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A televisão como ferramenta pedagógica na formação de professores

Television as a pedagogical tool in teacher education

Resumos

O texto parte da análise da experiência dos primeiros anos de implementação do Programa TV Escola em Santa Catarina para propor uma reflexão sobre o uso educativo e pedagógico das tecnologias de informação e comunicação (TIC). A integração dos meios de comunicação mais contemporâneos aos processos educacionais é tarefa urgente e necessária pois essas técnicas já estão presentes em todas as esferas da vida social. Já não se discute mais se a integração deve ser feita ou não, desde que a disseminação da informática pôs a escola perante o desafio de uma nova linguagem presente na sociedade, não só no mundo do trabalho, mas também no lazer e na cultura, e ausente da escola. No entanto, a prática pedagógica inovadora utilizando as TIC esbarra num obstáculo importante: a formação de professores, que ainda ignora em grande parte esses temas. A TV Escola surge como uma política efetiva com o objetivo de melhorar e atualizar essa formação. Busca-se, neste trabalho, compreender e explicar as formas de utilização das mensagens da TV Escola e as razões da persistência de usos inadequados do meio como ferramenta pedagógica, tanto para auto-formação de professores - à distância - quanto na utilização de mensagens televisuais como material didático em sua prática docente. O estudo mostra que a integração do meio televisual no espaço escolar, em sua dupla dimensão de ferramenta pedagógica e objeto de estudo, ainda encontra dificuldades, embora a televisão seja o meio de comunicação mais freqüentado por professores e estudantes.

Educação a distância; Formação de professores; Televisão educativa


This article takes up an analysis of the first years of implementation of the ''School TV'' program in the state of Santa Catarina (Brazil) to propose thinking about the educational and pedagogical use of information and communication technologies (ICTs). The integration of current communication media into education processes is a necessary and pressing task, since those techniques are already present in all areas of social life. The question no longer is if integration is to be performed or not, since the dissemination of information technologies has challenged the school with a new language, which is present in society - not just at work but also in leisure and culture - but is still absent from school. However, the innovative pedagogical practice employing ICTs faces an important obstacle: teacher education that, to a large extent, still ignores these issues. The ''School TV'' program presents itself as an effective policy to improve and update teacher education. This work aims at understanding and explaining the ways in which the messages of ''School TV'' are used and the reasons behind the persistence of inadequate uses of the medium as a pedagogical tool, both to teachers self-education (distance learning) and as didactic material in their classes. The study also shows that the integration of the televisual medium into the school space, in its double dimension of pedagogical tool and object of study, still faces difficulties, although television is the communication medium most used by teachers and students.

Distance learning; Teacher education; Educational television


EM FOCO: EDUCAÇÃO E TECNOLOGIAS

A televisão como ferramenta pedagógica na formação de professores* * Versão ampliada da comunicação apresentada no IV Simpósio de Comunicação e Educação, em Ponta Grossa, PR, agosto de 2002. ** This article is an extended version of a communication made to the 4th Symposium on Communication and Education held in Ponta Grossa (Brazil) in August 2002.

Television as a pedagogical tool in teacher education** * Versão ampliada da comunicação apresentada no IV Simpósio de Comunicação e Educação, em Ponta Grossa, PR, agosto de 2002. ** This article is an extended version of a communication made to the 4th Symposium on Communication and Education held in Ponta Grossa (Brazil) in August 2002.

Maria Luiza Belloni

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Maria Luiza Belloni E-mail: malu@intergate.com.br

RESUMO

O texto parte da análise da experiência dos primeiros anos de implementação do Programa TV Escola em Santa Catarina para propor uma reflexão sobre o uso educativo e pedagógico das tecnologias de informação e comunicação (TIC). A integração dos meios de comunicação mais contemporâneos aos processos educacionais é tarefa urgente e necessária pois essas técnicas já estão presentes em todas as esferas da vida social. Já não se discute mais se a integração deve ser feita ou não, desde que a disseminação da informática pôs a escola perante o desafio de uma nova linguagem presente na sociedade, não só no mundo do trabalho, mas também no lazer e na cultura, e ausente da escola. No entanto, a prática pedagógica inovadora utilizando as TIC esbarra num obstáculo importante: a formação de professores, que ainda ignora em grande parte esses temas. A TV Escola surge como uma política efetiva com o objetivo de melhorar e atualizar essa formação. Busca-se, neste trabalho, compreender e explicar as formas de utilização das mensagens da TV Escola e as razões da persistência de usos inadequados do meio como ferramenta pedagógica, tanto para auto-formação de professores – à distância – quanto na utilização de mensagens televisuais como material didático em sua prática docente. O estudo mostra que a integração do meio televisual no espaço escolar, em sua dupla dimensão de ferramenta pedagógica e objeto de estudo, ainda encontra dificuldades, embora a televisão seja o meio de comunicação mais freqüentado por professores e estudantes.

Palavras-chave: Educação a distância – Formação de professores – Televisão educativa.

ABSTRACT

This article takes up an analysis of the first years of implementation of the ''School TV'' program in the state of Santa Catarina (Brazil) to propose thinking about the educational and pedagogical use of information and communication technologies (ICTs). The integration of current communication media into education processes is a necessary and pressing task, since those techniques are already present in all areas of social life. The question no longer is if integration is to be performed or not, since the dissemination of information technologies has challenged the school with a new language, which is present in society - not just at work but also in leisure and culture - but is still absent from school. However, the innovative pedagogical practice employing ICTs faces an important obstacle: teacher education that, to a large extent, still ignores these issues. The ''School TV'' program presents itself as an effective policy to improve and update teacher education. This work aims at understanding and explaining the ways in which the messages of ''School TV'' are used and the reasons behind the persistence of inadequate uses of the medium as a pedagogical tool, both to teachers self-education (distance learning) and as didactic material in their classes. The study also shows that the integration of the televisual medium into the school space, in its double dimension of pedagogical tool and object of study, still faces difficulties, although television is the communication medium most used by teachers and students.

Keywords: Distance learning – Teacher education – Educational television.

O uso pedagógico e, mais especificamente, educacional, de qualquer meio técnico de comunicação envolve não apenas uma reflexão sobre as concepções de educação que fundamentam as práticas e as políticas pedagógicas, mas, sobretudo, a consideração das concepções e representações sobre o meio em questão, sua função social e suas características técnicas e estéticas. A integração dos meios de comunicação mais contemporâneos, que chamaremos provisoriamente de TIC (tecnologias de informação e comunicação), aos processos educacionais é tarefa urgente e necessária pois tais técnicas já estão presentes em todas as esferas da vida social, em muitos casos gerando ou agravando desigualdades socioculturais. Cabe à instituição escolar democratizar o acesso a esses meios, do mesmo modo que lhe cabe alfabetizar a criança, para formar o cidadão livre e emancipado.

As razões acima mencionadas são, acredito, amplamente aceitas no campo da educação. Já não se discute mais se a integração deve ser feita ou não, desde que a disseminação da informática pôs a escola diante do desafio de uma nova linguagem presente na sociedade (e não só no mundo do trabalho, mas também no lazer e na cultura) e ausente da escola. Se a televisão podia ser ignorada ou condenada facilmente por seu caráter profano de meio de lazer vulgar e desprovido de potencialidades educativas mais nobres, o computador aparece como máquina de trabalhar e de pensar, instrumento indispensável para a produção e transmissão do saber.

Se temos uma certa unanimidade quanto aos porquês, estamos longe de ter um acordo mínimo sobre como integrar as TIC na escola em todos os níveis, especialmente na formação de professores. A avaliação de experiências de uso dos programas da TV Escola pelos professores de Santa Catarina revelou o que de certa forma já sabíamos, confirmado por outras pesquisas em ocasiões e lugares diferentes, não apenas no que diz respeito às condições de trabalho do professor e de implementação de políticas públicas no Brasil, mas também quanto a aspectos conceituais e técnicos que mostram que as propostas não consideram a dupla dimensão da integração de meios técnicos na educação e por isso fracassam. Essa dupla dimensão se refere à consideração simultânea e integrada do recurso técnico como ferramenta pedagógica e como objeto de estudo, consideração imprescindível para que a utilização pedagógica dos meios técnicos de comunicação se caracterize como um processo de apropriação criativa e não de consumo instrumental e passivo.

O uso simplesmente instrumental das TIC (apenas como ferramentas) corresponde a uma concepção tecnicista e redutora do processo de aprendizagem, enquanto a reflexão pura sobre os conteúdos das mídias pode conduzir a um moralismo ineficaz que afasta os estudantes da escola. A concepção de dupla dimensão do uso pedagógico das TIC pretende dar conta dessas questões apontando para o caráter complexo dos processos cognitivos envolvidos no uso de tais tecnologias, cujas características técnicas e estéticas (formais) devem ser postas em evidência no processo de aprendizagem, para assegurar a apropriação criativa e desenvolver competências específicas, de uso e de produção, nos estudantes e professores (Belloni, 2001a, Jacquinot,1990, Dieuzeide,1994).

Do mesmo modo que a escola desenvolve a competência lingüística para que o estudantes seja capaz de apropriar-se da língua e fazer dela um uso inteligente e criativo, ela deve desenvolver competências análogas com relação às TIC. Esse é um dos desafios mais cruciais dos sistemas de ensino na atualidade, exigindo grande capacidade inovadora. Como qualquer inovação educacional tem necessariamente que passar pelo professor, nada mais lógico que se comece por formar professores utilizando as TIC, de modo intensivo e sistemático: o professor que aprende com elas estará muito melhor preparado para ensinar por meio delas. No entanto, a triste realidade de nossos sistemas de ensino revelam que, mesmo quando há políticas de formação de professores usando tecnologias e modalidades inovadoras como a educação a distância (EaD), as ações de formação não conseguem efetivamente chegar à maioria dos professores e sobretudo àqueles mais necessitados.

Cabe aqui uma pequena digressão sobre esse tema tão falado quanto pouco definido: afinal o que é inovação no campo educacional? Inovação é em geral conotada positivamente: é uma palavra encantatória, valorizadora, portadora das idéias de progresso, de abertura e de promessa. Dizer que um professor ou um sistema educacional é inovador é um elogio: significa que ele é dinâmico, interessado, aberto a mudanças, etc. Porque a inovação é sempre vista como um valor positivo é tão difícil defini-la com precisão: está sempre envolta em véus ideológicos.

A primeira característica da inovação é a novidade. Mas, ao contrário da inovação científica e tecnológica, a inovação pedagógica não se caracteriza por ser uma novidade radical: ela é sempre uma novidade relativa a um certo contexto. Nesse sentido, velhos procedimentos ou técnicas podem ser inovadores num determinado contexto educacional. Uma segunda característica da inovação é o produto: ou seja, o objeto ao qual se atribui a virtude inovadora, por exemplo, uma nova tecnologia. Mas, como sabemos, no caso da educação, não basta introduzir uma nova tecnologia em qualquer situação de ensino, para termos uma inovação pedagógica.

A terceira característica da inovação é a vontade de mudar para melhorar: inovar não é uma obrigação mas procede de uma intenção. Talvez tenhamos aqui uma melhor definição de inovação pedagógica: a intencionalidade do sujeito inovador. A inovação é guiada por um desejo, uma vontade de mudar, cujas modalidades vão se desenhando durante o processo até chegarem a uma ação finalizada, passível de observação e de avaliação. Então, para melhor compreender o que é inovação pedagógica é necessário considerá-la como um processo que leva a uma ação intencional finalizada. Porém, trata-se de um processo com amplas zonas de incerteza, que gera inquietude. Por isto há uma tendência dos educadores em seguirem modelos de planejamento ou projetos pouco inovadores (Cros, 1997).

É preciso distinguir inovação tecnológica, pedagógica e educacional: a primeira ocorre no campo social e econômico, quando uma nova técnica se impõe como objeto de consumo, mudando hábitos, saberes e modos de fazer. A inovação pedagógica, como vimos, é bem mais difícil de definir. Primeiro, porque ela é relativa ao contexto (nesse sentido pode ser uma espécie de ''novo antigo''); em seguida, porque é resultado de uma intencionalidade (sempre presente no ato de educar), um desejo de mudar para melhorar, e, por último, porque, em geral, a inovação pedagógica ocorre num processo pouco planejado. Já a inovação educacional acontece quando a inovação pedagógica é alçada a um nível de ação política de maior amplitude no tempo e no espaço (abrangência), exigindo planejamento e definição de projetos. É o caso do programa de formação de professores que analisamos: a TV Escola, como projeto de larga escala, resultado de uma ação política determinada por concepções de educação e definições ideológicas.

A TV Escola é um programa de formação à distância para professores, baseado numa concepção de aprendizagem aberta. Para melhor compreendermos esse programa é necessário explicitar estas duas características: a distância e a aprendizagem aberta.

Em primeiro lugar, pensemos no fator distância, que tem sido utilizado como definidor dessa modalidade de ensino e cujas significações estão longe de ser unânimes. De fato, a relação professor/estudante, especialmente no ensino superior, sempre foi mais coletiva que individual e muito assimétrica. ''O anfiteatro, modelo da sala de aula, grande e superlotado, organizado em torno e focalizando a cátedra, era o símbolo perfeito desta distância'' (Trindade, 2000). Então de que distância falamos quando dizemos educação a distância? A relação face a face característica da sala de aula é, de fato, uma relação de distância, na qual o contato físico e a presença ''escondem uma longa cadeia de mediações'', relacionadas com os papéis sociais do professor e do aluno (Mahieux, 2000). Esta antipresença no face a face pedagógico é resultado de uma enorme distância que separa muitas vezes o professor de seus estudantes.

Por outro lado, podemos falar de uma presença à distância (Jacquinot, 2000), desejável embora ainda difícil e rara, possível graças ao uso adequado de determinadas tecnologias de comunicação, bem integradas em uma proposta pedagógica consistente, focalizada no aprendente e em sua autonomia, isto é, uma proposta de aprendizagem autônoma e aberta. Esse sentimento de presença, construído graças às TIC – que suprimiriam a distância –, tem a ver com uma impressão de realidade, que é de fato uma interpretação de mensagens, sendo pois algo que varia segundo os indivíduos.

Quanto à aprendizagem aberta, é preciso não confundir aluno com cliente-consumidor. ''O aluno não é um cliente porque não temos que dar a ele somente o que ele demanda'' (Jacquinot, 2000), ao contrário, temos que tentar compreender seu projeto e ir adiante, ver mais claro e mais além, definir suas necessidades de formação, adequando os objetivos da formação a suas expectativas e a seu potencial criativo.

No caso da TV Escola, a proposta original se baseava na demanda potencial de formação aberta e flexível (sem certificação) e na oferta de um elenco grande e variado de programas, entre os quais os professores escolheriam livremente aqueles que atenderiam mais adequadamente a suas necessidades. Como veremos, do mesmo modo que os usos sociais das técnicas muitas vezes se desviam fortemente das intenções dos produtores (Belloni, 2001b), a utilização da TV Escola pelos professores se desviou significativamente das previsões e expectativas de seus planejadores.

A teoria e a prática

A TV Escola é um programa de grande porte do Ministério da Educação (Secretaria de Educação a Distância), cujo objetivo é oferecer, aos professores da educação básica em todo o país, oportunidades de formação continuada, na modalidade à distância, buscando contribuir de forma aberta, flexível e informal (não regular, sem avaliação nem certificação) para a melhoria da formação dos professores em exercício nas escolas brasileiras. Nesse sentido, pelo menos em termos de discurso, a proposta pedagógica da TV Escola se vincula mais ao conceito de aprendizagem aberta do que propriamente ao conceito tradicional de educação a distância. Enquanto o conceito educação a distância enfatiza a separação espacial de estudantes e professores e a produção – industrial – de materiais, a aprendizagem aberta enfatiza mais a adequabilidade de um processo de educação mais autônomo e flexível, de maior acessibilidade aos estudantes, o que significa sobretudo a expansão de novas modalidades de ensino e de novas regras de acesso e pré-requisitos de ingresso. A primeira se baseia geralmente em tecnologias educacionais de inspiração behaviorista, a segunda propõe estratégias mais flexíveis , grande autonomia do aprendente e se inspira principalmente nas teorias cognitivas e no construtivismo (Belloni, 2002b).

Criada para atender prioritariamente aos professores das séries iniciais do ensino fundamental, cuja formação de nível médio exige uma decisiva complementação, a TV Escola foi ampliando sua abrangência e hoje se dirige para professores de todos os níveis da escola básica. Ao mesmo tempo em que foi ampliando seu público-alvo, a TV Escola foi também mudando de enfoque quanto à natureza de seus objetivos prioritários, passando a oferecer cada vez mais materiais didáticos para os professores utilizarem com seus alunos em sala de aula. Nossa pesquisa mostrou que os professores que mais utilizam os programas da TV Escola são os professores especialistas das diferentes disciplinas das séries finais do ensino fundamental e do ensino médio, e que a grande maioria os utiliza como materiais didáticos em suas disciplinas específicas, em sala de aula com os estudantes. O uso desses programas para sua própria formação é muito pouco freqüente entre os professores, até porque esses professores são formados em nível superior, enquanto que a programação da TV Escola se destina principalmente à formação de professores oriundos de cursos de magistério de segundo grau, sendo, portanto, em muitos casos, completamente inadequada para professores licenciados.

Essa mudança de enfoque, de público prioritário e de tipo de utilização revela mais uma vez um epifenômeno recorrente em muitas experiências de formação de professores no Brasil: os profissionais que acabam se beneficiando mais desses programas são justamente aqueles que necessitam menos (os que já têm uma melhor formação) e não aqueles que precisam mais e que são o público prioritário daquelas ações de formação. Isso ocorre, evidentemente, porque aqueles professores têm mais condições de desempenhar o papel de estudante autônomo, que a propostra aberta e flexível da TV Escola exige. Os professores de séries iniciais, vindos de uma formação de nível médio, muitas vezes de baixa qualidade, não estão, em sua maioria, preparados para serem autodidatas nem para a leitura crítica de mensagens televisuais, indispensável para aproveitar bem os materiais da TV Escola.

Tal fenômeno ocorre de modo freqüente e explica muito da pequena eficácia de programas de formação continuada de professores e o baixo efeito multiplicador desses programas: os professores com melhor formação estão mais aptos a aproveitarem melhor as oportunidades abertas de formação, ao passo que aqueles que mais necessitam de reforço em sua formação não têm as condições mínimas para aproveitá-las (não estão habituados a estudarem sozinhos, têm jornadas de trabalho duplas ou triplas, são mal remunerados e moram longe, gastando muito tempo em transporte). Além disso, vale lembrar que muitos professores das redes públicas de ensino não voltam para a sala de aula depois de realizarem um curso de formação, permanecendo em outros serviços no próprio sistema, indo para o ensino superior ou simplesmente migrando para outros setores do mercado de trabalho com salários mais atrativos. Sobre a hipótese do efeito multiplicador desses programas, cabe lembrar que ele raramente se confirma, pois o cotidiano da escola, o apego irracional ao programa e as duras condições de trabalho da maioria dos professores do ensino básico não facilitam em nada, quando não impedem que o professor aplique em sua prática o que aprendeu, quanto mais que ele multiplique (Belloni, 2001a).

Em Santa Catarina, o nível médio de educação formal dos professores das redes públicas e privadas é bastante elevado: a maioria (52%) dos professores do ensino fundamental no estado tem formação de nível superior. No entanto, existem ainda 48% dos professores (19.797), neste nível de ensino, que possuem apenas um diploma de nível médio; a quase totalidade deles cursou o magistério de 2º grau. Embora esses dados, relativos a 1998, não sejam muito precisos quanto a essa questão, é possível inferir logicamente que a grande maioria desses professores atuem nas séries iniciais do ensino fundamental. Esses quase 20 mil professores constituem a clientela prioritária do Programa TV Escola.1 1 . A pesquisa de que trata este trabalho foi realizada em 1999/2000, com apoio do CNPq, com uma amostra de escolas de quatro municípios da Grande Florianópolis (Biguaçu, Palhoça, São José e Florianópolis) e no município de Lages, onde foi realizada uma técnica etnográfica de coleta de dados (Oficina de formação ). Foram aplicados questionários e realizadas entrevistas com um total de 117 educadores. Foram também aplicados, por telefone, 220 pequenos questionários às secretarias de uma amostra de escolas em todo estado, visando a colher dados sobre questões de funcionamento dos equipamentos.

Nossa pesquisa revelou, no entanto, que esses professores são os que menos utilizam a programação que a TV Escola deixa à sua disposição. Os 117 professores e especialistas que compuseram nossa amostra, de professores usuários da TV Escola, nos quatro municípios da Grande Florianópolis e em Lages, cidade do planalto serrano catarinense, apresentam índices bem mais elevados de formação: a grande maioria (70%) completou o curso superior e apenas 22% destes professores têm formação secundária, em geral o curso de magistério.

A razão principal para a baixa participação dos professores no Programa TV Escola está sem dúvida relacionada a meros problemas técnicos: na maioria das escolas, os equipamentos apresentam problemas que vão desde o não funcionamento da antena parabólica, impedindo totalmente a recepção dos programas, até a baixa qualidade das gravações ''domésticas'' que compõem o acervo das escolas, cuja organização é uma incógnita que depende sempre de muitos e diversos fatores.

Na rede estadual, em âmbito de todo o estado, segundo a pesquisa por telefone que realizamos com uma amostra de 10% das escolas, uma parcela significativa (22%) das antenas parabólicas não estava em funcionamento e os responsáveis de grande maioria das escolas (64%) apontaram algum problema de ordem técnica, decorrente da precariedade dos equipamentos.

Do total de escolas da Grande Florianópolis, nas quais obtivemos respostas (131 escolas), 40% não estavam com o kit funcionando na época da pesquisa. Essa precariedade técnica se distribui mais ou menos igualitariamente nas redes públicas: entre as 82 escolas da rede estadual que nos responderam, em 38% o kit não estava funcionado. Nas 42 escolas das redes municipais, encontramos 45% nas quais o kit também não funcionava.

Fica muito clara a política do Programa: investir na ''vitrine'' da TV Escola – assegurar a produção centralizada de uma programação cara e de qualidade (nem sempre) – e descentralizar as condições de utilização, que incluem questões complexas de ordem político-administrativa relativas a salários e jornadas de trabalho dos professores e também problemas puramente técnicos, tais como a instalação e manutenção dos equipamentos. Embora tal política possa parecer simpática e mais efetiva, porque descentraliza também recursos financeiros, para estados e municípios, o equívoco é evidente: não são apenas as condições técnicas que devem ser descentralizadas e deixadas sob responsabilidade das escolas, mas sobretudo as decisões e escolhas de estratégias de uso de materiais abundantes, variados e de boa qualidade técnica. Ou, dito de outra forma: gravar ou copiar os programas não deve ser tarefa da escola, que ganharia muito em ter um acervo de boa qualidade e completo e equipamentos de vídeo em funcionamento, podendo então canalizar o tempo e a disponibilidade dos professores e funcionários para tarefas realmente pedagógicas de ensino e auto-formação.

De fato, a TV Escola descentralizou os serviços técnicos mais elementares como gravar e catalogar fitas de vídeo, mas continua centralizando fortemente a produção de programas e as decisões pedagógicas (nem as universidades foram chamadas a colaborar). No mais puro estilo pós-fordista, a TV Escola põe sobre os ombros do nosso já atribulado professor mais uma responsabilidade: a de sua própria formação continuada, incluindo a copiagem e organização dos materiais televisuais. As oportunidades estão dadas, os programas disponíveis, se o professor não aproveitar o problema é dele e de sua escola, não mais do governo que já fez sua parte.

A pesquisa etnográfica realizada durante a oficina de Lages nos permite algumas inferências interessantes, que confirmam o que mencionamos acima: aproveitam mais as oportunidades de formação justamente aqueles profissionais que menos necessitariam delas, ou seja, aqueles que já têm uma boa formação inicial e continuada e por isso procuram se aperfeiçoar e sabem como fazê-lo de modo autônomo. Os professores em exercício na sala de aula das séries iniciais, no entanto, com formação secundária, público-alvo da TV Escola, que mais necessitariam desta formação, não conseguem participar.

Para a oficina de Lages conseguimos reunir, com a colaboração da CRE, 50 educadores usuários da TV Escola para uma jornada de formação sobre comunicação educacional. Sem muita surpresa, descobrimos que entre eles havia apenas uma minoria (21,5%) de professores em exercício na sala de aula, enquanto a grande maioria (78,5%) era formada de responsáveis pela TV Escola nas escolas, isto é, educadores mais especializados que já foram ''capacitados'' para o uso de programas de tecnologia educacional, como o Salto para o Futuro, TV Escola e ProInfo, por exemplo.

Um dado surpreendente e muito significativo refere-se ao treinamento específico desses responsáveis: ao contrário do que esperávamos, a grande maioria deles (86%) não recebeu nenhum treinamento específico para atuar na escola com a TV Escola! Cabe perguntar onde estão aqueles profissionais formados pelo e para o Programa em Santa Catarina? Segundo dados da própria Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina, desde 1997 não há formação dos responsáveis e apenas em abril de 2000 aconteceu uma formação para os coordenadores do programa TV Escola em cada Coordenadoria Regional de Educação – CRE, que foi o primeiro de uma série de cursos de ''capacitação'' para professores e educadores. Como ocorre quase sempre com as oportunidades de formação continuada, esses cursos, porém, em sua maioria, atingem aqueles educadores que não estão atuando na sala de aula.

É importante registrar um grande avanço ocorrido na programação da TV Escola: no ano de 2000, após cinco anos de funcionamento, a TV Escola passou a oferecer aos professores, um curso sobre... como utilizar a TV Escola! Esse curso, TV na escola e os desafios de hoje, tem acompanhamento e certificação, e foi produzido pela UniRede. Sua proposta pedagógica e seus materiais impressos e videográficos são de qualidade bastante boa, tanto em termos didáticos quanto em termos pedagógicos e estruturais. No entanto, as respostas do público-alvo ainda não correspondem às expectativas. Só uma avaliação junto aos professores usuários poderá mostrar se desta vez os objetivos foram atingidos e o público prioritário atendido.

TV escola: o professor usuário

A formação dos professores desta pesquisa é ainda melhor do que a dos professores no âmbito do estado, que são bastante bons, comparativamente aos de outros estados brasileiros. Entre os 117 professores entrevistados, na grande Florianópolis e Lages, 44% têm curso superior completo, 25% fizeram uma especialização e 2% têm mestrado. Somente 20% têm apenas o magistério de 2º grau e 9% estão com o curso superior incompleto. Cabe ressaltar que 31% desses profissionais estão fazendo algum curso atualmente. Tais níveis de formação confirmam nossas observações acima: os professores usuários da TV Escola são aqueles que já têm uma melhor formação inicial e continuada. O público prioritário do Programa tende a não ser alcançado.

Do total de 117 professores, 88 (74%) afirmaram que já utilizaram algum programa da TV Escola. Destes 88, apenas 14% costumam utilizar os programas para a própria formação, 39% utilizam tanto para a própria formação quanto com os alunos, ao passo que a maioria (43%) utiliza os programas da TV Escola somente com os alunos, como material didático. Entre os 117 professores de nossa amostra (em princípio todos utilizadores da TV Escola) apenas 88 professores utilizam efetivamente programas da TV Escola. Desses últimos, a maioria (74%) não respondeu por que utiliza os programas da TV Escola, 21% afirmam utilizar os programas porque contribuem para sua prática pedagógica. Somente 5% dizem utilizá-los porque contribuem para a formação do professor. Os dados descritos doravante se referem apenas a este grupo de 88 professores utilizadores efetivos da TV Escola.

De início, é preciso ressaltar que, não por acaso, esses professores já eram, em sua maioria, sensíveis ao uso educativo da televisão: quando questionados se costumavam usar o vídeo como material pedagógico antes da TV Escola, a grande maioria (42%) respondeu que costumava utilizar materiais videográficos com os alunos, sendo que somente 18% responderam não utilizá-lo.

De modo geral, o professor tem poucas oportunidades de formação ou atividades coletivas de aproveitamento da TV Escola em seu local de trabalho: quando perguntamos se a escola está organizando alguma atividade de formação, a grande maioria (83%) respondeu que não. Perguntados se estavam participando de alguma atividade de formação com os programas veiculados pela TV Escola, a quase totalidade dos professores usuários (96%) respondeu também negativamente.

Na maioria das vezes, esses professores afirmaram assistir aos programas da TV Escola, na escola, e para finalidades de ensino (34%). Um número significativo (24%) dos professores usuários, porém, assiste-os em casa e 19% dizem assisti-los tanto na escola quanto em casa. Quando se trata da sua própria formação, a maioria dos professores usuários assiste aos programas sozinho, ao passo que muito poucos assistem com colegas em grupos de estudo. Quando questionados se existe alguma atividade de debate realizada na escola na qual possam discutir sobre os programas da TV Escola, 80% dos professores usuários afirmaram que não existe nenhuma atividade coletiva desse tipo. Uma grande maioria dos professores usuários (82%) afirma nunca ter acompanhado algum curso da TV Escola para sua própria formação, embora esse seja o objetivo original do Programa. Também no que diz respeito ao apoio pedagógico para a utilização dos programas, 65% dos professores afirmaram nunca ter recebido qualquer orientação.

Apesar do discurso oficial de descentralização, parece evidente que o uso da TV Escola não é um projeto da escola ou das instâncias locais e regionais de política educacional, mas uma questão individual, uma escolha solitária de cada professor, provavelmente daqueles abnegados que encaram a profissão como uma missão: uma maioria muito significativa dos professores usuários (76%) declara assistir aos programas fora de seu horário de trabalho. Considerando que são essas as horas de que o professor dispõe para preparar suas aulas, é perfeitamente compreensível que a prioridade seja dada ao uso dos materiais da TV Escola com alunos.

Confirmando esta análise, mais de dois terços de nossos professores (72%) afirmam não existir nenhum horário disponível na sua carga horária para assistir aos programas do TV Escola e realizar outras atividades de autodidatismo. Somente 25% afirmaram que dispõem de algum horário para essa atividade em sua jornada de trabalho, em geral aquelas horas destinadas a reuniões pedagógicas e de formação, que são poucas e dispersas ao longo do ano.

Como conseqüência lógica, tempo para desenvolver atividades de formação com programas da TV Escola, durante a jornada de trabalho (18%) e organização de atividades coletivas na escola (17%) foram as principais sugestões dos professores para facilitar o uso do programa TV Escola.

Quanto às formas de utilização dos programas, observamos que uma grande maioria (78%) afirma que usa programas da TV Escola com seus alunos como material didático, porém apenas 36% dizem assistir aos vídeos previamente e planejar seu uso em sala de aula, enquanto 10% dos professores afirmam que só selecionam os programas, o que significa que eles nem assistem aos vídeos antes de utilizá-los com os alunos.

Embora utilizem de modo assistemático, não planejado e esporádico os programas da TV Escola, os professores e educadores entrevistados, em sua maioria, afirmam ter uma opinião muito positiva do Programa. Quanto a uma avaliação geral dos programas da TV Escola e seus efeitos, 76% declaram que eles contribuíram para sua prática pedagógica, ao passo que um número muito significativo dos professores usuários (74%) afirma que o uso do vídeo como material didático está ajudando os alunos no processo de ensino-aprendizagem. Esse mesmo percentual de professores diz pretender continuar utilizando os programas da TV Escola com os seus alunos. De modo geral os programas televisuais são bem avaliados: 58% deles os consideram bons, 9% ótimos, 11% consideram regulares, e somente um professor respondeu que considerava ruins os programas difundidos pela TV Escola.

De modo geral, os professores acreditam que os objetivos do Programa TV Escola correspondem às suas necessidades em termos de ampliação dos conhecimentos teóricos nas seguintes áreas: conteúdos específicos das disciplinas, (70%); conteúdos relativos à metodologia (56%); e conteúdos relativos à cultura (68%). Para um grupo significativo de professores usuários, é por meio dos conteúdos (26%) e do potencial pedagógico da imagem (17%) – visualização, motivação e estimulação – que os programas da TV Escola contribuem para a prática pedagógica dos professores.

Quanto à qualidade técnica e pedagógica dos programas, muitos dos professores usuários (73%) avaliam que os programas do TV Escola são coerentes e bem estruturados.

De modo geral, 58% consideram bons os programas difundidos pela TV Escola, 11,4% consideram regulares, 9% como ótimos e somente 1% considera os programas francamente ruins. Cerca de 69% destes professores consideram adequada a estrutura da programação; 63% avaliam positivamente a qualidade técnica dos programas e 64% acham adequada a qualidade estética dos programas. De modo geral, os professores consideram a quantidade de informações transmitidas nos programas da TV Escola bem dosada (59,%), enquanto apenas 15% a consideram como insuficiente. Quanto à linguagem televisual, a maioria dos professores (52%) a considera boa, e somente 15% a avaliam como regular.

Os materiais impressos de apoio também merecem uma avaliação positiva dos professores usuários: de acordo com 50% deles, esses materiais (revistas e cadernos) são importantes para o esclarecimento de dúvidas e preparação das aulas.

Apesar de apontarem os problemas técnicos como as dificuldades mais importantes, os professores não conseguem perceber as causas desse problema: quando questionados a respeito da estratégia de difusão (via antena parabólica e exigindo gravação de programas e organização de acervo na escola), que está na origem daqueles problemas, a maioria de nossos entrevistados (57%) a considera adequada.

Alguns professores, no entanto, percebem as dificuldades do Programa, ao passo que outros não conseguem a mesma clareza: quando perguntados se a TV Escola tem alcançado seus objetivos para a formação de professores, as opiniões dividiram-se, e 32% responderam positivamente, 32% responderam não, enquanto os outros 36% não responderam. Tais dados nos levam a inferir que aos professores falta a reflexão que permitiria compreender sua própria ação enquanto docentes responsáveis pelo ensino de seus alunos e por sua própria formação continuada como parte integrante de sua prática. Falta a reflexão que possibilitaria ao professor emancipar-se e exigir melhor formação inicial e continuada, mais sintonizada com as demandas da sociedade, indo contra a inércia que paralisa a instituição escolar em todos seus níveis, especialmente na formação de professores.

TV escola: os educadores responsáveis

As declarações dos responsáveis pelo Programa nas escolas vêm confirmar o que observamos com os professores. Segundo 68% desses educadores, em suas escolas existem apenas estratégias individuais de utilização do Programa TV Escola, ou seja, os professores usam os materiais da TV Escola de modo individual e na maioria dos casos como material didático para suas aulas. Apenas 12% dos responsáveis disseram existir em suas escolas alguma estratégia coletiva de uso do Programa para formação do corpo docente. Do mesmo modo, 77% dos responsáveis afirmam que não houve atividades de formação com o Programa para os professores de suas escolas durante os anos letivos de 1998 e 1999, enquanto somente para 20% das escolas parece ter havido alguma atividade deste tipo.

Confirmando essa tendência de falta de estratégias coletivas de uso da TV Escola para formação de professores nas escolas, dois terços dos responsáveis dizem não existir nenhuma atividade organizada com este fim, a não ser esporadicamente, por exemplo em reuniões em que se utilizam os programas para enriquecer os debates, o que na verdade não configura exatamente uma estratégia coletiva sistemática de formação.

Segundo a grande maioria (70%) dos educadores responsáveis pela TV Escola, a maior parte dos professores não usa os programas da TV Escola, alegando falta de tempo. Apenas 25% dos responsáveis disseram que em suas escolas a maioria dos professores utiliza aqueles programas para própria formação ou com os alunos. Essa mesma tendência se verifica nas respostas a outra pergunta sobre o uso de programas da TV Escola como material didático com os alunos: apenas 34% responderam que, em sua escola, a maioria dos professores os utiliza desse modo; em 45% dos casos poucos professores utilizam esse recurso, enquanto 12% dos responsáveis disseram que em suas escolas nenhum dos professores utiliza esses materiais. As respostas às perguntas abertas e as entrevistas realizadas com alguns desses profissionais mostram que essa utilização é bastante assistemática e quase inexistente no que diz respeito à formação dos professores.

Embora seu uso não seja generalizado entre os professores, a TV Escola merece uma avaliação positiva da parte da maioria destes profissionais: segundo 61% deles, podem-se notar diferenças qualitativas nas práticas pedagógicas daqueles professores que usam os programas de TV Escola. No entanto, uma parcela significativa deste grupo (25%) diz não ser possível perceber nenhuma melhoria decorrente dessa utilização.

De modo geral, os entrevistados indicam um uso restrito, na maioria dos casos voltado para o ensino e não para a formação, e com uma freqüência não muito elevada dos materiais pedagógicos postos à disposição das escolas pelo Programa. A que se deve tão baixos índices de uso? Pode-se inferir pelas respostas destes educadores que as principais dificuldades ainda são meramente técnicas (46%), o que confirma os dados sobre a precariedade técnica dos ''kits tecnológicos'' instalados nas escolas de Santa Catarina. Além dessas razões técnicas, as outras maiores dificuldades se referem à falta de tempo para formação (10%) e à baixa motivação dos professores (19%).

A lacuna aqui é de capacidade aglutinadora que reúna condições de desenvolver formas coletivas de apropriação, vinculadas à escola. Aliás, essa é a proposta pós-fordista: formação continuada no local de trabalho e a partir das demandas da empresa. Nem mesmo essa foi possível implementar. As dificuldades da TV Escola explicam-se pela falta de projetos coletivos de formação continuada na maioria das escolas, e pela ausência de uma política que inverta essa relação perversa de centralização e descentralização, por meio da qual as decisões pedagógicas são tomadas por tecnocratas no ministério e tarefas técnicas repetitivas são exigidas dos professores, fora de sua jornada de trabalho.

O ensino à distância na formação de professores em Santa Catarina: conclusões provisórias

Podemos perceber que a maioria dos professores que fazem uso do Programa considera que isso foi importante, tanto para sua formação quanto para sua prática pedagógica, no uso didático com os alunos. De modo geral, os educadores têm uma opinião muito positiva sobre a TV Escola, tanto no que diz respeito às finalidades e estratégias quanto no que se refere à qualidade técnica e pedagógica dos programas. Isso significa que esses professores percebem as potencialidades pedagógicas do meio televisuais. No entanto, como vimos, a maioria dos professores não utiliza a TV Escola, o que significa que ela está longe de contar com a adesão efetiva de seu público-alvo. Entre os professores que usam a TV Escola, a maioria é formada por aqueles que já têm uma melhor formação e por isso mesmo estão mais aptos para aproveitar os programas, de acordo com a proposta de aprendizagem aberta e autônoma da TV Escola.

Embora em Santa Catarina a maioria dos professores de ensino fundamental (52%) tenha formação de nível superior, existe ainda uma parcela considerável de professores (48%) que possui somente um diploma de nível médio. Esses quase 20 mil professores, cuja maioria atua nas séries iniciais, deveriam ser a clientela prioritária do Programa TV Escola. No entanto, não são eles os usuários dos materiais desse Programa, nem para sua formação nem como material didático em sala de aula com os alunos, nem são alcançados pelos diversos ''cursos de capacitação'' oferecidos pelos sistemas de ensino. É importante lembrar, no entanto, que esse grupo de quase 20 mil professores do ensino fundamental (séries iniciais) em Santa Catarina faz parte dos muitos milhares que representam, agora, uma nova fatia do mercado da educação a distância. Esse mercado está em plena expansão, com o desenvolvimento um tanto caótico de experiências realizadas por instituições públicas e privadas, que buscam atender a demanda em diferentes regiões do país oferecendo cursos de pedagogia nem sempre adequados (Belloni, 2002a).

Podemos apontar algumas razões para a baixa participação desses professores no Programa TV Escola, as dificuldades mais evidentes estando relacionadas com problemas técnicos que vão desde a baixa qualidade dos equipamentos instalados (muitas antenas funcionaram menos de seis meses) até a absoluta ausência de manutenção técnica daqueles equipamentos, passando pela penúria de fitas cassete para gravação de programas. É importante lembrar também que a falta de pessoal para gravação e organização do acervo nas escolas bem como o despreparo da maioria dos professores para o uso pedagógico de programas videográficos são fatores extremamente importantes que explicam a baixa freqüência à TV Escola.

Além disso, maioria das escolas brasileiras não tem outros espaços de estudo além das salas de aula em geral nuas e pobres: não há biblioteca nem laboratórios, muito menos salas de estudo para professores, equipadas para recepção da TV Escola. Falta na maioria das escolas a infra-estrutura mínima para assegurar aos professores condições de uso da TV Escola para formação continuada.

A estratégia de distribuição da TV Escola (difusão via antena parabólica e gravação e organização de programas a cargo das escolas) foi inspirada na experiência dos CIEPs do Rio de Janeiro e representa uma enorme economia de custos. Nos CIEPs a estratégia funcionou porque: a) o objetivo era principalmente fornecer material didático para uso em sala de aula, e não tanto formação de professores; b) toda a programação (uma hora por dia) era gravada; o sistema era pequeno e com a administração centralizada em uma secretaria de estado; c) e, principalmente, porque a proposta previa uma professora ou educadora em cada CIEP, com formação especial e com a função de selecionar os programas, organizar estratégias de uso e auxiliar os professores a aplicá-las com os alunos.

A estratégia da TV Escola também deixa a cargo das escolas a organização da recepção, acrescida da fabricação de fitas, organização do acervo (identificação, classificação, catalogação) e planejamento e execução de atividades coletivas de aproveitamento de programas para a formação continuada de seus professores. Essa ''descentralização radical'' (Draibe; Perez, 1999) é provavelmente o calcanhar-de-aquiles do Programa, pois a grande maioria das escolas brasileiras não tem, muito provavelmente, as condições mínimas imprescindíveis para tirar proveito dessa oferta aberta e flexível de formação continuada. Nossa pesquisa mostrou que mesmo num estado como Santa Catarina, cujos indicadores sociais e econômicos estão entre os melhores do Brasil, as escolas não conseguem cumprir sua parte no Programa. É de imaginar as imensas dificuldades existentes nas regiões mais pobres do país.

Em que pese a importância dos fatores acima mencionados, as razões principais, do pouco aproveitamento efetivo da TV Escola para formação continuada, dizem respeito, a nosso ver, muito mais a questões relacionadas com a carreira do professor: falta de tempo para a formação continuada dentro da jornada de trabalho; formação inicial precária; falta de hábito de autodidatismo e conseqüente dificuldade de aproveitar o que o Programa oferece. Talvez a principal razão que explica a pouca adesão à TV Escola seja a baixa motivação (para não dizer falta total de) dos professores para a formação continuada, em serviço, tendo em vista a ausência de incentivos de formação no plano de carreira e o nível de salários dessa categoria profissional. Essas mesmas constatações já havíamos feito em pesquisa sobre o Programa Um Salto para o Futuro, realizada no estado de Santa Catarina em 1996. Do mesmo modo, pesquisas realizadas sobre outras experiências da TV Escola revelam situações muito semelhantes às que encontramos em Santa Catarina, confirmando assim nossas inferências.

As pesquisas têm mostrado sistematicamente problemas semelhantes em outros estados: a TV Escola não tem atingido nem de longe seus objetivos prioritários, relativos à formação das professoras de séries iniciais do ensino fundamental. Segundo Toschi, a TV Escola não constitui propriamente um programa de EaD, pois ao considerar os professores como usuários-consumidores de materiais televisuais, aplicando à educação as regras da comunicação de massa, o programa TV Escola acaba se transformando numa espécie de midiateca virtual onde o professor busca materiais didáticos para suas aulas (Toschi, 2001, p. 101). As razões de tal ''desvio de trajetória'' de um programa de grande envergadura como a TV Escola, apresentada como panacéia para resolver a baixa qualidade do ensino oferecido na maioria das escolas públicas brasileiras, devem ser procuradas na própria proposta do programa, que não considerou as características do público-alvo, e nas políticas de implementação, caracterizadas por uma ''descentralização radical'', problema já apontado por Draibe e Perez (1999), numa das primeiras avaliações do programa.

Confirmando a lógica comunicacional e mercadológica das políticas do setor, a TV Escola investe na produção, de modo centralizado e arbitrário (quem é o grupo de iluminados do MEC que decide o que deve ser veiculado?), e descentraliza completamente a recepção, desinteressando-se totalmente de tudo o que se refere à utilização. A distribuição de recursos (escassos) para aquisição de equipamentos transfere para as instâncias estaduais e municipais não apenas a responsabilidade mas também o poder político, propiciando toda sorte de desvios e problemas técnicos. Quando analisamos a experiência catarinense de uso do Programa Um Salto para o Futuro, encontramos problemas análogos, tanto em termos de equipamentos e questões técnicas quanto no que se refere a questões conceituais e pedagógicas e, principalmente, no que diz respeito às condições de trabalho do professor. Tal continuidade negativa – de problemas e precariedades – corresponde certamente a uma continuidade política, que define políticas públicas a partir dos mesmos modelos tecnocráticos elaborados sob a ótica das agências internacionais.

As sugestões que seguem são praticamente as mesmas que fizemos na ocasião da avaliação do Programa Um Salto para o Futuro (realizada para a secretaria estadual de educação): embora o programa Um Salto para o Futuro contasse com a recepção organizada em telepostos, a estratégia deixava a desejar porque a aprendizagem que o ''professor cursista'' desenvolvia no teleposto não repercutia em sua prática pedagógica, pois estava distante da realidade de sua prática pedagógica e de suas condições de trabalho. Propúnhamos então a criação de estruturas de estudo coletivo nas escolas, integradas ao plano de trabalho da escola, de modo que a formação continuada do corpo docente fosse parte integrante do projeto pedagógico de cada unidade escolar (Belloni,1996).

A maioria das escolas não apresenta as condições para assumir tal tarefa, que só poderá ser levada a cabo com a união de esforços das diferentes instâncias organizadoras. A descentralização radical proposta pelo Programa TV Escola, que distribui recursos diretamente às escolas, tem como pressuposto uma lógica de mercado neo-darwiniana (as melhores escolas e os melhores educadores saberão aproveitar), correspondente ao modelo neoliberal que se impõe em escala planetária, mas que não condiz com a natureza de serviço público dos sistemas educativos. Essa estratégia mostra-se ineficaz e contraproducente, já que não apenas não consegue a adesão de seu público prioritário, e portanto atingir seus objetivos, como tende a desqualificar o ensino a distância como modalidade válida de formação de professores.

Para que esse quadro venha a se modificar na maioria das escolas, será necessário implementar políticas decisivas que visem a:

  • criar estruturas acessíveis, nas escolas, para disponibilizar esses recursos a todos os professores, pois os

    maiores entraves constatados são de ordem técnica, como a dificuldade de manejo dos equipamentos, de gravar fitas, bem como a qualidade, manutenção e disponibilização dos equipamentos e acervos de fitas. É preciso ter um funcionário responsável para gravar os programas, já que os professores não têm tempo nem meios para realizar essa tarefa (seria certamente mais eficaz, e talvez fosse até mais barato, copiar e distribuir em nível regional, as fitas de vídeo e materiais impressos);

  • manter, nas escolas, pessoal pedagógico especializado capaz de auxiliar o professor no planejamento e realização de atividades de aproveitamento dos materiais da TV Escola, tanto para autoformação como para uso didático com os alunos (está mais que comprovado que nossos professores não estão preparados nem para o uso pedagógico de materiais televisuais, nem para o autodidatismo, duas condições de êxito na aproveitamento de programas de EaD baseada em televisão, como é o caso);

  • estimular, em parceria com as Instituições de Ensino Superior, a criação de estratégias inovadoras para o uso coletivo do Programa TV Escola, integradas ao projeto pedagógico da escola, combinando materiais videográficos e atividades de estudo (seminários, tutoria, etc.), em grupos de estudo que integrem pessoal docente e pedagógico das escolas;

  • incluir, na formação inicial e continuada de professores, a preparação para o domínio do meio televisual como recurso pedagógico, visando a otimização desse tipo de programa. É importante ressaltar que o papel do professor nesse processo é estratégico: quanto maior for a capacitação do professor para lidar com a inovação educativa, mais ele estará aberto às mudanças na sociedade, decorrentes do uso das tecnologias, e mais preparado para apropriar-se criticamente destas;

  • finalmente, para que essas estratégias dêem certo, é necessário resolver as questões relacionadas à carreira do professor: prever tempo para formação continuada dentro da jornada de trabalho; criar incentivos à formação, de progressão funcional como de remuneração.>

Recebido em 22.04.03

Aprovado em 16.06.03

Maria Luiza Belloni é professora do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Fez doutorado (1984) em Sciences de l'Éducation, Faculté R. Descartes, Université PARIS V; pós-doutorado (1989) em Communication Politique, CNRS, Paris, França; pós-doutorado (1997/98) em Educação a distância, Universidade Aberta de Portugal. Entre suas principais publicações estão: Educação a distância (Autores Associados - 1999, 3.ed., 2003); O que é mídia-educação (Autores Associados - 2001.

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  • Endereço para correspondência
    Maria Luiza Belloni
    E-mail:
  • *
    Versão ampliada da comunicação apresentada no IV Simpósio de Comunicação e Educação, em Ponta Grossa, PR, agosto de 2002.
    **
    This article is an extended version of a communication made to the 4th Symposium on Communication and Education held in Ponta Grossa (Brazil) in August 2002.
  • 1
    . A pesquisa de que trata este trabalho foi realizada em 1999/2000, com apoio do CNPq, com uma amostra de escolas de quatro municípios da Grande Florianópolis (Biguaçu, Palhoça, São José e Florianópolis) e no município de Lages, onde foi realizada uma técnica etnográfica de coleta de dados (Oficina de formação ). Foram aplicados questionários e realizadas entrevistas com um total de 117 educadores. Foram também aplicados, por telefone, 220 pequenos questionários às secretarias de uma amostra de escolas em todo estado, visando a colher dados sobre questões de funcionamento dos equipamentos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Aceito
      16 Jun 2003
    • Recebido
      22 Abr 2003
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