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A formação de adultos confrontada pelo imperativo biográfico

The education of adults confronted by the biographical imperative

Resumos

O texto tem como foco a questão da educação de adulto nos dias de hoje. Tem em vista oferecer elementos que contribuam para a formação de outrem ao considerar que todo formador precisa conhecer melhor o que foi formador em sua própria história de vida. Defende a idéia de que a construção biográfica tende a se tornar a finalidade principal da formação de adultos, mas é preciso buscar novos horizontes de construção biográfica, pois o curso da vida experimenta, em razão da ruptura de linearidade que tem caracterizado a maior parte dos percursos profissionais, novas tensões, mas também aberturas inusitadas. Nesse sentido, considera a pluralidade biográfica que caracteriza os contextos sociais da vida contemporânea. A instabilidade ambiente, a perda de referências culturais, a rapidez da emergência das novas tecnologias obrigam a uma espécie de reconversão das bases educativas nas quais se fundam as histórias de vida. O processo de formação torna-se uma longa busca de si em um mundo que demanda uma forte consistência pessoal para enfrentar os desafios que cada um deve encarar na sociedade atual. Essa experimentação existencial irá de certo surpreender, particularmente em contextos de conformidade social, porque ela favorecerá trajetórias insólitas e opções aparentemente contraditórias. Nós estaremos, em todo o caso, diante de confrontos entre gerações que, por causa de suas divergências biográficas, podem ter dificuldade de se reconhecer mutuamente. O relato biográfico educativo praticado no ensino universitário, em Genebra, fornece inúmeras ilustrações dos desafios biográficos enfrentados especialmente pelos profissionais da formação.

Vida adulta; Biografia educativa; História de vida; Construção biográfica


The focus of this text is the issue of adult education in our days. It aims at offering elements to contribute to form someone, by considering that every educator needs to know what was formative in his/her own life history. The text defends the idea that the biographical construction tends to become the main purpose of the education of adults, but that we have to seek new horizons of biographical construction, because the course of life has experienced, in consequence of the rupture of linearity that has characterized most professional paths, new tensions, but also unsuspected possibilities. In this sense, the article considers the biographical plurality that is a feature of the social contexts of contemporary life. The ambient instability, the loss of cultural references, the speed of emergence of new technologies, all force a kind of readaptation of the educative basis upon which life histories are founded. The process of formation then becomes a prolonged search for oneself in a world that demands a strong personal consistency to face the challenges posed to each person in today's society. Such existential experimentation will certainly bring surprises, particularly in contexts of social conformity. We shall be, at any rate, before a confrontation of generations which, by virtue of their biographical divergences, may have difficulty to recognize each other. The educative biographical report practiced at Geneva's higher education offers countless illustrations of the biographical challenges faced especially by the professionals of education.

Adult life; Educative biography; Life history; Biographical construction


EM FOCO: HISTÓRIAS DE VIDA E FORMAÇÃO

A formação de adultos confrontada pelo imperativo biográfico* * Tradução de Helena Coharik Chamlian.

The education of adults confronted by the biographical imperative

Pierre Dominicé

Université de Genève

Correspondência Correspondência: Pierre Dominicé 344, route de Lausanne 1293 - Bellevue, GENEVE e-mail: pierre.dominice@pse.unige.ch

RESUMO

O texto tem como foco a questão da educação de adulto nos dias de hoje. Tem em vista oferecer elementos que contribuam para a formação de outrem ao considerar que todo formador precisa conhecer melhor o que foi formador em sua própria história de vida. Defende a idéia de que a construção biográfica tende a se tornar a finalidade principal da formação de adultos, mas é preciso buscar novos horizontes de construção biográfica, pois o curso da vida experimenta, em razão da ruptura de linearidade que tem caracterizado a maior parte dos percursos profissionais, novas tensões, mas também aberturas inusitadas. Nesse sentido, considera a pluralidade biográfica que caracteriza os contextos sociais da vida contemporânea. A instabilidade ambiente, a perda de referências culturais, a rapidez da emergência das novas tecnologias obrigam a uma espécie de reconversão das bases educativas nas quais se fundam as histórias de vida. O processo de formação torna-se uma longa busca de si em um mundo que demanda uma forte consistência pessoal para enfrentar os desafios que cada um deve encarar na sociedade atual. Essa experimentação existencial irá de certo surpreender, particularmente em contextos de conformidade social, porque ela favorecerá trajetórias insólitas e opções aparentemente contraditórias. Nós estaremos, em todo o caso, diante de confrontos entre gerações que, por causa de suas divergências biográficas, podem ter dificuldade de se reconhecer mutuamente. O relato biográfico educativo praticado no ensino universitário, em Genebra, fornece inúmeras ilustrações dos desafios biográficos enfrentados especialmente pelos profissionais da formação.

Palavras-chave: Vida adulta — Biografia educativa — História de vida — Construção biográfica.

ABSTRACT

The focus of this text is the issue of adult education in our days. It aims at offering elements to contribute to form someone, by considering that every educator needs to know what was formative in his/her own life history. The text defends the idea that the biographical construction tends to become the main purpose of the education of adults, but that we have to seek new horizons of biographical construction, because the course of life has experienced, in consequence of the rupture of linearity that has characterized most professional paths, new tensions, but also unsuspected possibilities. In this sense, the article considers the biographical plurality that is a feature of the social contexts of contemporary life. The ambient instability, the loss of cultural references, the speed of emergence of new technologies, all force a kind of readaptation of the educative basis upon which life histories are founded. The process of formation then becomes a prolonged search for oneself in a world that demands a strong personal consistency to face the challenges posed to each person in today's society. Such existential experimentation will certainly bring surprises, particularly in contexts of social conformity. We shall be, at any rate, before a confrontation of generations which, by virtue of their biographical divergences, may have difficulty to recognize each other. The educative biographical report practiced at Geneva's higher education offers countless illustrations of the biographical challenges faced especially by the professionals of education.

Keywords: Adult life — Educative biography — Life history — Biographical construction.

Para novos horizontes de construção biográfica

A vida adulta, nos dias de hoje, toma formas inéditas, porque a construção biográfica deve enfrentar novas condições de existência. O conflito entre antigos e modernos não é certamente novo. Cada geração ascendente conquistou seu espaço chocando-se contra as das tradições dos mais velhos. Os relatos de histórias de vida dos adultos fornecem inúmeros exemplos a respeito. Fazer sua vida quer dizer, também, desfazer-se dos rigores de sua educação. Essa oposição construtiva, fonte de criatividade e de inovação, tem todavia a tendência de se atenuar para dar lugar a novas perspectivas autobiográficas. Hoje, o futuro, com efeito, está obscurecido por uma espécie de capa que nos impede de representar a própria vida em longo prazo. O sociólogo alemão Peter Alheit (1993, p. 188) afirma claramente: "[...] o curso da vida parece se tornar uma espécie de 'laboratório' que funciona sem programação". A vida toma sua forma em parte no vazio e a biografia se elabora, em conseqüência, principalmente no incerto. Essa mudança que parece pôr em causa, segundo Sennett (1999), o próprio sentido de uma história de vida, tem conseqüências evidentemente para a formação de adultos. É imperativo, portanto, cercar melhor o jogo.

Como Alheit (1993) analisa com elegância, os desarranjos que subvertem as etapas tradicionais da existência desorganizam a dinâmica do curso da vida. Assim, em função do que muitos sociólogos nomeiam como a 'desinstitucionalização do curso da vida', confrontamo-nos com novos horizontes biográficos. J. P. Boutinet faz uma constatação análoga:

O adulto parece ter perdido suas marcas, aquelas que assegurariam sua complexa identidade, familiar, escolar, profissional e ideológica; sem ideais bem definidos, doravante, ele estará só frente a si próprio. (1995, p. 39)

A vida profissional, principalmente, não leva mais à mesma estruturação da existência. Assim, o percurso biográfico é perturbado e projetado, a despeito dela, no futuro. Alheit sublinha esse fato em muitos de seus textos. Para conduzir sua vida, é preciso conformar-se com aprendizagens difíceis, que servirão de fundamento para as opções a fazer. Evocando o 'ambiente sociotécnico' pelo qual a vida adulta está confrontada, J. P. Boutinet (1998, p. 45) estima ser "pertinente recorrer ao paradigma do caos vocacional". Essa noção atribuída a Riverin-Simard (1996) lhe permite afirmar que "o caos na vida adulta deste fim de século XX tende freqüentemente a substituir o modelo desenvolvimentista" (Boutinet, 1998, p. 46).

Contrariamente a seus antecessores, que precisavam se opor à rigidez das normas de sua educação e encontravam a duras penas uma autonomia maior, os jovens não têm mais necessidade, verdadeiramente, de contestar as opções que seus pais projetaram para seu futuro. Em contrapartida, eles têm a obrigação de descobrir uma via mais pessoal, de aceitar as rupturas e de aprender a incerteza. Sua formação não é mais dominada por uma busca pela independência, ela é, sobretudo, mobilizada por uma preocupação pela estabilidade. Em vez de rejeitar um futuro que outros quisessem construir por eles, estes têm de encontrar por si mesmos o que lhes corresponde, num mundo cheio de surpresas, sacudido entre o sucesso dos heróis e a marginalidade dos excluídos.

A biografia do adulto se constrói, com efeito, em um ambiente social no qual o fator econômico desempenha, em nossos dias, um papel preponderante. Não é, pois, surpreendente que o horizonte biográfico seja incitado a se modificar. A cronologia de uma vida balizada por etapas inscritas na organização social, como aquela do tempo da formação profissional, do primeiro emprego ou da idade da aposentadoria, dá lugar a uma existência submetida a escolhas cada vez mais complexas e cujo arranjo se faz de maneira mais aleatória. Os diplomas não garantem mais o acesso a um posto de trabalho. O desemprego fragiliza o emprego e o torna cada vez mais inacessível. O fim da vida profissional acontece cada vez mais cedo, em um momento em que inúmeros adultos têm dificuldade de encontrar alternativas satisfatórias.

Outras transformações sociais modificam o curso da vida. As situações de amálgamas interculturais, devido tanto às migrações de populações quanto às modificações intervenientes na distribuição dos meios sociais, requerem exercícios de adaptação. Eles exigem dos casais e especialmente dos pais uma maturidade relacional maior. Em razão das origens culturais diferentes, os modelos de referência podem ter significações divergentes. As normas provenientes da educação têm a tendência de perder sua significação pela falta de reforço do círculo familiar ou social. A aculturação interpõe-se, por outro lado, de modo diferenciado segundo os homens e as mulheres ou segundo os membros do grupo familiar. Os deslocamentos geográficos, cada vez mais numerosos em nossos dias, que ocorrem durante o período compreendido pela infância e pela vida adulta, modificam a própria socialização. Eles necessitam de fases de reinserção que desestabilizam muitos adultos e os tornam mais estrangeiros em um meio que permanece, entretanto, o seu. Como escreveu, em forma poética, um jovem italiano trabalhando na Suíça: "Eu sou um estrangeiro da segunda geração, um viajante singular e minha morada é uma trajetória, mais do que um lugar". Sem terra natal significativa ou sem raízes com as quais se identificar, os adultos da jovem geração são compelidos a trabalhar mais intensamente os eventos e as fases da história de suas vidas. Sem saber como apreendê-las, eles vivem muitas vezes uma profunda confusão e sentem-se desarmados diante das situações conflituosas com que se deparam. O temor do compromisso do casamento, que significa vínculo de longo prazo, é a sua demonstração.

A repercussão da instabilidade política mundial sobre a maneira de conceber a vida é igualmente inevitável, ainda que seja difícil medi-la. A presença ameaçadora de tumultos civis e de guerras por territórios mobiliza os espíritos e reforça a insegurança sentida no plano econômico. Diante da violência, da mortandade ou da miséria, como ficar insensível? Que esperança nutrir, a que valores se apegar, que forma de solidariedade inventar? Essas questões estão presentes, ainda que não sejam explicitamente abordadas, e a mídia, que mantém a opinião pública em alerta, encarrega-se de lembrá-las. De modo geral, a interpretação que os adultos fazem dessa efervescência política ressoa sobre o sentido que eles dão à sua vida. Ela desloca os pressupostos que caracterizam sua visão de mundo. Ninguém sabe do que o amanhã será feito. Nas sociedades preservadas como a de muitos países ocidentais, a primeira reação de muitos cidadãos consiste em tentar salvaguardar o que possuem. A conservação das tradições e dos hábitos faz às vezes de refúgio, como a manutenção da segurança, ali onde ela se mostra possível, ainda. Nos contextos menos favorecidos, o horizonte biográfico tende a se tornar mais trágico. Os adultos perdem esse recurso e avançam tateando ao sabor dos meios disponíveis. Sua história se torna um percurso de sobrevivência.

De maneira geral, atualmente, os adultos assumem como podem as contradições que habitam suas vidas. Porém, muitos dentre eles querem tentar se defender para fazer face à precariedade e à insegurança. Eles serão principalmente atraídos e tranqüilizados pela conformidade, o que explica o retorno massivo dos fundamentalismos. Suas escolhas de vida serão igualmente objeto de tensões entre posições divergentes como, por exemplo, a manutenção de um bem-estar material e impulsos de maior generosidade. Algumas vezes, ocorre que as simpatias mudem de campo, dando lugar à indiferença ou até mesmo à intolerância e ao racismo. Em todo caso, a atitude crescente de defesa parece corresponder a uma forma de se simplificar a vida.

Confrontados pela instabilidade geral que caracteriza o mundo atual, os trajetos biográficos dos adultos são, então, mais aleatórios. A construção da história de sua vida, como assinala em especial Peter Alheit (1993), está submetida a novas condições biográficas. Convém, todavia, considerar essa mudança de horizonte biográfico na perspectiva da diversidade de ambientes socioeconômicos, da idade das pessoas em questão, assim como de suas dinâmicas pessoais. Os relatos de vida, tal qual são produzidos no procedimento da biografia educativa, constituem, sob esse ponto de vista, um material que permite aprofundar, no seio de uma população homogênea de aprendizes adultos, a transformação das lógicas de construção biográfica. Com efeito, esses relatos deveriam nos ajudar a identificar as novas formas de elaboração de sentido que os jovens adultos dão à história de vida adulta.

A pluralidade biográfica

Educados por uma geração que sonhou com um futuro estável e feliz para seus filhos, numa época em que era ainda possível imaginá-lo, os jovens adultos, em particular, deverão inventar para si próprios outras soluções para assegurar sua existência e lhes conferir um sentido. Essa experimentação existencial irá de certo surpreender, particularmente em contextos de conformidade social, porque ela favorecerá trajetórias insólitas e opções aparentemente contraditórias. Nós estaremos, em todo o caso, diante de confrontos entre gerações que, por causa de suas divergências biográficas, podem ter dificuldade de se reconhecer mutuamente.

Minha exposição tenta indicar uma tendência geral. É bem evidente que a noção de geração merece nuances. As distinções não são sempre definidas. Muitos jovens continuam a se inspirar fortemente nos modelos de vida que foram os de seus pais, outros se submetem sem dificuldade às normas de seu convívio social. Além disso, há todos os marginais e excluídos que não conseguem evitar que sua vida seja enredada pelo desvio. Todavia, é importante reconhecer os signos visíveis de reorganização de percurso de vida das novas gerações. O trabalho é aceito tal qual ele é ofertado, sem ligação necessária com a formação de base e, muito amiúde, sem garantia de futuro. Pode-se demonstrar indispensável para a sobrevivência escolher domicílio em terra estrangeira, em uma escala social maior do que a da emigração tradicional. O casamento se torna, em muitos casos, apenas uma fórmula jurídica, ao menos uma solução imposta pelo nascimento de um filho. Com os lazeres muitas vezes inacessíveis financeiramente, torna-se necessário recriar o espaço de vida pessoal do cotidiano e encontrar atividades sociais que compensem o tédio profissional e até mesmo a falta de emprego.

Se para muitos adultos o desenvolvimento de sua vida se passa 'sem histórias', são numerosos aqueles que, tendo sua vida feita de 'histórias' complicadas, tateiam para descobrir um fio condutor. Em razão de mudanças desejadas ou sofridas, eles devem freqüentemente recomeçar em outros lugares, segundo outras orientações profissionais ou com outros parceiros. O curso da vida não conhece mais fases que se encaixam ou etapas de desenvolvimento, mas percursos reduzidos a fatias de vida separadas umas das outras, feitas de contrastes, de mudanças de rumo ou de reorganização de modalidades de existência.

Assim, quantos adultos não tiveram que aprender a 'refazer sua vida' enquanto imaginavam ter efetuado escolhas maduras e definitivas! A fragilidade do emprego, os conflitos relacionais, uma saúde defeituosa constituem alguns exemplos de perturbações que habitam a história de vida. Quando essas situações se tornam sem saída, é preciso renunciar e recriar, aceitar perder, para poder refazer. Aqueles que viveram essas metamorfoses sabem o que lhes custaram. Mesmo reconhecendo o que aprenderam, eles não esquecem o sofrimento suportado. Poderia ser diferente? É preciso esperar que sim, desde que se considere fórmulas de acompanhamento colocadas à disposição dos adultos para ajudá-los a melhor compreender os momentos que atravessam. É inegável, entretanto, que toda mudança mobiliza um grande dispêndio de energia e necessita de um trabalho de adaptação em profundidade. Os formadores que propõem soluções rápidas de alguns dias de sessões para, por exemplo, 'se preparar para a aposentadoria', fariam bem em não esquecê-lo.

O desafio de toda construção biográfica não considera atualmente a dificuldade de associar trajetórias pensadas como lineares com as lógicas de ruptura. Tanto mais que a educação de base, durante toda a infância, continua vinculada a classificações ligadas à idade. Enquanto a juventude atual tende a produzir e impor suas próprias normas de socialização, ela está igualmente obrigada a respeitar os limites de idade. A formação contínua, que corresponde freqüentemente no adulto a um tempo de abertura biográfica, apóia-se em um currículo de base que permanece determinante. A universidade, que se abre à população adulta que está muito ligada aos certificados obtidos no fim da escolaridade, é uma instituição muito representativa desse incômodo institucional.

A formação, porém, não está destinada unicamente a prolongar aquisições anteriores. Ela deve ser pensada considerando as descontinuidades da existência, ainda mais que as transformações impostas pela sociedade atual não acontecem sem choque. A formação pode intervir como retomada do curso da vida. Ela necessita então de contribuições, de suportes, até mesmo de espécies de 'próteses'. De resto, não é uma das tarefas prioritárias da formação oferecida, como dizem hoje os documentos oficiais, 'ao longo da vida', a de ajudar os adultos a dar forma à sua vida, quaisquer quer sejam as circunstâncias?

Tal concepção de formação não deve ser confundida com um trabalho de assistência. Quando o adulto se aflige para dominar as exigências de um projeto ou em conduzir sua vida, é bom que ele possa dispor de apoio para realizar o que pretende ou para se retomar. Nas narrativas biográficas, a maioria das estudantes cujos relatos li e entendi, reconheceram ter tido a necessidade de um período de estudos universitários realizados na idade adulta, tanto quanto de um processo terapêutico, para estarem em condições de conseguir ser o que pretendiam. Sua retomada dos estudos pôde contribuir para sua formação, bem como o apoio terapêutico facilitou sua autonomia. Em nome de que imaginar que um refugiado desligado de suas raízes, um acidentado confrontado com uma amputação ou pais sucumbidos pelo luto de um filho possam encontrar em si próprios todos os recursos necessários para fazer face ao que lhes sucedeu? O trabalho biográfico ocasionado por lógicas de ruptura, ou provocado por eventos que desestruturam, obriga a relações de ajuda e acompanhamentos que desbloqueiam as aprendizagens requeridas. A reconstrução do horizonte biográfico necessita de um trabalho de formação, que não se reduz a um único registro psicológico de desenvolvimento pessoal. Ela aponta para uma globalidade, feita da aliança de saberes múltiplos e de aprendizagens complementares.

Desistir em caso de dificuldade ou silenciar um conflito para conseguir esquecê-lo constituíram uma filosofia bastante divulgada e que ainda marcou a educação das gerações atualmente no vigor da idade adulta. A recusa de acompanhamento faz assim eco às resistências que marcaram, nos últimos decênios, a emergência da formação contínua. Na Suíça, em particular, em razão do atraso devido à ausência de medidas legislativas sobre a formação de adultos, é ainda muito presente a idéia de que ser adulto significa ser capaz por si próprio de tomar as rédeas de sua vida. O recurso à formação bem como à terapia ainda é freqüentemente considerado como uma confissão de fraqueza. Somente aqueles que fizeram experiências de aprendizagem que os conduziram para outras escolhas, ou para outros comportamentos, sabem até que ponto esses apoios exteriores lhes foram úteis. Eles reconhecem que sua vida não teria tomado a mesma orientação biográfica se estivessem privados de suportes formadores. O testemunho dos relatos biográficos é fundamental nesse caso.

Sem confundir formação de adultos e ajuda terapêutica, convém reconhecer que um aporte educativo, que pode, em certos casos, suceder ou ser precedido por um processo terapêutico tornou-se indispensável para fazer face às descontinuidades da existência. Não seria conveniente mobilizar-se com tenacidade na invenção de um procedimento que conferisse à formação uma finalidade existencial que permitisse aos adultos, freqüentemente enredados em suas histórias, reencontrar um horizonte biográfico no contexto econômico e político instável que conhecemos atualmente?

A biografia se move no interpessoal

De modo geral, os relatos biográficos deixam transparecer os quadros de referência mediante os quais os adultos dão sentido à história de sua vida. Na época atual, as grandes opções ideológicas quase não impregnam mais as mentalidades, e o registro psicológico tende a predominar. Os adultos pensam sobre sua vida mais em termos de realização pessoal do que em aventura coletiva. Os estudantes, que se situam majoritariamente entre 25 e 40 anos, relatam sua trajetória em registros principalmente relacionais. Sua reflexão biográfica centra-se sobre suas relações familiares, escolares e amorosas. Eles evocam seus pais, seus professores, seus parceiros ou mentores ocasionais, como um treinador esportivo ou um eclesiástico, e não as causas religiosas ou políticas, se é que existem, e que puderam mobilizá-los. Os mais jovens não têm mais a experiência de movimentos sociais ou de fases militantes de socialização para mencionar. Eles avançam tateando, de modo mais individual, em um caminho que pretendem seja feliz, mas que está repleto de vestígios e evocações dos ímpetos ambiciosos das gerações precedentes. Os grandes encontros musicais e tecnológicos que marcam sua época constituem para os jovens signos de vitalidade, se bem que eles sejam invadidos pelos mercados comerciais e provoquem o reforço do fenômeno de similitude sublinhado por Boutinet (1998, p. 178) quando ele evoca o antagonismo entre o "desejo de similitude" e o "desejo de diferenciação".

Então, nesse universo feito ao mesmo tempo de similitude e de diferenciação, anônimo e muito personalizado, dominado pela multidão e encolhido sobre si mesmo, como identificar a singularidade do sujeito biográfico? A história de vida pode ainda se dar a conhecer por intermédio da 'mise en intrigue' (construção do argumento) do relato biográfico? Em outros termos, a narração ainda produz um relato, isto é, ultrapassa a simples descrição de eventos existenciais para revelar um sentido biográfico? Como articular a bipolaridade sujeito e estrutura, como diz Alheit (1993), na compreensão do relato biográfico, se o mundo do narrador está comprimido em uma história pessoal e local? Como escreve Gaston Pineau a propósito:

[...] em relação às práticas biográficas tradicionais nas quais se implicavam majoritariamente sujeitos consistentes e que perseguiam, sobretudo, funções de transmissão social, as práticas modernas parecem impulsionadas por necessidades de formação e de orientação permanente de sujeitos inacabados à busca de sentido, em todos as acepções do termo, de sensibilidade, de direção e de significação. (1993, p. 58)

Ainda há um 'sujeito da enunciação'? Não estamos, na maioria dos relatos biográficos atuais, aquém da 'subjetivação', de que fala Alain Touraine (1992)? Ao que conduz a exigência reflexiva do procedimento de biografia educativa, se a narração oral e escrita se restringe ao aspecto descritivo? Para que serve a perspectiva de pesquisa se a narração perde seu vigor de relato de formação e não conduz mais o investigador, para além do tempo acadêmico do procedimento biográfico, a uma leitura que se confronta com uma intertextualidade ou uma 'interculturalidade' biográfica, esclarecendo o próprio objeto de pesquisa que constitui a formação?

Alguns componentes do sentido biográfico

À luz de uma série de relatos trabalhados recentemente, tentei analisar como, em um contexto caracterizado por essa modificação da paisagem biográfica, a narração extraída da biografia educativa dava conta do sentido dado aos processos de formação. Em obra precedente (Dominicé, 1990), eu havia mostrado como, com a geração de estudantes com a qual trabalhava naquele momento, o relato colocava em evidência um movimento dialético caracterizado por um desprendimento em relação aos fundamentos de sua educação e uma vontade de autonomia ou de intenção forte de afirmação de si. O significado do relato se apegava assim à evocação do trabalho de emancipação que caracterizava o movimento de formação. A formação era, com efeito, designada por uma dinâmica de deslocamento, indicando uma rejeição da herança educativa para a constituição de novos territórios existenciais. Os relatos apresentados convergiam para uma liberação do projeto biográfico, visando uma 'autopoiese'1 1 . O termo autopoiese refere-se à abordagem sistêmica para designar a capacidade de autocriação. da existência. Esse paradigma está amplamente modificado pela chegada de novos horizontes biográficos, tornando-se necessário localizar as novas configurações que permitam situar a formação.

O trajeto biográfico dos adultos mais jovens tornou-se, portanto, diferente. Importa não banalizá-lo com a denúncia de que a narração carece de envergadura coletiva, até mesmo de militância. Os acontecimentos que demarcam uma existência certamente são mais ou menos cativantes para os interlocutores presentes. O desafio do relato de vida não se atém, entretanto, ao caráter extraordinário dos acontecimentos referidos nem ao carisma pessoal do narrador, mas sim à maneira pela qual ele dá conta de maneira significativa da forma que a história de vida de seu autor adquiriu. Três extratos de relatos permitir-me-ão nomear essa mudança de horizonte biográfico descoberta no curso destes últimos anos.

André perdeu seu irmão de overdose, sua mãe de um câncer e seu pai, por desespero, em reação, efetuou uma tentativa de suicídio entre essas duas mortes. Ele fica quase só, enquanto ainda é muito jovem, com os lutos cumulativos que ele deve integrar à sua vida já que fazem parte de sua história para sempre. É sentido que ele vai dar a esses eventos trágicos que vai designar o desafio biográfico. Sua formação se construiu nesse contexto de perda. Ele diz:

Apesar de uma certa força de caráter demonstrada, minha confusão é profunda, minhas feridas abertas, mas minha determinação de viver, de romper o círculo vicioso das angústias individuais e familiares que liquidaram em quatro anos minha família, é ainda mais presente que antes.

André chega a dizer, em seu relato, como esse passado se inscreve em uma trajetória em outros termos e se abre ao futuro vivo que é o seu:

Depois de ter vivido muito tempo no passado de medo de vê-lo desaparecer para sempre, eu posso agora me voltar para o futuro sem receio nem de trair nem de esquecer o que deixei para trás. [...] Foi preciso me tomar pela mão, introduzir o luto de minha família e do meio estável que havia conhecido durante 20 anos e começar a me projetar no futuro.

Assumir o caráter trágico dos eventos com os quais se confrontou, tal é o sentido destacado no relato por André: o formato que adquire a história de sua vida, no momento em que ele se exprime e considera o que lhe aconteceu.

Os acontecimentos inscritos na história de vida e mencionados em um relato são freqüentemente menos pesados de carregar. Por outro lado, pode-se ter dificuldade em encontrar a coerência que permite sua co-habitação em uma mesma história. Originária de um país do Terceiro Mundo e vivendo na Suíça, Marie escolheu o 'palimpsesto' para colocar juntas as diferentes, e algumas vezes contraditórias, facetas de sua vida, isto é, uma variedade de lugares, de culturas, de programas de formação, de experiências profissionais:

Fazendo de minha biografia educativa 'um palimpsesto' em forma de roda dividida em raios, eu veria minha história inteira. Finalmente eu havia encontrado todas as peças do quebra-cabeça de minha vida e eu podia decifrar o palimpsesto. [...] Eu me reencontrei inteira em minha história e me reconheci [...] fazendo dessa roda um palimpsesto, eu vi que tudo estava lá, eu podia reler, fazer as ligações e encontrar sentido nelas [...]. Nesse palimpsesto, eu me reencontrei inteira e não mais despedaçada como eu me sentia tantas vezes [...]. A formação consiste então em reunir, como em um 'metabolismo', os elementos dispersos da experiência de vida, em construir o sentido de uma dispersão existencial, apresentando as escolhas maduras, e uma capacidade de recontar os alhures, dizendo 'eu'.

Paul Ricoeur (1984) fala em Tempo e narrativa II de 'síntese do heterogêneo', retomando a idéia de 'conexão' emprestada do 'Lebenszusammenhang'2 2 . Conceito que significa 'o conjunto da vida'. N. R. de Dilthey. "Eu quero ser eu. Eu reivindico uma identidade que eu decidi construir graças e malgrado meus pertencimentos culturais plurais. [...] Eu assumi a responsabilidade de organizar esta diversidade, como se arranja um buquê de flores", escreveu Maria.

Uma outra via de formação consiste em se autorizar à exploração de caminhos diferenciados, e muitas vezes contraditórios, por meio dos quais nos colocamos à prova da vida. Beatriz faz parte dessas jovens adultas 'patchworkers' descritas por Peter Alheit (1995). Ela tem, aos 29 anos,

[...] um diploma de patrulheiro escolar, um certificado de amador em solfejo, de bacharelado científico3 3 . No original, maturité scientifique, que na Suíça corresponde ao exame terminal de nível médio. N.T. , um diploma de massagista, uma meia-licença em psicologia, um certificado federal de capacidade de cuidar de viveiros, um certificado de animadora de biodança e alguns outros atestados.

Ela trabalhou num circo como cozinheira, interrompendo provisoriamente seus estudos, e viajou por vários continentes. Como ela sublinha, seu percurso é o reflexo de uma busca profunda de si própria. "Todos os meus périplos", ela escreve, "aqui e no estrangeiro, foram buscas de minha identidade cultural". Beatriz se forma abrindo caminhos de atalho que ampliam sua trajetória. Ela faz projetos, sem se prender necessariamente a eles, mas com "um desejo insaciado", no fundo de si própria, de encontrar um equilíbrio de vida entre os pólos existenciais que lhe atraem: "o corpo e o espírito, o céu e a terra". Com muita lucidez, ela admite "estar só", "em sua pele", a "sentir o que eu experimento". Na reflexão que faz de seu percurso, ela associa decisão e capacidade de "pensar por si própria", como se a soma de suas explorações experienciais lhe ajudasse a escolher, optando pela via que é verdadeiramente a sua.

Essas três orientações biográficas, sucintamente evocadas, colocam em evidência as formas tomadas por histórias de vida mais acidentadas, marcadas por uma construção biográfica menos linear, confrontada por tempos de ruptura, a partir dos quais se definem as escolhas a efetuar. O percurso de André está atravessado pela perda dolorosa de seus próximos. Outras situações como, por exemplo, o luto, uma parada devida a uma fase de desemprego, uma doença crônica, um divórcio poderiam necessitar, de modo análogo, da modelagem de equilíbrios de vida que abrem para o sentido de futuro, apesar de um passado alquebrado. Marie, que a síntese de suas origens e inserções culturais, sociais e profissionais libera, indica um caminho de formação significativo, para outros imigrantes, ou refugiados, cuja história pessoal estilhaçada tem a tendência a forjar, pelo fato da ruptura, uma vida dividida em pedaços e pensada em termos de fratura. Quanto à Beatriz, ela parece representativa de uma geração que, apesar de considerar o acesso ao emprego mais difícil e mais frágil, sente a necessidade de fazer da vida um laboratório de experiências, agarrando todas as oportunidades que lhe permitam explorar suas próprias facetas, para melhor saber o que escolher. Cada um deles dá conta de elementos que, para além da singularidade de um relato tomado isoladamente, desvelam novos horizontes biográficos e que correspondem ao sentido atribuído às dinâmicas de formação.

Ressaltar o desafio biográfico da formação

André encontrou as forças necessárias para ser capaz de encarar o futuro. Maria teve que preservar a coerência de suas 'mestiçagens' sociais e culturais. Beatriz fez da experiência biográfica a condição da formação. Todos os três conseguiram fazer face à complexidade da história de suas vidas: André dominando a dureza da ruptura devida à morte; Maria assumindo o rompimento social e afetivo devido ao distanciamento de suas raízes familiares; e Beatriz aceitando viver segundo vários registros, aprendendo a renunciar para escolher. Não se trata mais de se despojar da educação recebida para se tornar si próprio, mas de aceitar viver sabendo que o futuro está carregado de um passado que não está mais presente. O que pensar de todos aqueles que, mesmo em idade madura, não chegam a renunciar daquilo de que são privados; que têm dificuldade em aceitar que sua formação se modela nos limites daquilo que ela deve se restringir?

Como explica muito bem Boutinet (1998), se a formação dos adultos pôde, nos decênios precedentes, contribuir para promover o desabrochar de um adulto em pleno desenvolvimento, hoje é importante aceitar uma vida adulta acrescida pelos problemas postos pelas novas condições de existência. Esse adulto, sofrendo por uma vida tornada precária e cuja complexidade ele não domina mais, justifica que a formação o ajude a pensar sobre sua vida tendo em vista encontrar seu caminho. A formação não vai, como ontem, abrir as portas às quais os adultos não tinham acesso, lhes garantir uma mobilidade, até uma promoção profissional. Em contrapartida, ela pode ajudá-los a conceber as formas do que sua vida pode se tornar. A construção biográfica parece assim representar bem, em nossos dias, uma das finalidades da formação de adultos.

Um número considerável de adultos está em plena confusão, porque eles não sabem como fazer para vislumbrar seu futuro. Por outro lado, eles têm muitas vezes dificuldade em renunciar ao que haviam previsto fazer de sua vida no passado. Toda ruptura exige um trabalho sobre si e, em época de crise, um trabalho de reconfiguração biográfica se tornou imperativo. A desinstitucionalização das idades da vida e os novos horizontes biográficos, anunciados pelos sociólogos e especialmente por Peter Alheit, poderiam constituir, assim, o programa de ações educativas a realizar nos próximos decênios. O que já existe em matéria de acompanhamento de desempregados ou de educação de doentes crônicos deveria ser ampliado para a diversidade de problemas que obstruem o futuro e nos quais os adultos estão enredados. É tempo de reconhecer que são necessárias aprendizagens para fazer face às dificuldades que perturbam a vida adulta. A formação contínua, monopolizada pelo aperfeiçoamento profissional, deve ser oferecida àqueles que precisam de apoios formadores para conduzir sua vida adulta. A resolução dos conflitos existenciais põe em destaque um conhecimento da vida que merece ser reconhecido. André, Maria e Beatriz souberam incluir a perda do que não será, ou do que não será mais, em seu modo de encarar o futuro.

Tornou-se voz corrente, no âmbito do mundo do trabalho, insistir nas competências sociais. Tanto no acesso ao emprego, quanto na avaliação das tarefas, essa dimensão da qualificação pessoal desempenha um papel preponderante. Não chegou o momento, em função da complexidade existencial devida à transformação do horizonte biográfico, de estender essa noção de competência social à globalidade da história de vida? Em uma pesquisa recente, conduzida com enfermeiros clínicos especializados, apareceu claramente que a competência profissional do enfermeiro, em sua relação com os doentes, não é dissociável da competência requisitada pelas outras redes de relação familiar ou social. Quando Mezirow (1991) fala, em uma ótica epistemológica, de 'mudança de perspectiva' ('perspectiva transformação'), ele insiste sobre a dependência das dinâmicas de formação aos pressupostos nos quais se apóia toda concepção de vida adulta. O pensar sua vida é acompanhado por um 'sistema de significação' (meaning structure) que incide sobre as decisões e as escolhas. A mudança atual de paisagem biográfica não apela para um colocar à disposição recursos culturais e educativos para que os fundamentos sobre os quais a vida adulta se define possam ser repensados? A aspiração ética não é uma questão dessa ordem? A atração para a dimensão espiritual não restaura a mesma busca, muitas vezes ainda pouco explícita?

A vida adulta deve, entretanto, se deixar prender na coleira das normas sociais impostas? A capacidade de orientar sua existência deve se submeter unicamente à regulamentação dos objetivos de formação? Os exageros nesse domínio são, com efeito, freqüentes. O comércio da formação tem uma forte tendência a reduzir as escolhas da vida adulta a simples codificações instrumentais. Quer seja questão de dietética, de higiene de vida ou de gestão do tempo, os exemplos não faltam. Minha ótica é bem diferente. Eu pleiteio por uma concepção de formação, entendida no sentido biográfico de uma vida adulta considerada em sua globalidade. Eu questiono, com base no trabalho de biografia educativa, realizado há mais de 15 anos, a desproporção que existe entre os suportes intelectuais e técnicos oferecidos na formação contínua e a falta de recursos que os adultos possuem para conduzir sua vida. Os meios tecnológicos de acesso à informação, postos à disposição de uma ampla população adulta pela sociedade, dita do conhecimento, não mudam nada essa constatação. A maior parte dos adultos está em busca de referências que dêem sentido à sua vida, em um universo cultural no qual eles são confrontados pelos modelos ultrapassados de sua educação e como que precipitados para o futuro em um funcionamento social ao que eles não conseguem aderir.

Convém, desde já, repensar as contribuições educativas a serem fornecidas para a formação dos adultos, além da oferta cada vez mais disseminada de desenvolvimento pessoal. Cuidar de sua saúde tornou-se essencial, aprender a se comunicar em situações conflituosas também. A organização de um universo pessoal mais equilibrado não está em causa. O que dá a pensar em matéria de contribuição educativa diz respeito à dimensão mais societária de mobilização de si mesmo em uma aventura que dê vontade de viver com e para os outros. A energia e o prazer de viver sobressaem também da participação em atividades, até banais, que abrem a história de vida pessoal a trocas biográficas. Em uma vida mais fragmentada, feita de etapas que não se ordenam necessariamente umas com as outras, quais são os vetores de sentido aos quais se agarrar? Quais são os valores aos quais se prender para se lançar ou 'retomar seu impulso' (Dominicé, 1993)? Em torno da vida, da história e da história de vida, três pistas me parecem dignas de crédito para definir o que poderia vir a ser, em uma ótica biográfica, a tarefa de 'mudança de perspectiva' sobre formação de adultos.

O movimento de idéias e de reivindicações ecológicas exige o respeito à vida, tanto humana, quanto animal ou vegetal. A recusa de destruição sistemática da natureza, a atenção dedicada à saúde, a luta por uma salubridade urbana reclamam por um direito à vida ou que a vida tenha seus direitos. Sem procurar de modo algum uma unidade em um feixe vasto, antes desordenado, de frentes ecológicas, com a luta pela vida se extrai um horizonte biográfico. O cotidiano de uma 'arte de fazer' pode se inscrever em uma aposta infinitamente mais global, incluindo o que Gaston Pineau (1993; 1994) nomeia como o 'saber-poder sobre a vida' que destaca opções 'bioéticas e biopolíticas', como ele escreveu.

Pode-se dizer o mesmo com referência à história, aquela das idéias e das correntes de pensamento, que precisa igualmente ser posta às claras, para que possamos nos situar face às grandes reuniões, como a da unidade européia, ou face aos grandes confrontos, como aquele que estoura cada vez mais entre o Islã e a civilização judaico-cristã. Para além das lembranças apaixonadas e longínquas que aparecem na biografia educativa de minha geração, quando meus contemporâneos evocam o tempo dos catecismos, dos movimentos de juventude, das manifestações de rua ou dos engajamentos partidários, os adultos, de modo geral qualquer que seja sua geração de pertencimento, não podem continuar a ignorar as tradições nas quais cresceram. Não será esse esforço de memória que poderá nos tornar capazes de dar sentido às mutações de nosso tempo? Nessa ótica, a análise dos recursos culturais marcantes da história de vida deveria ter um lugar destacado. Em outros termos, a escrita biográfica poderia tornar-se o lugar de um trabalho reflexivo, centrado no impacto da história da civilização na qual toma forma a história de vida pessoal. Na falta de referências e de convicções mais explícitas, os mais jovens, e dentre eles os mais frágeis, tornar-se-ão, se já não o são, a presa de correntes fundamentalistas e sectárias e vítimas de representações caricatas, oriundas das solicitações midiáticas. Não se trata, entretanto de retornar às assembléias de fiéis ou de salvar os partidos políticos. Importa dar os meios para compreender quais são as apostas sociais, culturais ou religiosas que agitam os espíritos e justificam, em muitas das razões políticas ou econômicas, os confrontos que estão na base da violência, do terrorismo e da guerra.

O relato da biografia educativa serviria, então, igualmente de suporte para clarificar a posição a sustentar diante dos desafios da vida e da história: saber melhor de onde viemos; quais são essas tradições interiorizadas e combatidas no curso de nossa vida; em nome de quem, ou do que, nos insurgir contra o racismo, a corrupção ou a hegemonia do nacionalismo. Nós não temos nada além de nossa educação para saber melhor ao que nos apegamos verdadeiramente. Se há escolhas a fazer, que estejam além do que nos é familiar, será conveniente habitá-las de tudo o que nos faz vibrar a fim de que possamos aí permanecer plenamente nós mesmos. A atividade biográfica consistiu ontem em elucidar como nos tornamos o que somos ou como aprendemos o que sabemos. Importa, sem dúvida, que no futuro o trabalho reflexivo sobre a história de nossa vida se centre, sobretudo, sobre o que nos vai permitir aprender a crescer, a ganhar em lucidez sobre a sorte do mundo e a desenhar o que é verdadeiramente, para nossas sociedades, questão de vida ou de morte.

Recebido em 10.03.06

Aprovado em 20.05.06

Pierre Dominicé é professor titular da Universidade de Genebra. Foi membro fundador do Comitê d'ESREA (Société Européenne pour la Recherche en Formation des Adultes) e da ASIHVIF (Association Internationale des Histoires de Vie en Formation), tendo ocupado sua presidência até 2001. Ministrou cursos como professor visitante na Universidade Livre de Bruxelas, na Universidade Católica de Louvain-la-Neuve e da Universidade Paris X Nanterre, além de intervenções pontuais na Universidades de Paris Dauphine, Aix-Marseille, Montpellier, Tours, Columbia, Montreal e Lisboa.

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  • Correspondência:
    Pierre Dominicé
    344, route de Lausanne
    1293 - Bellevue, GENEVE
    e-mail:
  • *
    Tradução de Helena Coharik Chamlian.
  • 1
    . O termo
    autopoiese refere-se à abordagem sistêmica para designar a capacidade de autocriação.
  • 2
    . Conceito que significa 'o conjunto da vida'. N. R.
  • 3
    . No original,
    maturité scientifique, que na Suíça corresponde ao exame terminal de nível médio. N.T.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2006

    Histórico

    • Recebido
      10 Mar 2006
    • Aceito
      20 Maio 2006
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