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O século XXI sem Mariazinha

O Século XXI sem Mariazinha

Ana Mae Barbosa

Escola de Comunicação e Artes – Universidade de São Paulo

Desde que me foi pedido para escrever sobre Mariazinha venho tentando iniciar um texto que expresse o quanto ela nos faz falta e o quanto ela significou para a Arte/Educação no Brasil.

Tudo que eu possa dizer me parece pequeno, insignificante, diante do decisivo papel que desempenhou na revolução educacional das últimas décadas.

Seu sentido de continuidade interna era fundamentalmente comprometido com uma ação em direção à transformação das instituições e da Educação.

Sua capacidade de transformar era sutil, persuasiva e extremamente eficiente, por se basear na ação de tornar alunos e colegas de trabalho conscientes e alertas para valores, estereótipos e preconceitos.

A Revolução Sutil que empreendia não se baseava em bruscas rupturas, mas em uma caminhada sedimentada pela história.

O respeito de Mariazinha pela história e pelo fluxo vital em continuidade pode ser exemplificado com o fato de haver tido como primeiro emprego o cargo de professora na mesma escola onde havia feito o Jardim da Infância. Este seu retornar ao ponto de partida, sempre modificada, renovada, portanto fortalecida, me maravilhou quando li seu memorial, durante o concurso de ingresso que fez em 1999 na USP. Mariazinha teve uma vida dominada pela coerência, mas as instituições não conseguem ser coerentes como algumas pessoas excepcionais que nelas trabalham. Por isso, parece até piada que só em 1999 Mariazinha tenha se tornado efetiva no cargo de professora da USP, depois de anos de trabalho nesta Universidade e depois de haver colaborado, com sua infinita capacidade de revolucionária sutil, para a radical mudança positiva da Faculdade de Educação.

Antes dominada por um exército de conservadores, sisudos e sérios "Homens da Educação", aos poucos a Faculdade de Educação, de um reduto educacional regido pelas regras masculinas, e até mesmo machistas, foi-se transformando em um celeiro de Educadoras (e não Homens da Educação) não menos sérias, qualitativas como pesquisadoras, flexíveis na associação da teoria com a prática e preocupadas com o social. Mariazinha muito contribuiu para a derrocada das verdades absolutas, herdadas do Positivismo e do Modernismo, que reinavam na Faculdade de Educação, e para a criação de um pensamento "relativizado" por diferenças contextuais e culturais. Esta buliçosa Faculdade de Educação que temos hoje na USP, tendo como professores Homens Novos e Mulheres Afirmativas, muito deve a Mariazinha.

Lembro-me das suas primeiras investidas sobre Televisão e Educação (1981-83) e da transformação que operou com seus estudos, suas aulas e conferências. Até a terminologia mudou: de "tecnologia aplicada à educação", os estudos sobre TV e Computador na Educação passaram a se chamar Mídia e Educação.

Seus livros escritos com Heloísa Ferraz estão citados em todas as bibliografias de teses sobre Ensino/Aprendizagem da Arte defendidas nas Universidades, em todo o Brasil.

Brincava com Mariazinha dizendo que ela era "ingrediente" insubstituível de qualquer exame de qualificação de alunos de Arte-Educação, dada sua generosidade em funcionar quase como uma co-orientadora, fornecendo bibliografia e, muitas vezes, recebendo os estudantes para longas conversas.

Nós duas, ambas Arte-Educadoras, embora lidássemos com uma área de dupla entrada, portanto interdisciplinar pela própria natureza e título, conferimos diferentes ênfases ao pêndulo de nossos interesses. Mariazinha era mais ligada à Educação, embora tivesse sido aluna dos cursos de artes visuais da FAAP; eu, entretanto, sempre fui mais ligada à Arte, embora tenha um Doutoramento em Educação. Daí Mariazinha com sua generosidade ter-se empenhado sempre em atualizar minhas leituras sobre Educação. Foi ela quem me iniciou em Nóvoa e Perrenoud. De outros autores, especialmente os franceses, ela, às vezes, já me mandava um xerox, dizendo que aquele capítulo era o que me interessaria.

Sempre comprometida em "ensinar a aprender", ela me cobrava depois, em agradáveis conversas, o estabelecimento de relações das leituras que recomendava com o meu próprio universo bibliográfico, que, em Educação, é mais voltado para a produção americana e inglesa, por contingências vivenciais.

Mariazinha deixou-nos no auge de sua carreira, quando sua influência como educadora de educadores iria se difundir mais ainda entre os orientandos.

Além da sensação de vazio, sua morte me deixou uma terrível sensação de culpa. Por que ela e não eu? Ela estava com maiores condições pessoais e institucionais de operar em favor da Arte/Educação.

Numa terrível ironia do destino, seu livro O educador e o desenho animado que a criança vê (1985) termina com esta frase: "Limiar de mudança, sobretudo da emissão de práticas sociais, a serviço de todos, apontando para a já esboçante alvorada do século XXI".

E o século XXI iniciou-se sem que pudesse contar com a sua extraordinária e já sobejamente comprovada contribuição para as mudanças a serviço de todos!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 1999
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