Acessibilidade / Reportar erro

Implications of the political character of education to the management of public schools

Implicações do caráter político da educação para a administração da escola pública

Abstracts

Starting from a broad conception of politics - transcending the mere struggle for power, and identifying politics with a human-social practice that has the purpose of making possible the living together of groups and people - the article elaborates an equally broad concept of democracy that, not being restricted to its parliamentary or electoral meaning, is understood as a social practice that builds the free and peaceful coexistence of individuals and groups that assert themselves as historical agents. Taken then as a historical-cultural actualization through which takes place the construction of the historical man through the acquisition of culture, education has its political dimension highlighted precisely because of this ability to endow the human being with their historical and plural condition, due to which they necessarily have to live with other individuals and groups. By analyzing the dialogic and reinforcing character of the subjectivity of the educated, through which the authentic education must take place in order to be coherent with its function of builder of the historical man, the work seeks to bring forward the nature of the education process not just as political practice but also as an intrinsically democratic practice. Within this framework the article considers the implications of this political and democratic condition to the quality of teaching, to the school management practice, and to the studies in school management.

Politics and education; Democracy and education; School management; Quality of teaching


Partindo de um conceito amplo de política -- que transcende a mera luta pelo poder e se identifica com prática humano-social com propósito de tornar possível a convivência entre grupos e pessoas -- o artigo elabora um conceito também amplo de democracia que, não se restringindo à sua conotação apenas parlamentar ou eleitoral, é entendida como prática social pela qual se constrói a convivência pacífica e livre entre indivíduos e grupos que se afirmam como sujeitos históricos. A seguir, tomada como atualização histórico-cultural, pela qual se processa a construção do homem histórico pela apropriação da cultura, a educação tem destacada sua dimensão política precisamente por essa capacidade de propiciar ao ser humano sua condição histórica e plural, pela qual ele necessariamente deve conviver com outros sujeitos individuais e coletivos. Ao analisar a forma dialógica e reforçadora da subjetividade do educando pela qual a autêntica educação precisa desenvolver-se para ser coerente com sua função de construtora do homem histórico, o trabalho procura evidenciar o caráter do processo educativo não apenas como prática política mas também como prática intrinsecamente democrática. A partir desse quadro, o artigo considera as implicações dessa condição política e democrática para a qualidade do ensino, para a prática administrativa escolar e para os estudos de administração escolar.

Política e educação; Democracia e educação; Administração escolar; Qualidade do ensino


Implicações do caráter político da educação para a administração da escola pública* * Trabalho apresentado na 25ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu (MG) de 29/9 a 2/10/2002.Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.2, p. 11-23, jul./dez. 2002

Vitor Henrique Paro

Universidade de São Paulo

Correspondência:

Vitor Henrique Paro

Av. dos Eucaliptos, 113, apto. 143

04517-050 São Paulo – SP

E-mail: vhparo@usp.br

Resumo

Partindo de um conceito amplo de política ¾ que transcende a mera luta pelo poder e se identifica com prática humano-social com propósito de tornar possível a convivência entre grupos e pessoas ¾ o artigo elabora um conceito também amplo de democracia que, não se restringindo à sua conotação apenas parlamentar ou eleitoral, é entendida como prática social pela qual se constrói a convivência pacífica e livre entre indivíduos e grupos que se afirmam como sujeitos históricos. A seguir, tomada como atualização histórico-cultural, pela qual se processa a construção do homem histórico pela apropriação da cultura, a educação tem destacada sua dimensão política precisamente por essa capacidade de propiciar ao ser humano sua condição histórica e plural, pela qual ele necessariamente deve conviver com outros sujeitos individuais e coletivos. Ao analisar a forma dialógica e reforçadora da subjetividade do educando pela qual a autêntica educação precisa desenvolver-se para ser coerente com sua função de construtora do homem histórico, o trabalho procura evidenciar o caráter do processo educativo não apenas como prática política mas também como prática intrinsecamente democrática. A partir desse quadro, o artigo considera as implicações dessa condição política e democrática para a qualidade do ensino, para a prática administrativa escolar e para os estudos de administração escolar.

Palavras-chave

Política e educação ¾ Democracia e educação ¾ Administração escolar ¾ Qualidade do ensino.

Implications of the political character of education to the management of public schools** ** This work was presented at the 25th Annual Meeting of the ANPED, in Caxambu (MG), 09/29 to 10/02/2002.

Abstract

Starting from a broad conception of politics – transcending the mere struggle for power, and identifying politics with a human-social practice that has the purpose of making possible the living together of groups and people – the article elaborates an equally broad concept of democracy that, not being restricted to its parliamentary or electoral meaning, is understood as a social practice that builds the free and peaceful coexistence of individuals and groups that assert themselves as historical agents. Taken then as a historical-cultural actualization through which takes place the construction of the historical man through the acquisition of culture, education has its political dimension highlighted precisely because of this ability to endow the human being with their historical and plural condition, due to which they necessarily have to live with other individuals and groups. By analyzing the dialogic and reinforcing character of the subjectivity of the educated, through which the authentic education must take place in order to be coherent with its function of builder of the historical man, the work seeks to bring forward the nature of the education process not just as political practice but also as an intrinsically democratic practice. Within this framework the article considers the implications of this political and democratic condition to the quality of teaching, to the school management practice, and to the studies in school management.

Keywords

Politics and education ¾ Democracy and education ¾ School management ¾ Quality of teaching

A questão da relação entre política e educação escolar costuma aparecer, no âmbito do senso comum, associada a duas posições: uma que nega a legitimidade ou procedência dessa relação e outra que a afirma.

No primeiro caso, assume-se que a escola, por ser o local em que se dá a transmissão dos conhecimentos e da cultura em geral, atendendo à generalidade da população, é um campo (neutro) onde não devem entrar interesses políticos (particulares). O saber escolar, por seu conteúdo universal, estaria assim a serviço de todos, não devendo submeter-se a interesses de grupos ou pessoas. Esta posição, defendida principalmente pelos setores dominantes da sociedade e do Estado, dissemina-se amplamente na mídia e entre as populações desprovidas de uma concepção crítica da realidade social. Aos detentores do poder político e econômico, interessa, obviamente, que a política não escape a seu domínio, restringindo-se aos políticos profissionais e aos mecanismos formais de representação (partidos políticos, poder executivo, Congresso Nacional e outros órgãos legislativos, etc.). Por seu turno, a mídia e a população em geral nada mais fazem que assimilar e refletir uma concepção que domina o imaginário social. A concepção de política por trás desta posição assume, com freqüência, certa conotação negativa, associando-a necessariamente a conflitos entre grupos ou partidos ou à busca de interesses particulares, nem sempre lícitos. Mesmo entre educadores, há os que se orgulham de não se envolverem em política ou de manterem sua prática pedagógica longe da política.

A segunda posição afirma a necessidade da relação entre política e educação escolar, acima de tudo, porque a escola não é considerada neutra, estando necessariamente articulada com uma concepção particular de mundo e de sociedade. Não se trata, portanto, de associar ou não a educação escolar com a política: esta já está implícita na ação da escola, que, longe de ser universal, numa sociedade de classes, atende aos interesses dos grupos dominantes que, por meio dela, incutem a concepção de mundo e de homem que lhes é mais favorável. Essa maneira de abordar o papel da escola com relação à política se restringe, em grande parte, aos grupos que têm acesso a uma concepção crítica da escola e da sociedade. Pode-se notar sua forte presença, por exemplo, no meio acadêmico relacionado a pesquisas educacionais e à formação de educadores, assim como entre os próprios educadores escolares e entre os formuladores e analistas das políticas públicas em educação. Essa concepção tem-se firmado nos meios educacionais com maior intensidade nas últimas décadas, resultante, obviamente, de todo um processo histórico de tomada de consciência por parte dos intelectuais ligados ao ensino. Um dos marcos importantes desse processo parece ter sido a crítica à escola, na sociedade contemporânea, levada a efeito, na década de 1970, por teóricos como Illich (1973), Bourdieu; Passeron (1975), Baudelot; Establet (1978) e Althusser (19¾).

Mesmo defendendo ponto de vista contrário ao da primeira posição, não é incomum encontrar-se, também entre os que defendem a necessária ligação entre política e educação escolar, uma visão da política que se identifica com luta entre grupos portadores de interesses divergentes na sociedade. Apenas que aqui já não se trata de uma atividade que deva estar adstrita aos limites do Estado, do partido político ou do poder legislativo, nem se constitui em algo menos digno que não possa estar associado com a prática pedagógica escolar. Pelo contrário, trata-se de usar a própria educação como instrumento de ação política. Talvez ainda marcada pela crítica ao papel da escola como reprodutora das relações sociais, feita na década de 1970, ou mesmo influenciada pelo sentido de política predominante numa sociedade de classes, nitidamente identificado com luta pelo poder, o que se pode notar na prática escolar é a predominância de uma visão identificada com o que poderíamos chamar de concepção restrita1 1 . Falar em concepção restrita não tem o propósito de diminuí-la em sua riqueza teórica, mas apenas o de indicar que ela pode estar contida numa concepção mais ampla. de política. Tal concepção não é exclusiva (posto que se nota, em muitos ambientes, e até mesmo entre os que a empregam, a coexistência de uma concepção mais ampla de política), mas ela tem, sem dúvida nenhuma, uma presença muito importante na escola básica, guiando a ação de muitos educadores e analistas da educação. Na prática escolar, em várias pesquisas de campo que realizamos, essa visão de política aparece com certa insistência, entre os vários sujeitos escolares, particularmente entre aqueles mais envolvidos em reivindicações ou em participação na escola (representantes em conselhos, associações, sindicatos, etc.). No discurso dos depoentes, o termo política parece estar ligado a um ou mais dos três significados seguintes: a) como luta política: é a ação que se empreende visando à conquista (ou preservação) do poder. É político tudo o que se refere ao comando e controle de grupos sociais, de instituições e da própria sociedade; b) como sagacidade, perspicácia, "diplomacia", astúcia: é o uso das diferentes maneiras ou artifícios para agir e para influenciar grupos e pessoas a agirem de acordo com seus interesses. A política aqui diz respeito, enfim, às formas mais adequadas para o acesso ao poder, seja ele representado pelo controle de um Estado ou pelo simples atendimento de uma reivindicação trabalhista; c) como consciência política: é a posse de saberes que propiciem a compreensão da realidade social, como condição para identificar o sentido da luta política. Entre os grupos progressistas, trata-se essencialmente de tomar consciência do estado de injustiça social para empreender a luta contra os opressores.

Como se percebe, os vários significados remetem ao sentido restrito de política, como luta que se deve travar entre contendores na disputa pela posse ou manutenção do poder. Numa sociedade dividida em classes, com o domínio de uns grupos sociais sobre outros ou sobre o conjunto da sociedade, é de se esperar que isso aconteça, sendo a luta entre interesses antagônicos o modo dominante de fazer política. Ao mesmo tempo, onde predomina essa forma de exercer a política, a educação se apresenta como um terreno em disputa, desempenhando o papel de instrumento nas mãos do grupo social ou dos grupos sociais que lograrem mantê-la sob seu controle. Acrescente-se que a visão de educação e a percepção do papel da escola são condicionadas pela visão de mundo e de política que orientam a ação dos grupos contendores.

Embora, mesmo num contexto de luta política, certa qualidade política intrínseca à educação esteja sempre subentendida, observa-se que, quando tomada a política em seu sentido restrito, os atributos políticos da educação são considerados predominantemente externos a ela, ou seja, é prioritariamente a forma de utilizar a educação, não ela intrinsecamente, que lhe empresta caráter político. A pergunta que se pode fazer é quanto às possibilidades de maior explicitação dos atributos políticos intrínsecos à educação e de maior expressão de suas potencialidades, quando, para além de sua conotação restrita, se toma a política num sentido mais amplo, não adstrito a uma sociedade determinada, marcada pela dominação, mas relacionado à própria construção histórica do ser humano.

Em seu sentido estrito, numa sociedade de dominação, devemos admitir que "o conceito de Política, entendida como forma de atividade ou de práxis humana, está estreitamente ligado ao de poder" (Bobbio, in: Bobbio; Matteucci; Pasquino, 1986, p. 954-955). O poder, por sua vez, em sua conotação weberiana, "significa a probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade" (Weber, 1979, p. 43). Esse conceito é adequado para uma situação de dominação humana consubstanciada pela posse do poder de uns sobre os outros. Todavia, se se supõe um horizonte mais amplo, em que a própria superação dessa sociedade possa ser aventada, é necessário um conceito mais abrangente, que possa dar conta do caráter histórico das sociedades humanas.

Como ser histórico, o homem transcende a realidade meramente natural (tudo o que existe independentemente de sua vontade e de sua ação) pela produção de sua própria existência material. Fundado numa postura de não indiferença diante do mundo (Ortega y Gasset, 1963), o ser humano afirma sua vontade criando valores que dão origem a objetivos os quais ele procura realizar pelo trabalho (atividade transformadora adequada a fins (Marx, [19–]). Nesse processo ele se faz sujeito (característica distintiva de sua humanidade), no preciso sentido de autor, de quem atua sobre o objeto para realizar sua vontade, expressa nos valores por ele criados historicamente. Mas esse processo jamais pode ser concebido isoladamente, posto que o homem só se realiza, só pode produzir sua materialidade, a partir do contato com os demais seres humanos, ou seja, a produção de sua existência não se dá diretamente, mas mediada pela divisão social do trabalho. Disso resulta a condição de pluralidade do próprio conceito de homem histórico, que não pode ser pensado isolado, mas relacionando-se com outros sujeitos que, como ele, são portadores de vontade, característica intrínseca à condição de sujeito. Dessa situação contraditória do homem como sujeito (detentor de vontades, aspirações, anseios, pulsões, interesses, expectativas) que precisa, para realizar-se historicamente, relacionar-se com outros homens também portadores dessa condição de sujeito, é que deriva a necessidade do conceito geral de política. Este refere-se à atividade humano-social com o propósito de tornar possível a convivência entre grupos e pessoas, na produção da própria existência em sociedade.

Como se sabe, essa convivência tanto pode dar-se de forma pacífica e cooperativa quanto de maneira conflituosa e dominadora. Esta última forma é a que vigora na sociedade capitalista em que vivemos. Quando isso acontece, a força da estrutura econômica, fundada na opressão e no domínio de uns sobre os outros, leva a crer que esta seja a única forma de conceber a política, absolutizando seu caráter restrito e ocultando outras alternativas, como a de convivência cooperativa e pacífica, capaz de propiciar o desenvolver pleno das subjetividades. Por isso, na perspectiva da transformação social, visando a uma sociedade que supere a dominação humana, faz-se necessária a consideração de um conceito de política que dê conta da nova situação posta no horizonte. Dentro das amplas possibilidades abertas por uma noção ampla de política, destaca-se, no caso, já não mais o conceito de política como luta política, mas o de política como prática democrática. A democracia, todavia, precisa ser entendida para além de seu sentido etimológico de governo do povo ou governo da maioria, para incluir todos os mecanismos, procedimentos, esforços e recursos que se utilizam, em termos individuais e coletivos, para promover o entendimento e a convivência social pacífica e cooperativa entre sujeitos históricos.

Quando se pensa a política como prática democrática, a pergunta que se apresenta, ao considerar a relação entre política e educação, é sobre as limitações de se tomar a educação escolar, especialmente a básica, apenas como instrumento de luta política, e sobre as potencialidades que se abrem para uma concepção de educação, pensada à luz de um conceito amplo de política e, ao mesmo tempo, entendida como prática democrática com atributos intrinsecamente políticos de realização humana.

A consideração do caráter político da educação em seu sentido restrito tem aparecido com certa insistência, entre os atores escolares, na investigação sobre o papel da organização didático-administrativa da escola pública fundamental, que desenvolvo atualmente. Embora não faltem evidências, entre os educadores da escola, de uma concepção mais ampla de política a orientar a própria prática, há uma significativa tendência a apontar os atributos políticos da educação em termos de sua contribuição para a luta política. A esse respeito, o caráter político da educação escolar aparece associado a uma ou mais das três funções seguintes, que guardam certo paralelismo com os significados da política em seu sentido restrito, anteriormente apontados: a) dotar os educandos das camadas populares dos conhecimentos e conteúdos culturais em geral, para que estes possam se antepor às ações dos inimigos políticos. É preciso, para disputar com os dominadores em situação de igualdade, dominar os elementos culturais que estes dominam (Cf. Saviani, 1983); b) fornecer subsídios teóricos para o desenvolvimento da "competência política" dos educandos, de modo que estes possam neutralizar as manobras políticas dos adversários, conquistando espaços de poder, pela defesa competente e arguta dos projetos políticos que interessam aos dominados; c) formar uma "consciência política" nos educandos pela posse de conteúdos doutrinários que elevem seu saber a um nível capaz de perceber a injustiça social e de contestar o poder vigente.

Esse modo de considerar a relação entre política e educação parece supor que os atributos políticos da educação são externos a ela, ou seja, é a forma de utilizá-la, e não ela, intrinsecamente, que lhe empresta conotação política. O político precisa, portanto, ser acrescentado à educação para que ela ganhe esse caráter. Esse modo de pensar parece expressar-se bem na insistência com que os educadores, especialmente aqueles mais comprometidos com uma educação progressista, fazem questão de chamar de político-pedagógico (e não simplesmente pedagógico) o plano que orienta as ações na escola. Procura-se fazer o pedagógico político por uma imputação de algo que estaria exterior a ele. Estivesse suposto no entendimento de todos que o pedagógico é necessariamente político, e não se precisaria insistir no qualificativo, dizendo-se apenas "projeto pedagógico". Ao fim e ao cabo, não deixa de ser bastante saudável para o desenvolvimento da educação todo esse empenho na necessidade de vê-la politicamente, porque isso contribui para tirá-la da posição acrítica de uma neutralidade política que, de fato, não é positiva para os fins da democracia na escola.

Todavia, essa forma de encarar o contributo político da educação não esgota suas potencialidades a esse respeito, visto que deixa na sombra o caráter intrinsecamente político ¾ e mais: intrinsecamente democrático – da ação educativa. Mas isso só pode ser percebido à luz de um conceito também histórico de educação. Esta, em seu significado mais geral e abstrato, consiste na apropriação da cultura humana, entendida esta como aquilo que o homem produz em termos de conhecimentos, crenças, valores, arte, ciência, tecnologia, tudo enfim que constitui o produzir-se histórico do homem. Em sua autoprodução, o homem constrói sua liberdade, por contraposição ao domínio da necessidade natural, ou seja, a tudo aquilo que existe necessariamente, independente de sua vontade e ação. É pela apropriação da cultura que o ser humano, a partir do nascimento, atualiza-se historicamente, à medida que se apropria do que foi produzido pelas gerações anteriores. Nessa apropriação ¾ no duplo sentido de apoderar-se de, mas também de tornar próprio de si, incorporado à sua personalidade, os componentes culturais disponíveis na sociedade em que vive ¾ ele se constrói como ser humano-histórico. Mas, fazer-se homem (histórico) é fazer-se um ser político. É político pois o homem só pode viver politicamente, ou seja, sua existência, como vimos, supõe sempre o plural, a dependência dos demais. Ele só vive se conviver com outros, e isso caracteriza o exercício da política no sentido amplo já mencionado. Como esse fazer-se homem depende necessariamente da educação – é um fazer-se, educando-se – fica patente o caráter intrinsecamente político da ação educativa.

Da mesma forma, pode-se demonstrar que, além de inerentemente política, a educação, como atualização histórico-cultural, é uma prática intrinsecamente democrática. Basta, para isso, que se considerem as características inerentes ao processo pelo qual ela se realiza, ou seja, o processo pedagógico. Esse processo, do ponto de vista da constituição de seres históricos, só pode dar-se supondo a concordância do educando. Tendo por fim a produção de sujeitos, a educação só se realiza afirmando essa condição de sujeito do educando, como um ser de vontade, que é o que caracteriza sua subjetividade histórica; se não o processo não pode realizar-se com êxito, porque fundado em meios que negam o alcance do objetivo. Do mesmo modo que o fenômeno da auto-produção do homem histórico – cuja marca distintiva é a presença do sujeito, dotado de vontade (guiado por valores criados historicamente), que com isso funda sua transcendência da necessidade natural, introduzindo-se no mundo da liberdade humano-histórica ¾, a educação é algo que exige o envolvimento do educando com sua vontade e ação. Educar-se é, a esse respeito, um verbo reflexivo. O educando, a rigor, nunca é educado por alguém, mas sim educa-se pela mediação do educador. Aqui se identifica uma relação em que há sempre o consentimento livre do outro. Sem o consentimento livre do educando, não há educação.

Mas esse consentimento livre do outro como característica intrínseca, obrigatória, da verdadeira educação está indissoluvelmente ligado ao conceito de política no sentido de prática democrática anteriormente mencionado. Na perspectiva política de uma sociedade de dominação, o poder como componente da política aparece no sentido weberiano de imposição da "própria vontade": vontade particular, privada, do restrito grupo que domina. Na perspectiva de uma sociedade democrática ¾ no sentido em que a estamos entendendo ¾ só se pode falar em "poder" sem essa conotação privada; ele continua supondo o consentimento do outro (necessário sempre para a convivência política), mas já não se trata do consentimento a uma vontade privada, mas ao interesse do coletivo, que inclui o do próprio sujeito que consente. "Poder", aqui, passa a ser sinônimo de força, não no sentido de sua imposição, mas como fortalecimento da liberdade, que, longe de ser meramente conquistada ao inimigo, como entende o senso comum, é construída coletivamente como obra humano-histórica.

Em síntese, pode-se considerar a educação como intrinsecamente política numa dupla dimensão: por um lado, é por meio da educação, entendida como atualização histórico-cultural, que o homem se constrói em sua historicidade (historicidade esta que traz inclusa a dimensão política); por outro lado, a educação, fundada na aceitação do outro como legítimo sujeito, apresenta-se como a realização da convivência pacífica e cooperativa que nega a dominação e labora em favor da democracia.

Esse modo de ver a educação tem certamente implicações sobre as reflexões que se possam fazer sobre a administração da escola, especialmente se se tem em mente a sua democratização. A administração, entendida em seu sentido mais geral e abstrato, de "utilização racional de recursos para a realização de determinados fins" (Paro, 1986), tem um caráter mediador que não pode restringir-se a seu papel de controle do trabalho alheio, assumido numa sociedade de dominação. A preocupação com os fins leva necessariamente ao cuidado na escolha e utilização dos meios adequados a alcançá-los. Em se tratando de relações sociais, não é possível alcançar fins promotores da democracia e da afirmação de sujeitos históricos a partir da utilização de meios que não sejam democráticos. No caso da escola, se estamos preocupados com fins educativos, ou seja, de constituição de sujeitos históricos, a forma de atingi-los deve ser, necessariamente, consonante com esses fins, o que exige uma administração escolar democrática.

Do ponto de vista das contribuições que a consideração da condição política da educação pode trazer para a administração da escola pública básica, podem ser destacados três pontos: a) a relevância para a qualidade do ensino; b) a importância para a prática da administração escolar; e c) a contribuição para a teoria da administração escolar.

Quanto à relevância para a qualidade do ensino, é preciso que se parta do conceito amplo de educação visto anteriormente, que não se basta na aquisição do que comumente se entende por "conteúdos", mas diz respeito à apropriação da cultura em seu sentido pleno da qual fazem parte os valores construídos historicamente. Entre estes, os valores relacionados à democracia não são alheios à forma de apreendê-los. Isto porque, ao mesmo tempo em que dizem respeito às relações de convivência pacífica e livre entre sujeitos, eles só podem ser apreendidos pela mediação dessas relações, ou seja, pela educação. Esta, portanto, só poderá concorrer para a apreensão de valores democráticos se for entendida (e realizada) como relação entre legítimos sujeitos, como apontamos anteriormente, a única forma, aliás, de uma ação genuinamente educativa (não impositiva). A educação, assim, constitui-se em autêntica relação social, no sentido preciso e elevado que lhe empresta Humberto Maturana, ao afirmar que "nem todas as relações humanas são relações sociais. São relações sociais somente aquelas que se constituem na aceitação mútua, isto é, na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência" (Maturama, 1998, p. 95).

Conceber a educação sob esse prisma, de uma relação de aceitação mútua, entendendo-a como a única forma adequada à convivência social democrática, é aceitá-la como autenticamente dialógica nos termos apresentados por Paulo Freire (1975). O diálogo supõe a conversa de ambos os sujeitos envolvidos ¾ educador e educando ¾ bem como a oitiva e a consideração, por cada um deles, do que o outro diz. Por essa relação se exerce e se aprende a colaboração ao mesmo tempo em que se aprende e se exerce o político como democracia. A colaboração entre grupos e pessoas é essencial à convivência pacífica e ao desenvolvimento histórico da sociedade. "Não é a luta o modo fundamental de relação humana, mas a colaboração" (Maturana, 1998, p. 34). Pela educação como prática democrática se constrói o político e se concorre para uma sociedade mais cooperativa, mais compartilhada... e mais digna de ser compartilhada.

A importância de considerar a dimensão política da educação e as potencialidades de sua realização como prática democrática na escola está associada, assim, à própria importância da relação pedagógica na convivência social. Sua relevância se mostra tanto mais evidente quanto mais se consideram suas vantagens na obtenção do consentimento social, se comparada à outra opção, a coerção. A comparação entre essas duas alternativas corresponde à que faz Gramsci (1978) entre os mecanismos da "sociedade civil" e os da "sociedade política". Esta última, tomado o conceito de política em seu sentido restrito de luta pelo poder, é a instância da superestrutura na qual o consentimento e a obediência são alcançados pela coerção, enquanto a "sociedade civil" é o plano superestrutural em que vigora a persuasão. A coerção encerra um alto nível de certeza no acatamento da vontade imposta, na medida em que não deixa ao outro nenhuma opção senão a obediência. Mas esse elemento de força representa sua própria debilidade, porque, ao não contar com a vontade livre de quem consente, exige a constante permanência do elemento coercivo. Afastado este, a obediência se transforma em não-aceitação e em rebeldia. Grupo social nenhum, nação nenhuma, por mais extraordinariamente poderoso ou poderosa que seja, conseguirá sentir-se em segurança se contar apenas com a coerção para manter o acatamento de sua vontade. Daí a imprescindibilidade da relação dialógica fundada na persuasão. Esta, à primeira vista, parece bastante frágil, pois não tem o elemento de certeza da coerção, sendo imprevisível o acatamento ou não, pelo outro, da idéia apresentada. Na relação, aquele que pretende persuadir tem de correr o risco de não conseguir seu intento. Mais: corre o risco de ser persuadido do contrário pelo outro. Mas é desse elemento de fragilidade que a relação dialógica tira, na verdade, todo seu vigor: uma vez realizando-se o ato educativo, não é preciso nenhuma vigilância para que o consentimento permaneça. Por não ter sido algo imposto de fora, mas aceito livremente, determinada idéia ou conteúdo cultural incorpora-se a quem o apreende. E isto se deve à forma como se deu: como conteúdo educativo, não foi o educador (simples mediação) que o passou, ou o impôs; foi o educando, como sujeito, que o integrou a sua personalidade, ao educar-se. Esse componente cultural passa a ser algo seu, que o acompanha, não necessitando de nenhum controle externo para existir.

Essas considerações alertam para a necessidade de valorização da educação como instrumento imprescindível para a construção de uma sociedade mais justa. A esse respeito, não deixa de ser paradoxal e preocupante certa conduta de direita que labora precisamente no sentido contrário, ao propor soluções punitivas para os problemas de delinqüência, como se esta fosse gerada pela falta de medidas de força. Costuma-se apelar para maior castigo, maiores punições e maior rigor na aplicação das penas para diminuir a criminalidade e a delinqüência social. Contudo, "não é o medo do castigo que detém o crime na vida social" (Maturana, 1998, p. 83). Os delinqüentes não deixam de transgredir a lei e cometer violência por receio da punição. Se assim fosse, já não haveria delinqüentes. Talvez se devesse procurar a solução em outra parte, perguntando o que leva os bilhões de não-delinqüentes a serem pacíficos. Ver-se-ia que a razão não está no medo da punição. Os pacíficos e não-delinqüentes certamente não são assim por medo da coerção, nem porque nasceram assim, mas fundamentalmente porque constituíram assim suas personalidades, no decurso de suas vidas: educaram-se assim, aprenderam a paz e a não-delinqüência. Obviamente isso não se deu por ação única da escola, posto que grande parte deles nem sequer a freqüentaram: outras instâncias da sociedade, em especial a família, se incumbiram de educar essas pessoas, proporcionando-lhes a apreensão de valores condizentes com a convivência social pacífica. Mas não há dúvida de que a escola, especialmente a básica, cuja função primordial é a universalização da cultura, tem um papel determinante a desempenhar, especialmente quando se pretende articular sua ação com a transformação social.

Quando se atenta para a forma bancária2 2 . Na acepção de Freire (1975), em que o educando se reduz a uma conta bancária na qual se "depositam" conhecimentos. em que, salvo raras exceções, se dá a relação professor-aluno em nossa escola básica, pode-se perceber que será muito difícil contribuir para uma sociedade democrática quando, no momento mesmo da formação do cidadão, da constituição de sua personalidade pela mediação da educação, ainda se aposta numa relação negadora da democracia, na qual o professor tenta ensinar, passando conteúdos para o aluno que apenas os aceita passivamente, para depois reproduzi-los em provas e concursos, desprovidos de qualquer preocupação com a formação integral do sujeito histórico. Como não há democracia sem verdadeiros democratas, e como estes não nascem prontos mas são construídos pela apropriação histórica da cultura proporcionada pela educação, é preciso instaurar um ensino fundado na aceitação mútua, em que o educando desempenha seu papel de educar-se como verdadeiro sujeito político, exercitando, na forma e no conteúdo, a relação pedagógica (democrática) imprescindível para a construção de uma sociedade que não seja fundada na dominação. Se a transformação social, como defendia Gramsci (1978), exige uma "reforma intelectual e moral", a afirmação do caráter democrático da educação é certamente um de seus componentes mais importantes.

Com relação ao segundo ponto mencionado, isto é, à importância da dimensão política (democrática) da educação para a prática administrativa escolar, um aspecto preliminar a destacar é o viés de interpretação presente nos sistemas de ensino, que consiste em considerar como administrativo apenas o que se refere às atividades-meio da escola. Segundo essa visão, seriam objeto da ação administrativa apenas as atividades ligadas à direção escolar, aos serviços da secretaria e outras atividades de manutenção da unidade e de oferecimento de condições para a realização dos objetivos. Todavia, se se considera o caráter mediador da administração, sua ação na escola perpassa todos os momentos do processo de realização do ensino, incluindo as atividades-fim, em especial aquelas que se dão na relação educador-educando, pois a ação administrativa só termina com o alcance do fim visado. Neste sentido, carece de fundamento a dicotomia que às vezes se estabelece entre administrativo e pedagógico, como se o primeiro pudesse estar em concorrência com o segundo, como quando se diz que o pedagógico deve preceder, em importância, ao administrativo. Na verdade, se o administrativo é a boa mediação para a realização do fim e se o fim é o aluno educado, não há nada mais administrativo do que o próprio pedagógico, ou seja, o processo de educá-lo. No procedimento de dicotomização entre pedagógico e administrativo, costuma-se às vezes afirmar que o administrativo atrapalha a realização do pedagógico, numa clara confusão do administrativo com burocrático, no sentido negativo do termo, ou seja, de práticas que se tornam fins em si mesmas, desarticuladas dos objetivos para os quais foram concebidas (Cf. Sánchez Vázquez, 1977). Mas o administrativo, entendido como mediação, é precisamente a negação do burocrático, pois possibilita o alcance do fim, isto é, no caso da escola, a realização efetiva do pedagógico.

A principal vantagem de uma abordagem administrativa da situação de ensino é a percepção da necessidade de articulação coerente entre meios e fins, o que deve levar à constatação de que só é possível uma formação para a democracia se os meios de realizá-la, ou seja, a relação educador-educando, não contradiga esse fim, realizando-se, portanto, de forma democrática. Acrescente-se que o principal indício de uma gestão escolar verdadeiramente democrática é a democracia que se realiza na própria sala de aula. Não é incomum observarem-se escolas em que, não obstante a existência de mecanismos democráticos de participação nas decisões, como eleição de diretores, conselho de escola, grêmio estudantil, associação de pais, e outros, a situação de ensino permanece autoritária, contrariando o preceito administrativo básico de adequação entre meios e fins.

Mas se a situação de ensino se beneficia de uma visão administrativa, o administrativo beneficia-se também de uma abordagem pedagógica, o que significa não haver motivo para não se utilizar o caráter intrinsecamente democrático da educação nas demais instâncias administrativas da escola. A não adoção dessa abordagem tem levado a que a democracia que se pratica no âmbito administrativo escolar fique contida nos limites da democracia meramente formal, praticada no restante da sociedade. Assim, a ação política parece reduzir-se a mecanismos de luta político-partidária, como a "partidarização" da eleição de diretores ou da escolha de representantes no conselho de escola, com a formação de grupos e setores antagônicos para disputar parcelas do poder de decisão na escola. Espelhando-se num modelo restrito de política praticado na sociedade, o mais comum é verem-se os diversos atores escolares enredados numa prática política meramente "eleitoral", com os vícios e problemas semelhantes aos que se verificam na sociedade mais ampla. São muito freqüentes as reclamações sobre a formação de grupos de influência, a ocorrência de protecionismo por parte da direção, do aliciamento de pessoas para apoiarem determinadas causas, da prática de clientelismo e até de corrupção. Quando isso acontece, não é difícil surgirem argumentos contra a democratização da gestão, com a alegação de que essas medidas só tumultuam a escola ou de que as pessoas não estão preparadas para agirem democraticamente. A verdade, porém, é que a essa "democratização" tem faltado o essencial da democracia, ou seja, o exercício da aceitação mútua, presente na relação pedagógica.

Obviamente não se deve cair no equívoco de acreditar que a escola é um mar de tranqüilidade e que nunca será necessária a disputa de posições ou a defesa de pontos de vista contrários aos dos companheiros, ou mesmo o confronto entre interesses diversos. Todavia, não se pode confundir a busca de objetivos na escola com a luta política numa sociedade de dominação. As diferenças de interesses, por exemplo, entre pais e professores, ou entre grupos que disputam a eleição de diretor ou a presidência do conselho de escola, não possuem a radicalidade da diferença de interesses entre classes antagônicas, a ponto de se colocarem em posições opostas, digladiando-se no interior da escola. Se o interesse das partes envolvidas é o ensino de qualidade, a única forma de relação que soma para a democratização da escola é a de aceitação mútua, característica da relação pedagógica.

Preocupados com as dificuldades em estabelecer um clima de colaboração e de igualdade de oportunidades no acesso às tomadas de decisão na escola, educadores e demais elementos da escola, vivamente comprometidos com a democratização da gestão, têm procurado estabelecer regras e criar mecanismos legais e jurídicos os mais adequados possíveis à garantia do direito de todos e ao exercício efetivo da democracia. Essas regras são, sem dúvida nenhuma, necessárias, e é preciso aperfeiçoá-las constantemente; mas elas não são suficientes para caracterizar a democracia na escola. Sem a aceitação mútua como forma de relação e como ideal a ser constantemente perseguido ¾ isto é, como meio e como fim da ação política ¾ não pode haver verdadeira ação democrática. Por isso, além das regras formais (e mesmo para garantir a criação de regras adequadas) é preciso uma concepção democrática (de aceitação do outro como legítimo sujeito) a orientar todas as condutas e a impregnar todos os espíritos na escola. A conseqüência disso poderá ser um maior aproveitamento das ricas potencialidades democráticas da relação pedagógica com o fim de tornar mais democrática a administração escolar. Assim como é preciso "administrar" o pedagógico, para coerir meios e fins e para propiciar eficácia na realização dos objetivos, é preciso "pedagogizar" a administração escolar, para que ela se faça mais dialógica e mais democrática.

Finalmente, quanto à contribuição que a consideração da dimensão política da educação pode trazer para a teoria da administração escolar, o aspecto de maior destaque é a possibilidade de aprofundar a reflexão sobre o tratamento específico que deve ser dado à administração da escola, por contraposição à administração de empresas em geral. Se administração é, em seu conceito mais geral e abstrato, mediação para a realização de fins, e se isso, como já foi mencionado, implica a necessidade de coerência entre meios e objetivos, segue-se que o que condicionará as diferenças entre as várias administrações singulares e que dará especificidade a determinada administração será precisamente a natureza dos fins perseguidos em cada caso. A crítica que se pode fazer à concepção conservadora de administração escolar que aceita a aplicação na escola dos mesmos princípios e métodos da empresa mercantil (porém com as devidas adaptações, pois se reconhece tratar-se de "empresas" diferentes) é a observação de que os objetivos da escola não são apenas diferentes, mas antagônicos aos da empresa capitalista. Nesta, é possível ser administrativamente eficiente, utilizando métodos de dominação, a partir do controle autoritário do trabalho alheio, sem que isso contrarie seu objetivo que é a realização do lucro. O próprio lucro capitalista só se dá por uma relação de dominação sobre o trabalhador, pela apropriação do valor excedente que este produz com seu trabalho. Na escola, todavia, a utilização de métodos de dominação nega o objetivo emancipador de sujeitos humanos, negando ipso facto a própria administração. Além disso, é preciso considerar a própria especificidade do produto escolar que, mais que um bem ou serviço, como ocorre na empresa capitalista, trata-se do ser humano constituído pela educação, um sujeito histórico, de cuja vontade depende a própria realização do produto e, portanto, a eficiência da administração.

Essa questão ganha maior evidência hoje, quando deparamos com a avidez autoritária dos governos de inspiração neoliberal em transformar a escola à imagem e semelhança das leis do mercado. Com o propósito de diminuir custos, isentando-se dos encargos do ensino, procura-se, por um lado, moldar internamente as unidades escolares ao feitio da empresa mercantil, aplicando aí os princípios e métodos da chamada administração geral (que nada tem de geral, pois politicamente interessada em manter a dominação e a desigualdade de posição do trabalho diante do capital), por outro, estimular a busca de recursos junto aos próprios usuários, ou às empresas privadas, cujos interesses não são necessariamente educativos. Num caso e no outro, a ação é movida por uma concepção de educação totalmente desvinculada de sua condição histórica e emancipadora do ser humano pela apropriação da herança cultural a que todos teriam direito. Em vez disso, é vista como mera mercadoria, que deve ser barateada ao máximo, para adequar-se à "clientela" pobre à qual se destina e para não onerar os custos do Estado, que a provê muito a contragosto. Com isso, a escola se vê tomada cada vez mais pela visão e pelas regras de funcionamento do mercado e da competição, completamente contrárias ao desenvolvimento educativo identificado com a emancipação humano-histórica e com a convivência social pacífica e cooperativa. Por mais arraigada que esteja nas mentes e nos comportamentos das pessoas, condicionadas pela forma de se relacionar de nossa sociedade autoritária, "a competição não é nem pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro" (Maturana, 1998, p. 13). Por outro lado, por mais que se fale em mercado livre, não pode haver liberdade onde as leis de mercado são fundamentadas na força dos que possuem sobre os que não possuem. A lei que vige não é a lei humano-histórica, mas a lei da selva, a lei do mais forte. Mercado nenhum pode ser livre, com igualdade de oportunidades, se é a propriedade (desigual) que o dirige.

Contra essa maré montante da mercantilização do ensino e, portanto, da negação da educação escolar, já se verifica, nos últimos anos, um importante movimento de afirmação do pedagógico no interior das escolas, especialmente em sistemas municipais dirigidos por governos populares identificados com a valorização da educação. Todavia, embora haja cada vez mais vozes indignadas a denunciar essa negação em massa do caráter educativo da escola, é a visão mercantil que ainda predomina nas políticas e nas ações do poder dirigente do país, justificando a ênfase que se possa dar ao caráter político da educação e a sua importância na construção da sociedade democrática.

Em 1979, em trabalho que depois seria considerado clássico pelos estudiosos da administração educacional, Miguel Arroyo (1979) alertava para o caráter político da administração da educação. Passadas mais de duas décadas, parece ainda imperioso enfatizar o caráter político da própria educação, como estratégia para afirmar sua condição eminentemente democrática, e para que sua administração, avessa aos interesses de dominação, se faça ao mesmo tempo política e democrática, porque especificamente educativa.

Recebido em 13.08.02

Aprovado em 26.09.02

Vitor Henrique Paro é titular em Educação pela USP. Foi professor titular da PUC-SP e pesquisador sênior da Fundação Carlos Chagas. Atualmente é professor titular na Faculdade de Educação da USP, onde desenvolve investigações na linha de pesquisa "Universalização do Ensino e Democratização da Gestão Escolar".

  • ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado Lisboa: Presença, [19--].
  • ARROYO, Miguel Gonzalez. Administração da educação, poder e participação. Educação e Sociedade, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 36-46, jan. 1979.
  • BAUDELOT, Christian; ESTABLET, Roger. La escuela capitalista 5. ed. México: Siglo Veintiuno, 1978.
  • BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política 3. ed. Brasília: UnB, 1986.
  • BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
  • GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
  • ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas Petrópolis: Vozes, 1973.
  • MARX, Karl. O Capital Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [19--]. v. 1.
  • MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política Belo Horizonte: UFMG, 1998.
  • ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.
  • PARO, Vitor Henrique. Administração escolar: introdução crítica. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1986.
  • SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Filosofia da práxis 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
  • SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1983.
  • WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva 2. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1979.
  • *
    Trabalho apresentado na 25ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu (MG) de 29/9 a 2/10/2002.Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.2, p. 11-23, jul./dez. 2002
  • **
    This work was presented at the 25th Annual Meeting of the ANPED, in Caxambu (MG), 09/29 to 10/02/2002.
  • 1
    . Falar em concepção restrita não tem o propósito de diminuí-la em sua riqueza teórica, mas apenas o de indicar que ela pode estar contida numa concepção mais ampla.
  • 2
    . Na acepção de Freire (1975), em que o educando se reduz a uma conta bancária na qual se "depositam" conhecimentos.
  • Publication Dates

    • Publication in this collection
      11 Feb 2003
    • Date of issue
      July 2002

    History

    • Received
      13 Aug 2002
    • Accepted
      26 Sept 2002
    Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Av. da Universidade, 308 - Biblioteca, 1º andar 05508-040 - São Paulo SP Brasil, Tel./Fax.: (55 11) 30913520 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revedu@usp.br