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As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em instituições católicas

Resumos

Na tentativa de compreender a gênese da educação dedicada especificamente às mulheres, analisaremos um livro didático usado em internatos e conventos de meninas, da segunda metade do século XIX e início do XX, chamado Manual de piedade da donzela cristã. Nossa proposta é descrever, em parte, uma das formas de constituição do modo de ser feminino na contemporaneidade, refletindo historicamente a respeito da elaboração de um saber-poder sobre as mulheres, fundamentando-nos em uma análise foucaultiana. Propomos recuperar o que tradicionalmente fora o organizador das instituições católicas femininas, ou seja, seus modos peculiares de normatização e manutenção das populações de meninas e mulheres ao modo disciplinador cristão, como um dos paradigmas do sujeito feminino. Assim, juntando-se a demandas normativas do período pós-revolucionário dos 1800 na produção de um feminino produtivo - transplantado nas figuras da boa mãe, da carinhosa esposa e da trabalhadora obediente, ou o que pudesse determinar a mulher socialmente controlada e promotora da família nuclear moderna -, formaram-se episteme e moral específicas da mulher, com participação paritária da teologia católica com outros campos de saber. Nossa tese é justamente a de que a formação do sujeito feminino contemporâneo tem ampla participação das instruções eclesiais. Para defendê-la, analisaremos o referido manual, que será considerado uma janela que nos abre para uma mirada investigativa do cotidiano de meninas em escolas confessionais e monastérios.

História da educação; Manuais escolares; Gênero e educação; Metodologia arqueológica foucaultiana


In an attempt to understand the genesis of the education dedicated specifically to women, I analyze a textbook called Manual de piedade da donzela cristã (Manual of piety of the Christian maiden), which was used in boarding schools and convents for girls, in the second half of the nineteenth and early twentieth centuries. My purpose is to describe, in part, based on a Foucauldian analysis, one of the forms of constitution of the ways of being feminine in contemporary times, reflecting historically about the development of a knowledge-power over women. I propose to recover what had traditionally been the organizer of Catholic institutions for girls, i.e., their peculiar modes of standardization and maintenance of the populations of girls and women according to the Christian disciplinarian mode, as one of the paradigms of the female subject. Thus, the episteme and moral specific of women was formed, with equal participation of Catholic theology and other fields of knowledge, joining the normative demands of the post-revolutionary period of the 1800s in the production of a productive feminine - transplanted to the figures of the good mother, loving wife and obedient worker, or what could determine the woman socially controlled and promoter of the modern nuclear family. My thesis is precisely that the formation of the contemporary female subject has broad participation of ecclesial instructions. To defend it, I shall analyze that manual, which will be considered a window that opens to an investigative perspective of the everyday life of girls in denominational schools and monasteries.

History of education; Textbooks; Gender and Education; Foucauldian archaeological methodology


As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em instituições católicas

Carlos Manoel Pimenta Pires

Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. Contato: carlosmanoel74@hotmail.com

RESUMO

Na tentativa de compreender a gênese da educação dedicada especificamente às mulheres, analisaremos um livro didático usado em internatos e conventos de meninas, da segunda metade do século XIX e início do XX, chamado Manual de piedade da donzela cristã. Nossa proposta é descrever, em parte, uma das formas de constituição do modo de ser feminino na contemporaneidade, refletindo historicamente a respeito da elaboração de um saber-poder sobre as mulheres, fundamentando-nos em uma análise foucaultiana. Propomos recuperar o que tradicionalmente fora o organizador das instituições católicas femininas, ou seja, seus modos peculiares de normatização e manutenção das populações de meninas e mulheres ao modo disciplinador cristão, como um dos paradigmas do sujeito feminino. Assim, juntando-se a demandas normativas do período pós-revolucionário dos 1800 na produção de um feminino produtivo - transplantado nas figuras da boa mãe, da carinhosa esposa e da trabalhadora obediente, ou o que pudesse determinar a mulher socialmente controlada e promotora da família nuclear moderna -, formaram-se episteme e moral específicas da mulher, com participação paritária da teologia católica com outros campos de saber. Nossa tese é justamente a de que a formação do sujeito feminino contemporâneo tem ampla participação das instruções eclesiais. Para defendê-la, analisaremos o referido manual, que será considerado uma janela que nos abre para uma mirada investigativa do cotidiano de meninas em escolas confessionais e monastérios.

Palavras-chave: História da educação - Manuais escolares - Gênero e educação -Metodologia arqueológica foucaultiana.

Introdução: breve descrição da educação feminina até o século XIX

Podemos afirmar que, com o advir da chamada modernidade, a família transformou-se em uma das prioridades do governo das populações no Ocidente. Como consequência, o tratamento dedicado às especificidades femininas passou a ser um dos temas fulcrais entre pensadores desde o Renascimento.

O feminino idealizado já fora incorporado ao projeto de humanistas (leigos e religiosos), em que se assumia a necessidade de se impor controles sobre o comportamento das individualidades das mulheres, atrelando-as a processos normativos de regulação da subjetividade. Obviamente, os objetivos de moralistas e demais pensadores do comportamento não se circunscreviam apenas às mulheres, mas se alargavam ao social como um todo, já que elas representavam um vetor importante dentro das famílias (VARELA, 1997, p. 193).

Por sua vez, até o século XIX, nos campos jurídico e teológico - assim como no próprio senso comum -, mormente as mulheres foram encaradas com desconfiança com relação às suas capacidades e às suas atitudes, mantendo-se uma tutela jurídica e moral, cujo controle da vida social passava da responsabilidade paterna para a do marido ou do convento, em uma vivência que primava pela heteronímia (HOUILLON, 1974, p. 09).

Com relação à educação, os conventos exerceram papel institucional relevante àquelas que eram enviadas para tais recintos. Houve um grande esforço católico, após as guerras religiosas na Europa do século XVI, na fundação de ordens femininas dedicadas à manutenção de um ambiente instrucional às crianças e adolescentes que se preparavam para serem religiosas. Concomitantemente, não podemos deixar de citar que cresceram, em número, os centros escolares confessionais dedicados às meninas que, não necessariamente, seguiriam como monjas. Em tais instituições, tanto para os externatos como para os de clausura, o ensino era fundamentalmente religioso, reduzindo-se à instrução à leitura, à reza, a um pouco de escritura e ao ensino de algumas ações ditas femininas, como, por exemplo, o coser (HOUILLON, 1974, p. 16).

Mesmo após as chamadas Revoluções Liberais, observa-se a manutenção da tutela masculina na maioria das sociedades europeias e do Novo Mundo e, também, a continuidade das estruturas educacionais monásticas, ambas mantenedoras de uma feminilidade encerrada aos lares e a instituições controladas pela Igreja (BOTHONEL; LAURENT, 1974, p. 99-137)1 1 - Na França, por exemplo, foi apenas na década de 1870 que o estado francês implementou uma rede escolar primária aberta às meninas, tratadas por igual em comparação aos meninos. . Nenhuma sociedade ocidental outorgou à mulher, por exemplo, a possibilidade da cidadania plena no século XIX (FRAISSE; PERROT, 1993, p. 12).

Por outro lado, o que podemos acrescentar como diferencial nos 1800 seria a elevação, em importância, do feminino a um protagonismo nos destinos das sociedades ocidentais. No caso específico da igreja, a mulher passava a um papel primordial na edificação moral dos corpos sociais, colocando-se dentro da família como a mãe educadora e exemplar. Tratava-se de uma espécie de contrapoder masculino e estava num processo de correção moralizador infinito.

A alma feminina, distinta e complementar da masculina, converte-se, para a Igreja da Restauração, numa reserva de recursos civilizadores e de possibilidades de conversão. (GIORGIO, 1993, p. 183-184)

O que pretendemos no decorrer do artigo é entender a organização de um tipo de exercício de poder sobre as mulheres dentro das instituições de trancamento confessionais, tentando perceber a formação de um sujeito feminino nos interstícios do catolicismo. Não se almeja afirmar que seja essa a única forma de feminino constituído, mas há intenções de conceber um tipo peculiar que de alguma forma permanece nas formas de subjetivação das mulheres da atualidade.

Assim, afirmamos que a institucionalização da família cristã passou por um modo de disciplinar e governar o comportamento das meninas, concatenado à elaboração de um dispositivo de feminização, em que se renovariam preceitos de interação entre os sexos e de constituição de uma nova sociedade, muito parecida à que vivemos (VARELA, 1997, p. 175-176).

Manual de piedade da donzela cristã

Adotaremos, como objeto de estudo, trechos de um livro didático feito especificamente à educação de meninas enclausuradas em colégios internatos e conventos católicos. O intitulado Manual de piedade da donzela cristã (1919) foi elaborado para uso das professoras. Era dedicado à instrução da prática religiosa e indicado à leitura das próprias meninas das instituições confessionais.

A primeira edição em língua portuguesa data de 1873. Em nossa análise, consultamos a décima quinta reimpressão, número que demonstra a boa tiragem do manual e leva-nos a supor seu largo uso em centros escolares católicos espalhados pelo mundo luso-brasileiro. Importante recordar que a prática de se confeccionar e usar manuais de piedade, nas instruções católicas, vem de longe - existindo vários outros escritos sobre o modo de se portar das donzelas, em circulação no mundo católico -, estabelecendo uma das práticas de fé incorporadas ao cotidiano institucional escolar cristão.

De acordo com a introdução do livro, indicava-se a leitura diária às jovens, funcionando como um vade-mécum de conduta e civilidade. Ademais, as próprias mestras poderiam usá-lo como um apoio didático aos estudos religiosos, sendo lhes permitido escolher aleatoriamente um trecho qualquer para a leitura coletiva, com pretensões claras de discutir algum aspecto negativo ou positivo do comportamento das meninas naquele dia.

Dividida em cinco partes, essa obra articulava normas relacionadas ao comportamento litúrgico com condutas em geral (polidez, modos de civilidade e sexualidade). Na primeira parte, cujo título é Uma flor a colher a cada manhã, encontram-se sugestões a quem ou a que se deveria rezar e meditar, as quais são divididas em um diário, sendo uma espécie de calendário espiritual. O segundo item dedica-se a determinar os hábitos cotidianos das meninas, esmiuçando as normas de uma condução ascética. Na sequência, já se apresentam os exercícios espirituais e os métodos de ouvir a missa, em um adestramento da religiosidade. Já na quarta parte, explicam-se os deveres da religião, em uma apresentação dos sacramentos e obrigações de um bom cristão. Por fim, há uma descrição das práticas de devoção, tentando ligar o tirocínio católico do presente com seu passado.

Incluímos o livro didático como relevante na análise da educação feminina partindo do pressuposto de que as leituras eram objetos de controle por parte da igreja, atenta ao que era lido, ao mesmo tempo em que produzia bibliografia própria para ocupar espaços da literatura leiga. "Ler pouco e ler bem: essa é a máxima. [...] Nenhuma divagação: ler é um exame de consciência através de mediação de um texto." (GIORGIO, 1993, p. 198). Logo, considerar-se-á o que era lido como uma possibilidade de agenciamento do feminino.

Como proposta de exercício de uma análise arqueológica foucaultiana, dividimos em cinco plataformas explicativas os trechos selecionados para análise, de modo a ter um ponto de mirada privilegiado sobre o saber feminino que emerge de um tipo específico de organização do discurso do passado e, por sua vez, disciplinador da mulher, resultando em uma nova subjetividade.

Essas plataformas foram agrupadas da seguinte forma: o controle dos desejos (item 3), a racionalização das ações (item 4), a ascese do comportamento (item 5), a calibração do amor (item 6) e os usos meticulosos da carne (item 7).

O cerceamento da individualidade e o controle de conduta das neófitas cristãs

- Oremos para que Deus nos conceda a graça de repelirmos as tentações que tivermos hoje.

- Jesus e os aflitos.

- Que impressão deviam fazer nos corações estas palavras de Jesus: 'todos que sofreis, vinde a mim: eu vos confortarei'. Ninguém tinha falado assim; especialmente ninguém tinha acolhido os atribulados como Jesus... Por isso vede quem são pobres, os doentes, os desvalidos que o acompanham. Quem os agasalhará antes? Quem os não repelia da sua companhia? Ó Jesus, ensinai-me a ter bom coração, a amar, a procurar quem todos repelem... dai-me graça para consolar muitos infelizes na minha vida.

- Buscarei hoje ser útil a alguma das companheiras. (IGREJA, 1919, p. 90)

"Repelirmos as tentações que tivermos hoje" e "buscarei hoje ser útil a alguma das companheiras" são trechos de Uma flor a colher a cada manhã, que aspirava interrogar os desejos dos indivíduos, substituindo-os por uma instrução que se desviasse de possíveis ímpetos sinistros. Nesse caso específico, especula-se que às tentações deveriam se contrapor as iniciativas de sentido altruísta, apagando-se o que fosse de mais individual nos sujeitos - os seus quereres - e colocando-se como foco algo que significaria uma subordinação às vontades do grupo.

Dispõe-se sobre a intimidade, de maneira a condicioná-la a um papel público a ser exercido, o "de amar, ter bom coração, o de consolar os infelizes". No florescimento de uma arguição sobre a ética cristã, com esse extrato, percebemos o quão relevante os desejos são e compõem a espreitada de controle sobre os indivíduos do corpo católico, trazendo como hipótese de que passam a ser a prioridade nos exames intestinos dos ambientes educacionais mantidos pela Igreja.

A intimidade trazida à baila não foi um fenômeno exclusivo do catolicismo. O controle sobre as vontades tem sido utilizado, nos últimos séculos, como um dispositivo influente nas táticas de manutenção do poder sobre indivíduos. Mais especificamente no decorrer do século XIX, houve um hiperdesenvolvimento do discurso sobre o desejo, adquirindo-se novas maneiras de compreendê-lo - que Foucault (2003) designou como scientia sexualis -, com o qual se buscava uma forma verdadeira de ocorrência, tanto no comportamento como na estética.

Em tentativas de controlar as relações que os indivíduos têm consigo mesmos - como observado no trecho do Manual -, os desejos, e, por consequência, os próprios prazeres físicos, foram encarados como ações relevantes a quem exercesse o poder sobre as meninas. Essa seria uma das consequências mais significativas dos dispositivos de repressões e impedimentos sexuais contidos na educação religiosa. Podemos afirmar, entretanto, que esses dispositivos foram reproduzidos igualmente, na mesma época, pela vigília corporal da ciência médica e pelos cerceamentos do inconsciente aplicados pela prática psiquiátrica/psicanalítica. (FOUCAULT, 2006).

Foi desfechado, portanto, ao redor do período das edições do livro (1873-1919), o controle das condutas sexuais da mulher com a formação de todo um arcabouço religioso, médico e psicológico de pensamentos e comportamentos que pudessem visualizar a perversão da alma, a insalubridade do corpo e a anormalidade da mente. À teologia centenária juntou-se, em uma empreitada normatizadora e constituidora do dispositivo da feminilidade, certa psicologia racional em sentido contrário a uma espiritualidade irracional tradicionalmente posicionada.

No contraponto à racionalidade como mantenedora da fé, tínhamos, por exemplo, o misticismo penitencial, que fora uma maneira de exercício de santidade das mulheres desde os primeiros tempos da Igreja que, em meio às orações e meditações, tinham visões e conversas com Deus, Jesus e toda a cosmogonia cristã possível. Santa Teresa D'Ávila (doutora da Igreja e fundadora da congregação das carmelitas descalças) talvez fora um dos principais modelos de como a Igreja dava crédito e autoridade para tal maneira de se exercer a crença (ANDERSON; ZINSSER, 2007, p. 230-233).

A maneira ascética propalada nos trechos do Manual, e que veremos mais detalhadamente adiante, abre mão do misticismo extático em nome de uma racionalidade da fé, propondo adestramentos controladores da crença, dando pouca margem de autonomia aos exercícios espirituais.

Não obstante, [...] a Igreja mudou sua atitude diante das mulheres que testemunhavam uma experiência mística. [...] Rechaçou a autoridade potencial das visionárias, honrando-as com uma condescendente inocência infantil e não por seus laços especiais com a divindade. (ANDERSON; ZINSSER, 2007, p. 238)

Prescrições racionalizadoras dos espíritos femininos

Oremos em desagravo das blasfêmias.

- O décimo primeiro fruto do colégio é fortaleza de vontade. A regra é às vezes incômoda; mas quanto disciplina o caráter, ensina a refrear a imaginação, a repelir fantasias para cumprir deveres! Submetei-vos sinceramente e tereis energia para sofrer as mágoas que mais tarde vos assaltarem.

- Procurarei hoje observar silêncio. (IGREJA, 1919, p. 37)

O Manual propõe converter o desejo blasfemo, contido na alma, em objeto de reflexão racional, não com uma punição dolorosa ao corpo, mas simplesmente com a imposição do silenciamento do espírito. Ao se fazer calar a alma gozosa, apostar-se-ia no irrompimento, entre as discípulas a se conduzir, da sensação de desconhecimento sobre a própria subjetividade e, mais especificamente, do poder de seus desejos.

Provoca-se o encontro da ignorância individual sobre si e toda a constituição de uma tecnologia de interrogação das intimidades, via conhecimento acumulado pela observação institucional das mestras condutoras, para tentar compreender externamente o desejo dos indivíduos e suas modalidades. No caso citado, a religião intentou trazer o medo à perscrutação da imaginação, indicando às meninas seu despreparo e o risco em percorrer lugar tão indômito.

Não se trataria de paralisar os motores internos do querer, e sim entender as suas interferências na constituição dos sujeitos. Em um desvio de suas atribuições, usar suas energias no germinar dos desejos verdadeiros (os autorizados pela Igreja), aqueles nos quais se incitaria a conter mais o que é tido como correto, em contraponto a um aumento de intensidade do prazer, que colocaria o indivíduo em uma rota própria, fora das vistas eclesiais. Trata-se, através dos discursos calados, de um arrebatamento do cotidiano íntimo das pessoas.

O poder eclesial agiria, nessa nova disposição institucional formatadora de uma verdade de agir feminina, com regras e ações que clarificassem as interdições, incorporando e fabricando uma linguagem que se impusesse no ato de conceder e de bloquear o não tolerado. Elaboraram-se, com isso, enunciados sobre o comportamento em geral, incluindo aí, especificamente, aquele relacionado ao desejo e ao prazer, deixando claro o que é permitido no uso de um referencial do que é ilícito.

Criava-se um ambiente que naturalizava um estado de direito totalizador no ato de discursar sobre a conduta alheia. No plano das estratégias, havia tentativas de censura plena da conduta, com intenções de abafar o desejo individual. Propomos explanar três exemplos. Primeiro: o que vem a ser proibido.

Examinai os pecados feitos [...] contra o próximo. Juízos temerários; desprezo; ódio; inveja; desejo de vingança (especificai se é contra as mestras ou companheiras); dar maus conselhos; maus exemplos; fazer más ações; maledicências; calúnias; notícias falsas; disputas, palavras ásperas e injuriosas; falta de zelo e de bondade; falta de respeito e de docilidade; astúcia. (IGREJA, 1919, p. 403)

Segundo: o anúncio da culpa ao se pecar.

- Oremos pelas almas que há muito tempo resistem a Deus.

- Deveis expiar vossos pecados; para este fim Deus permitiu que o regulamento da casa vos constrangesse e contrariasse às vezes; suportai com boa vontade este constrangimento.

- Não farei a mínima infração ao regulamento, com a intenção de expiar minhas culpas. (IGREJA, 1919, p. 179-180)

Terceiro: a existência de um estado superior, o da pureza.

Oremos por quem trabalha pela salvação das almas.

- O décimo segundo fruto do colégio é a inocência, que se conserva aqui na sua integridade; a inocência que sempre deixa entrever através do semblante a eterna juventude da alma. Oh! Que ainda por longo tempo ignoreis o mal! Amai a oração, fugi das ocasiões perigosas, procurai vossas mestras.

- Repetirei bastante vezes a invocação: pela santa e Imaculada Conceição, virgem puríssima, rainha dos anjos, alcançai-me pureza de alma e corpo. (IGREJA, 1919, p. 37-38)

Por outro lado, complementariamente ocorre uma normatização das condutas que mantivessem ou criassem uma libido apropriada. Desenvolveu-se toda uma tecnologia e conhecimento em relação ao apetite e à tentação, heterogêneos em seus controles, incitadores e condutores. Das induções, enumeramos três tipos. Primeiro: a fé associada ao ato de crer de maneira incondicional.

Eu creio firmemente meu Deus, todas as manhãs que tendes revelado, e que nos ensinais pela vossa Igreja católica, apostólica e romana, sendo que vós não vos podeis enganar nem enganar-nos, e nesta crença quero viver e morrer. Amém. (IGREJA, 1919, p. 217)

Segundo: uso do Salvador como um estimulador juvenil da santidade.

- Jesus e as crianças.

- Jesus está sentado rodeado dos discípulos... adiante, por entre a multidão, seu paterno olhar divisou meninos pequenos que estavam tímidos ao pé de suas mães, estendeu-lhes os braços. As crianças compreenderam este apelo do coração, e aproximam-se de Jesus que os abraça, os abençoa, os conserva perto de si, fala-lhes do céu. [...] Ó Jesus, eu também sou criança; corro para vós; acarinhai-me, falai-me do céu. Se eu me conservar sempre simples, inocente, mansa, vós me amareis sempre, não é assim?

- Ó! Afastai-vos, pois de mim, pensamentos, desejos, afetos, que despojaríeis meu coração do que agrada Jesus.

- Hei de dispor-me com fervor para a próxima comunhão. (IGREJA, 1919, p. 86-87)

Terceiro: a salvação acessada pela esperança.

Eu espero, meu Deus, com firme confiança, que pelos merecimentos de meu senhor Jesus Cristo, me dareis a vossa graça n'este mundo, e se observar vossos mandamentos, a vossa glória no outro, porque me tendes prometido, e sois fiel em vossas promessas. Amém. (IGREJA, 1919, p. 217)

Desse modo, aqui expomos não uma descrição de uma história da repressão à sexualidade organizada pela Igreja, tampouco a sua liberação. Em realidade, propõe-se entender o porquê de tanto interesse e, por consequência, a produção de conhecimento acerca dos desejos e, de maneira subliminar, da sexualidade feminina; e que, por estarem atrelados à intimidade, ganharam grande importância nas discussões católicas desse momento histórico.

A Igreja tentou inventar modalidades de relações com seus fiéis. Algumas importadas dela mesma, como a ascese dos monges celibatários, o pastorado de seus missionários, o controle dos comportamentos via confissão e os usos arquetípicos das entidades cristãs. Ainda assim, incluiu novos dispositivos de mando, incorporados no cotidiano e adaptados de acordo com as demandas surgidas nas relações internas de suas instituições, como a própria disciplina escolar. Contudo, todos esses estratagemas tinham em comum a condução das condutas como centro, em uma racionalização dos comportamentos. Não havia um caráter repressor puro mas, ao contrário, incorria-se, ao mesmo tempo, na incitação e no controle dos quereres individuais, manipulando de uma forma a enquadrá-los no seu campo normativo e de suas categorias.

Partimos do pressuposto de que o discurso sobre o sexo, desde o século XVIII, desenvolveu-se suficientemente a estimular a própria sexualidade no chamado Ocidente e que, ao contrário do que se poderia pressupor, não teve uma forma definida e um órgão emissor único. Houve um poliformismo de produção de saberes, que gerou um campo de conhecimento complexo acerca da sexualidade. Adiante, perscrutaremos um pouco mais como se daria esse conhecimento específico eclesial nos 1800 sobre a sexualidade feminina.

A autovigília e o desejo combinados como atos de ascese

Oremos por aquelas que são propensas à melancolia.

- Deus não gosta de menina de caráter exaltado e romanesco, que enche o coração e a cabeça de ideias vagas, efeminadas, sensuais, sempre coloridas com um reflexo de inocência e candura, que engana uma alma inexperiente como a sua, mas oculta no fundo grande perigo e às vezes mal sem remédio. Esta menina não vive nunca no presente: aí vegeta como planta, seu coração está sempre além de três ou quatro anos.

- [...] Filha, ocupai-vos mais, sobrecarregai-vos de trabalho, executai sempre o que vos ordenam, sem isto estais exposta a ser muito infeliz e culpada. (IGREJA, 1919, p. 164)

Um dos significados da condução de comportamentos, retratados acima, trata dos assuntos íntimos, apoiada na capacidade de se apurar as condutas infinitesimais, acedendo diretamente o subjetivo, em uma constituição de micropoderes sobre o corpo que pudesse amainar instintos e desejos. De forma complementar, programam-se comportamentos saudáveis, determinando moralidades que se justificavam como diminuidoras de um sofrimento em vida e que evitassem desvios futuros.

Esse tipo de acepção pode se adaptar à ordem discursiva católica, já que ajuda a infundir a prática da identificação a um potencial pecador, independentemente de seu passado puro. Ativa-se a prática reflexiva da precaução saudável da alma, em que se incute na subjetividade o exercício de autovigília que nunca esmorece.

É por isso que no século XIX, a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos seus mínimos detalhes; foi desencavada nas condutas, perseguida nos sonhos, suspeitada por trás das mínimas loucuras, seguida até os primeiros anos da infância; tornou-se a chave da individualidade [...]. De um pólo a outro dessa tecnologia do sexo, escalona-se toda uma série de táticas diversas que combinam, em proporções variadas, o objetivo da disciplina do corpo e o da regulação das populações. (FOUCAULT, 2003, p. 137)

Nesse contexto, surge um olhar sobre as sexualidades infantil e juvenil, encaradas agora como armazenadoras de uma energia que poderia ser transformada em positiva, caso fosse utilizada de maneira autorregulada, em um procedimento a ser relacionado ao amadurecimento psicológico.

Em outros períodos históricos, a fala e o comportamento dos mais jovens não circulavam e não eram notados entre os adultos. Passou-se a ouvi-los e a percebê-los a partir de meados do século XVIII, não com intenções de fazer fluir a emancipação desses seres, porém para regulá-los, interditando suas comunicações com enunciados normatizadores. As escolas confessionais foram uma das primeiras a se incumbir de criar um ambiente que pudesse aplacar essa potência pueril, desviando-a e adequando-a a uma estrutura de controle que, primeiramente, percebesse o que se falava para posteriormente impor outro discurso, o autorizado aí sim pelos agentes das instituições eclesiais.

A repercussão foi a fixação da identidade geral dos mais jovens a uma específica, adequada às ambições católicas. "Refrear as paixões" e "domá-las pela oração", nada mais foi do que um vínculo da subjetividade, daqui para frente, aos desejos. Como sequela disso, posicionaram-se os corpos e os comportamentos a esse componente da alma, relegando outros a um segundo plano. Em nome de uma normatização do comportamento libidinoso da chamada mocidade cristã - e, portanto, da constituição de uma maneira preponderante de se relacionar com o querer próprio -, iniciou-se uma verdadeira caça aos gostos e prazeres menores e/ou periféricos, denominados, pela Igreja, de pecados.

Se se tem vanglória da beleza, das vestes, da riqueza, dos talentos, do nascimento; se no modo de vestir, de falar, de andar, tem-se como fim excitar a admiração. Se nos achamos melhor que o próximo. Se se tem vexame de seus pais. [...] Se se tem dureza com os pobres [...]. Se nos entristece o bem e o merecimento alheio. [...] Se nos impacientamos; murmuramos, e nos entregamos aos arrebatamentos do mau gênio. Se somos teimosas. Se ficamos na cama por preguiça. Se gastamos o tempo com ninharias, se permanecemos ociosas, se fizemos perder tempo aos outros. (IGREJA, 1919, p. 401-402)

Buscando explicar de maneira adaptada os pecados capitais às jovens, enumeraram-se, em realidade, as identidades possíveis delas pelo erro e não pela honra. É na anormalidade que se optou fixar a católica e não a um tipo de cristã perfeita, algo externo e ineficaz como demarcação da virtuosidade. Agia-se influenciando diretamente as meninas, incentivando-as a identificar suas faltas e corrigi-las sozinhas. Foi-se além do simples perdão salvacionista; formataram-se as índoles particulares.

Convocou-se a constituição de estruturas de vigília altamente complexas para atentar-se sobre as desordens insignificantes, enfatizando o cotidiano e suas falhas triviais. Para tanto, constituiu-se um discurso acerca das faltosas, as que no cotidiano rompiam as normas já sabidas, que se colocavam do lado do desvio, ao menos no olhar de quem detinha o predomínio da ordem do discurso.

Oremos pedindo para ter hoje ocasião de fazer bem.

- Deus gosta de uma menina silenciosa. Ó! Quanto as graças se concedem àquelas que, para agradar a Deus, se calam durante o estudo, na aula, no dormitório!... Começar muito jovem a refrear a língua, faz esperar grandes virtudes para o futuro.

- Se eu falhar distraidamente hoje farei uma mortificaçãozinha no refeitório. (IGREJA, 1919, p. 170-171)

Toda uma cadeia de poderes vem se misturar ao habitual, explodindo potências entre as que conseguiam, de alguma forma, deter o domínio de quem emite a alocução ou das suas formas diversificadas. O resultado é o brotar de uma infinidade de discursos competentes sobre o que deveria ser uma menina e uma moça, usurpando o cotidiano da própria individualidade e encarregando-se dos fatos sem importância.

Tratava-se de silenciar a vaidade, a ira, a vergonha, a avareza, a teimosia, a preguiça, a ociosidade e muitas outras expressividades das donzelas, cuja qualidade fosse a da anormalidade. As percepções das anomalias femininas ocorriam, conjuntamente, ao intenso movimento para se colocar em discurso todas essas inquietações e variações individuais de conduta por parte de quem fosse incumbido de exercer o poder sobre a mulher em formação. Esse movimento acarretou em um emudecimento de quem deveria obedecer.

A cantilena política da banalidade deveria, por sua vez, tentar resgatar o controle do todo, já que é nele que está inscrito o habitual. Daí a necessidade da elaboração de uma tecnologia complexa de controle sobre o ordinário feminino, que criasse um disparate entre o pequeno erro e a grande sanção. Complementando o domínio sobre o mundo micro, armou-se toda uma maquinaria de inteligibilidade dos pecados, com o intuito não de extirpá-los, mas de controlá-los e incluí-los. É um processo de autoinquirição cotidiana ilimitada, em exercícios que possibilitassem a recriminação de si própria, que pudessem abrir a alma para que se acessasse aos desejos perversos.

A utilidade dessa sistematização foi a efetivação de um sistema que questionasse as faltosas prontamente, com o intuito de que a pecadora se sentisse convencida de sua própria culpabilidade e, portanto, se autocontrolasse em seguida ao acometimento das tentações. Ao mesmo tempo, as fronteiras do vício seriam vislumbradas e incorporadas de uma maneira em que qualquer uma que se aproximasse dela se sentiria já culpada. O poder mais brutal, aquele que agisse na interdição mais fulgurante, seria a exceção nessa nova disposição do poder sobre a alma feminina, já que se apresentaria ineficiente. Compreender-se-ia, pois, que o pecado e o erro nunca acabariam, já estariam na natureza da mulher.

A meditação encaixou-se aqui como algo de importância capital nessa cartografia dos vícios e virtudes das meninas cristãs. Não se tratava de uma exercitação que convocasse o relaxamento, tampouco o alcance da transcendência. Nela, deveria-se encher a imaginação de racionalizações que vigiassem o que se pensasse. Para tanto, propunha-se uma conversa com Deus, em uma mentalização de imagens de seres perfeitos que julgam nossos atos, internalizando-se inquirições e julgamentos próprios.

- O que eu digo a Deus! Tudo que sinto. Quando tenho dissabores, eu lhes digo, para que o Senhor os saiba melhor, e isto me alivia; peço-lhe ânimo para os suportar, que me ajude a dizer e a fazer o que devo; depois falo-lhe a favor dos doentes que conheço, de meus pais, daqueles que amo, designo-os um por um, comunico-lhe o que me tem acontecido, os males que receio... Digo isso a nosso senhor como diria a minha mãe.

- Mas isto não é orar.

- Oh! Eu não sei; mas visto que Deus é meu pai, não hei de dirigir-me a ele como faço a meu pai, quando à noite estamos ambos no serão?

- É uma conversação, e esta não pode ser longa quando ninguém responde.

- Oh! Há resposta! Às vezes, é triste, não se ouve nada, não se sente nada, é porque Deus está zangado. (IGREJA, 1919, p. 223-224)

Para uma conversação, exigia-se interação. Para a interação com Deus efetivar-se era preciso ter, por parte da menina penitente, atributos como: a iniciativa de começar; a disposição em manter um diálogo longo; uma reflexão profunda advinda dos cuidados com o que se vai dizer; um arrolamento e ordenamento dos acontecimentos, dividindo-os, no mínimo, entre positivos e negativos; e um final que trouxesse um veredito. Às mestras pastoras era dever que ensinassem o cortejo a Deus pelas alunas penitentes, passando a ideia de que se adentrava em uma relação interminável. "Não vos separeis do bom senhor que vos esperou" (IGREJA, 1919, p. 238); ou seja, a meditação como uma espécie de compromisso matrimonial com Deus.

Mas qual a conduta cobrada por Deus nessa relação tão íntima? Nas conversas de alcova com Nosso Senhor, o que ele poderia cobrar e louvar? Em grande parte do livro é indicado o protótipo da santa.

Primeiramente, diz-se que Deus exige a criação de um cotidiano em que apenas ocorressem a oração, o estudo, o trabalho e o repouso. Cada uma dessas atividades deveria ser aperfeiçoada a cada dia, de uma maneira que agradasse e não provocasse o desgosto divino. Seguindo, dever-se-ia entregar todo o amor que vem do coração a ele, pois seria o único que faz isso de maneira verdadeira. Ao mesmo tempo, é premente a resistência aos convites deleitosos do demônio e do mundo, evitando trair a confiança de quem tanto se dedicava às meninas.

Opor-se aos momentos de tédio seria outra regra de conduta para com Deus. O império do aborrecimento significaria mais uma tendência que os indivíduos teriam em repartir o seu amor e suas atenções com o mundo e uma dificuldade em dedicá-lo exclusivamente a Ele.

A companhia do todo poderoso traria o reconforto, a segurança. Mas, mesmo que fosse traído, no manual constava que Deus não abandonaria a pessoa. Contudo, perder-se-ia a possibilidade de ocorrer uma relação totalmente sincera e isenta de outros arroubos. Assim como Deus perdoa seus servos, há que repeti-lo e relacionar-se com os outros da mesma forma, suportando os defeitos, além de ajudar nas necessidades e dando bons exemplos (IGREJA, 1919, p. 239-244).

Nas regras de condutas para conosco, parte na qual se ajudariam as meninas a se atingir o status de santa, a obra dedicada às donzelas cristãs indicava que a sensação de prazer é algo proibitivo, sendo que nunca se deveria apaixonar e somente amar.

Ter sufocado no coração o impulso de uma paixão, ter arrancado uma imperfeição da alma, é ter lucrado mais do que se conquistasse mil mundos. (IGREJA, 1919, p. 245)

Na construção da nova cristã era desejosa a sensação de segurança. Partindo daí, diminuiriam as possibilidades das incertezas, ocorridas muitas vezes dos sentimentos incontroláveis de paixão, que poderiam escoar em arroubos de individualidade rebelde. Em contrapartida, o autocontrole deveria surgir nas meninas, em troca da possibilidade da construção de um destino mais previsível. Surgiriam, então, ações integradas de inculcação de sentimentos e relações afetivas que ameaçassem a existência de indivíduos que emanavam impulsos e emoções espontâneas, além de possibilitarem inúmeras vantagens aos que fossem capazes de moderar suas paixões. (ELIAS, 1994, p. 198)

"Sufocar o impulso da paixão" de certa maneira impõe uma prática ascética à criança. Obviamente, a devassidão já era renegada pela Igreja há tempos. Contudo, no manual admitia-se um tipo de relação libidinosa das meninas com o Senhor. Por sua vez, havia regras introjetadas por uma disciplina específica à infância. O que podemos concluir, por enquanto, é que na ascese tradicional, o desejo era encarado como proibido e, portanto, evitado; a partir de então, passou a ser admitido, e, por sua vez, regulado. Não se evitava tal sensação; ao contrário, admitia-se que os sujeitos pudessem ser libidinosos, desde que direcionassem a energia estimulada aos objetos católicos.

Os amores do pai e da mãe como reguladores dos controles sobre o corpo

Oremos para que neste mês não se façam pecados mortais nesta casa.

- Filha, eu próprio me dou a todas as meninas que me apresentam um coração puro e amante; queres-me?

- Sim, menino Jesus, eu vos quero, vinde a minha alma na santa comunhão, e permanecei com tão boa vontade como estivestes no presépio; minha alma é pobre como este... mas feliz do que vosso asilo, sabe amar, quer amar, e expandir seus sentimentos. (IGREJA, 1919, p. 19)

A afetividade elevada era articuladora do enamoramento, não a incontrolável paixão romântica, mas o ascético, dirigido, pragmático, que se vincula por privilégios ou querendo algo em troca. Não é uma entrega ao objeto amado, mas é a criação de um vínculo que resulte em uma interdependência.

Estabelece-se um contrato amoroso entre as entidades e seus adoradores católicos, em que ambos se doam e se tornam fiéis. Cabia agora aos indivíduos cumprirem o contrato estabelecido, feito e confirmado através das promessas, pedidos, venerações e outras manifestações mais que demonstrassem o amor. Nunca se poderiam frustrar as expectativas dos santos ou da Virgem ou de Cristo com seu comportamento.

Na liturgia católica tradicional, já se colocava o corpo como objeto central da salvação, posto no exemplo máximo da consubstanciação de Deus na carne - no caso do próprio Jesus. Equivalia-se a demonstrar a possibilidade da salvação da alma nas maneiras de se disponibilizar comportamentos que se afastassem dos pecados, fazendo o centro da atuação pastoral da Igreja a adequação dos corpos dos fiéis a uma purificação próxima à ocorrida com Cristo.

Dispuseram-se, nesse sentido, alguns artifícios de ajuda ao desejoso da salvação pelo corpo: um deles seria a eucaristia, representando a recepção do corpo e do sangue de Cristo, assim como os ritos de batismo, a crisma, as bodas e a extrema unção. Todos pretendiam nada mais que confirmar o domínio que Deus tem sobre o corpo e indicar a fidelidade dos sujeitos católicos aos preceitos de purificação.

Por sua vez, houve, a partir do século XIX, uma atenção exacerbada sobre o corpo de Jesus durante o seu período de prisão e tortura, fazendo com que se reforçassem ritos ligados à paixão de Cristo. Os rosários, as cerimônias públicas de via sacras e o culto ao Sagrado Coração só vieram a reforçar a inculcação do sofrimento corporal impingido ao Salvador para que ele atingisse a purificação plena (DELUMEAU, 1991). Percebe-se um aprofundamento da carne como local seleto da inocência e o conforto de Jesus como o guião paternal.

Assim como o filho, o corpo de Maria serviu também como modelo de ascetismo e entidade a ser amada. Enfatizou-se uma Nossa Senhora que não cometera o pecado original, abluindo a concepção do Salvador e dando a sensação às fiéis da possibilidade de uma vida longe do desejo e do prazer carnal.

- Oremos em união das criancinhas que hoje morrerem e subirem ao céu.

- Filha, dou-te como festas o véu de minha santa mãe.

- Aceito com felicidade, menino Jesus, há de recordar-me a modéstia da santa virgem: que só a vós queria ver, nem desejava ser vista por ninguém; com ela, conservarei hoje os olhos baixos, andarei um pouco mais devagar sem afetação, evitarei tudo que atrai a atenção dos outros. (IGREJA, 1919, p. 23)

Acompanhada à imagem da Imaculada vem a da Assunção, devoção crescente também entre os fiéis católicos do século XIX, que poderiam conceber uma Maria que não entrou em estado de decrepitude - já que não poderia ressuscitar, papel esse de exclusividade de seu filho. Nessa caracterização, Nossa Senhora simplesmente subira aos céus sem marcas de envelhecimento, glorificada em uma eterna juventude, isenta da decadência corporal do restante dos mortais. Nossa Senhora se apresentaria, portanto, casta, maternal e jovial.

- Maria Santíssima é o modelo que estudo.

- Ó minha mãe que delicioso pensamento tive esta manhã! De joelhos perante vossa amada imagem eu pensava: Maria Santíssima foi menina como eu... Ó! Se eu a tivesse tido por companheira no Templo de Jerusalém onde, como eu estou aqui ela era discípula! Então ante meus olhos, como se o bom Deus quisesse realizar meus desejos, vós me aparecestes menina, ó Maria Santíssima! E me dissestes: Sê minha companheira e amiga, queres sê-lo? (IGREJA, 1919, p. 71)

Em um numeroso panteão de santos, e mesmo tendo à disposição o próprio Cristo, içou-se a figura de Maria, posta em um protagonismo tão relevante quanto o de Jesus, seu filho. Dela se poderiam retirar múltiplas qualidades atreladas ao feminino. Há de se examinar, aqui, Maria como figura de empoderamento.

Com sua aclamada beleza, a Igreja promoveu uma fusão entre os corpos das fiéis e o da santa, indicando algo que manteria as católicas isoladas de seu desejo incitado. A pureza demonstraria uma conduta representativa de autocontrole e introjetora de comportamentos a serem seguidos. Concomitantemente, abriu-se a possibilidade do feminino como modelo de conduta.

O culto da Virgem Maria permitiria múltiplas associações, no qual situassem maneiras de positivação do exercício de poder pela Igreja sobre os fiéis. Primeiramente, houve o estabelecimento de uma ética feminina universal - vigiada pelo pai postiço Nazareno redentor - que moralizava desejos, canalizados para uma continência sexual permanente e ao estímulo de um amor materno de preservação. Em segundo lugar, lançava-se uma estética da juventude associada à pureza mariana, que elevou as meninas a uma posição prioritária na salvação da humanidade.

Conclusão: as mortificações da carne e o desígnio de controle sobre as famílias

A mulher da segunda metade dos 1800 tornou-se um hospedeiro de colonizações institucionais, sendo a Igreja um deles, percebendo na possibilidade de manipulação do corpo feminino um poderoso espaço de controle social do mundo católico. Elas saíram de uma posição de figurantes para o protagonismo da religiosidade, a partir do momento de sua institucionalização via escolarização.

Uma das resultantes foram as pequenas mortificações, postas como uma das estratégias de disciplinarização do corpo feminino, substituindo o sangue e a dor, tão frequentes no Antigo Regime como maneiras de expressividade da penitência. Desse modo, interiorizar-se-ia o desapego de si mesma no trivial, incluindo-se uma racionalidade contábil dos pequenos sacrifícios de acordo com a consubstanciação dos desejos e dos prazeres.

- Oremos pelas companheiras que em outro tempo nos encaminharam para o mal.

- Deveis mortificar vosso corpo. Não lhe concedais tudo o que reclama, às vezes privai-o de alguns dos gostinhos que só servem para enfraquecer vossa alma.

- Eu me privarei de algumas gulodices nas refeições. (IGREJA, 1919, p. 178-179)

Nota-se uma diferença em relação à maneira de se pensar a salvação da alma feminina no catolicismo. Não se indicariam mais as penitências com tanta ênfase, aquelas que pudessem provocar um autoflagelo às que tivessem já pecado. Em um refinamento do domínio, atuava-se no pensamento com o intuito de se evitar a priori o cometimento de pecar.

Por implicação, um arrebatamento natural, as relações de afetividade aumentariam dentro dos núcleos familiares. Michel Foucault (2003) chega a lançar a tese de que isso, a partir do século XIX, tenha trazido uma maneira incestuosa dos parentes se relacionarem. As famílias passaram a ser o cerne de perpetuação de um dispositivo de controle dos desejos, tanto na perseguição de um comportamento perfeito idealizado, como na constituição das próprias anormalidades.

Deus chamando-vos para este colégio tinha em vista, sem dúvida, a salvação de vossa alma, e também a de inúmeras almas, que vossas orações mais regulares e fervorosas aqui, unidas as de vossas mestras e companheiras, ajudarão a converter.

O senhor tinha em vista a salvação de vossos pais, por quem haveis de orar aqui de modo mais eficaz, porque vossas preces mais fervorosas estarão impregnadas da confiança que enternece o coração de Deus [...]. (IGREJA, 1919, p. 213)

A família era posta como local de chegada dos valores cristãos. Até o século XVII, o viver era essencialmente social. A família existia como experiência, mas não como sentimento de pertencimento ou valor moral. A sociabilidade dos grupos familiares era quase toda publicitada, sobrando pouco à intimidade. As famílias no século XVIII e, mais marcadamente no século XIX, transformaram-se em pequenas sociedades protegidas, que foram se afastando das relações sociais, das obrigações civis e das tradições (ARIÈS, 2003). Em realidade, uma tensão entre a vida privada familiar, organizada pelas intimidades e um viver público foi mais um dos resultados dos desmanches das sociedades soberanas e a experiência das sociedades industriais. Ou seja, de um lado os costumes específicos comunitários das famílias se chocaram com as exigências de civilidade (SENNET, 1988).

De maneira parcial, a Igreja foi uma das instituições que se aventurou na resolução dessa tensão, com as tentativas de introjeção de uma civilidade própria pela via escolar. Os novos apóstolos se dedicaram a reorganizar as novas relações sociais, com especial atenção para as famílias.

Partia-se do pressuposto de que o mundo público seria viciado e, seguindo esse raciocínio, seria importante partir do rearranjo das virtudes das individualidades, para depois passar para as acomodações parentais e, por fim, lograr alcançar o corpo social. Controlando-se os desejos de maneira rígida, manteriam-se as famílias como os refúgios morais da sociedade, protegidas de uma vida social encarada como corrompida.

O Manual, em sua segunda parte, dedica-se a determinar as ações corretas de um dia de uma menina, desde o acordar, passando pelo vestuário, trabalho manual, as recreações, os estudos, as refeições e como se deve deitar. Afirmava que as jovens deveriam acumular tesouros durante a vida para alcançar a graça de adentrar no paraíso (IGREJA, 1919, p. 118-119).

Chegou a noite... se o dia foi ocupado no desempenho dos deveres, vosso será plácido! Não sentis, todas as noites, pensando no silêncio lúgubre que vai cercar-vos, profundo sobressalto? Este leito com feitio de túmulo, o sono que vai separar-vos do mundo inteiro, a escuridão que vos cerca e através da qual parece que avistais os olhos de Deus que vos examina, a pequena lâmpada que arde sem ruído, tudo isso não vos impressiona? Quando se não tem a consciência tranquila, oh! Como se deve ter medo! À luz do dia parece que talvez se possa lutar com Deus: alguém estaria presente para nos defender... mas de noite... Oh! Silêncio! Recolhimento! Modéstia! Oração! (IGREJA, 1919, p. 208-209)

O livro reforçava uma investigação retrospectiva do eu, que passou a ser um dos objetos primordiais de atuação dos sujeitos na modernidade. Estimularam-se arrependimentos, avivaram-se ascetismos, mortificaram-se quereres carnais; mas, ao mesmo tempo, provocaram-se desejos celestiais, vontades de individualidades, cobiças por um mundo mais seguro. A Igreja e seus agenciamentos, seus enunciados e seus dispositivos convidou os fiéis à construção de si de maneira autônoma. Porém, no limbo, aos cochichos da escuridão, escondendo os prazeres na intimidade da alcova de Cristo e no colo mariano.

Altruísmo, silêncio, autocontrole das afetações e outras mais foram prescrições eclesiais a um tipo de comportamento idealizado feminino, que foram sendo apresentados por este texto, nos trechos selecionados do Manual de piedade da donzela cristã. De uma maneira sutil, foi-se sugestionando uma subjetividade a ser alcançada e que se conecta, justamente, a uma produção disciplinar da mulher, que fora alçada como componente estrutural das famílias, indo além da própria sociedade pós-revolucionária que se constituía. Dentro disso, o indivíduo e os desejos surgidos, as suas ações ocorridas, os seus comportamentos incididos, os amores e as paixões brotadas e os usos da carne, foram se sujeitando a um controle estendido, a uma racionalização proposta, a uma ascese imposta, a uma calibração sugestionada e ao cálculo dos usos do corpo.

Quais os efeitos de poder induzidos e ambicionados, a quem empunhava as verdades geradas pelos discursos acerca do desejo? Essa foi nossa pergunta basilar.

Decorreria daí tomar-se conhecimento sob que maneiras, quais vias e como seriam organizados os discursos competentes acerca dos comportamentos e pensamentos libidinais que chegavam aos indivíduos e lhes conformavam condutas. Para nós, a Igreja ingressou profundamente nessa racionalização do discurso sobre a volição, constituindo, inclusive, uma própria sobre os comportamentos envolvidos com esse tema através do estabelecimento de verdades, assumindo a posição de um centro gerador - principalmente em suas instituições escolares - de uma parte do saber sobre a sexualidade na modernidade, e, mais designadamente, a respeito da mulher.

Recebido em: 30.11.2012

Aprovado em: 24.04.2013

Carlos Manoel Pimenta Pires é doutorando em História da Educação pela Universidade de Lisboa. Pesquisador da Fundação para a Ciência e Tecnologia (Portugal). Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo. Graduado em História pela Universidade de São Paulo.

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  • 1
    - Na França, por exemplo, foi apenas na década de 1870 que o estado francês implementou uma rede escolar primária aberta às meninas, tratadas por igual em comparação aos meninos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      30 Nov 2012
    • Aceito
      24 Abr 2013
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