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Entrevista: depoimento de Jaime Cubero

ENTREVISTAS

Entrevista: Depoimento de Jaime Cubero * * A presente reprodução é seleção de momentos da entrevista-depoimento, que rendeu 10 fitas gravadas e 63 páginas datilografadas, espaço um. Outros assuntos, ligados ao anarquismo, abordados foram: Estado amplo, automação e gestores modernos; reconstrução do C.O.B.; futuro do anarco-sindicalismo; antimilitarismo e a coluna "Guerra a guerra"; imprensa operária no Brasil e na Europa; C.N.T., A.I.T. e F.A.I.; o anarquismo na Espanha, França e Itália, na atualidade; teatro operário; Teatro Oberdan e Teatro Colombo, o bairro do Brás; o próprio Jaime como ator de peças proletárias; autores do teatro operário brasileiro; a pintura de Gueda Brentani, retratando casas operárias do Brás do início do século; Universidade Livre; Guerra Civil Espanhola; F.O.R.A. e F.A.L. da Argentina; a militância de Diego Abad de Santillán; a obra de Edgar Rodrigues etc.

cedida a Antonio José Romera Valverde, entre 05 e 09 de maio de 1989, no Centro de Cultura Social, em São Paulo.

"O anarquismo é uma utopia positiva"

(Jaime Cubero)

Valverde: Jaime, você freqüentou escola, formalmente, até que grau e série?

Jaime: Eu propriamente só tenho o curso primário, fiz três anos do curso primário. Quando tinha sete anos, ingressei no primeiro ano escolar, em Jundiaí, depois interrompi quando me transferi para São Paulo. Eu tinha ficado órfão de pai e, junto com meus irmãos — três homens e três mulheres —, fomos divididos pela família. Ficamos três com os avós paternos e três com os avós maternos. Posteriormente, a família resolveu reunir todos os irmãos com minha mãe, então eu vim para São Paulo. E tive que sair da escola. Chegando em São Paulo, como não havia vaga no primeiro ano escolar, eu fui matriculado logo no segundo ano para aproveitar a vaga que existia. Assim, eu praticamente estudei três anos do curso primário. E essa foi toda minha formação em bancos escolares. Eu tenho um diplominha que recebi no Grupo Escolar, do primário. Naquela época, o ensino era de quatro anos de primário, cinco de ginásio, depois havia um ou outro curso na fase terciária, por fim a universidade.

Valverde: Jaime, você se considera um autodidata?

Jaime: Considero-me, dentro dos meus conceitos de autodidatismo. Um autodidata, porque com a instrução que eu recebi no curso primário, não daria para fazer o que faço hoje, inclusive participar e até ocupar o cargo que ocupo aqui no Centro de Cultura Social. Eu não teria condições intelectuais nem nível para fazer o que faço se eu não tivesse uma instrução adequada para exercer essa função e mesmo para registrar um certificado de jornalista profissional, como cheguei a registrar. Se eu não tivesse uma instrução autodidata, não conseguiria grande coisa.

Valverde: Do seu ponto de vista, o que é ser autodidata?

Jaime: Essa é uma pergunta que demandaria muita reflexão... Aí nós teríamos que desenvolver todo um conceito, porque, é claro, o anarquista tem um conceito de educação que se contrapõe a toda concepção de educação dada pelo sistema capitalista, pelo sistema do poder constituído, que se propõe a reproduzir os valores do sistema eternamente, visando uma reprodução constante do sistema e da ordem.

O anarquista pensa em alterar, em modificar a sociedade. Para modificar a sociedade, ele considera que o ensino, a instrução, o conhecimento são alavancas necessárias. As pessoas têm que se munir de conhecimentos para poder agir no sentido de mudar a sociedade, o que significa mudar a estrutura social. Então, é claro, não é por meio da escola oficial que as pessoas vão se preparar para mudar a sociedade. É mediante a aquisição de conhecimentos que possam gerar e desenvolver uma consciência crítica. Para quê? Para justamente se contrapor à estrutura da sociedade, como ela está constituída, e poder trabalhar para criar uma nova sociedade.

A partir dessa concepção, valoriza-se extraordinariamente a educação, o aprendizado, o conhecimento, por outras vias, que não as convencionais, e que começaram a ser desenvolvidas dentro das associações dos trabalhadores, desde o século XIX. Isso é algo que não se tem notícias precisas das origens. Acredito que exista desde que surgiu a necessidade de se libertar da própria opressão sentida pelos grupos sociais ao tomarem conhecimento de certos aspectos sociais. Começou então um processo de estudo, de informação para poder combater essa opressão, mas nós não podemos situar isso no tempo. Podemos dizer que foi a partir de um movimento criado pela perspectiva do movimento libertário desde o século XIX. A partir de então, os trabalhadores começaram a se organizar, foi quando começou a surgir realmente o movimento de massa, as associações de trabalhadores, de operários, que começaram a se organizar para se defender da extrema exploração de que eram vítimas. Aí, então, iniciaram a criação de instâncias de estudo, visando o conhecimento entre eles mesmos. Cito os exemplos da Espanha e do Brasil.

Eu posso citar o exemplo do meu pai e ele não era propriamente vinculado ao movimento, mas teve uma experiência que foi passada por meio do que se fazia na Europa. Meu pai era o único que sabia ler nas fazendas, em Jundiaí, onde a família trabalhava. Ele reunia todas as noites, depois do trabalho, um grupo de colonos. E à luz de lampião, lia para eles, ensinava os outros a ler. Não era uma escola formal, como você vê, mas eles liam jornais e o que conseguiam. Os mais aptos, aqueles que tinham mesmo vontade de aprender a ler, queriam saber gramática também. Isso porque depois iam substituindo o meu pai em outros núcleos. Esse processo foi se disseminando e as pessoas foram desenvolvendo formas de passar conhecimentos, de passar instrução, de uma forma autogerida pelos próprios trabalhadores, fora da escola oficial. E por meio dessas lutas, juntando aquelas experiências mais as reclamações da população nos movimentos sociais de massa dos trabalhadores, foram sendo criadas escolas, legitimando essas conquistas. Depois as escolas passaram a estar a serviço do próprio sistema, porque recebiam um programa previamente elaborado, dirigido no sentido de implementar nos alunos os valores da "ordem". Então, dentro dessas formas de ensino, dessas formas de passar conhecimento, de passar instrução, o caso é muito amplo.

É claro que há uma variação enorme de indivíduo para indivíduo, do potencial de cada um, da inquietude que cada um tem, porque surgem militantes que têm mais bulbo, outros menos, que têm um potencial até revolucionário maior do que outros. Então, sentem necessidade de saber mais, de se informar mais, daí lerem mais, especular mais. Assim começa o processo do autodidatismo, do ensino mútuo. Coisa semelhante é o que se passou na Espanha do século passado.

A minha experiência pessoal está dentro desse aspecto do autodidatismo. Muito jovem, depois que eu saí da escola, senti uma necessidade muito grande de continuar estudando. Sentia mesmo. Eu posso contar uma experiência, uma frustração terrível de não poder continuar os meus estudos na escola.

Houve um concurso na escola de primeiro grau, onde fiz o curso primário, para escolher em toda a escola um aluno que obtivesse a melhor nota, média. Esse aluno receberia uma bolsa de estudos, e eu ganhei o concurso, com uma diferença muito grande para o segundo colocado, mas eu não pude aproveitar aquela bolsa porque tinha que trabalhar, tinha que colocar alguma coisa em casa.

Com onze anos, comecei a trabalhar numa fábrica. Eram quase treze horas de trabalho por dia. Era o que se trabalhava por dia naquela ocasião. Era o ano de 1935, e eu entrava no trabalho às sete horas da manhã e saia às oito horas da noite, parava só para um lanche, uma refeição ligeira, sem interrupção, praticamente. Eu não pude continuar a estudar e a bolsa de estudos ganha foi cedida ao segundo colocado. Por aí você percebe as diferenças de oportunidades. É claro que a presença de um professor, um orientador, com critérios mais ou menos libertários, como os da Escola de Ferrer, faz muita diferença no tratamento com os alunos...

A minha formação libertária deve muito a um professor que tive no último ano da escola, pois hoje — e mesmo antes quando comecei a ganhar consciência política — o considero um professor libertário. Ele se chamava Noel Carlos dos Santos. Um dia, ele chegou e me disse: "Bom, você não pode ir para o ginásio, onde você ganhou a bolsa de estudos, mas poderá estudar, eu tenho um externato, e você vem estudar comigo, você não vai pagar nada, te dou os livros, você só terá que dispor das horas". E nem isso eu pude aproveitar pela necessidade de ter que estar na fábrica, para ganhar algum. Os meus irmãos todos, que tinham de dez anos em diante, já trabalhavam.

Aquele professor já era um libertário, não só pela generosidade, mas porque os métodos que ele aplicava na sala de aula contrariavam tudo que estava estabelecido nas escolas. Enquanto era comum aplicar castigos rigorosos para aqueles colegas que copiavam dos outros, que colavam etc., ele juntava os alunos mais atrasados — com dificuldades de compreensão — com os mais adiantados para estudarem em grupo. Dizia que o aluno, às vezes, aprende mais com o colega que com o próprio professor. Então, nós fazíamos sempre esse remanejamento.

Na ocasião dos exames finais, ele disse: "Vocês são filhos de trabalhadores", a maioria já tinha idade e trabalhava em fábrica. "Vocês não vão ter condições de continuar os estudos, o que é uma pena". Sentindo o problema, disse: "O que quiser continuar estudando vai ter que estudar por si mesmo". Era a forma da autopedagogia, do autodidatismo. Na hora dos exames, disse ainda: "Ninguém vai ser reprovado nessa sala". E sendo coerente com seu método de ensino, montou pequenos grupos, com alunos que sabiam mais e outros que sabiam menos. Dizia: "Fulano, fulano e fulano sentam juntos com fulano". E todos fizeram as provas baseados naqueles que conheciam mais, os mais habilitados. Lembro que, pessoalmente, na prova de Matemática, resolvi rapidamente os problemas e comecei a copiar e passar a solução para os colegas próximos e me atrasei. Atrasei tanto que, quando apareceu na porta o subdiretor dizendo que tínhamos cinco ou dez minutos para acabar a prova, eu ainda não tinha feito a minha, aí na hora da sofreguidão para copiar, acabei invertendo a resposta e a solução apareceu trocada. Tirei uma nota abaixo da dos companheiros que havia ajudado. Isso foi um detalhe engraçado que não esqueço até hoje.

Mesmo assim, ficou o exemplo edificante de professor. Naquela época, havia uma pobreza tão grande, a gente lutava com tanta dificuldade, que os alunos não podiam comprar quase nada. Muitos não tinham calçados, outros não tinham uniformes e a Secretaria de Ensino Estadual fez uma determinação: a partir de certa data, todos os alunos deveriam usar uniforme. Calça branca e paletó azul. Era uma pobreza brutal. O tempo ia passando e eu não conseguia adquirir o uniforme. Lembro-me que as minhas tias de Jundiaí me deram a calça branca, que usei durante os três anos de curso - a mesma calça. Já o paletó era de saco de farinha tingido de anil. Minha irmã, que tinha doze anos e já costurava, fez o paletó para mim. No entanto, muitos não conseguiam de jeito nenhum o tal uniforme. Então, o diretor lançou um desafio: a primeira sala de aula que conseguisse se apresentar inteirinha uniformizada ganharia um dia de folga e uma bola para jogar. Aquilo para nós foi um estímulo enorme, pois eu passava todas as minhas poucas horas de folga jogando futebol na rua.

De novo, nosso professor mostrou sua face mais generosa e compreensiva. Disse: "Bom, é uma competição e é ruim a gente estar brigando com os outros, pois alguns vão perder, seria bom que todos pudessem vir uniformizados, mas nós formamos uma pequena comunidade...". Me lembro bem das palavras dele. "Somos uma classe, podemos perder porque tem aqui pessoas que não podem comprar de jeito nenhum até o dia marcado ou mesmo mandar tingir uma... Vamos fazer um esforço e cada um vai dar um tantinho que puder para comprar a roupa deles, mesmo se for para a gente não jogar bola, mas somente para mostrarmos o nosso esforço comum, nossa luta". Foi assim, e cada um deu vinte réis.

Valverde: Em solidariedade...

Jaime: A solidariedade era muito marcante entre nós. Cheguei em cada e contei essa história. Os recursos em casa ficavam com minha avó, aquela coisa de medir os tostõezinhos. Digo isso de uma forma simbólica, mas não estava muito longe da realidade de dividir um ovo em três. Minha avó fazia aquelas tortillas de ovo e cortava em pedacinhos, que não correspondiam a um ovo por pessoa. Era uma pequena multidão o conjunto de todos os irmãos na hora da alimentação. Fizemos uma espécie de conselho e me deram a moedinha. Para mim, foi uma vitória junto com a classe poder concorrer e acabamos ganhando. E fomos jogar futebol. De novo o professor foi magnânimo, conseguiu que o diretor dispensasse também a outra sala que não tinha conseguido uniforme para todos os alunos. Foi uma boa experiência e aprendi o que pode a solidariedade... Aquele professor tinha mesmo um espírito libertário. Demoro nesse aspecto porque realmente teve uma grande influência na minha vida.

Ainda menino, com onze anos, eu chegava a ir até a porta do Colégio, ficava rondando, morrendo de vontade de entrar, sofria quando via as crianças entrando. Voltava para casa, procurava um livro para ler. Minha avó tinha o hábito de ler romance e comprava uns, tipo folhetim, que vinham como encarte, um por semana. Nós líamos para ela, que não lia português, embora entendesse corretamente. Tinham coisas curiosas naquele tempo. Por exemplo, os horários. Marcava de jogar bola com a meninada na rua e estava lá na hora marcada. Tinha também o horário de ler o folhetim para minha avó e, às vezes, coincidiam. Então, eu lia atropeladamente para poder chegar a tempo ao jogo, mas ela me obrigava a ler de novo, pausadamente. Claro, perdia o jogo.

Aquela leitura, em princípio, era quase um castigo, mas me ajudou muito, porque era obrigado a ler em voz alta. Leitura em voz alta é um exercício muito bom, porque se aprende a falar corretamente cada palavra, dar as ênfases necessárias da leitura para que o ouvinte entenda e aprecie. Prestar atenção nos tempos verbais e mais serve para dominar a língua, embora a linguagem utilizada nos folhetins não fosse lá essas coisas em termos de literatura... Teve um desses romances que era insuportável, até pelo título: A princesa seduzida e o condenado à morte. Terrível no nome e em tudo, com mais de cem fascículos. Não terminava nunca. Em compensação, li um com cunho social, que contava a vida de trabalhadores em contraste com a dos donos das empresas, chamado As damas da miséria. Este li em voz alta mais de uma vez. E quando acabava de ler um livro, como não havia outro de imediato para ler, relia aquele mesmo. Outras vezes, tinha que reler como castigo por alguma desobediência. Uma vez fiquei na rua até tarde, num racha de bola. Como tinha passado a hora do jantar, fiquei de castigo por umas duas semanas, sem sair, só lendo. O racha não acabava nunca, era na base do doze vira e vinte e quatro acaba, só que não acabava nunca. Jogávamos sob o luar, que era fantástico. Quando chegava em casa, era aquela surra porque todos já tinham jantado.

Isso acontecia antes de começar a trabalhar. Porque depois, já trabalhando, passava em sebinhos e comprava livros. Uma ocasião, nunca esqueço, comprei um calhamaço com umas oitocentas páginas. Naquela época, os livros eram muitos volumosos e num só volume. Comprei pelo tamanho e disse: "Aqui tem leitura barata e boa por muito tempo". Quando cheguei em casa, minha avó ficou curiosa e quis saber se eu ia ler tudo e do que tratava. Comecei também a comprar revistas. Havia uma, tipo Seleções, mas toda feita aqui no Brasil mesmo. Esta reproduzia artigos e publicações do mundo inteiro, com informações científicas, políticas e sociológicas. Comprei a coleção inteira, aos poucos. Foge-me o título, mas não era a Hoje.

Valverde: E o conceito de autodidatismo sob a concepção anarquista ou socialista libertária?

Jaime: Desde o início, quando comecei a participar do movimento anarquista, entrei em contato com militantes que não tiveram nenhuma escolaridade regular, mas que demonstravam muito saber e conhecimento. Eu os admirava muito. Pensava que o conhecimento deles, a facilidade de falar, de escrever, era uma coisa adquirida com muito empenho pessoal e obstinação. Como uma verdadeira obrigação e envolvimento com o conhecimento e a militância. Uma responsabilidade de saber, mesmo sem condições materiais, sem condições de cursar regularmente qualquer coisa. Sentia que aquelas pessoas tinham a obrigação, impostas por elas mesmas, de procurar se instruir, de procurar os livros, de questioná-los. Logo que entrei para o Centro de Cultura Social, com dezoito anos, fui percebendo o que se passava a minha volta e formei o conceito do que é ser militante anarquista. Se ele vai lutar no movimento pela mudança da sociedade, ele tem que estar preocupado com a sua formação intelectual. Nesse aspecto, eu me empolgava muito com os discursos do Edgard Leuenroth, sobre a formação e autoformação intelectual do militante, e o admirava demais. Ele foi para mim um ótimo exemplo de autodidata... Encontrei também o Pedro Catallo, que era sapateiro e escreveu muitas peças de teatro, sem nunca ter abandonado a sua bancada onde fazia sapatos. Ele dizia: "A formação intelectual é um dever ser, no sentido do sujeito se preparar, pois o saber é o meio de libertação, o instrumento de luta, mais objetivo e preciso ao seu alcance". Isso calava fundo em mim, porque quando o sujeito vai defender uma posição, como a do anarquismo, que do meu ponto de vista é superior em relação às outras posições políticas, ele tem que assumir a responsabilidade de defendê-la de fato. Porque o anarquismo não pressupõe a conquista do poder pelo poder, simplesmente, nem deseja os privilégios ou a conquista de bem-estar só para alguns poucos. O anarquismo é contrário aos padrões morais da sociedade de consumo.

O norte do anarquismo repousa em fundamentos puramente éticos e morais, porque o anarquista sente, simplesmente, prazer em ser digno. É a atitude ética que ele coloca em face da justiça, da eqüidade, da dignidade humana, da elevação e superação do homem pelo homem. Como o homem tem um potencial imenso voltado para a vontade de conhecer, isso tem que ser canalizado para procurar saber cada vez mais, sem limitações. Essa experiência de procurar o conhecimento eu vi em todos os militantes anarquistas, que não tinham freqüentado os bancos escolares. Liam seus livros e, sempre que saia um livro novo, liam, estavam sempre estudando e discutindo no Centro de Cultura. Ainda há pouco, estive em Porto Alegre e encontrei o Augusto1 1 . Trata-se do militante anarquista espanhol, José Augusto GUARDIA, autodidata, membro da C.N.T., que lutou na Guerra Civil Espanhola. Durante a juventude, morou em Paris e entrou em contato com Jean Grave, Nestor Mackno, Sebastian Faure, dentre outros. . Ele está com 84 anos, quase cego, diabético, mas passa todo o tempo lendo. Incrível, a leitura. Depois de um certo tempo, passa a compor uma segunda natureza do militante anarquista. O Augusto doou toda a biblioteca dele, com livros muito bons, alguns raríssimos hoje em dia. No entanto, me disse: "Vou ficar com esses, que ainda estou estudando". Sabe como ele lê? Com muita dificuldade, numa mão segura a lupa e, na outra, o livro. Foi assim, também, quando conheci o Oiticica, no Rio de Janeiro. Ele estava com 74 anos, tinha já uma formação completa, acadêmica, foi professor a vida toda, deu cursos na Alemanha. Sabe o que ele estava fazendo? Estudando russo e, ao mesmo tempo, como músico, estudando Bach. Não admitia que o avançado dos anos pudesse empobrecer o espírito.

O Mário Ferreira dos Santos, que era formado em Direito — a família tinha tradição na área — e que foi autodidata em Filosofia, dizia que o ato humano para ser verdadeiramente humano tem que ser livre. Num livro dele, intitulado Filosofia e História da Cultura, havia uma análise do que ele chamou de "considerações em torno do ato humano". Primeiro, o sujeito tem que ter vontade de executar o ato. Segundo, ter conhecimento da finalidade do ato. Por último, liberdade para a execução do ato. Senão, não é ato humano. Assim, se passa com o conhecimento. Com o ato de conhecer. É preciso liberdade para conhecer, para além do que o Estado e as autoridades impõem. Mário Ferreira chamava de nesciência, a ausência de conhecimento e de saber, em que o sujeito age sem compreender a finalidade do seu ato. Isso pressupõe a necessidade de um norte, uma orientação política para o conhecimento. Os animais agem instintivamente, mas com o homem é diferente: o que conta é a racionalidade do projeto. E para o militante da causa operária, sobretudo o anarquista que tenta pensar a sociedade com uma abrangência maior, atingir um nível de conhecimento e consciência é imprescindível.

Valverde: Jaime, como os ateneus, de modo geral, e o Centro de Cultura Social de São Paulo, em particular, promoveram a cultura e o autodidatismo dos militantes?

Jaime: A resposta é longa. Antes um pouco de história e propaganda. O Centro de Cultura Social de São Paulo foi fundado em 14 de janeiro de 1933, como remanescente das entidades culturais criadas pelo movimento anarco-sindicalista e libertário nas primeiras décadas do século XX.

Quando o fluxo imigratório se acentuou a partir dos últimos anos do século passado [séc. XIX], os trabalhadores que aqui chegavam, muitos deles saídos da militância anarquista na Europa, ao organizarem suas sociedades de resistência, não só para a luta por melhores condições de vida, mas movidos por ideais de transformação social, passaram a criar seus centros de cultura.

Cada associação, união, liga — ou como se chamasse a entidade profissional fundada — procurava criar o seu centro, ateneu ou grêmio cultural, transportando para o Brasil a prática do Movimento Libertário europeu e a preocupação permanente dos anarquistas com a educação e a cultura. Criou-se uma vasta rede de entidades culturais entre os trabalhadores, com suas bibliotecas, publicações, elencos teatrais etc. Pouca coisa restou da sanha policial nos longos períodos de repressão, quando bibliotecas, periódicos, programas e documentos eram destruídos. Só o zelo e uma resistência, em surdina, possibilitou a alguns militantes salvar o suficiente para testemunhar a imensa obra desenvolvida. Exemplifico com algumas entidades, dentre muitas outras, cujo registros e documentos foram mantidos: Grupo Filodramático Social (1905); Grupo Filodramático do Centro de Estudos Sociais do Brás (1906); Grupo Libertário do Brás (1910); Grupo Aurora LIbertas (1911); Círculo de Estudo Sociais Francisco Ferrer (1912); Circolo Filodramático Libertário (1914); Centro Feminino Jovens Idealistas (1915); Associação Universidade Popular de Cultura Racio-nalista (1915); Centro de Estudos Sociais Juventude do Futuro (1920); Grupo Nova Era (1922); Biblioteca Social A Inovadora (1924). Todas de São Paulo. Essas entidades se espalharam pelo Brasil, com predominância em São Paulo e no Rio de Janeiro.

A partir de 1930, com refluir do movimento — por uma conjugação de fatores, que não cabe tratar aqui — os militantes de São Paulo decidiram fundar uma entidade que, atendendo aos seus objetivos culturais e educativos, servisse de instrumento para desenvolver suas atividades como marco inicial de uma retomada na caminhada dos ideais libertários. Consta dos estatutos do Centro de Cultura Social que este tem por finalidade "estimular, apoiar e promover nos meios populares e, principalmente entre os trabalhadores, onde as possibilidades de cultura são limitadas por toda espécie de empecilhos, o estudo de todos os problemas que se relacionam com a questão social". E mais: que o Centro "trabalhará para desenvolver nos meios populares o espírito de solidariedade... condena todas as formas de tirania que prejudicam as liberdades individuais e coletivas; todas as formas de exploração, que anulam as possibilidades econômicas para o desenvolvimento do indivíduo...". E mais, se propõe a "auxiliar a fundação de centros com igual finalidade em subúrbios e em outras cidades, estabelecendo com estes e com as entidades já existentes uma obra de trabalho conjunto".

Desde sua fundação, o Centro de Cultura Social promove intensa atividade cultural. Já em janeiro de 1933, anunciava a conferência da escritora argentina Concepción Fernandez, subordinada ao título de "Música como fator de aproximação dos povos". No dia 23 de julho do mesmo ano, anunciava grande ato comemorativo do primeiro aniversário da morte de Errico Malatesta. Além das conferências, houve cursos, exposições, montagens teatrais com grupo próprio etc. O Centro de Cultura Social participou de campanhas políticas de envergadura, como a luta antifascista, juntamente com o jornal A Plebe e outros órgãos libertários. Promoveu comícios, publicou panfletos e, em sua sede, se reuniam os militantes, que culminaram enfrentando os integralistas no dia 4 de outubro de 1934. O Centro de Cultura Social sempre esteve presente nas lutas dos trabalhadores.

Em 1937, em conseqüência do golpe fascista de Getúlio Vargas, o Centro foi fechado, reabrindo em 2 de junho de 1945 e, novamente, sustou as atividades no dia 21 de abril de 1969, logo após ser promulgado o Ato Institucional número 5, embora houvesse resistido à ditadura militar desde março de 1964 até aquela data, com a criação do Laboratório de Ensaio, a mais fecunda experiência do Centro de Cultura Social no campo das artes. Não sendo possível prosseguir, o Centro só voltou plenamente à vida ativa a partir de 14 de abril de 1985.

Seria por demais longo e exaustivo fazer um registro, mesmo parcial, da trajetória do Centro de Cultura Social. Um ou outro exemplo citado, quiçá os menos ilustrativos, não instrui sobre o essencial, o quanto importante, necessária e fundamental é sua atividade para o desenvolvimento do Movimento Libertário.

A idéia do Centro origina-se do Ateneu Libertário. A palavra ateneu vem do grego, athenáion, nome que designava as associações de caráter cultural, científico ou literário, entidades não oficiais de instrução como academias. O nome também se aplicava ao local onde ocorriam as reuniões dessas sociedades.

A partir da segunda metade do século XIX, na Europa, fundaram-se os primeiros Ateneus Libertários, dedicados a fomentar a cultura entre o proletariado. Os ateneus foram grandes promotores da arte, da cultura e do conhecimento em geral. Neles se originaram — ainda que os interesses dominantes hoje não sejam os mesmos, mas no fundo as necessidades não variavam — as aspirações à dignidade do ser humano e os anseios de liberdade em confronto com uma cultura enquadrada numa sociedade autoritária e discriminatória. Atenderam à necessidade de levar cultura e saber para as ruas e proporcionasse abertamente os conhecimentos e a solidariedade desejada.

O Ateneu Libertário é uma associação autônoma e livre, com identidade própria, cuja organização é federação livre e voluntária de indivíduos e grupos, tendo a Assembléia como órgão de discussão, debate e decisão, com cargos em contínua revogabilidade e permanente rotação. É um centro de aprendizagem e cultura libertárias. Seu âmbito de atuação é o público, a rua, o bairro e a cidade. O Ateneu oferece-se para as tarefas de informação, formação e participação. O ateneu libertário baseia-se na cooperação e fundamenta-se no apoio mútuo. Liberdade e autogestão são seus motores primordiais.

Historicamente, na Europa, principalmente na Espanha, os ateneus tiveram e têm presença marcante na vida do movimento libertário e podem ser considerados como centros onde se expuseram, em todos os tempos, as preocupações e a prática dos militantes anarquistas. Neles convergem as tendências libertárias nos aspectos e nas formas diferentes de interpretar a luta contra o capitalismo e o Estado, nos aspectos diversos, mas inseparáveis da mesma realidade.

Situados em diferentes bairros de cidades grandes e pequenas, foram sempre um espaço de lazer e cultura para os trabalhadores, após o horário de trabalho. Ao mesmo tempo, eram centros de instrução destinados a substituir os valores tradicionais de uma ordem hierarquizada e dividida em classes. Centros onde se destacavam os valores defendidos pelo Anarco-Sindicalismo e o Movimento Libertário. Tais valores repudiam e continuam repudiando a sociedade autoritária, e apresentavam e continuam apresentando as alternativas de uma sociedade nova baseada no apoio mútuo e numa ética de responsabilidade pessoal intransferível.

Isso significa assumir a responsabilidade com todos os seus riscos, a liberdade com todas as suas implicações, porque só a liberdade e a responsabilidade não delegadas podem criar uma vida nova.

Nos ateneus, foram tratados assuntos nunca antes tocados em lugar nenhum: o estudo da sexualidade, da natureza e do equilíbrio desta com a pessoa humana, fundamento da atual ecologia. As escolas racionalistas foram outro aspecto demonstrativo da influência anarquista, das idéias-força do Anarquismo sobre pedagogia. A atualidade dos temas tratados demonstra a importância da função dos ateneus.

No Brasil, considerando as variáveis próprias de lugar e de tempo, o Centro de Cultura Social corresponde exatamente à função do Ateneu Libertário. Sua trajetória é adequada exatamente às mesmas finalidades: no passado, no presente e nas perspectivas futuras.

O Centro é essencial à projeção libertária sobre a vida atual, principalmente porque dessa projeção há de se prefigurar o mundo futuro que desejamos. Queremos dizer, desde o meio em que vivemos, desde a marginalidade de que nos desenvolvemos, devemos ganhar paulatinamente, mas sem descanso, espaços e setores de consciência e opinião. Devemos aumentar em quantidade, força e intensidade a presença libertária nos bairros, distritos e municípios.

Outros centros devem ser criados. Eles são o espaço dessa prática libertária generalizada, que deve ir substituindo os valores viciados da burguesia e do capitalismo, penetrando profundamente na consciência social.

Devemos estar nos sindicatos e nas entidades específicas, mas também devemos estar nos Centros de Cultura. Ademais os centros e possíveis e futuras federações de centros terão um papel fundamental na configuração do Movimento Libertário, se conseguirmos torná-lo catalisador de todas as forças, correntes, tendências e práticas libertárias que atuam no seio da atual sociedade. As atividades dos Centros de Cultura devem orientar-se para o aprendizado e a formação das pessoas, priorizando o tratamento da ética libertária, essência de nossas atuações e esquemas organizativos.

Os Centros de Cultura são espaços de luta contra o autoritarismo existente, que se manifesta por meio da repressão que permeia todas as esferas de nossa vida, seja na família, na escola, no exército ou na fábrica. Quando alguém se rebela contra a ordem existente, o lugar que o espera é a prisão, o reformatório ou qualquer instituição criada para reprimir e castrar. A alternativa que surge como forma de luta é o Centro de Cultura, tentando arrebatar do Estado e do capitalismo, em espaços de atuação, parcelas do seu controle, por meio de uma educação e cultura não institucionalizada, desenvolvendo uma consciência crítica, que faça dos homens e das mulheres seres livres. Livres na atuação das idéias, sem influências estranhas ou artificiais à natureza de cada indivíduo.

À proporção que adquirimos conhecimentos, sentimo-nos mais livres. A grande força criadora do homem está no conhecimento. Conhecer é vencer obstáculos, é abrir espaços à liberdade. Sabem muito bem os poderosos que o saber liberta e, por isso, querem regulá-lo para, por esse meio, manietar mais facilmente o ser humano. Cultura às meias, conhecimentos bitolados, doutrinas oficiais, programas preestabelecidos, segundo interesses do Estado, controle total de todos os institutos e escolas de todos os níveis, destinados a reproduzir o sistema de privilégios em que vivemos, sempre usando medidas para evitar que o povo possa aquilatar a miséria moral e a mediocridade dos que governam.

Os Centros de Cultura hoje, como os Ateneus ontem, são uma resposta: desenvolvendo atividade social, no apoio às lutas das comunidades (ecologia, saúde, educação...); participando sempre em prol da autogestão, contra a manipulação dos partidos políticos; incentivando a cultura e a educação libertárias, com palestras, cursos, festas, teatros, bibliotecas; e tudo que a criatividade, num espaço reprimido, faça germinar. Como a mola mestra é o conhecimento, o Centro é o lugar da troca de idéias, do ensino mútuo, que acaba favorecendo o autodidatismo.

A preocupação era a de criar uma forma de conhecer, dar um embasamento teórico para os trabalhadores, de modo que tivessem consciência da sua situação. Edgard Leuenroth usava muito a expressão "unidades conscientes" dos grupos. Eram as pessoas que atuavam conscientemente nas assembléias: consciência adquirida por meio de leituras, conferências, debates. Assim, todas as atividades passavam por esse lado didático. Um militante com mais experiência e conhecimentos era convidado para tratar de determinado assunto de interesse geral no Centro de Cultura. Depois da exposição, seguiam-se as perguntas da platéia. Nem sempre pacíficas, pois as pessoas tomavam partido e se empolgavam. Lembro de muito bate-boca entre o Pedro Catallo, que era esquentadíssimo, e o Manuel Taveira. Era o calor das idéias e a premência da ação. E todos foram autodidatas como o Florentino de Carvalho, Oswaldo Salgueiro, Antonio Ruiz Bello, Rodolfo Felipe, Avelino Fóscolo, Felipe Gil.

Valverde: Os militantes autodidatas também aprendiam línguas estrangeiras?

Jaime: Penso que sim, mas muitos já chegavam aqui sabendo. A questão era aprender o português. No Brasil, as primeiras associações de trabalhadores fizeram as primeiras publicações de textos e artigos sobre a situação da classe operária, e esses artigos eram publicados em língua estrangeira. De certa forma, eram jornais estrangeiros publicados aqui. Espanhóis, italianos, poucos alemães. Tivemos até jornais em alemão, publicados em Porto Alegre, até 1930. No entanto, ao mesmo tempo, havia necessidade de tradução para o português. Era muito comum encontrar militantes que sabiam mais que a língua materna. Muitos traduziam peças de teatro. Neno Vasco e Gigi Damiani, mesmo o Pedro Catallo, traduziram peças de teatro, mas livros em francês, espanhol e italiano eram traduzidos normalmente. As neolatinas. O problema era com os livros em alemão, pois era raro encontrar um tradutor. Entretanto, muitos imigrantes anarquistas sabiam catalão, o que era uma excentricidade, mas o Oiticica, depois que entrou para o Movimento, traduziu muita coisa...

Valverde: Jaime, você lia muito? Continua lendo bastante?

Jaime: Ler, eu leio sempre, tenho o hábito de ler e, para dizer a verdade, tenho milhares de livros. Leio sempre que posso e geralmente de madrugada. Tenho sempre uma pilha de livros na cabeceira da cama. Em função das minhas atividades, eu direciono as leituras. Por exemplo, nesses dias, estou lendo sobre a Revolução Francesa, porque vou participar de um seminário na USP. No entanto, eu gosto mesmo é de literatura. Quando estou cansado, pego um romance e devoro. Nós, anarquistas, sempre tivemos o hábito de ler. Pedro Catallo, Edgard Leuenroth, Felipe Gil, todos gostavam de literatura, discutiam a filosofia das escolas literárias. Não leio Sociologia, Filosofia, Política sem intercalar com um bom romance, como uma espécie de lenitivo. A literatura contribuiu muito para minha formação, não só os clássicos, mas também os contemporâneos. Clássicos da literatura universal e brasileira, vou sempre comprando e lendo. De vez em quando, sinto necessidade de reler os livros de Filosofia do Mário Ferreira dos Santos. Tenho o hábito de ler, mas não de uma forma sistemática, como fazem algumas pessoas marcando tantas horas do dia, de maneira fanática.

Valverde: Você tem escrito? Li o prefácio que você escreveu para Os sindicatos operários e a revolução social, de Pierre Besnard.

Jaime: Eu poderia até escrever mais, refletir e produzir mais, mas só tenho escrito quando sou solicitado a fazer. Tem uma parte de minha função aqui no Centro de Cultura que é burocrática, então mantenho a correspondência em dia, e artigos vou produzindo aos poucos.

Valverde: Poucos militantes anarquistas brasileiros escreveram suas memórias. Você já pensou em assentar no papel tudo que você sabe, pensou e viveu como militante libertário?

Jaime: Já cheguei a pensar e às vezes me dá vontade de começar a fazer um registro, mas até agora não parei para fazê-lo. Os militantes anarquistas autodidatas, que escreveram memórias, fizeram a pedido do Edgar Rodrigues. Você pode verificar que ele as tem usado nos livros dele. Em notas de rodapé, aparece a indicação da citação feita. Assim, escreve ele, segundo a memória escrita de fulano... O Pedro Catallo e o Perdigão2 2 . Trata-se de João Perdigão Gutierrez, cujas memórias estão em poder de Edgar Rodrigues. Conferir In: RODRIGUES, E. Socialismo - uma visão alfabética. Rio de Janeiro: Porta Aberta, s.d., p. 9. fizeram. O Edgard Leuenroth se propunha a escrever, mas nunca chegou de fato a fazê-lo. A militância dele ficou devendo um trabalho de sua história pessoal. Tinha todos os documentos necessários, mas não escreveu. Quem escreveu, como tese de doutorado, foi a professora Yara Aun Khoury, sobre o Edgard e o movimento anarco-sindicalista.

Valverde: E a memória do Centro de Cultura Social de São Paulo está registrada?

Jaime: Existe um documento mais voltado para a conceituação do Centro de Cultura Social, finalidade, função, expressão de luta e instrumento do Movimento Libertário. Nele respondi a uma série de questões que havia me proposto a responder. O trabalho tinha um endereço: foi escrito, inicialmente, para o pessoal do próprio Centro de Cultura. Nas atuais circunstâncias e expectativas do Movimento Libertário, o Centro de Cultura Social é um dos melhores instrumentos de expressão que ele dispõe, mas o ideal seria ter mesmo um veículo de comunicação, um órgão de imprensa para divulgar as idéias socialistas libertárias. E nesse sentido, o Dealbar foi o nosso último jornal. E o último com alcance nacional foi mesmo o Inimigo do Rei, editado na Bahia. O que o Centro faz mensalmente é publicar o seu Boletim, com edição e distribuição de mais ou menos três mil exemplares. O Boletim sai com um pequeno artigo no editorial, resenhas de livros, informações sobre o funcionamento do Centro de Cultura, a ordem dos eventos e das palestras e comentários políticos importantes para o momento. Nesse sentido, o Centro de Cultura é um passo no meio da caminhada até chegarmos, com amadurecimento e reflexão, a criar uma Federação.

Valverde: Suas palavras finais...

Jaime: Acho que falei demais e tenho tanto ainda para comentar. Penso que o autodidatismo é uma solução para o analfabetismo, dentro da perspectiva libertária, que além de aprender a ler contém um rumo ético e político. Tudo isso fundado na necessidade de expandir o poten-cial humano do conhecimento. Elisée Reclus escreveu, em Revolução e evolução e A terra e os homens, que é suficiente dar às crianças uma certa noção geral, ensinar a ler e a escrever, que depois por si mesmas elas aprenderão o que for do interesse e da necessidade delas. Pensava que a sociedade inteira deveria se transformar numa escola, na qual as crianças passariam a desenvolver-se segundo seus interesses, gostos, desejos. Ele escreveu e eu concordo com essa idéia. O sujeito, tendo uma base formal, vai em frente. Tenho muito gosto em tratar desses assuntos, porque sempre gostei de ler. E a minha ambição quando era menino era me tornar professor.

Valverde: Mas de certo modo você é professor, tem dado conferências em universidades, como convidado especial, participado de bancas examinadoras de teses e de dissertações.

Jaime: Isso tudo em função do Centro de Cultura Social. Eu tinha uma noção que foi amadurecendo. Para mim, professor não é o que passa matéria, como se diz. Isso qualquer um pode fazer, desde que habilitado pelo diploma. Professor é aquele que consegue motivar, despertar o interesse do aluno pela matéria, com um envolvimento prático, com muita simpatia. Às vezes, ouvia o Mário Ferreira falar por três, quatro horas, voltava para casa e pegava um livro para ler. Não estava cansado, estava motivado. Há muitos professores dando aula por contingência, a maior parte deles se desenvolvem na profissão, mesmo não gostando dela. Então, a profissão de professor, que é maravilhosa, é encarada como uma parte da maldição geral do trabalho. Gostaria mesmo de ter sido professor, um professor libertário.

Valverde: Muito obrigado, Jaime!

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    A presente reprodução é seleção de momentos da entrevista-depoimento, que rendeu 10 fitas gravadas e 63 páginas datilografadas, espaço um. Outros assuntos, ligados ao anarquismo, abordados foram: Estado amplo, automação e gestores modernos; reconstrução do C.O.B.; futuro do anarco-sindicalismo; antimilitarismo e a coluna "Guerra a guerra"; imprensa operária no Brasil e na Europa; C.N.T., A.I.T. e F.A.I.; o anarquismo na Espanha, França e Itália, na atualidade; teatro operário; Teatro Oberdan e Teatro Colombo, o bairro do Brás; o próprio Jaime como ator de peças proletárias; autores do teatro operário brasileiro; a pintura de Gueda Brentani, retratando casas operárias do Brás do início do século; Universidade Livre; Guerra Civil Espanhola; F.O.R.A. e F.A.L. da Argentina; a militância de Diego Abad de Santillán; a obra de Edgar Rodrigues etc.
  • 1
    . Trata-se do militante anarquista espanhol, José Augusto GUARDIA, autodidata, membro da C.N.T., que lutou na Guerra Civil Espanhola. Durante a juventude, morou em Paris e entrou em contato com Jean Grave, Nestor Mackno, Sebastian Faure, dentre outros.
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    . Trata-se de João Perdigão Gutierrez, cujas memórias estão em poder de Edgar Rodrigues. Conferir In: RODRIGUES, E.
    Socialismo - uma visão alfabética. Rio de Janeiro: Porta Aberta, s.d., p. 9.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008
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