roberto da; MOREIRA, Fábio Aparecido. Objetivos educacionais e objetivos da reabilitação penal: o diálogo possível. IN: Dossiê questões penitenciárias. Revista Sociologia Jurídica, n. 3. jul./dez. 2006.). O papel da educação dentro da prisão deve ser única e exclusivamente o de ajudar o ser humano privado da liberdade a desenvolver habilidades e capacidades para estar em melhores condições de disputar as oportunidades socialmente criadas.

Referências

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  • II
    Pesquisa realizada com bolsa de estudos concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
  • 1
    - Para esse procedimento, foi utulizado o software de processamento estatístico SPSS for Windows.
  • 2
    - Fonte: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen). Formulário Categoria e Indicadores Preenchidos. Todas UFs. Referência:12/2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2013
  • Aceito
    07 Mar 2014
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