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A face pedagógica de Eros

The pedagogical face of Eros

Resumos

O presente trabalho busca descobrir a face pedagógica de Eros. Como ponto de partida, está o fato de a figura do educador/professor ser comumente representado por alguém cuja ocupação não suscita desejos de qualquer espécie. Não raras vezes assistimos a representações literárias e imagens televisivas ou cinematográficas nas quais o professor aparece comicamente como uma caricatura que fala, de modo monótono e sem parar, a alunos cujos rostos oscilam entre o tédio e o escárnio. No entanto, o que é de fato assustador é que, cada vez mais, as imagens que aparecem no discurso das novas gerações, numa tentativa de oposição à caricatura supracitada, associam a figura do professor à de um animador de auditório, performático, divertido, especialista em dinâmicas grupais catárticas, sem conteúdo e igualmente caricatural. Procurando, então, desviar-se de ambas as caricaturas e refletir sobre o gênero específico de libido pedagógica - compreendido como força ou energia espiritual para o progresso moral, intelectual e sensível -, o texto recupera o poder ilustrativo do mito, pensa sobre a força do imaginário na constituição de parâmetros modelares para a Educação e para o exercício da mestria (para isso, propõe notas socráticas, sofísticas e escolásticas com ênfase na linguagem) e aponta para a importância dessa discussão diante dos problemas que habitam os espaços educativos contemporâneos.

Eros; Educação; Linguagem


The present work seeks to uncover the pedagogical face of Eros. As a starting point, there is the fact that the figure of the educator/teacher is commonly represented by someone whose occupation does not elicit desires of any kind. It is not unusual to see literary representations and televised or cinema images in which the teacher appears comically as a caricature that talks continuously and monotonically to pupils whose countenances oscillate between boredom and scorn. But what is truly frightening is that, more and more, the images that show up in the discourse of the younger generations, in an attempt to oppose the caricature just mentioned, associate the figure of the teacher to that of a presenter of a talk show: theatrical, amusing, an expert in cathartic group dynamics, with no content and equally caricatured. Seeking to steer clear of both caricatures and to reflect upon the specific genre of the pedagogical "libido" - understood as spiritual force or strength for the moral, intellectual and bodily progress - the text rescues the illustrative power of the myth, thinks about the power of the imaginary in the constitution of model parameters for education and for the exercise of teaching (to this end it proposes Socratic, sophistic and scholastic notes with emphasis on language) and points to the importance of this discussion in view of the problems that populate the contemporary educational spheres.

Eros; Education; Language


ARTIGOS

A face pedagógica de Eros* * Trabalho apresentado, em primeira versão, na 28ª Reunião Anual da ANPED, realizada em outubro de 2005, na cidade de Caxambu.

Marlene de Souza Dozol

Universidade Federal de Santa Catarina

Correspondência Correspondência: Marlene de Souza Dozol Univ. Federal de Sta Catarina Rua Frederico José Peres, 67 88035-340 – Florianópolis – SC e-mail: dozol.carreirao@uol.com.br

RESUMO

O presente trabalho busca descobrir a face pedagógica de Eros. Como ponto de partida, está o fato de a figura do educador/professor ser comumente representado por alguém cuja ocupação não suscita desejos de qualquer espécie. Não raras vezes assistimos a representações literárias e imagens televisivas ou cinematográficas nas quais o professor aparece comicamente como uma caricatura que fala, de modo monótono e sem parar, a alunos cujos rostos oscilam entre o tédio e o escárnio. No entanto, o que é de fato assustador é que, cada vez mais, as imagens que aparecem no discurso das novas gerações, numa tentativa de oposição à caricatura supracitada, associam a figura do professor à de um animador de auditório, performático, divertido, especialista em dinâmicas grupais catárticas, sem conteúdo e igualmente caricatural. Procurando, então, desviar-se de ambas as caricaturas e refletir sobre o gênero específico de libido pedagógica — compreendido como força ou energia espiritual para o progresso moral, intelectual e sensível —, o texto recupera o poder ilustrativo do mito, pensa sobre a força do imaginário na constituição de parâmetros modelares para a Educação e para o exercício da mestria (para isso, propõe notas socráticas, sofísticas e escolásticas com ênfase na linguagem) e aponta para a importância dessa discussão diante dos problemas que habitam os espaços educativos contemporâneos.

Palavras-chave: Eros — Educação — Linguagem.

No texto "Tabus que pairam sobre a profissão de ensinar", Adorno (1995) põe em relevo as motivações subjetivas ou inconscientes da aversão à docência e o como a sedimentação coletiva de representações orientadas por preconceitos psicológicos e sociais transforma-se em forças reais que contribuem para o agravamento da crise da Educação nos tempos atuais. Dentre as representações comentadas, a figura do professor como alguém destituído de qualquer dimensão erótica sugere uma reflexão que busque recuperar, em algum tempo, o Eros especificamente pedagógico como uma das matrizes da constituição do educador que, se não prevaleceu na história, coabita, junto com os preconceitos, o imaginário tecido em torno de sua figura.

O presente trabalho é antes de tudo um discurso afirmativo sobre o ato de educar e sobre quem educa. Busca uma tradução da mestria e da figura do mestre em sua poesia e escolhe o mito grego de Eros como inspiração. A intenção é a de evidenciar o potencial ilustrativo do mito, no sentido exemplar de uma beleza intemporal a ser contemplada no que diz respeito ao tema em foco. No entanto, se um mito pode inspirar o que há de permanente na clássica ação de ensinar, é preciso significá-lo no interior da paisagem contemporânea. Daí a necessidade de refletir os elementos do transitório, do efêmero ou do contingente. Trata-se, pois, de encontrar uma forma de expressar o movimento de guardar e transformar a clássica ação de ensinar. Sendo assim, não é o caso aqui de defender uma pura e simples reedição do passado da mestria visto em seu aspecto poético e ideal, e sim de estabelecer, para mais adiante, "[...] encontros criativos com o passado" (Berman, 1986, p. 315), no sentido de oferecer elementos para o diálogo necessário entre o educador e o seu próprio tempo. Talvez, as palavras de Baudelaire (1996) sejam oportunas para expressar essa tensão entre o passado e o presente quando se trata de buscar algo de belo:

O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a posição. Sem esse segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana. Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que não contenha esses dois elementos. (p. 10)

Mesmo considerando o binômio eterno/efêmero na composição de qualquer beleza, cabe uma pergunta a Baudelaire: seria o primeiro elemento tão indigerível e tão inapreciável assim?

O porquê do mito

Na versão de Eliade (1992), o mito conta uma história sagrada, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do tempo, tendo por personagens deuses e heróis civilizadores. Trata-se, então, de narrações que têm como objeto a criação, o como qualquer coisa foi efetuada e começou a ser: "Cada mito mostra como uma realidade veio à tona, seja ela a realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição humana" (p. 82; grifo meu). Estabeleceu-se, no interior desse começo de tudo, os modelos exemplares que servem como parâmetro para as ações humanas, derivando daí uma das funções do mito: "A função mais importante do mito é, pois 'fixar' os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação etc." (p. 82; grifo meu). E prossegue o autor:

Comportando-se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles, quer se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, quer de uma atividade social, econômica, cultural, militar etc. (p. 82; grifo meu)

Essa espécie de "história espiritual do mundo" (Grimal, 1987, p. 7), plena de relações entre o real e o imaginário, remete à eterna luta entre o Logos e o Mythos, entre a razão e a fantasia. Comumente o mito é associado a uma maneira pré-científica de procurar origens e causações, e raramente é compreendido como uma dimensão da verdade, mesmo que não identificada com a verdade científica. A esse respeito, Ricoeur (1988), quando escreve sobre a interpretação filosófica do mito, propõe a seguinte questão:

A questão é, finalmente saber se a verdade científica é toda verdade, ou se alguma coisa é dita pelo mito que não poderia ser dita de outra forma. (p. 11)

A intenção significante do mito, segundo Ricoeur (1988), pode ser classificada em figurativa — ou representativa —, paradigmática e afetiva.

A primeira, a figurativa ou representativa, consiste na função de instaurar modelos de ação; a segunda, a paradigmática, trata da coesão entre a narração das origens e do tempo presente, uma vez que o mito permite ser reativado no rito; e a terceira, a afetiva, ligada a fatores essencialmente subjetivos, possui a capacidade "[...] de criar aquilo a que podemos chamar o núcleo mítico-poético da existência humana" (Ricoeur, 1988, p. 29).

O significado conjunto das três intenções é assim descrito pelo autor:

Neste sentido pode dizer-se que os mitos de origem têm eles próprios uma dimensão sapiencial porque compreender como as coisas começaram é saber o que elas agora significam e que futuro continuam a oferecer ao homem. (1988, p. 29)

É o mesmo autor que, recorrendo a Jean-Paul Audet, expressa um significado mais profundo do mito: "[...] uma 'apropriação totalizante' da herança total de uma comunidade" (1988, p. 30).

No tocante à Educação, isso se aplica tanto às sociedades arcaicas, que depositam no Xamã a função de formar homens, como àquelas que posteriormente encontravam-se em pleno "[...] processo de racionalização progressiva da concepção religiosa do mundo implícita nos mitos" (Jaeger, 1995, p. 192), a exemplo da sociedade grega. Ainda assim, a tradição oral e os frutos literários inspirados nos mitos e adequados à época não deixaram de cumprir suas intenções significantes.

O mito de Eros e seu significado pedagógico

Antes de tudo, convém lembrar, segundo a versão que Platão (1971) nos oferece no Banquete —, a que, pela beleza e significado, bem pode ser comparada a uma iguaria — as circunstâncias do nascimento de Eros e sua filiação.

Eros nasce numa festa na qual os deuses comemoram o nascimento de Afrodite. Seu vínculo com a deusa do amor torna-o companheiro e servo da Beleza. Gerado nesse dia, é filho de Pênia (a Pobreza) e Poros (o Recurso). Por conta de seus progenitores, Eros é duplo. Da mãe, herda a carência, a falta e a busca. Do pai, o poder ou a possibilidade de saciar a fome, suprir a falta, urdir estratégias para satisfazer suas necessidades e seus desejos. No entanto, essa satisfação, que nunca é definitiva, mas sempre provisória, impõe a Eros uma espécie de sina: a de viver a festa de uma fome saciada, de uma falta suprida, de um prazer lúdico propiciado pela estratégia acertada e a de morrer em seguida, tendo que sentir e recomeçar tudo para novamente viver. Daí seu destino de andarilho (Pessanha apud Civita, 1973).

O que sugere o mito na perspectiva filosófica? Muito, sem dúvida. A começar pela imagem de Eros como um astuto caçador de saber. Sabe que não é sábio (o que, por outro lado, indica sabedoria), mas deseja e se esforça para conhecer. Etimologicamente, eros vem do verbo grego érasthai, que significa desejar ardentemente. Quando filho de entidades menores, Eros não é propriamente um Deus, mas uma força ou uma energia insatisfeita e inquieta, uma carência em busca de plenitude, um sujeito à procura de um objeto (Brandão, 1993), que acredita e não acredita na existência deste e em sua capacidade para encontrá-lo. Esse gênero de libido é, nesses termos, compreendido como força ou energia espiritual para o progresso moral, intelectual e sensível. E em que medida Eros sugere o enlace entre filosofia e pedagogia?

Na Teogonia, de Hesíodo (1995), Eros surge como liame, mediador ou intermediário, prendendo ou ligando uma coisa à outra, sempre no meio de dois pontos, intermediando relações e conferindo coesão ao Cosmos. Na perspectiva de uma filosofia racionalista, é aquele que tende a tudo ligar ou integrar para, dessa forma, conhecer. Se opera por meio de relacionamentos e vinculações, sobrevoa o plano das idéias e o das relações humanas. É o que nos lembra a filosofia platônica ao atribuir a Eros a função de "[...] estruturar o caminho que permitiria ao intelecto humano ascender até o plano das idéias [...]" (Pessanha apud Civita, 1973, p. 35). O trabalho racional, principal via de acesso a tal plano, estabelece a razão discursiva como intermediário, para o uso da referida filosofia, entre o plano sensível e o plano inteligível. Portanto, Eros é linguagem.

Segundo Pessanha (apud Civita, 1973), a questão do erotismo na concepção dos antigos gregos é fundamental para que compreendamos a concepção platônica do amor. Mais do que opções sexuais, interessa aos gregos a qualidade dessas relações. Se condimentadas pela temperança, maiores as chances de ser operada a passagem da Erótica (relativa ao amor aos rapazes) para a Filosofia (relativa ao amor à verdade/philia). Na perspectiva platônica de ascese, trata-se de ultrapassar o plano horizontal das relações afetivas entre pessoas para o plano vertical da relação afetivo-intelectual entre sujeitos e verdade.

Os três diálogos dedicados por Platão ao tema do amor — Lísis (apud Pessanha, 1995), Banquete (1971) e Fedro (idem) — são confeccionados com base em dois eixos da experiência amorosa.

No Lísis, tais eixos aparecem na forma de oposição: ao amor passional, escravizante, avassalador, ligado ao imediato e ao sensível, contrapõe-se aquele baseado no aprendizado, no saber e que liberta. Aqui Sócrates aparece como o amante ideal que, ao aplicar sua sedução docente, empreende, com seus discípulos, uma caçada para o alto. De outro lado, Lísis sugere a figura do amado ideal: aquele que, pela candura e pela docilidade, permite a sedução docente, pois o Eros que nele habita (o do tipo discente) sabe que precisa aprender e esperar.

No Banquete, depois de ser reverenciando como princípio teogônico e cosmogônico por Fedro, como força universal de atração dos semelhantes por Pausânias e Erixímaco, como impulso de busca de totalidade por Aristófanes, como deus mais jovem, mais belo e mais feliz, que rege as relações de superfície, sem profundidade ou compromisso com o trágico, por Agatão, Eros aparece na voz de Diotima-Sócrates como demônio, isto é, como intermediário entre os deuses e os homens. Em sua faceta pedagógica, transfigura-se em gênio tutelar, numa espécie de voz interior que fala ao homem, guia-o ou aconselha-o. Aqui se realiza como mediador, com função de interpretar e transmitir: é como a linguagem que se tece na verticalidade, no relacionamento humano/divino. A contemplação final de toda a beleza é fruto de uma ascese erótica conduzida por ele.

Sempre a meia distância entre uns e outros, é o deus que preside as relações humanas, perseguindo a harmonia:

Eros, de outro lado, traduz ainda a 'complexio oppositorum', a união dos opostos. O Amor é a pulsão fundamental do ser, a 'libido' que impele toda existência a se realizar na ação. É ele que atualiza as virtualidades do ser, mas essa passagem ao ato só se concretiza mediante o contato com o 'outro', através de uma série de trocas materiais, espirituais, sensíveis, o que fatalmente provoca choques e comoções. Eros procura superar esses antagonismos, assimilando forças diferentes e contrárias, integrando-as numa só e mesma unidade. (Brandão, 1993, p. 189)

Sua condição de causa da fome e seu poder aglutinador de idéias e pessoas, escolhendo, no plano do humano, a linguagem como uma das setas disparadas por seu arco, em muito sugerem a arte da mestria. Pois bem, é a metáfora de linguagem como seta disparada do arco de Eros que pretendo examinar daqui em diante.

Lembremos primeiramente as relações de Eros com as musas.

Ao analisar a Teogonia, Torrano (1995) discorre sobre as funções das musas:

As deusas musas cantam no Olimpo para deleite de Zeus o mesmo canto que o aedo servo das musas, pela outorga que estas lhe fizeram, canta — não só para o deleite dos ouvintes — mas também para a manutenção da vida, para a vivificante comunhão com o Divino, para a transmissão do Saber e para que se possa ter uma visão da totalidade do Ser. (p. 95; grifo meu)

Por estarem acompanhados pelas musas, os aedos são agraciados por Mnemósine, que representa o poder do espírito sobre a matéria instantânea e funda toda a inteligência. Mnemósine também quer significar memória universal, a lembrança que contesta Cronos (o Tempo) — que a tudo devora: seres, momentos, destinos, sem qualquer apego ao que passou — e luta para preservar a lúcida matéria sobre a qual reina.

No entanto, não basta que o canto lembre, mas que o canto seduza pela palavra proferida:

É preciso que primeiro o nome das Musas se pronuncie e as musas se apresentem com numinosa força que são das palavras cantadas, para que o canto se dê em seu encanto. (Torrano, 1995, p. 21)

As forças que movimentam a sedução exercida pelas musas na Teogonia são assim traduzidas, ainda por Torrano (1995):

Tão logo nascem, as musas instauram o coro e a festa, acompanhadas das Graças (Khárites) e o Desejo (Hímeros). Este também participa do séqüito de Afrodite, onde emparelha com Eros (v. 201). A arte das musas não é apenas persuasão [...], mas a sedução, a envolvência da beleza e do apelo sensual. Acompanha-as o Desejo, que elas despertam e o companheiro deste, Eros, invade os ouvintes através da força da voz delas, que pela presença de Eros é uma voz 'amável' [...] e 'bem-amável' [...]. (p. 33)

Sob o patrocínio da Memória, reis e poetas são artífices da palavra. Observem-se os versos da Teogonia:

Pelas musas e pelo golpeante Apolo há cantores e citaristas sobre a terra, e por Zeus, reis. Feliz é quem as musas amam, doce de sua boca flui a voz. (v. 95)

O uso da palavra requer especialização e qualificação e é isso que distingue reis e poetas dos demais. Para serem ouvidos, precisam seduzir, e quando seduzem, transformam-se em autoridades. Nas palavras de Torrano (1995): "[...] a autoridade de ambos se estriba na sedução e no fascínio que através da Palavra exercem sobre seu 'entourage'" (p. 37). Ora, lembrar o que passou, transmitir o saber de maneira sedutora e suscitar desejo em relação ao conhecimento são, sem dúvida, atribuições clássicas da mestria. E nesse aspecto, mesmo que soterrada sob sua atual identidade profana, há um quê de sagrado em seu exercício. Não só nas narrativas míticas, como também na longa história que preside a configuração das mais variadas modalidades de mestria, nunca foi ignorado o poder da palavra. Desde seus inícios, assistimos a uma polifonia de vozes que se pretendem educativas e ensinantes. Detenhamo-nos um pouco mais nos mitos.

A associação entre musas e aedos com a figura do mestre quer apenas indicar que tanto a memória como a sedução são vitais para o exercício de um determinado tipo de mestria.

A relação entre o aedo e o mestre pode ser convenientemente ilustrada na personagem de Orfeu.

Ao tratar da religião greco-romana de Dionísio (Baco) e do culto a Orfeu, Henderson (1964) comenta:

Orfeu deve ter sido um personagem real — cantor, profeta e professor — que foi martirizado e cujo túmulo tornou-se um santuário. (p. 141)

Tantos os cultos dirigidos a Dionísio como os que se dirigiam a Orfeu possuiam como características a iniciação aos mistérios. Tais cultos acabaram por criar símbolos associados a uma espécie de homem-deus que, dentre outras competências, estava a de possuir uma íntima compreensão do mundo animal ou vegetal, cujos segredos, aos iniciados, passavam a ser desvendados pela ação iniciadora do mestre.

Orfeu domina a arte da música e a usa para encantar e seduzir. Foi com esse poder que desceu aos infernos para resgatar sua amada Eurídice e se aventurou na expedição dos argonautas em busca do tosão de ouro. Nessa expedição, coube a Orfeu embalar, com seu doce canto, heróis e marujos. Tangendo sua lira, é ele quem os livra dos perigos de um outro canto de mortal beleza: o canto das sereias; quem oferece aos remadores um ritmo sereno para a viagem; quem delicia os ouvidos dos deuses que espreitam por trás das nuvens.

A capacidade de encantar é o que podemos observar também em Ulisses na sua viagem de retorno à Ítaca (Odisséia, de Homero). A pedido do rei dos feácios, Ulisses conta diante de uma platéia atenta e estupefata as suas histórias: a batalha com os ciconianos; sobre os comedores de lótus; a estratégia que usou para escapar do ciclope Polifemo; a visita a Eólo; como chegou a Telepilos; sobre as artimanhas de Circe e do como navegou até a casa de Hades; de que maneira não sucumbiu ao canto das sereias; como chegou às rochas movediças e às hediondas Caribde e Cila; sobre o ataque de seus companheiros aos bois do sol e da tragédia resultante; como chegou sozinho à Ogígia e se transformou no prisioneiro amante da ninfa Calipso; e, por fim, sua passagem pela terra dos feácios, que o devolveram à Ítaca com muitos presentes, bronze, ouro e finos tecidos.

A qualidade de narrador faz de Ulisses o próprio mestre. Embora, em vários momentos da narrativa, o bastão do orador seja entregue a outros personagens (velhos e outros nobres), durante as assembléias e reuniões, é Ulisses que domina a palavra com arte. Atena, sua protetora, o descreve como "invencível enredador", "infatigável fabulista" e, ao mesmo tempo, como "astucioso trapaceiro" (Homero, 1992, p. 151), o que sugere a ambigüidade da palavra no que se refere ao dizer a verdade.

Quanto a isso, é preciso que o ouvinte tenha ou desenvolva um pouco da astúcia de Ulisses, já demonstrada pelo próprio, ocupando o lugar não de narrador mas o de ouvinte, quando de sua passagem por aquele pedaço de mar habitado por sereias. A beleza do canto das sereias é mortal, mas Ulisses a deseja e, ao mesmo tempo, não quer pagar o preço desse deleite com a própria morte. Para tanto, os ouvidos de seus remadores são preenchidos com cera para que nada escutem e continuem a remar durante a perigosa passagem e ele, Ulisses, pede que o amarrem ao mastro da embarcação, porém sem os ouvidos tapados. É dessa forma engenhosa que Ulisses ouve e usufrui da beleza do canto, sem com isso sucumbir a ele.

Dessa passagem que, pensada do ponto de vista pedagógico, evoca o espírito crítico por parte daquele que ouve e denuncia o quanto pode ser ilusória a sensação de poder experimentada pelo narrador, passemos para outras vozes, agora históricas, que se pretendem educativas e ensinantes. Comecemos por Sócrates.

Nos diálogos platônicos, a teia racional que vai sendo tecida pacientemente por Sócrates sobre o interlocutor cria, nesse último, uma ilusão de autoria. Ou seja, o que é fruto do exercício de uma razão conduzida parece ser fruto dos lances efetuados pelo interlocutor. Assim é que Sócrates, ao dizer, diz que quem está dizendo é o seu parceiro ou, então, leva-o a dizer aquilo que tem em mente. De fato, as chances do interlocutor são mínimas. Nesse sentido, cabe perguntar sobre sua autonomia de pensamento e ainda se não haveria possíveis desvios além do caminho ditado pelas acrobacias racionais do mestre. De qualquer modo, é bom não esquecer que o artifício utilizado forja conclusões de caráter provisório, ficando as questões exasperadamente em aberto. O caráter permanentemente provisório da linguagem socrática é seu componente atrativo, embora se aplique na busca do invariável ou do eterno. Em todo o caso, é essa sua forma aporética que certamente sinaliza para a intenção de uma busca compartilhada, na qual mestre e discípulo experimentam uma erótica diferenciada: a do primeiro marcada pelo jogo da condução estratégica e a do segundo sentida em função da exigência de abandono do hábito e da acomodação em nome do desejo de ir além.

Ao mesmo tempo em que a linguagem, em Sócrates, exclui e não exclui a verdade absoluta — pois se apenas não a excluísse, estaria morta a vontade da procura —, condena a forma de bajulação que facilmente pode adquirir a língua falada. Também não é possível, em Sócrates, entendê-la como um artifício para iludir.

Sócrates não fala o que agrada, mas aquilo que precisa ser dito com o fim de levar os homens a operarem as transformações necessárias em si próprios. Tanto que, na Apologia, no momento no qual os juízes o condenam à morte, o filósofo afirma:

E, contudo, fui apanhado em dificuldades, não de palavras, decerto, mas de ousadia e desvergonha e falta de vontade de vos dizer aquelas coisas que mais vos agradaria ouvir. (Platão, 1993, p. 96)

No Fedro, em seu primeiro discurso sobre Eros, Sócrates chama a atenção do jovem que dá nome ao diálogo quanto ao risco do amado, ao ser seduzido pelo amante, ser privado de sua inteligência e afastado da divina filosofia. Tais palavras indicam mais uma faceta nociva que pode ganhar a linguagem quando exercida pelos ditames da retórica, pela adulação e pela promessa de proteção sob o comando do desejo egoísta e da volúpia do apaixonado. Mais adiante, Sócrates comenta: "[...] o lisonjeiro, por exemplo, é horrível monstro e traz grandes prejuízos, mas, simultaneamente, a natureza lhe conferiu certo atrativo que não deixa de ter seu encanto" (Platão, 1971, p. 214). Encantos da lisonja, encantos da verdade, a escolha é de cada um.

Sócrates tem a pretensão de encantar com a busca da verdade, mesmo que o resultado seja a dúvida. Seu poder de seduzir é metaforizado, aqui e ali, por aqueles que se submetem ao seu exame. No Mênon, é comparado a uma tremelga e, no Banquete, Alcebíades o associa às estátuas de silenos, ao sátiro Mársias e às sereias, símbolos que lhe traduzem a figura de Sócrates.

Na metáfora da tremelga, Sócrates é assim referido por Mênon:

[...] eu sabia que nada mais fazes do que duvidar e despertar dúvidas no espírito dos outros! E é por isso que agora, segundo me parece, me tens enganado e enfeitiçado e embruxado por ti, e cheio de dúvidas! Se me permites uma brincadeira direi que pelo teu corpo e por muitas outras características de teu ser, fica sabendo que és muito parecido com a tremelga do mar: esta com efeito, entorpece a quem quer que se lhe aproxime e toque e parece que me entorpeceste a mim! (Platão, 1971, p. 83)

Ao ser tocado, esse peixe produz descargas elétricas, entorpecendo quem o toca. Mênon, ao tocar Sócrates, se vê enfeitiçado pela dúvida. Note-se que Sócrates admite a comparação se, ao entorpecer os outros, a tremelga entorpecer a si mesma, o que lhe confere certo encanto, já conhecido como a sua estudada modéstia.

O feitiço da dúvida é aqui entendido como um bem. Depois de examinar o escravo de Mênon, Sócrates indaga sobre os efeitos da linguagem: "Despertando-lhe dúvidas e paralisando-o como a tremelga, acaso lhe causamos algum prejuízo?" (p. 90). Não. O escravo está em dúvida. Sabe que não sabe e se encontra enfeitiçado pelo desejo de saber.

No Banquete, Alcebíades, ao elogiar Sócrates, compara o filósofo às estátuas dos silenos, que davam formas a armários e que guardavam ricas e belas coisas: feio por fora e belo, no sentido de sábio, por dentro. Aparentemente seus discursos irão beirar o ridículo e o cômico, mas:

[...] que se abra o armário e se olhe para o seu interior – e ver-se-á que são os únicos discursos providos de profundidade da significação; e também que são os mais divinos e os mais ricos em imagens da virtude, e que abrangem muito, ou, melhor, abrangem tudo o que deve observar um homem desejoso de se tornar perfeito. (Platão, 1971, p. 187-188)

Em seguida, numa outra comparação, Sócrates é associado ao sátiro e flautista Mársias. Sabedor de uma música única e divina: [...] com sua flauta e com os sons que da mesma tirava conseguia hipnotizar os homens (p. 179). Acrescenta Alcebíades que

[...] a única diferença que há entre ti e ele, é que consegues os mesmos efeitos sem te utilizares de instrumentos, mas só de tua palavra. (p. 179)

Alcebíades refere-se com emoção à impressão que lhe causam os discursos de Sócrates. Estes lhes perturbam o espírito de modo que sucumbe a eles. Como pronunciador de discursos irresistíveis, Sócrates é agora simbolizado pelas sereias: "Por isso sou obrigado a fechar os ouvidos com força, como se tratasse de sereias, a deixá-lo e fugir, para não permanecer a seu lado até a velhice" (p. 180). Alcebíades, atormentado pelas próprias faltas e próprios pecados, sente-se golpeado pela palavra de Sócrates e, quase num tom de lamento, diz: "[...] eu que, fui mordido pelos discursos da filosofia, que mais penetrantes são do que as presas da víbora [...]" (p. 182).

Entretanto, Alcebíades não quer ascese. A paixão que sente por Sócrates o consome e não pede adiamento ou conversão. Antes, há a urgência do aqui e agora, acorrentada ao imediato e ao sensível. Ao chegar embriagado no Banquete, evoca as forças irracionais da outra face do amor. A que, ao invés de subir, mergulha na escuridão do amor-paixão não correspondido e se afasta, portanto, da docência amorosa aos moldes socrático-platônicos.

O Fedro volta aos dois eixos da construção da experiência amorosa: o amor como o desejo do melhor e o amor sem domínio de si, próprio das almas desmesuradas.

Nesse mesmo diálogo, ao tratar das condições para se adquirir a arte da retórica – admitida provisoriamente como uma força formadora da alma, desde que com discursos e argumentos legítimos –, Sócrates desvela com propriedade os mecanismos implícitos na arte de seduzir as almas por meio da retórica.

Diz Sócrates que "a força da eloqüência consiste na capacidade de guiar as almas" (p. 257). Contudo, as almas não são iguais. Ao contrário, são diversas e o orador deverá conhecer todas as formas sob as quais se apresenta essa diversidade. Uma vez conhecidas, o orador distinguirá discursos adequados a cada uma delas, para desse modo persuadi-las. As almas deixam-se raptar pelo discurso que lhes é querido: cabe ao bom orador descobri-lo e pronunciá-lo, para assim convencer. Há também, continua ele, a sutileza de perceber o momento e julgar a argumentação mais apropriada; de distinguir as ocasiões e avaliar o que vale mais a pena: calar ou falar; de saber qual a forma de discurso a empregar: se concisa ou prolixa temperada com apelos dramáticos e os arroubos da paixão.

Só assim, para Sócrates, o orador estará formado para falar em público, escrever ou dar lições. Só assim será senhor da sua arte.

E aqui o Eros socrático cede passagem para o Eros dos sofistas, também mestres das palavras.

Uma outra face do Eros pedagógico. Aquela que se revela pela promessa que o mestre faz ao discípulo de ensinar-lhe algo. Por um discurso-monólogo, artefato da linguagem, que convida a razão e o sentimento alheios a uma aventura do pensamento, sem preconceitos ou reservas quanto aos tipos de saberes. Por uma fala que conduz as potências internas a remexerem-se em silêncio. E, é claro, por um discurso que também poderá estar repleto de ciladas, dada a sua sinuosidade.

No entanto, deixemos a sinuosidade dos sofistas por um instante e atentemos para o tipo de Eros discursante inaugurado por eles e que se constituiu em força modelar para a pedagogia que se erigiu aos moldes da tradição. Mestres itinerantes de retórica e oratória atraíam governantes, políticos e cidadãos em geral com o brilho de seus ensinamentos, suas técnicas e suas habilidades, tão necessários para a participação na democracia ateniense. Entretanto, o que chama a atenção, considerando o tema aqui proposto, é a impressão de um logos também itinerante, característico nos sofistas. Artistas ou técnicos do discurso argumentativo exibem uma atuação quase lúdica de malabarismos com as palavras, num movimento abstrato de prós e contras (seja para, em segredo, antecipar possíveis objeções ou para, em público, evidenciar e valorizar as contradições latentes das crenças comuns), em busca de consenso ou convergência de interesses. Aparece aqui, no sentido estratégico, um Eros verbal do tipo bélico que no fundo deseja metamorfosear-se naquele Eros, já descrito por Brandão (1993), que, entre trocas materiais, espirituais, sensíveis, choques e comoções, persegue a união dos opostos e a alegria da unidade.

Por essa razão, não há como operar uma oposição drástica entre discursos e diálogo na pedagogia sofista. Embora essa relação não tenha a pretensão verticalizante dos diálogos platônicos, apresenta-se como uma modalidade não menos relevante de formação humana. É certo que o discurso, adornado por arranjos gramaticais e poéticos (imagens, metáforas e figuras de linguagem como recursos estilísticos, nos quais Platão também era mestre), é o elemento central da sedução sofista. Do tipo persuasiva, acredita-se capaz de forjar uma segunda natureza, mais bela, fruto da linguagem.

A prática pedagógica que tradicionalmente se erigiu pelo discurso tem sido alvo de duras críticas por parte das referências modernas e contemporâneas. Não raras vezes assistimos a representações literárias e imagens cinematográficas nas quais o professor aparece comicamente como uma caricatura que fala, de modo monótono e sem parar, a alunos cujos rostos oscilam entre o tédio e o escárnio.

Se, no entanto, recuperarmos o núcleo original das teorias educacionais que têm o discurso como principal aliado, esse ponto de vista pode ser relativizado. Podemos encontrar, até mesmo naqueles modelos pedagógicos que encarnam o que há de mais canônico em termos de tradição educativa, o tipo de Eros discursante.

Num pequeno opúsculo intitulado De Magistro — uma das questões disputadas sobre a verdade, a de número onze —, São Tomás de Aquino (2000), ao tratar da natureza do ensino, afirma que as formas naturais são preexistentes na matéria como potência (aluno) e são conduzidas ao ato por um agente extrínseco próximo (professor). A potência ativa, como um dado preexistente no educando, tem duas formas de adquirir o conhecimento (o ato): pela descoberta, quando a razão por si mesma atinge o conhecimento e, pelo ensino, quando a razão recebe ajuda de fora para atingi-lo. Para o caso do ensino, a interação entre o agente intrínseco (natureza) e o agente extrín-seco (arte) é premissa para definir a própria idéia de educação: eduzir o conhecimento em ato a partir da potência. O professor, por meio da linguagem, mostra ou envia sinais para que o aluno, por si próprio, transforme a potência em ato (estado de saber propriamente dito). Para melhor ilustrar esse processo, Tomás recorre a uma engenhosa analogia entre a cura e o ato de adquirir conhecimento. Explicando melhor: a cura poderá ser conseqüência da ação da própria natureza do doente (agente intrínseco) ou da ação dessa mesma natureza auxiliada pelo médico que prescreve os remédios devidos (agente extrínseco); da mesma forma, o conhecimento adquirido pelo movimento da razão natural que sozinha o completa — e nesse caso temos a descoberta — poderá também ser adquirido por esse mesmo movimento da razão natural, só que agora ajudada/conduzida por um agente externo (o mestre) e, então, tem-se o ensino. Portanto, em seu núcleo original, a teoria educacional do filósofo aquina-tense em nada se aproxima de uma transmissão mecânica desprovida de Eros pedagógico, representada por um aluno passivo que escuta e um professor ativo que fala. Ao contrário, "o professor deve conduzir o aluno ao conhecimento do que ele ignorava, seguindo o caminho trilhado por alguém que chega por si mesmo à descoberta do que não conhecia" (2000, p. 32). O discurso do professor é, pois, um convite e, quando aceito, talvez o elemento mais ativo seja o aluno.

Essa analogia parece situar os primórdios de uma discussão que até hoje se trava em torno da natureza específica do ensino e que, em Aquino, difere da natureza da descoberta e daquela, defendida (tantos séculos antes) por Santo Agostinho, que opera uma oposição entre o interior e o exterior, sendo o primeiro uma espécie de reservatório de verdades reveladas, em última instância, pela iluminação divina. O Eros pedagógico, em Aquino, é do tipo ensinante, aquele que por meio de sinais meticulosamente arrumados vai abrindo um caminho pelo qual o pensamento possa (ou não) passar. É assim que o filósofo defende a possibilidade mesma de um homem ensinar outro.

Convém chamar a atenção que tal caminho, em uma de suas possibilidades, não é linear. Ele se apresenta aqui sob a forma de meneios e alternâncias de teses, objeções, contra-objeções, soluções e respostas. É a estrutura da quaestio disputata, um exame crítico das grandes idéias e essência da universidade medieval. Trata-se, nela, de disputar a verdade sobre um determinado tema, considerando as vozes adversárias ao posicionamento que será definido pelo próprio autor. Uma determinatio sobre a questão é conseqüência, assim, de um confronto de idéias: atrativo, para alguns; enfadonho e estéril para outros.

De qualquer modo, seja pela busca da verdade, fundamentada pela crença metafísica em sua existência, pela retórica ou discurso, o fato é que a sedução pela linguagem sempre implicará no rapto da alma. Como no amor, é possível que nos campos filosófico e pedagógico ela se exerça delicadamente, sorrateiramente, criando o impulso apaixonado da alma pelo conhecimento. Referindo-se à agilidade de Eros, Agatão diz no Banquete: "Pois, se fosse rígido, jamais poderia envolver todas as almas e nelas insinuar-se, entrando e saindo sem se fazer notado" (1971, p. 154).

No mundo antigo, e necessária no mundo contemporâneo, a força erótica da linguagem em termos ideais parece estar envolta dessa leveza, que se esparge por meio de palavras doces como o mel. O próprio Sócrates quando resolve retratar-se a Eros, no Fedro, diz: "[...] lavar com um discurso suave o ouvido cheio de água salgada" (1971, p. 221).

Não só no tempo de Sócrates, mas também nos tempos atuais, os ouvidos estão cheios de água salgada. Em termos de formação humana, tanto nos espaços amplos quanto nos restritos, somos assediados por todo tipo de violência da língua — um "o que quer, o que pode essa língua" em sua versão perigosa e preocupante. Uma violência que se exerce desde discursos voltados para os destinos coletivos no âmbito da política, do mercado, da religião e dos valores culturais de um modo geral, como aqueles que circulam no interior das casas, das escolas, dos espaços voltados ao lazer, com os aparelhos de som permanentemente ligados (e de preferência a todo volume). O Eros do tipo pedagógico não gosta de barulho. Foge de todo e qualquer tipo de violência. No Banquete, Agatão o compara a Deusa Ate, a de pés delicados, que não andam sobre o solo, mas sobre a cabeça dos homens (Platão, 1983). Para serem tocados por Eros, os homens precisam ser brandos, pois é sobre estes que ele consente andar e residir. Mais do que nunca, em todas as modalidades da prática social, o mundo contemporâneo clama por delicadeza e suavidade.

Recebido em 23.01.06

Aprovado em 05.03.07

Marlene de Souza Dozol é doutora em Educação pela USP e professora do Centro de Educação da UFSC. Publicou artigos pela Humanitas da USP, pela ANPED e outros eventos, os livros Da figura do mestre, co-edição entre EDUSP/AA, e Rousseau – Educação: a máscara e o rosto, pela Vozes.

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  • Correspondência:
    Marlene de Souza Dozol
    Univ. Federal de Sta Catarina
    Rua Frederico José Peres, 67
    88035-340 – Florianópolis – SC
    e-mail:
  • *
    Trabalho apresentado, em primeira versão, na 28ª Reunião Anual da ANPED, realizada em outubro de 2005, na cidade de Caxambu.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      05 Mar 2007
    • Recebido
      23 Jan 2006
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