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Texto e dialogismo no estudo da memória coletiva

Resumos

As ideias bakhtinianas sobre texto e dialogismo oferecem ferramentas importantes para trazer ordem ao caótico e fragmentado campo dos estudos da memória coletiva. Embora a definição de memória coletiva neste momento ainda esteja por ser resolvida, é possível obter alguma compreensão do espectro de opções, situando-se as discussões em termos do contraste entre versões fortes e distribuídas da memória coletiva. Tendo por base a noção de mediação semiótica e as afirmações a ela relacionadas sobre uma versão distribuída da memória coletiva, invoca-se a noção bakhtiniana de texto dialogicamente organizado. O fato de que o 'sistema da linguagem' concebido por Bakhtin inclui as orientações dialógicas do diálogo coletivo, generalizado assim como os elementos gramaticais padrão, significa que ele introduz um elemento essencial de dinamismo na memória coletiva.

Dialogismo; Memória coletica; Mediação semiótica; Bakhtin; Texto


Bakhtinian ideas about text and dialogism provide important tools for bringing order to the otherwise chaotic and fragmented field of collective memory studies. While the definition of collective remembering may remain unsettled at this point, some appreciation of the range of options can be derived by situating discussions in terms of the contrast between strong and distributed versions of collective remembering. Building on the notion of semiotic mediation and associated claims about a distributed version of collective remembering, Bakhtin's notion of dialogically organized text is invoked. The fact that the "language system" envisioned by Bakhtin includes the dialogical orientations of generalized collective dialogue as well as standard grammatical elements means that it introduces an essential element of dynamism into collective remembering.

Dialogic; Collective memory; Semiotic mediation; Bakhtin; Text


Texto e dialogismo no estudo da memória coletiva * * Trabalho apresentado durante a Second International Interdisciplinary Conference on Perspectives and Limits of Dialogism in Mikhail Bakhtin. Estocolmo, Suécia, de 3 a 5 de junho de 2009.

Text and dialogism in the study of collective memory

James V. Wertsch

Washington University

James V. Wertsch é professor dos departamentos de Educação e Antropologia da Washington University at Saint Louis, nos Estados Unidos. Ocupa também o cargo de diretor da McDonnell International Scholars Academy, prestando assessoria a programas em vários países como a Geórgia, a Índia e a China.

Resumo

As ideias bakhtinianas sobre texto e dialogismo oferecem ferramentas importantes para trazer ordem ao caótico e fragmentado campo dos estudos da memória coletiva. Embora a definição de memória coletiva neste momento ainda esteja por ser resolvida, é possível obter alguma compreensão do espectro de opções, situando-se as discussões em termos do contraste entre versões fortes e distribuídas da memória coletiva. Tendo por base a noção de mediação semiótica e as afirmações a ela relacionadas sobre uma versão distribuída da memória coletiva, invoca-se a noção bakhtiniana de texto dialogicamente organizado. O fato de que o 'sistema da linguagem' concebido por Bakhtin inclui as orientações dialógicas do diálogo coletivo, generalizado assim como os elementos gramaticais padrão, significa que ele introduz um elemento essencial de dinamismo na memória coletiva.

Palavras-chave: Dialogismo — Memória coletica — Mediação semiótica — Bakhtin — Texto.

Abstract

Bakhtinian ideas about text and dialogism provide important tools for bringing order to the otherwise chaotic and fragmented field of collective memory studies. While the definition of collective remembering may remain unsettled at this point, some appreciation of the range of options can be derived by situating discussions in terms of the contrast between strong and distributed versions of collective remembering. Building on the notion of semiotic mediation and associated claims about a distributed version of collective remembering, Bakhtin's notion of dialogically organized text is invoked. The fact that the "language system" envisioned by Bakhtin includes the dialogical orientations of generalized collective dialogue as well as standard grammatical elements means that it introduces an essential element of dynamism into collective remembering.

Keywords: Dialogic — Collective memory — Semiotic mediation — Bakhtin — Text.

O estudo da memória coletiva recentemente ganhou nova vida graças aos esforços de estudiosos de várias disciplinas. Ela foi examinada por sociólogos (por exemplo, Schudson, 1992), antropólogos (por exemplo, Cole, 2001), psicólogos (por exemplo, Pennebaker; Gonzalez, 2009; Schacter; Gutchess; Kensinger, 2009), historiadores (por exemplo, Blight, 2009; Winter, 2009) e outros, mas a escassez de colaboração interdisciplinar continua impressionante. As publicações de psicólogos que se propõem a abordar o tópico geral da memória humana frequentemente deixam de mencionar Halbwachs (1980; 1992) ou qualquer outra figura da psicologia ou neurociência que tenha estudado as formas coletivas de memória. Inversamente, não é difícil encontrar tratamentos da memória coletiva por historiadores ou sociólogos que demonstram ter pouco conhecimento da psicologia da memória individual. Em alguns casos, realmente os autores fizeram um esforço para usar ideias e achados de vários campos, mas os limites impostos pelo discurso da disciplina ainda são impressionantes.

As possibilidades de colaboração interdisciplinar para os estudos da memória coletiva permanecerão exatamente assim — possibilidades — até que alguma forma poderosa de síntese seja utilizada, e essa é uma razão para invocar as ideias de Mikhail Mikhailovich Bakhtin. Conforme eu esboçarei abaixo, sua visão intelectual oferece um modelo teórico poderoso sobre o qual pode ocorrer colaboração interdisciplinar. A segunda razão para trazê-lo à cena diz respeito a uma questão que infesta muitas discussões de memória coletiva, nota-damente a tendência a considerá-la como alguma sorte de presença vaga que paira "logo ali" no mundo cultural etéreo. Isso é o que eu tenho chamado uma versão "forte" de memória coletiva, uma abordagem que se opõe a uma versão "distribuída", mais realista e teoricamente mais fundamentada. Conforme Frederic Bartlett (1932) — o pai dos estudos psicológicos modernos da memória — apontou, as versões fortes cometem o erro de se concentrar na memória do grupo ao invés de se restringiram à memória no grupo. Essas versões pressupõem que algum tipo de mente ou consciência coletiva existe acima e para além das mentes dos indivíduos num grupo.

Conforme eu argumentei noutra oportunidade (Wertsch, 1998; 2002), existem várias vertentes da versão distribuída de memória coletiva, mas elas são similares quanto aos seguintes aspectos: a) a representação do passado é vista como compartilhada pelos membros de um grupo, embora b) nenhum compromisso seja assumido com uma mente coletiva do tipo concebido numa versão forte de memória coletiva.

A chave para evitar as ciladas de uma versão forte de memória coletiva é a mediação, especialmente a mediação semiótica, noções cuja genealogia remontam a várias origens. A seguir, eu me apoiarei principalmente nas ideias de Lev Semënovich Vygotsky (1981; 1987) e Bakhtin (1986). Nessa perspectiva, os seres humanos são basicamente animais que utilizam signos, e as formas de ação que desenvolvemos, especialmente falar e pensar, envolvem uma combinação não redutível de um agente ativo e uma ferramenta cultural (Wertsch, 2002). Na linguagem da ciência cognitiva contemporânea, a ação humana, incluindo falar, pensar e lembrar, está "distribuída" entre agente e ferramenta cultural e, portanto, não pode ser atribuída a qualquer um dos dois isoladamente.

Essa é uma linha de raciocínio que tem sido desenvolvida por nomes como Malcolm Donald (1991), que argumenta que o tipo de mediação semiótica que eu tenho em mente emergiu como parte da última das três grandes transições na evolução cognitiva humana. Essa transição envolveu "a emergência de simbolismo visual e de memória externa como fatores importantes na arquitetura cognitiva" (p. 17). Nesse ponto da evolução cognitiva, o motor primordial de mudança não estava dentro do indivíduo. Ao contrário, foi a emergência e o uso amplamente disseminado de formas de "armazenamento simbólico externo", tais como textos escritos, registros financeiros e assim por diante. Ao mesmo tempo, contudo, Donald enfatiza que a transição não deixa os processos psicológicos ou neurais inalterados no indivíduo:

[...] o sistema simbólico externo impõe ao cérebro mais de uma estrutura de interface. Ele impõe estratégias de busca, novas estratégias de armazenamento, novas rotas de acesso à memória, novas opções tanto no controle quanto na análise do próprio pensamento de cada um. (p. 19)

Uma razão importante para introduzir a noção de mediação semiótica, então, é que ela nos permite falar de memória coletiva sem nos comprometermos com uma explicação da versão forte. A esse respeito, cabe ressaltar que, embora Halbwachs (1980; 1992) não tenha dado à mediação textual o grau de importância que ela teria numa análise fundamentada em ação mediada, ele claramente a reconheceu sim como uma parte legítima da história. Num paralelo notável com Donald, ele argumentou que "não faz… sentido procurar onde... [as memórias] são preservadas no cérebro ou em algum recanto da minha mente à qual apenas eu tenho acesso: porque elas são relembradas por mim externamente, e os grupos dos quais eu faço parte em qualquer dado momento me dão os meios para reconstruí-las" (Halbwachs, 1992, p. 38). Ao descrever a memória coletiva de músicos, Halbwachs (1980) expressou-se nos seguintes termos:

Com a prática, os músicos podem lembrar-se dos comandos elementares [de anotações escritas que orientam sua atuação]. No entanto, a maioria deles não consegue memorizar os comandos complexos que compreendem sequências muito extensas de sons. Portanto, eles precisam ter à sua frente as folhas de papel nas quais todos os sinais, numa sucessão apropriada, estão materialmente fixados. Uma vasta parte de suas lembranças é conservada dessa forma - ou seja, fora de si próprios na sociedade daqueles que, como eles próprios, estão interessados exclusivamente em música. (p. 183)

Ao analisar tais fenômenos, Halbwachs (1980; 1992) concentrou-se essencialmente no papel dos grupos sociais na organização da memória e dos estímulos da memória e disse relativamente pouco sobre os meios semióticos empregados. A seguir, eu trago esses meios semióticos para o centro da discussão. É precisamente esse passo que nos encoraja a falar sobre memória coletiva sem pressupor uma versão forte dela. Ao invés de postular uma agência mnemônica vaga que é um fio correndo entre os membros de um grupo, a afirmação é que a memória coletiva é coletiva porque os membros de uma "comunidade mnemônica" (Zerubavel, 2003) compartilham o mesmo conjunto básico de recursos semióticos.

A explicação bakhtiniana de texto

A abordagem de memória coletiva esboçada não explica satisfatoriamente quais formas de mediação semiótica podem estar envolvidas. A esse respeito, eu proponho a noção de "texto" de Bakhtin. No artigo intitulado "O problema do texto em Linguística, Filologia e Ciências Humanas: um experimento em análise filosófica", Bakhtin (1986) propôs "dois polos" de texto.

Cada texto pressupõe um sistema de signos geralmente compreendido (isto é, convencional dentro de um determinado coletivo), uma linguagem compreendida de modo geral... (quem dera também a linguagem da arte). E então por trás de cada texto, há um sistema de linguagem. Tudo no texto que é repetido ou reproduzido, tudo que é repetível ou reproduzível, tudo que pode ser dado fora de um determinado texto (o dado) está em conformidade com esse sistema de linguagem. No entanto, ao mesmo tempo, cada texto (como uma enunciação) é individual, único e não repetível, e aqui reside sua inteira significação (seu plano, o propósito, para o qual ele foi criado)... Com respeito a esse aspecto, tudo que é repetível ou reproduzível prova ser material, um meio para um fim. O segundo aspecto (polo) é inerente ao próprio texto, mas é revelado somente numa situação particular e numa cadeia de textos (na comunicação oral de uma determinada área). (p. 105)

Bakhtin é bastante conhecido por sua teoria da enunciação, uma preocupação que está refletida na afirmação de que a "significação inteira [de um texto] (seu plano, o propósito para o qual ele foi criado)" remonta a seu polo "individual, único e não repetível". A seguir, contudo, eu me concentrarei em grande medida no outro polo do texto, aquele preocupado com os elementos "repetíveis e reproduzíveis" oferecidos por um "sistema de linguagem" que é "convencional dentro de um determinado coletivo".

A primeira inclinação daqueles influenciados pelas ideias da linguística contemporânea seria compreender o que Bakhtin chamou de um "sistema de linguagem" em termos de morfologia, sintaxe e semântica. Isso, no entanto, reflete uma perspectiva muito mais limitada do que aquela que Bakhtin tinha em mente. De fato, sua explicação do polo repetível e reproduzível do texto reconhece esses elementos, mas ela também inclui um segundo nível de organização no "sistema de linguagem" e um segundo nível de análise. Nessa visão, o primeiro nível tem a ver com a análise estrutural de sentenças descontextualizadas e o segundo se foca em "linguagens sociais", "gêneros do discurso" e a "cadeia de textos" na qual um texto ou uma enunciação aparece.

Formulando as ideias de Bakhtin nos termos de uma perspectiva mais familiar para os leitores ocidentais, Michael Holquist (1986) escreve:

A "comunicação", conforme Bakhtin usa o termo de fato, recobre muitos dos aspectos da parole em Saussure, porque ela diz respeito ao que acontece quando pessoas reais em todas as contingências de suas multifacetadas vidas realmente falam umas com as outras. Entre-tanto, Saussure concebeu o usuário individual de linguagem como um agente absolutamente livre com a habilidade para escolher quaisquer palavras para implementar uma intenção particular. Saussure concluiu, não por acaso, que a linguagem usada por milhões de tais sujeitos heterogêneos e donos de sua vontade não era passível de estudo, e era uma selva caótica que a ciência não consegue domesticar. (p. xvi)

Aceitar essa oposição saussureana estanque significa que aprender uma linguagem é um processo de dominar um conjunto de re-gras da langue. Além disso, pressupõe que o uso apropriado das formas de linguagem envolve alguma combinação de escolha individual e contexto cultural. Em síntese, as questões de uso da linguagem e de como enunciações são formatadas por seu posicionamento numa "cadeia de textos" são excluídas do escopo do que se considera propriamente linguagem.

Holquist (1986) enfatiza que um dos insights de Bakhtin foi que o mundo semiótico não precisa ser dividido de modo tão estanque quanto a distinção langue-parole sugere. A esse respeito, Bakhtin (1986) escreveu que

[...] a enunciação, com toda a sua individualidade e criatividade, não pode de modo algum ser vista como uma combinação completamente livre de formas de linguagem, como pressupõe, por exemplo, Saussure (e por muitos outros linguistas depois dele), o qual justapôs a enunciação (la parole), como um ato puramente individual, ao sistema de linguagem como um fenômeno que é puramente social e obrigatório para o indivíduo. (p. 81)

Ao invés disso, Holquist (1986) observa:

Bakhtin... começa por presumir que falantes individuais não têm o tipo de liberdade que a parole pressupõe que eles têm. O problema aqui é que o grande linguista suíço desconsidera o fato de que "além das formas de linguagens há também forma de combinações dessas formas". (p. xvi)

O que Bakhtin tem a dizer sobre essas formas de combinações de formas aponta a necessidade de um segundo nível de análise relacionado com o polo do texto que tem a ver com o que é "repetido e reproduzido". Ele amplia também o que precisa ser levado em consideração quando se fala sobre o "sistema de linguagem" ou "um sistema de signos geralmente compreendido (isto é, convencional dentro de um determinado coletivo)". Levandose esses comentários em consideração, somos naturalmente instados a fazer um conjunto diferente de perguntas sobre a mediação semiótica da memória coletiva. Em particular, somos levados a reconhecer uma forma de dinamismo nas formas de mediação semiótica envolvidas e, portanto, na própria memória.

A chave para compreender as implicações das ideias de Bakhtin (1986) é seu conceito de "dialogismo" e as noções relacionadas de "voz" e "multivocalidade". Em seus textos, ele enfatizou que uma propriedade definidora das enunciações é que elas existem apenas no contato dialógico com outras enunciações e estão, portanto, "preenchidas com nuances1 1 N.T.: O autor emprega o termo overtones, o qual aceita várias traduções além de nuances. Dentre as quais, estão: sugestões, implicações, sentidos e pistas. dialógicas" (p. 102). É esse contato dialógico que oferece a chave para compreender o segundo nível de fenômenos envolvidos no segundo polo de texto de Bakhtin.

Para compreender essa questão, é fundamental a pressuposição de Bakhtin (1981) de que a palavra nunca pertence somente ao falante, ao contrário, "metade dela pertence ao outro" (p. 293) sempre, o que tem como resultado a inerente multivocalidade das enunciações.

[A palavra] torna-se "sua própria" somente quando o falante a povoa com sua própria intenção, seu sotaque, quando ele se apropria da palavra, adaptando-a a sua própria intenção semântica e expressiva. Antes desse momento de apropriação, a palavra não existe numa linguagem neutra e impessoal (afinal de contas, não é do dicionário que o falante pega suas palavras!), mas, ao contrário, ela existe nas bocas de outras pessoas, nos contextos concretos de outras pessoas, servindo às intenções de outras pessoas: é dali que a pessoa deve pegar a palavra e fazê-la sua. (p. 293-294)

Ao lidar com enunciações da perspectiva do primeiro polo de texto de Bakhtin, as análises sociolinguísticas contemporâneas não têm grandes problemas para compreender os fenômenos envolvidos. Por exemplo, as afirmações bakhtinianas são consistentes com as análises de como as enunciações podem ser coconstruídas ou de como elas podem ser respostas abreviadas a uma questão (Falante 1: "Que horas são?" Falante 2: "Duas e quarenta e cinco.").

O que é significativo, contudo, é que Bakhtin viu que a afirmação de que pelo me-nos metade da palavra pertence ao outro se aplicava à linguagem - não ao texto ou à enunciação. E isso levanta a questão mais uma vez de um nível de análise que vai além das categorias de langue e parole. Especificamente, ele envolve um nível de fenômenos de linguagem que existem, por um lado, como fatos sociais compartilhados coletivamente sobre a organização de enunciações, mas que, por outro lado, não são reduzíveis às explicações padrões de categorias gramaticais.

Para tentar compreender o que Bakhtin tinha em mente a esse respeito, é útil introduzir uma distinção entre "diálogo local" e "diálogo coletivo generalizado" (Wertsch, 2002). Diálogo local é o que Bakhtin (1981) às vezes chamou de "dialogismo primordial do discurso" (p. 275) e envolve os modos como as enun-ciações concretas de um falante entram em contato com - ou "interanimam," influenciam mutuamente - as enunciações de outro. Essa forma de interanimação dialógica envolve a "comunicação verbal vocalizada direta, face a face, entre pessoas" (Voloshinov, 1973, p. 95) e é o que normalmente nos vem à mente quando encontramos o termo "diálogo".

Para Bakhtin (1986), contudo, as vozes de múltiplos falantes entram em contato num nível de diálogo coletivo generalizado também, e isso leva aos modos adicionais como as palavras podem ser "preenchidas com nuances dialógicas" (p. 102). A noção de diálogo coletivo generalizado tem a ver com modos como as enunciações podem refletir a voz de outros, incluindo grupos inteiros, que não estão fisicamente presentes na situação imediata de fala.

Em seus textos, fica claro que Bakhtin (1986) tinha em mente algo como essa distinção. Ele via o diálogo como algo que vai des-de o diálogo primordial face a face do discurso apresentado acima, que se encaixa na categoria de diálogo localizado, até intercâmbios contínuos, virtualmente da sociedade toda, que se encaixam na categoria de diálogo coletivo generalizado. Um destinatário pode ser

[...] um participante-interlocutor imediato em um diálogo cotidiano, um coletivo diferenciado de especialistas em alguma área específica de comunicação cultural, um público mais ou menos diferenciado, um grupo étnico, contemporâneos, pessoas de mesma opinião, opositores e inimigos, um subordinado, um superior, alguém que está abaixo, acima, que é familiar, estrangeiro e assim por diante. E também pode ser um outro indefinido, não concretizado. (Bakhtin, 1986, p. 95)

Recursos textuais dialogicamente organizados e memória coletiva

A abordagem de memória coletiva aqui esboçada dá lugar central à mediação semiótica. Ela dá importância central especificamente aos recursos textuais dialogicamente organizados, conforme concebidos por Bakhtin. Por um lado, isso significa que a memória não pode ser considerada equivalente, ou reduzida, à mediação semiótica isoladamente porque o polo de texto "individual, único e não repetível" assegura um papel para um agente ativo em um contexto concreto. Por outro lado, porque "metade da palavra é do outro" sempre, qualquer narrativa do passado reflete os recursos oferecidos por um contexto sociocultural mais amplo e, de acordo com a concepção dele, eles implicam a tendência à contestação, oposição e outras formas de encontro dialógico. Dentre as formas de dialogismo sugeridas pela análise de Bakhtin (1984), eu me focarei em uma em particular e em suas implicações para a memória coletiva. Isso é o que ele denominou "dialogicidade escondida".

Imagine um diálogo de duas pessoas no qual as afirmações do segundo falante sejam omitidas, mas de tal modo que o sentido geral não seja nada violado. O segundo falante está presente invisivelmente, suas palavras não estão lá, mas os traços profundos deixados por essas palavras têm uma influência determinante em todas as palavras presentes e visíveis do primeiro falante. Nós sentimos que se trata de uma conversa, em-bora apenas uma pessoa esteja falando, e é uma conversa do tipo mais intenso, porque cada palavra enunciada, presente, responde e reage com toda a sua fibra ao falante invisível, aponta para algo fora de si própria, além de seus próprios limites, para as palavras não ditas de outra pessoa. (p. 197)

Como ilustração das implicações da dialogicidade escondida para a memória coletiva, considere a análise que Tulviste e Wertsch (1994) oferecem da história oficial e oficiosa da Estônia soviética. Eles argumentam que a emergência de uma história não oficial entre os estonianos étnicos resultou precisamente do tipo de dinâmica esboçada por Bakhtin. Nesse caso, as duas vozes envolvidas foram, de um lado, as autoridades soviéticas e a narrativa histórica que elas produziram em instituições públicas tais como escolas e, de outro lado, as respostas produzidas pelos estonianos étnicos em esferas não públicas, tais como as famílias e os grupos de pares.

Tais respostas se fundamentaram em grande medida em observações significativas pessoais de indivíduos, mas elas foram moldadas por recursos textuais oferecidos pela cultura de resistência na qual eles viveram. Especificamente, os recursos textuais que eles compartilharam foram largamente organizados em torno de um esforço para refutar a narrativa soviética oficial. Essa tendência foi tão central que a memória coletiva não oficial consistiu de pouco mais que contranarrativas cuja força motriz foi a necessidade de refutar as narrativas oficiais do passado.

Esse caso ilustra vários dos pontos discutidos acima sobre memória coletiva. Primeiro, ele revela um tipo de dinamismo, algo que é ainda mais impressionante quando se considera que ele existiu num contexto em que as autoridades estatais tentavam eliminar a resistência e a contestação. Segundo, esse dinamismo não é algo que pode ser reduzido a processos individuais. Ao contrário, havia consistência entre os membros da comunidade mnemônica estoniana em sua narrativa da história não oficial, algo que aponta para os recursos textuais compartilhados que ajudaram a constituir essa comunidade de resistência. E terceiro, o dinamismo envolvido no diálogo escondido entre a história oficial e a não oficial tornou-se possível, ou melhor, foi quase construído com os recursos semióticos empregados. O "sistema de linguagem" bakhtiniano que foi envolvido incluiu elementos repetidos e reproduzíveis, mas eles foram muito além da organização gramatical e introduziram vozes politicamente situadas que convidaram à resistência, à refutação e a outras for-mas de encontro dialógico.

Uma característica final das formas de mediação semiótica envolvidas nesse episódio de memória coletiva é que elas operaram de uma maneira largamente inconsciente. Em tal contexto, os indivíduos frequentemente afirmam que eles estão simplesmente relatando "o que realmente aconteceu." Ou seja, eles presumem uma forma de mediação semiótica que reconhece a relação entre os signos e um mundo referencial de eventos e objetos, mas desconsideram até que grau os recursos textuais empregados são dialogicamente situados e moldados. O resultado é que nós frequentemente deixamos de reconhecer até que ponto a memória coletiva é fundamentalmente um processo político que é moldado pelos recursos textuais dialógicos empregados. O dialogismo escondido é escondido mesmo e pode levar ao confronto rígido e implacável quando ambas as partes apresentam o que elas honestamente consideram ser as narrativas de "o que realmente aconteceu".

Conclusão

Em resumo, as ideias bakhtinianas sobre texto e dialogismo oferecem ferramentas importantes para trazer ordem ao caótico e fragmentado campo dos estudos da memória coletiva. Embora a definição de memória coletiva neste momento ainda esteja por ser resolvida, é possível obter alguma compreensão do espectro de opções, situando-se as discussões em termos do contraste entre versões fortes e distribuídas da memória coletiva.

Eu argumentei que as ideias de Bakhtin oferecem um modelo teórico útil para integrar os estudos interdisciplinares e para evitar algumas das versões fortes e reducionistas da análise da memória coletiva que emergem de modo demasiadamente fácil e, frequentemente, de forma implícita. Tendo por base a noção de mediação semiótica e as afirmações a ela relacionadas sobre a versão distribuída de memória coletiva, foi introduzida a noção bakhtiniana de texto dialogicamente organizado. O fato de que o "sistema de linguagem" concebido por Bakhtin inclui as orientações

dialógicas de diálogo coletivo generalizado cial de dinamismo na memória coletiva. E é assim como os elementos gramaticais-padrão esse elemento que ajuda a explicar não apesignifica que ele introduz um elemento essen-nas a dinâmica dimensão política da memória coletiva, mas também como ela pode mudar ao longo do tempo.

Correspondência:

James V. Wertsch

Departamento de Antropologia

Washington University in St. Louis

St. Louis, MO 63130, USA

e-mail: jwertsch@wustl.edu

Recebido em 27.08.09

Aprovado em 12.12.09

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  • *
    Trabalho apresentado durante a Second International Interdisciplinary Conference on Perspectives and Limits of Dialogism in Mikhail Bakhtin. Estocolmo, Suécia, de 3 a 5 de junho de 2009.
  • 1
    N.T.: O autor emprega o termo overtones, o qual aceita várias traduções além de nuances. Dentre as quais, estão: sugestões, implicações, sentidos e pistas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      27 Ago 2009
    • Aceito
      12 Dez 2009
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