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A título de apresentação

HOMENAGEM

A título de apresentação

Lisete Regina Gomes Arelaro

Universidade de São Paulo

É providencial a decisão da revista EDUCAÇÃO E PESQUISA de publicar estes três pequenos textos escritos pelo professor José Mário Pires Azanha, professor titular de Filosofia da Educação e de Pesquisa Educacional e professor emérito da Faculdade de Educação da USP, que de certa forma "apresentam" o professor e expressam sua linha de pensamento, sua militância educacional e a fina ironia do seu estilo de argumentar.

Os textos traduzem três diferentes momentos da atuação de José Mário: o primeiro (A política de educação do Estado de São Paulo, uma notícia) — sua atuação junto ao Departamento de Educação, depois Coordenadoria de Ensino Básico e Normal, da Secretaria de Estado da Educação, na Gestão Abreu Sodré/Ulhôa Cintra, (1967_1970), referência obrigatória nos estudos históricos pelas ousadas propostas de políticas educacionais implementadas e pela turbulência política que o endurecimento da ditadura militar trouxe; o segundo (Documento Preliminar n.1) — sua atuação como chefe de gabinete da mesma Secretaria de Educação, com Paulo de Tarso Santos como dirigente da mesma, na gestão Franco Montoro, em 1983, no calor do movimento das Diretas-Já e da luta pela redemocratização da sociedade brasileira; e o terceiro (Uma reflexão sobre a formação do professor da escola básica) — em 2000, sua atuação como conselheiro, enquanto coerente defensor da escola pública e proponente de políticas educacionais, através de seus consistentes pareceres e indicações, junto ao Conselho Estadual de Educação de São Paulo.

Muitos outros escritos poderiam ser aqui arrolados, dos quais dois em particular não podem deixar de ser citados: Uma idéia de pesquisa educacional — que constituiu sua tese de livre-docência, em 1990, e na qual seu rigor acadêmico e compromisso político com a educação pública e com a pesquisa educacional são exemplares e um artigo de 2001, "A pedagogia das competências e o Enem" — polêmico, como quase tudo que acreditava e escrevia — mas que coloca no seu devido lugar, os "rebuliços mudancistas" — como chamou — que ocorreram na educação brasileira, nas duas gestões do presidente Fernando Henrique Cardoso.

O primeiro dos artigos aqui transcritos traduz uma das maiores ousadias de política educacional no estado de São Paulo: a ousadia de romper as barreiras administrativas e políticas para a ampliação de vagas no ginásio secundário — como era chamado o ciclo final, das 5as às 8as séries do atual ensino fundamental. Naquela ocasião, foi uma verdadeira " revolução" no ensino, pois para cada dez grupos escolares — escola dos anos iniciais do ensino fundamental — existia somente um ginásio estadual, o que exigia destas escolas, e de cada uma delas, a realização de um processo altamente seletivo, pela ausência de vagas para a maioria.

Com a unificação dos exames de admissão, por meio da centralização da elaboração das provas (facilitadas) pela Secretaria de Estado da Educação, foram aprovados cerca de 80% dos alunos concluintes do ensino primário. Isso obrigaria, de imediato, a outras providências políticas e administrativas: aceitar o desafio de "arrumar" vagas para todas as crianças aprovadas em curto espaço de tempo, entre elas, o funcionamento em todo prédio escolar existente, de novos cursos ginasiais.

É importante destacar que, apesar dos obstáculos impostos para toda manifestação pública naquele momento político, as famílias paulistas, em especial as das grandes cidades, reivindicavam o direito de seus filhos ingressarem num curso ginasial público, em razão do (novo) processo industrial, que exigia um trabalhador melhor qualificado. Foi um tumulto! E com ele, a expansão decisiva das vagas nas escolas públicas — novas oportunidades educacionais, como se chamava. Passou-se, de cerca de 130 mil vagas na primeira série ginasial para cerca de 250 mil estudantes, na mesma série, de um ano para outro — de 1968 para 1969!

No final de 1969, o governo militar baixa o Ato Institucional n. 5, o mais duro ato legal que o Brasil já tivera em todo o período republicano, mediante o qual os direitos individuais foram restringidos, e isso repercutiria na definição de qualquer política pública que implicasse um mínimo de condição democrática para a sua implementação. No caso, o debate de idéias, e as necessárias reuniões entre o governo e o magistério. Evidentemente, com a garantia do direito de divergir.

No mesmo período (1968-1969), houve uma reorganização do ensino primário paulista pelo agrupamento em dois níveis, dos quatro anos escolares — nível I, 1as e 2as séries e nível II, 3as e 4as séries. Tratava-se, como se poderá constatar, da primeira experiência estadual de organização do ensino por "ciclos", uma vez que, pela proposta, não haveria reprovação da 1ª para a 2ª série, nem da 3ª para a 4ª, mas sim uma reorganização ou replanejamento do trabalho docente, em função da avaliação das dificuldades e avanços que o grupo_classe conseguira. Junto com esta proposta, deu-se a reorganização de programas e currículos e a implantação da orientação pedagógica, como precondição para a implementação das novas políticas e propostas.

Estas foram duas — a expansão de vagas do ensino ginasial e a modificação da seriação do ensino primário — entre outras diversas providências político-educacionais implementadas pelas quais José Mário foi considerado "maldito", tanto pelo magistério quanto pelos militares. Aqueles organizaram passeatas contra várias das medidas propostas, uma delas sobre os critérios de avaliação de desempenho dos professores, e estes prenderam José Mário e parte da equipe do secretário de Educação, em 1970, alegando que "a falta de planejamento, na expansão das vagas, havia gerado desordem incontrolada, favorecendo desagradáveis manifestações públicas de professores e pais, e incentivando a baderna".

O segundo texto traduz um rico momento de nossa história educacional e política, em que a reconstrução democrática será a tônica dos discursos, das mobilizações e das políticas. José Mário escreve, então, o que se constituiu no chamado "Documento Preliminar n. 1", um convite ao debate das políticas implantadas e a ser implantadas, através de um diagnóstico vivo da situação educacional. Um dos assuntos tratados, de maneira inovadora, é o conceito de autonomia da escola. Afirma o documento: "a busca da autonomia da escola, não se alcança com a mera definição de uma nova ordenação administrativa mas, essencialmente, pela explicitação de um ideal de educação que permita uma nova e democrática ordenação pedagógica das relações escolares".

Sempre foi um ardoroso defensor da autonomia da escola, entendida esta como o direito insubstituível da escola — e de cada escola — de propor e executar o seu próprio projeto pedagógico.

O documento é quase um tratado sobre política educacional e suas prioridades, apontando equívocos na cultura pedagógica sobre "qualidade de ensino" e a conseqüente maciça reprovação de alunos. Fala, também, sobre avaliação — um dos seus temas preferidos — e organização do ensino. Discute o papel e condições de trabalho do magistério, como importantes variáveis da qualidade de ensino.

Sobre o terceiro documento, a "Indicação n.7/2000 ao Conselho Estadual de Educação", uma reflexão sobre a formação de professores da escola básica, é um documento polêmico, que insiste sobre a necessidade de formação geral sólida aos professores e de um melhor entendimento sobre a natureza da relação pedagógica, que lhes possibilite efetiva condição de escolha de "métodos e estratégias de ensino". José Mário alerta sobre os riscos que a integração de teoria e prática traz, que "seguramente não ocorrerá pelo simples aumento exorbitante do número de horas da parte prática do curso". Insiste ele em que "sem uma revisão conceitual do que se entende por 'prática' o aumento do número de horas poderá provocar apenas um raleamento da formação teórica sem nenhum ganho assegurado".

A prioridade das metodologias sobre as disciplinas de formação geral vai ser criticada por ele. Mostrando como este conhecimento do saber fazer, sem uma consistente fundamentação do porquê fazer pode comprometer a boa formação de professores.

Mas mais do que isso — neste e em outros artigos —, ele enfatiza a importância da compreensão do caráter coletivo do trabalho escolar. Diz ele: "A idéia de que uma boa escola é mais do que a simples reunião de bons professores tem sido de difícil penetração nas práticas escolares. Na verdade, tal como sempre ocorreu nos cursos normal e de licenciatura, nem se suspeita que essas práticas possam ser algo mais do que ensino do aluno".

Não é instigante? Foi ele, também, que liderou movimento contrário à posição da reitoria da USP, no início dos anos 1990, a respeito de avaliação de desempenho dos professores, segundo a qual a quantidade de publicações de artigos e papers, seria a expressão da "produtividade" acadêmica de cada um de nós.

Foi com ele, também, que aprendi a (re)ler H. Reinchenbach, Henri Lefrève, Thomas Kuhn, R. Carnap, Ernest Nagel , John Dewey, Henri Wallon, Alain/E. Chartier, Wright Mills, Hanna Arendt, Karl Marx, Anísio Teixeira, Sampaio Dória, Florestan Fernandes, para melhor entender a importância da pesquisa — sua lógica e cuidados na definição do objeto e dos procedimentos —, as condições da educação e da democracia no Brasil, aplicando estes conhecimentos para a necessária democratização do ensino público brasileiro. Em todos os níveis.

E como ele, prazerosamente, gostava de colecionar frases especiais dos autores que lia, não poderia deixar de recomendar a leitura de seus textos, em especial os de defesa da radical expansão de vagas para todos, que muito nos ensina sobre democracia, cidadania e educação, alertando com Nietzsche que "a maneira mais pérfida de prejudicar uma causa é defendê-la com más razões".

Esta pode ser uma boa razão para a leitura (atenta) dos livros e artigos que ele nos deixou. Até para discordarmos dele, como ele gostava.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Out 2004
  • Data do Fascículo
    Ago 2004
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