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Documento Preliminar n. 1

HOMENAGEM

Documento Preliminar n. 1* * Documento oficial da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, publicado originalmente em 1983 e reproduzido em: Azanha, José Mário Pires. Educação: alguns escritos. São Paulo: Editora Nacional, 1987.

"A vida é viola desafinada, que não afina nunca. São doze cordas e quando se afina uma, surge outra desafinada. E viver é tirar a harmonia possível de uma viola sempre desafinável ou desafinada."1 1 . Um velho mineiro de Bagagem, iletrado.

Este é um documento em que se expõem algumas opiniões sobre aspectos da nossa situação educacional. Muitas dessas opiniões já foram ventiladas na Proposta Montoro sobre Educação. A razão para retomá-las e ampliá-las neste documento é a de promover o seu exame sistemático por todos os integrantes do magistério. Desse exame e das discussões que se travarem, espera-se que algumas idéias aqui apenas afloradas transformem-se em projetos específicos de ação. Se isso acontecer, teremos reativado a única fonte legítima para gerar mudanças na situação educacional paulista: o diálogo, há tempo esquecido, dentre os que se ocupam do ensino em todos os níveis.

Contudo, a convocação ao diálogo não exonera a Administração da responsabilidade de indicar prioridades e de sugerir direções. Trata-se apenas de um balizamento da discussão com o objetivo de impedir que o esforço de participação se espraie infecundamente numa multiplicidade caótica de direções.

Se há algo que marca profundamente a educação brasileira é a quase completa ausência de uma Política Educacional. Nestes anos todos, temos vivido da improvisação; não poucas vezes, ao sabor de interesses em conflito com os reais interesses da coletividade. No entanto, o vazio de idéias tem sido preenchido por uma avalancha de legislação e de providências administrativas que sufoca a desejável iniciativa criadora das escolas e favorece o embuste educacional. Como ingrediente usual desse embuste, têm aparecido, aqui e ali, "planos de educação" que — sem idéias norteadoras sobre os rumos da educação — nada mais representam do que projeções numéricas ufanistas e irreais, quando não fraudulentas.

Como resultado dessa desorientação geral, o sistema educacional brasileiro de 1º e 2º graus (se é que se pode falar em sistema) apresenta-se atualmente com duas características indesejáveis: a insuficiência numérica de vagas (principalmente 2º grau) e a deficiência qualitativa (marcando ambos os graus). Não há escola para todos e a que existe muitas vezes não satisfaz.

Em face dessa situação, o que se reclama, de um governo que pretenda representar os interesses do povo, é a clara formulação de uma Política de Educação que ordene providências e racionalize os gastos educacionais a partir de rumos cuja fixação reflita a discussão ampla e a participação ativa, como convém ao regime democrático.

Para desencadear essa discussão, é preciso que o governo explicite algumas idéias preliminares sobre a situação do ensino. Sem elas, nenhuma discussão será fecunda e a convocação à participação dos segmentos sociais interessados será antes um simples convite à agitação cansativa dos impotentes. O governo não tem idéias prontas e irreformáveis mas, por outro lado, não terá também a leviandade de abdicar de sua responsabilidade de indicar rumos e de apontar possíveis soluções.

Qualidade de ensino

Nos últimos dez ou doze anos, um dos temas mais constantes na educação brasileira e, especialmente, na de São Paulo, tem sido o da qualidade do ensino público. E o ponto de convergência de todas as opiniões é o reconhecimento da má qualidade desse ensino. A concordância é mais ampla ainda, pois aponta também as raízes do problema: a má qualidade de ensino público deve-se a sua precipitada e indevida expansão quantitativa. Num nível de argumentação aparentemente mais técnico, o raciocínio que se faz é o seguinte: confundiu-se democratização do ensino com a simples expansão numérica de vagas e isso provocou a deterioração do padrão de ensino oferecido. Tudo parece muito claro e muito simples nesse raciocínio; daí a ampla concordância em torno dessa idéia. Para reforçá-la ainda mais, veio contribuir o que há pouco a imprensa difundiu sobre opiniões de um grupo de educadores americanos a respeito da situação do ensino público nos Estados Unidos (The Paideia Proposal), com especial destaque para o seguinte:

"A promessa democrática de igualdade de oportunidades educacionais, quando meio cumprida, é pior do que a promessa quebrada. É um ideal traído. A igualdade de oportunidades educacionais não é de fato realizada se não significar mais do que manter todas as crianças em escolas públicas pelo mesmo número de horas, dias e anos. (...) O [propósito democrático] fracassa porque ele terá alcançado apenas a mesma quantidade de escolarização pública, não a mesma qualidade."

O trecho citado seria subscrito com unção pelos que aqui no Brasil também vêem, na expansão das vagas, a causa da má qualidade do ensino.

No entanto, uma análise mais serena dá situação revelará que as coisas não são assim tão simples e que o raciocínio acima merece alguns reparos:

a) O que se chama de má qualidade do ensino não é fenômeno tão recente quanto o da expansão das vagas. As escassas análises e a lacunosa documentação da história da educação brasileira sempre constataram ou presumiram o fato. A grande diferença entre a situação atual e situações passadas parece então consistir, principalmente, em que hoje existe má escola para a maioria (pelo menos no 1º grau) e, antigamente, havia má escola para poucos. A ser assim, não parece pois que tenha ocorrido uma deterioração, mas uma simples expansão da deterioração. Daqueles que pensam diferentemente (e são quase todos) basta que se indague o seguinte: Em que períodos passados a escola pública brasileira foi de boa qualidade? Não há resposta convincente e objetiva para essa questão, mas àqueles que insistirem em dá-Ia, perguntemos ainda: E quantas eram essas "boas" escolas? Ninguém, amante da verdade histórica, poderá, para qualquer período passado, apontar número que ultrapasse algumas dezenas.

b) É claro que se pode contra-argumentar dizendo que, se o ensino público brasileiro já não era bom, acabou piorando com a desastrada expansão dos últimos quinze anos. A réplica a esse contra-argumento é banal e pode ser formulada, novamente, por uma questão: piorou para quem? E a resposta honesta só poderá ser a de que a piora apenas atingiu àqueles que tinham acesso à escassa escola pública brasileira, isto é, a diminuta parcela de privilegiados, membros do "patriciado" brasileiro. O restante, a imensa maioria do povo brasileiro, não tinha escola. Então, para os desatendidos, a escola que veio, mesmo ruim, foi uma melhoria. A má fé, algumas vezes, e a ingenuidade, quase sempre, poderão insistir dizendo que não há melhoria nenhuma porque a educação que aí está é um engodo e não prepara para nada. É difícil aceitar essa conclusão, porque nenhum princípio de ética ou de pedagogia poderia justificar a idéia de que é preferível não oferecer educação nenhuma, se não for possível oferecê-la excelente. Seria aceitar como bandeira a idéia fascista defendida por Gentile na década de 20: "poucas escolas, mas boas".

Em resumo, a escola pública brasileira de 1º grau sempre foi de má qualidade e escassa; mas hoje, pelo menos em São Paulo, ela atinge a grande maioria. Que fazer? Será que a alternativa de ensino bom para poucos seja ensino ruim para todos? Não acreditamos que assim seja. Não aceitamos a conclusão dos educadores americanos (The Paideia Propusal), segundo a qual, em matéria de educação, a promessa democrática, quando meio cumprida, seja pior do que a promessa quebrada. Nada pode ser pior do que acrescentar, ao drama da parte mais sofrida da população, a ausência de vagas na escola pública. É preciso melhorar a qualidade do ensino público, mas sob nenhum pretexto podemos sonegá-lo à grande maioria.

Plano de melhoria do ensino

Nesse quadro de atendimento da grande maioria no ensino de 1º grau, a questão da qualidade ganhou um relevo incomum que não havia quando a rede de escolas era menos extensa. O descaso pelo magistério e pela escola como instituição educativa fez com que a democratização do acesso se transformasse, em poucos anos, numa fraude pedagógica. Porque, evidentemente, é inadmissível que a democratização do ensino se esgote no esforço do pleno atendimento. É preciso que esse esforço seja complementado por medidas visando à melhoria do ensino. No entanto temos dúvida de que — segundo a visão tecnocrática — a melhoria seja alcançável apenas por uma intensificação do aperfeiçoamento do pessoal docente por meio de cursos promovidos por órgãos regionais ou centrais, como usualmente é feito. Em primeiro lugar, porque esses cursos dão uma ênfase exclusivamente metodológica à questão da melhoria do ensino e, em segundo, porque, para freqüentá-los, desloca-se o professor da escola (centro dos problemas profissionais que vive) E principalmente porque, hoje, nas dimensões em que o problema educacional foi agravado, a questão da melhoria do ensino não é mais simples questão técnica mas, sobretudo, de alto interesse público.

Pretender que a mera promoção de cursos de atualização metodológica seja capaz de melhorar a qualidade do ensino é, assim, insistir em resolver um problema escolar-social concreto por meio de uma operação duplamente abstrata. Nenhuma metodologia, abstratamente formulada e ensinada, dará respostas aos problemas que o professor vive cotidianamente na sua escola, e nem adianta reunir algumas dezenas de professores de uma mesma disciplina como se eles fossem um grupo de pessoas que enfrentam os mesmos problemas. Cada escola tem características pedagógico-sociais irredu-tíveis quando se trata de buscar soluções para os problemas que vive. A realidade de cada escola — não buscada por meio de inúteis e pretensiosas tentativas de diagnóstico" — mas tal como é sentida e vivenciada por alunos, pais e professores, é o único ponto de partida para um real e adequado esforço de melhoria. Nessas condições, é preciso que no âmbito de cada escola — e com a colaboração de todos os recursos da comunidade — sejam explicitados os problemas que impedem a melhoria do ensino e formuladas as suas possíveis soluções. Cada escola deve, pois, ter o seu próprio plano de melhoria, que não será mais do que o seu próprio esforço em corrigir as distorções e os desacertos técnicos, bem como em remover ou atenuar os impedimentos socioeconômicos de origem extra-escolar que embaraçam uma ação educativa eficaz. Em face desse quadro a ação de órgãos centrais da Secretaria da Educação deve ser definida não em função de planos de melhoria gerais e abstratos a serem impostos a toda a rede de escolas, mas dirigida exclusivamente à criação de condições de sustentação e apoio ao auto-esforço insubstituível de cada escola na busca da superação das suas deficiências. Para essa sustentação e apoio, não só os órgãos da Secretaria da Educação devem ser mobilizados mas todos os recursos pessoais e institucionais da comunidade, de modo que, numa ação conjunta com a escola, sejam identificados e enfrentados os obstáculos que embaraçam a ação educativa.

Pode-se argumentar contra essa visão, ponderando que ela é não-realista e que as escolas não serão capazes de se organizar para perceber e superar as próprias deficiências. Se isso for verdade, é também ilusão imaginar que tal escola — incapaz de autoconsciência e de auto-esforço — venha a se beneficiar efetivamente pela imposição de qualquer plano regional ou central de melhoria do ensino.

Situação do magistério

As análises que concluem pela má qualidade do ensino público e apontam como sua causa a expansão numérica das vagas têm silenciado sobre outros fatores, dentre os quais sobreleva um que é talvez o mais importante: a degradação social e profissional a que o magistério vem sendo submetido nos últimos anos. Nenhuma melhoria da escola se resume na construção de prédios adequados ou na implantação de novos métodos e técnicas de ensino. É preciso, antes de mais nada, convocar o magistério para essa tarefa. Mas, nenhum governo terá idoneidade para fazer essa convocação, se não der demonstração inequívoca de que assume o compromisso de restabelecer a dignidade do professor. Não se melhora o ensino degradando os seus responsáveis diretos. É uma insensatez o descaso com que essa questão tem sido tratada. É uma ilusão irresponsável esperar que uma pessoa humilhada e ressentida possa incutir nos nossos filhos uma visão sadia da vida e do futuro. Não se trata apenas de remuneração mais justa, embora esta seja indispensável. É preciso extirpar radicalmente a interferência da política de clientela nas decisões relativas às condições de trabalho e de carreira do magistério. A carreira do magistério não pode mais ser apenas uma sucessão de fadigas e frustrações, das quais só se escapa pela bajulação e pelo servilismo. É preciso que a progressão funcional no cargo ou função-atividade seja a justa retribuição do mérito e do esforço. É preciso que a ascensão na carreira não tenha como preço o aviltamento moral e profissional. E para impedir essa distorção do serviço público na área da educação é, também, necessário que as entidades representativas do magistério sejam consideradas pela Administração como interlocutores idôneos e válidos no insubstituível diálogo que deve preceder as principais decisões da Secretaria da Educação.

Ensino de 1º grau

Não há autêntica Política de Educação sem que se afirme claramente o que se pretende em cada grau de ensino. Em face dos objetivos gerais, já fixados na legislação para cada grau de ensino, é necessário ainda que a Administração estabeleça as coordenadas do esforço para o seu alcance.

No entanto, com relação a esse ponto, a situação do ensino de 1º grau é caótica. A Lei 5.692/71 instituiu o ensino de oito anos mas, ainda hoje, quase doze anos passados, não se sabe o que fazer nesse grau de ensino. Em todo esse tempo não se formulou nenhum modelo, nenhuma idéia diretora do que deveria ser uma escola de oito anos. Os antigos ensinos primário e ginasial foram simplesmente justapostos e nada mais se fez e nem foram prestigiados os isolados e espontâneos esforços de algumas poucas escolas. Principalmente em São Paulo, onde a tímida tentativa do Grupo Escolar-Ginásio poderia eventualmente ter oferecido subsídios para uma escolaridade de oito anos organicamente estruturada, nada mais se fez depois da Lei 5.692/71, e o que havia foi desfeito. Por isso, não é exagero falar de caos.

Os antigos ensinos primário e ginasial alcançam alunos em fases de desenvolvimento distintas que nenhuma organização escolar deveria desconhecer. Na ausência de uma concepção orientadora de como uma escola de oito anos deveria enfrentar a nova situação, nada ocorreu em termos de preparação de professores e diretores. Em conseqüência disso, a atual escola de oito anos é uma mentira pedagógica. Dentro dela, os antigos ensinos primário e ginasial sobrevivem com seus problemas agravados por uma convivência sem integração. A evidência maior dessa situação está no fato de que no ensino de 1º grau os mais graves problemas de repetência e evasão localizam-se, principalmente, nas 1ª e 5ª séries. É preciso que recursos humanos extraordinários sejam mobilizados para atenuar os efeitos desses pontos de estrangulamento. Se o aumento da jornada de trabalho dos professores não tivesse sido usado como simples expediente para mascarar a diminuição crescente do poder aquisitivo do salário do magistério de 1º grau, talvez se pudesse, aproveitando o tirocínio dessa categoria profissional, reduzir substancialmente a perda humana, social e econômica que a repetência representa, utilizando-se os professores em jornada integral como colaboradores de colegas menos experientes.

Na omissão com que o assunto foi tratado não se levou em conta, para enfrentar os desafios novos de uma escola de oito anos, nem mesmo o rico acervo de experiência de professores e diretores diretamente envolvidos no processo. Poucos foram consultados, não se fez nenhum estudo em profundidade e nem mesmo se levou o problema à consideração dos cursos médio e superior de formação de professores. Na designação anódina dos professores em I, II e III perderam-se também ricas tradições de trabalho e encontrou-se o pretexto para que persistissem distinções salariais injustas, muito pouco atenuadas pela atribuição de pontos por habilitações específicas de grau superior.

No ensino de 2º grau, a desorientação é maior ainda. A última reforma desse grau de ensino (Lei 5.692/71), ao arrepio das tendências históricas da educação brasileira, pretendeu a profissionalização maciça no ensino médio, a pretexto de uma necessidade nacional de mão-de-obra nesse nível. No entanto, Luiz Cunha mostrou insistentemente que essa alteração foi feita sem nenhum estudo em escala nacional para diagnóstico dessa alegada necessidade. Mais ainda, nem mesmo há condições objetivas para estabelecer relações interessantes e fecundas entre eventuais necessidades de mão-de-obra nesse nível e uma política de formação de pessoal, em termos nacionais. Mais uma vez prevaleceu a solução simplista dos tecnocratas. O resultado aí está: gerações de jovens sacrificados na sua formação geral por um arremedo de ensino profissionalizante de que ninguém precisava e que a ninguém serviu. Pelo menos três erros graves foram cometidos nessa reforma: 1) a precoce e injusta destinação profis-sional de jovens que ainda estavam a meio de sua formação intelectual; 2) o abandono do superior objetivo da escola de 2º grau, que é a formação para uma plena cidadania, a partir de uma extravagante concepção tecnocrática a serviço de interesses imediatistas e mal detectados; 3) a descaracterização do ensino normal de tão viva tradição em São Paulo, e que foi transformado numa confusa e ineficiente "habilitação para o magistério".

Em São Paulo, esses erros tiveram ainda maior gravidade porque na implantação da reforma abandonou-se a idéia — sem nenhum estudo para aferir a sua validade — de um colégio integrado sobre o qual poderia acrescentar-se um esforço profissionalizante pós-colegial, aproveitando-se para isso, até mesmo, a própria rede de ensino superior e a capacidade de ensino das próprias empresas.

Hoje, com a consciência que temos dos erros que se cometeram, implicitamente admitidos pela promulgação da Lei 7.044/82, será possível repensar a escola de 2º grau como a verdadeira escola de uma cidadania plena, na linha da sua autêntica vocação histórica e repensar também o ensino profissionalizante nos seus múltiplos aspectos e possibilidades, sem reduzi-lo à vala comum em que caiu e se descaracterizou todo o ensino de 2º grau.

Autonomia da escola

Desde a Lei 4.024/61 até a Lei 5.692/71 e também através de inúmeros pareceres e resoluções dos Conselhos de Educação, vem-se insistindo na autonomia da escola enquanto instituição educativa. Nem poderia ser de outro modo, porque a tarefa educativa tem como pressuposto ético a autonomia de quem educa. Sonegada esta condição, a escola perde a sua autêntica feição educativa e transforma-se em instrumento de doutrinação.

No entanto, infelizmente e não obstante as alegações em contrário, as nossas escolas de 1º e 2º graus jamais tiveram a autonomia que a lei lhes conferiu. Amordaçadas nos "provisórios" regimentos únicos, as escolas foram castradas na sua autêntica função educativa porque diretores e professores são simples fun-cionários burocráticos dos quais não se exige que eduquem, mas que cumpram ordens. Em nome de uma alegada necessidade de disciplinar "enquanto" as escolas não estiverem em condições de se organizar, o que temos não é a sadia diversidade do que é mesmo desigual, mas a aplastante uniformidade que pretende eliminar a possibilidade do erro, e que de fato elimina a responsabilidade. Não pode ser responsável perante o seu próprio trabalho quem não tem nenhuma autonomia de decisão.

É preciso que as escolas públicas tenham a autonomia que a lei lhes confere. Não mais é possível que, nesse ponto, as escolas públicas sejam discriminadas das escolas particulares, cuja autonomia legal é respeitada. Já dizia Bacon que a verdade brotará mais facilmente do erro do que da confusão. É isso o que esperamos. As escolas públicas encontrarão o seu verdadeiro caminho, apesar dos eventuais erros, se eliminarmos a imensa e confusa interferência tecnocrática e administrativa que até agora vem tolhendo a sua ação e o seu relacionamento com as comunidades a que pertencem. Cabe à Administração, nesse particular, a ação orientadora e não a emasculação das potencialidades criativas.

Não nos iludamos, porém, com a simples conquista da autonomia administrativa e didática fixada num regimento próprio. Este é apenas um momento de um projeto pedagógico mais amplo, que é a verdadeira razão de ser de uma escola democrática.

Como dissemos, anteriormente, a tarefa educativa tem como pressuposto ético a autonomia de quem educa. Esta autonomia do educador tem na autonomia regimental da escola apenas uma das condições de seu exercício, e não pode ser com ela confundida. A autonomia do educador — por paradoxal que possa parecer — é, hoje, num momento histórico de busca democrática, um comprometimento total com o ideal democrático de educação.

Nessas condições, quando se insiste na autonomia da escola como uma das condições de melhoria do ensino, não podemos reduzir essa melhoria a um ensino simplesmente mais eficiente no seu conteúdo estritamente escolar. Para isso, não seria preciso reivindicar uma escola autônoma; até mesmo numa escola fortemente presa a regulamentos rígidos e impostos seria capaz de ser uma "boa" escola.

O fundamental é que a autonomia de nossas escolas públicas esteja impregnada de um ideal pedagógico que constitua a base de uma tarefa educativa, cuja excelência há de ser medida pela sua capacidade de instalar uma autêntica convivência democrática e, por isso mesmo, de formar homens críticos, livres e criativos até mesmo a partir de condições sociais, políticas e econômicas adversas.

Por isso, é preciso não perder de vista que a busca de autonomia da escola não se alcança com a mera definição de uma nova ordenação administrativa mas, essencialmente, pela explicitação de um ideal de educação que permita uma democrática ordenação pedagógica das relações escolares.

Observação final

É preciso não se perder de vista que este documento é apenas o primeiro de uma série, e que quanto aos assuntos focalizados não se pretendeu mais do que uma sugestão de prioridade.

Outros documentos trarão à discussão a questão da pré-escola, do livro escolar, dos cursos noturnos, dos Conselhos Municipais de Educação, da merenda

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    Documento oficial da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, publicado originalmente em 1983 e reproduzido em: Azanha, José Mário Pires.
    Educação: alguns escritos. São Paulo: Editora Nacional, 1987.
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    . Um velho mineiro de Bagagem, iletrado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004
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