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Nostalgia de si: melancolia e adoecimento neurológico

Self-nostalgia: melancholy and neurological illness.

Resumo:

Observa-se comumente, na clínica com pacientes neurológicos, quando o adoecimento apresenta sequelas cognitivas, um quadro psicopatológico cujas características permitem articulações com o modelo melancólico freudiano. Com base na análise de casos de pacientes neurológicos incluídos em uma pesquisa teórico-clínica em psicanálise, buscaremos desenvolver uma análise comparativa entre o processo de luto nestes sujeitos, decorrente da percepção de suas limitações cognitivas, e o quadro melancólico. A figura da nostalgia e a especificidade da experiência de perda relacionada às instâncias ideais serão alguns dos aspectos analisados.

Palavras-chave:
adoecimento neurológico; luto; melancolia; psicanálise

Abstract:

It is often observed in clinical care of neurological patients with cognitive sequelae the occurrence of a psychopathological condition whose traits are similar to Freud’s melancholic model. Based on the analysis of neurological cases included in a research in psychoanalysis, we intend to develop a comparative analysis of the mourning process in neurological patients, due to perception of their cognitive sequelae, and melancholic organizations. The nostalgic sentiment and the loss experience related to the ideal instances are some of the aspects analyzed.

Keywords:
neurological illness; mourning; melancholy; psychoanalysis

Os aspectos subjetivos do adoecimento neurológico constituem um objeto de pesquisa e de intervenção clínica sobre o qual a psicanálise, até muito recentemente, pouco se debruçou. Trata-se de um perfil clínico usualmente associado ao campo da neurologia e da neuropsicologia, muito embora a psicanálise disponha de matriz conceitual - seja metapsicológica, seja como teoria da clínica - capaz de oferecer importantes contribuições para fazer avançar o conhecimento sobre as variações na organização psíquica de tais quadros, além da técnica necessária para seu acolhimento na clínica. Deste modo, apresentaremos neste artigo algumas hipóteses relacionadas aos mecanismos psíquicos subjacentes ao quadro clínico do paciente neurológico, apontando alguns traços que o aproximam do modelo melancólico freudiano.

Estas hipóteses derivam de pesquisa teórico-clínica com pacientes acometidos por lesões neurológicas com sequelas, particularmente as que envolvem funções cognitivas.1 1 Trata-se das pesquisas intituladas Aspectos subjetivos do adoecimento neurológico e Do cérebro à palavra: a clínica com pacientes neurológicos, realizadas com o apoio da FAPERJ (processo n. E-26/101.766/2014) e do CNPq (processo n. 305175/2012-2). Estas pesquisas, aprovadas pela Comissão de Ética na Pesquisa da PUC-Rio, baseiam-se na análise de casos de pacientes neurológicos em tratamento psicanalítico no Setor de Psicologia Aplicada da PUC-Rio. Tais lesões cerebrais tanto podem se instalar subitamente após acontecimentos localizados, como no caso de acidentes vasculares encefálicos (AVE) ou traumatismos crânio-encefálicos (TCE), como podem se instalar gradativamente, tal como ocorre nas doenças neurodegenerativas (por exemplo, a doença de Alzheimer). Afecções neurológicas como essas são capazes de produzir no sujeito um impacto traumático de tal ordem, a ponto de abalar a estabilidade das representações sobre si mesmo2 2 O abalo nas representações sobre si mesmo diz respeito, nesses casos, a dificuldades no domínio da “certeza de si” (PINHEIRO; VIANA, 2011). Segundo as autoras, trata-se daquilo que assegura ao Ego a ilusão de unidade, isto é, “um referencial único e estável que funciona como eixo de organização identificatória” (idem, p. 352). que lhe davam unidade e asseguravam sua coesão egoica. Nesses quadros, vemos a desorganização não somente das estruturas e dos sistemas neurais, mas da experiência subjetiva como um todo.

São quadros clínicos capazes de produzir sequelas cognitivas numerosas e variadas. Como efeito das lesões cerebrais, suas sequelas podem atingir funções consideradas essenciais, causando perda da memória, da linguagem, desorientação espaço-temporal, problemas de motricidade, da capacidade de realizar ações cotidianas etc. Todas essas limitações cognitivas podem desencadear sérias dificuldades na capacidade de representar-se a si mesmo. Vários autores vêm assinalando a perda dos referenciais identificatórios - os quais possibilitavam que o sujeito se reconhecesse em sua singularidade e totalidade - como um dos aspectos psicopatológicos mais expressivos ligados ao adoecimento neurológico (LAURENT, 2008Laurent, E. Lost in cognition - psychanalyse et sciences cognitives. Nantes: Cécile Defaut, 2008., OPPENHEIM-GLUCKMAN, 2004Oppenheim-Gluckman, H. Trouble de la pensée et identité. Sens Public: Revue Internationale Web Journal, 2004. Disponível em:<Disponível em:http://www.sens-public.org >. Acesso em: 15 mar. 2009.
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; WINOGRAD, SOLLERO-DE-CAMPOS, DRUMMOND, 2008Winograd, M.; Sollero-de-Campos, F.; Drummond, C. O atendimento psicanalítico com pacientes neurológicos. Revista mal-estar e subjetividade, v. 8, n. 1, 2008, p. 139-170.; KLAUTAU, WINOGRAD, SOLLERO-DE-CAMPOS; 2013Klautau, P.; Winograd, M.; Sollero-de-Campos, F. Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu. Avances en Psicología Latinoamericana, v. 31, n. 1, 2013, p. 610-619.).

Segundo Klonoff (2010Klonoff, P. S. Psychotherapy after brain injury: principles and techniques. Nova York: The Guilford Press, 2010.), nos quadros de lesão neurológica, o sujeito se vê forçado a elaborar dois tipos de perda: as evidências objetivas (como as mudanças de status profissional, a perda de autonomia, entre outras) e os sinais subjetivos (por exemplo, a percepção de si com as deficiências adquiridas). É a percepção ou representação de si que se encontra profundamente abalada nesses casos, uma vez que os referenciais centrais que asseguravam sua coesão egoica antes do adoecimento contrastam de forma inequívoca com a representação de si após o adoecimento. A perda representada pelas sequelas cognitivas é vivida como uma experiência traumática, que divide entre um antes e um depois do adoecimento o que outrora se figurava como o sentimento de continuidade da existência. Com dificuldades para integrar em seu espaço psíquico as representações de si e do mundo, esses pacientes experimentam uma fragilidade do sentimento de integridade narcísica; são as lesões neurológicas abalando radicalmente sua estabilidade egoica (WINOGRAD, SOLLERO-DE-CAMPOS, DRUMMOND, 2008Winograd, M.; Sollero-de-Campos, F.; Drummond, C. O atendimento psicanalítico com pacientes neurológicos. Revista mal-estar e subjetividade, v. 8, n. 1, 2008, p. 139-170.; KLAUTAU, WINOGRAD, SOLLERO-DE-CAMPOS, 2013Klautau, P.; Winograd, M.; Sollero-de-Campos, F. Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu. Avances en Psicología Latinoamericana, v. 31, n. 1, 2013, p. 610-619.).

Uma paciente atendida pela nossa pesquisa, que sofreu um AVC há sete anos e ainda tem algumas sequelas físicas decorrentes do adoecimento, coloca questões que revelam a fragilidade de seu sentimento de existência. “Eu queria uma resposta: se eu fico curada disso ou se eu não fico. Eu não sei se eu sou deficiente ou se eu não sou (...). Eu tenho problema, mas, se eu entrar na condução, ninguém me dá lugar, porque ninguém está vendo nada em mim, não sabe que eu tive o AVC, às vezes eu tenho necessidade de sentar mas tenho que aguentar. Então parece que a gente que teve AVC não existe, porque não tem um passe especial, porque não tem nenhuma coisa... uma ajuda, vamos dizer assim”.

Outro paciente da pesquisa, com afasia em decorrência de um AVC, manifesta o desejo por novos parâmetros identificatórios, processo que parece se assemelhar ao desejo pelo “passe especial” nomeado pela paciente acima. É o que parece explicar o efeito de júbilo produzido nele por uma “carteirinha” com informações sobre o seu estado de saúde, confeccionada pelo setor de fonoaudiologia onde faz tratamento, utilizada por ele em suas atividades cotidianas. “Tive um AVC. Tenho afasia: dificuldades na fala e dificuldades de compreensão. Não tenho doença mental”, atesta a carteirinha, exibida por ele com orgulho, funcionando como um distintivo que lhe certifica certos referenciais sobre si mesmo.

Como se vê, os efeitos subjetivos das limitações neurológicas experimentadas por esses pacientes se traduzem, de forma condensada, pela sensação de “não ser mais como era antes” (KLAUTAU, WINOGRAD, SOLLERO-DE-CAMPOS, 2013Klautau, P.; Winograd, M.; Sollero-de-Campos, F. Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu. Avances en Psicología Latinoamericana, v. 31, n. 1, 2013, p. 610-619., p. 614). Tal ruptura da representação de si exige deles um árduo trabalho psíquico a fim de elaborar a experiência de perda. Entretanto, o trabalho de luto frequentemente se encontra impedido, como veremos, devido às especificidades psicopatológicas do quadro. Com isso, é comum o desenvolvimento de um luto patológico, quadro que se aproxima do modelo da melancolia, tal como Freud o apresenta em 1917. Nesta perspectiva, este artigo parte das assertivas freudianas desenvolvidas em Luto e melancolia (FREUDFREUD, S. Luto e melancolia (1917 {1915}). São Paulo: Cosac Naify, 2011., 1917 [1915]/2011), visando uma análise comparativa entre o luto patológico que observamos nesses pacientes e a melancolia clássica. Por um lado, com base nas indicações de FerencziFerenczi, S. Reflexões psicanalíticas sobre os tiques (1921a). In: Psicanálise III/Sándor Ferenczi. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.(1922/2011), que propôs uma correlação entre o quadro melancólico e o sofrimento psíquico dos pacientes neurológicos, buscaremos corroborar algumas das articulações propostas pelo autor. Por outro, buscaremos assinalar certos elementos psicopatológicos que distinguem esses pacientes do quadro melancólico clássico, a partir de uma análise da figura da nostalgia e a especificidade da experiência de perda relacionada às instâncias ideais.

A melancolia como reação à perda de si

As falhas reiteradas das capacidades cognitivas imprimem no sujeito uma experiência de perda de uma parte de si (KLAUTAU, WINOGRAD, SOLLERO-DE-CAMPOS, 2013Klautau, P.; Winograd, M.; Sollero-de-Campos, F. Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu. Avances en Psicología Latinoamericana, v. 31, n. 1, 2013, p. 610-619.). O paciente neurológico, com o impacto do diagnóstico da doença e de suas sequelas, dá-se conta que perdeu um objeto precioso, muito amado, representado por suas próprias competências intelectuais e aptidões cognitivas. Ao tomar consciência das sequelas, o sujeito reconhece que perdeu uma parte de si da qual não pode desligar sua libido - uma representação de si no passado (antes do adoecimento) que é mantida altamente idealizada, o que traz sérias dificuldades para empreender o necessário trabalho de luto (FERENCZIFerenczi, S. Reflexões psicanalíticas sobre os tiques (1921a). In: Psicanálise III/Sándor Ferenczi. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011., 1922/2011; TADIR; STERN, 1985Tadir, M.; Stern, J. M. The mourning process with brain injured patients. Scand. J. Rehabil. Med ., v. 12, p. 50-52, 1985.; OPPENHEIM-GLUCKMAN, 2004Oppenheim-Gluckman, H. Trouble de la pensée et identité. Sens Public: Revue Internationale Web Journal, 2004. Disponível em:<Disponível em:http://www.sens-public.org >. Acesso em: 15 mar. 2009.
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).

Segundo FreudFREUD, S. Luto e melancolia (1917 {1915}). São Paulo: Cosac Naify, 2011.(1917 [1915]/2011), a perda de um objeto muito amado é fator desencadeante de um trabalho de luto que, quando patológico, pode instaurar o quadro melancólico, mantendo o sujeito fixado ao objeto perdido e impedido de elaborar a perda. Ao discorrer sobre as semelhanças e diferenças entre o luto e a melancolia, Freud esclarece que ambos os quadros seriam resultado da “perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc.” (ibidem, p. 47). Além do fator desencadeante em comum, as características do padecimento psíquico do melancólico e do enlutado também se aproximam. Destacam-se o desânimo doloroso, a suspensão do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar e a inibição de toda atividade. O rebaixamento da autoestima3 3 A noção de autoestima (no original, Selbstgefühl) pode ser traduzida também por “amor-próprio”, “sentimento de si” ou “sentimento do próprio valor”, como explicam os tradutores Marilene Carone (FREUD, 1917 [1915]/2011) e Paulo César de Souza (FREUD, 1914/2010). , segundo Freud, é o traço que diferenciaria os dois quadros, já que as perturbações no sentimento de si estariam presentes somente na melancolia, o que levaria o melancólico a um modo de funcionamento psíquico caracterizado por frequentes autopunições e autoinsultos.

No luto, há uma aceitação da prova de realidade: o objeto amado não existe mais, exigindo do sujeito que retire toda sua libido das ligações com esse objeto, trabalho que se efetua de modo gradual, não sem certa resistência. Como enfatiza Freud, é compreensível que o enlutado se oponha a tal desligamento, já que “em geral se observa que o homem não abandona de bom grado uma posição da libido” (FREUDFREUD, S. Luto e melancolia (1917 {1915}). São Paulo: Cosac Naify, 2011., 1917 [1915]/2011, p. 49). É esta oposição que torna o trabalho de luto demorado e doloroso, devendo ser cumprido paulatinamente, com grande dispêndio de energia. Ao contrário do luto, o processo psíquico próprio à melancolia é considerado, por Freud, como um processo patológico. A intensidade da oposição contra a retirada da libido se expressa, na melancolia, por uma adesividade ao objeto perdido, impedindo que ocorra o desligamento libidinal paulatino, tal como ocorreria no luto normal.

O espectro de experiências de perda objetal - repertoriadas por Freud como fatores etiológicos da melancolia - sinaliza para o fato de que não se trata exclusivamente da perda de um objeto externo, alvo de um maciço investimento amoroso. O quadro melancólico pode se instalar, mais propriamente, nos casos em que ocorreu uma perda mais abstrata, como, por exemplo, nas experiências de perda de um ideal. É para este ponto que Freud chama a atenção: “O objeto não é algo que realmente morreu, mas que se perdeu como objeto de amor” (ibidem, p. 51). No contexto do adoecimento neurológico, é fácil notar que as sequelas cognitivas são capazes de produzir uma experiência de perda de ordem mais abstrata; o sujeito perdeu uma parte de si mesmo que abrange parte de suas antigas aptidões cognitivas. Todas essas perdas podendo, em linhas gerais, ser definidas como perdas de natureza narcísica.

A ferida narcísica representada pelas sequelas cognitivas produz no sujeito um conjunto de sintomas que se aproximam do modo de funcionamento melancólico. Diversos autores sublinham a presença de sintomas melancólicos nesta clínica, ressaltando o abatimento doloroso, assim como a diminuição da autoestima (FERENCZIFerenczi, S. A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral - teoria (1922). In: Psicanálise III/Sándor Ferenczi. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011., 1922/2011; LANGER, 1994; MICHON; GARGIULO, 2003Michon, A.; Gargiulo, M. L’oubli dans la maladie d’alzheimer. Cliniques méditerranéennes, v. 67, n. 1, p. 25-32, 2003.; OPPENHEIM-GLUCKMAN, 2012Oppenheim-Gluckman, H. Atteinte de la pensée et psychopathologie. L’information psychiatrique, n. 5, v. 88, p. 339-344, 2012.; entre outros). Assim, é comum desenvolver-se nesses pacientes um quadro clínico semelhante à sintomatologia clássica da melancolia. O franco abatimento depressivo do paciente neurológico foi enunciado na fala de um paciente afásico: “Eu estou melancológico”, diz ele, enfatizando o sofrimento melancólico engendrado por seu adoecimento neurológico.

As falhas cognitivas fazem com que esses sujeitos experimentem um sentimento de impotência radical, diante do qual reagem com frequentes autorrecriminações e ofensas a si próprios. Diferentemente do quadro de luto, quando, como vimos, o rebaixamento da autoestima não se dá a ver, há nestes casos um recuo de grande parte do montante de libido narcísica, afetando duramente a capacidade de julgamento positivo a respeito de si mesmos. A descrição freudiana do sujeito melancólico, a respeito de sua ferrenha autocrítica, presta-se perfeitamente a uma caracterização do sofrimento do paciente neurológico: “O doente nos descreve o seu ego como indigno, incapaz e moralmente desprezível; ele se recrimina, se insulta e espera ser rejeitado e castigado. Humilha-se perante os demais e tem pena dos seus por estarem ligados a uma pessoa tão indigna” (FREUDFREUD, S. Luto e melancolia (1917 {1915}). São Paulo: Cosac Naify, 2011., 1917 [1915]/2011, p. 53).

Convém acrescentar que, nesses casos, o próprio funcionamento cerebral torna-se alvo das críticas do paciente. Como indica Langer, “o próprio corpo [e, podemos acrescentar, o próprio funcionamento cerebral] pode ser encarado como fazendo oposição à intencionalidade, na medida em que as disfunções colocam obstáculos à vontade própria, ao esforço físico e à execução das ações desejadas” (LANGER, 1994Langer, K. G. Depression and denial in psychotherapy of persons with disabilities. American Journal of Psychotherapy, v. 48, n. 2, p. 181-194, 1994., p. 183, tradução nossa). A confrontação com suas disfunções desencadeia uma experiência de perda de controle, remetida a um funcionamento cognitivo que se mostra a todo tempo refratário aos seus próprios desejos e intenções conscientes. Por isso, essas dificuldades são capazes de produzir um sentimento intenso de vergonha, culpa e humilhação (MICHON: GARGIULO, 2003Michon, A.; Gargiulo, M. L’oubli dans la maladie d’alzheimer. Cliniques méditerranéennes, v. 67, n. 1, p. 25-32, 2003.: OPPENHEIM-GLUCKMAN, 2012Oppenheim-Gluckman, H. Atteinte de la pensée et psychopathologie. L’information psychiatrique, n. 5, v. 88, p. 339-344, 2012., WINOGRAD, SOLLERO-DE-CAMPOS, DRUMMOND, 2008Winograd, M.; Sollero-de-Campos, F.; Drummond, C. O atendimento psicanalítico com pacientes neurológicos. Revista mal-estar e subjetividade, v. 8, n. 1, 2008, p. 139-170.).

Ferenczi e a questão dos ideais

Na literatura psicanalítica, coube a Ferenczi a originalidade da discussão sobre as dificuldades do luto nos quadros de adoecimento neurológico. No artigo A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral (FERENCZI, 1922/2011), o autor apresenta algumas hipóteses metapsicológicas para o estudo das doenças neurológicas, hipóteses que se coadunam com nossas observações clínicas. A este respeito, sugeriu que alguns sintomas psíquicos do adoecimento neurológico deveriam ser entendidos como uma reação melancólica ao dano cerebral. Para Ferenczi, nesses quadros, o declínio catastrófico das diferentes faculdades mentais, vivido como um dano sofrido diretamente pelo Ego, poderia acarretar violentas reações melancólicas. Isso porque o cérebro (e seu funcionamento), como qualquer outra parte do corpo, é objeto de estima, constituindo-se como objeto de investimento libidinal. Retomando a assertiva freudiana de que “a erogenidade é uma característica geral de todos os órgãos” (FREUD,FREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). In: Sigmund Freud: tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 1914/2010, p. 28), podemos incluir aí o cérebro e seu funcionamento. Deste modo, no contexto de perda de capacidades cognitivas, o sujeito pode experimentar o mau funcionamento cerebral como resultado da perda de um objeto amado, experiência passível de desencadear um trabalho de luto ou, em casos malsucedidos, o quadro melancólico.

Quando os sinais de deficiência física e mental aumentam e se multiplicam, quando as funções mais simples e mais naturais do ego ou do organismo acabam sendo afetadas e surgem a disartria, a paralisia dos esfíncteres etc., assim como uma deterioração intelectual, desenvolve-se uma verdadeira melancolia paralítica, acompanhada de insônias, de autoacusações, de tendências suicidas, de perda de apetite e emagrecimento (...). (FERENCZIFREUD, S. Luto e melancolia (1917 {1915}). São Paulo: Cosac Naify, 2011., 1922/2011, p. 168).

A perda pressentida pelo paciente neurológico, segundo Ferenczi, estaria ligada a uma perda da instância ideal. Para o autor: “O melancólico, vítima de uma paralisia geral, chora a perda do seu Ideal-do-ego outrora realizado” (FERENCZIFREUD, S. Luto e melancolia (1917 {1915}). São Paulo: Cosac Naify, 2011., 1922/2011, p. 169). Nesta perspectiva, Ferenczi busca defender a ideia de que os pacientes neurológicos perderiam, com a doença, a imagem de si tal como lhe era assegurada pela instância do Ideal do Ego. Tal instância, como FreudFREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). In: Sigmund Freud: tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (1914/2010) o define, funciona como um padrão que o sujeito estabelece para si próprio. É a imagem de si que se tornou alvo do amor-próprio do sujeito, constituída ao longo do seu desenvolvimento graças às experiências exitosas.

Convém marcar aqui a distinção entre as instâncias do Ideal do Ego e do Ego ideal. Como esclarecem Laplanche e Pontalis (2001)Laplanche, J.; Pontalis, J. B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2011., não há na obra freudiana uma clara distinção conceitual entre os termos. Em certos momentos da obra, a noção de Ideal do Ego é aproximada do conceito de Superego, sendo transformada em instância de censura e consciência moral (FREUDFREUD, S. O Ego e o Id (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)., 1923/1974). No entanto, tomando como base as considerações presentes em Introdução ao Narcisismo (FREUDFREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). In: Sigmund Freud: tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., 1914/2010), vejamos algumas diferenças entre as duas noções, as quais delimitam duas formações intrapsíquicas diferentes. Enquanto o Ideal do Ego representa o ideal almejado que o sujeito erigiu dentro de si, pelo qual mede seu Ego atual, o Ego ideal representa o Ego do narcisismo primário, o qual teria sido dotado de toda preciosa perfeição. Como afirma FreudFREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). In: Sigmund Freud: tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (1914/2010), referindo-se ao estágio do narcisismo primário, inicialmente a criança era o seu próprio ideal. Neste sentido, o Ego ideal é a instância que se mantém neste registro, essencialmente narcísico, de ilusão de onipotência, a qual representa a aspiração, por parte do sujeito, a ocupar este lugar de perfeição narcísica (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001Laplanche, J.; Pontalis, J. B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2011.). A onipotência narcísica remete a um tempo em que, a partir do investimento amoroso dos pais, são atribuídas à criança todas as perfeições e qualidades absolutas, o que permite a ela ocupar o lugar de “His Majesty the Baby” (FREUDFREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). In: Sigmund Freud: tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., 1914/2010, p. 37). Na vida adulta, entretanto, as referências aos valores compartilhados obrigam o sujeito a submeter-se às exigências da cultura, forçando-o a renunciar à ilusão de onipotência narcísica. O sujeito é levado assim a renunciar sua “megalomania antiga”, submetendo-se às injunções da realidade (FREUDFREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). In: Sigmund Freud: tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., 1914/2010, p. 110). É neste registro que funciona a instância do Ideal do Ego, entendida como nova formação psíquica que, submetida ao princípio de realidade, funcionaria como substituta do narcisismo perdido da infância. Tendo em vista que o sujeito não pode manter a perfeição narcísica que desfrutara na infância (mesmo que imaginariamente), cabe renunciar a ela para seguir em busca de um novo elevado Ideal do Ego, que venha a funcionar como um modelo que o sujeito projeta diante de si e com o qual compara seu Ego atual (FREUDFREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). In: Sigmund Freud: tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., 1914/2010).

Como veremos a seguir, nossa hipótese é a de que os pacientes neurológicos estariam mais remetidos à instância do Ego ideal do que ao Ideal do Ego, quando se trata da experiência psíquica da perda de si determinada pelo adoecimento. Observamos no discurso desses sujeitos a referência a uma perda cujo feitio ganha um colorido mais idealizado, para além do padrão estabelecido pelo Ideal do Ego, cuja regulação responde ao princípio de realidade.

Para esclarecer a questão dos ideais no adoecimento neurológico, convém destacar que esses pacientes diferem da melancolia com relação a um aspecto de seu discurso. Lembremos que, segundo Freud, os melancólicos supõem que o rebaixamento do Ego - por eles julgado como “indigno, incapaz e desprezível” - seria uma característica mais geral de sua personalidade: desde sempre, a indignidade expressaria uma verdade a respeito deles mesmos, isto é, eles estendem sua autocrítica severa ao passado, afirmando peremptoriamente que jamais foram melhores (FREUDFREUD, S. Luto e melancolia (1917 {1915}). São Paulo: Cosac Naify, 2011., 1917 [1915]/2011). Já com os pacientes neurológicos, o mesmo não ocorre, na medida em que demarcam um momento ou período de corte, ou seja, o fator definitivo que teria deflagrado todo o seu mal: o acontecimento e/ou o agravamento da doença neurológica. Neles, observa-se uma forma de reverência à imagem de si no passado, reverência presumida no discurso remetido a um tempo idealizado do antes-da-doença.

Uma paciente da pesquisa, por exemplo, que sofre com a perda grave e irremediavelmente progressiva da linguagem decorrente do quadro de Afasia Progressiva Primária, apega-se às rememorações que aludem à representação de um Ego idealizado do passado. Uma lembrança da infância, comunicada em análise, pareceu trazer implícita a ideia de uma perfeição narcísica no que tange às suas competências linguísticas pregressas. Na escola, diz ela, memorizara todas as capitais da América do Sul e também as capitais de outros continentes, não tendo dificuldade alguma em armazenar e evocar as informações adquiridas. Contou que aprendera inclusive o nome de um lago no exterior que, muito mais tarde, quando adulta, chegou a visitar, lembrando-se vivamente das lições da escola. Mas hoje diz ressentir-se por mal conseguir recordar ou pronunciar a palavra completa. Na sessão de análise, ao relatar esta lembrança à analista, esforçou-se inutilmente para lembrar o nome do lago, trocando sílabas insistentemente, frustrando-se e irritando-se com sua inaptidão para recordar a palavra. Deu leves socos na cabeça, um gestual de autoflagelo recorrentemente utilizado nas situações em que constatou, com muito sofrimento, sua própria impotência. Pranteava a perda de um Ego idealizado do passado, dotado imaginariamente de um acervo extremamente abrangente de conhecimento e habilidades intelectuais, o qual contrastava radical e dolorosamente com a percepção das perdas gradativas e relativamente acentuadas da linguagem, devidas ao adoecimento.

Visando aprofundar esta discussão, vejamos a noção de crença narcísica, formulada por Pinheiro, Quintella e Verztman (2009), que nos oferece uma valiosa contribuição ao indicar uma modalidade de reação à perda que se distinguiria tanto do luto quanto da melancolia. Os autores caracterizam a organização psíquica do deprimido, que, à diferença do enlutado e do melancólico, permaneceria fixado à crença narcísica, isto é, ao júbilo da imagem de si tal como fora forjada pela idealização parental. O deprimido reivindicaria um retorno ao estado de onipotência narcísica. Segundo os autores, o elemento discursivo próprio dessa configuração subjetiva poderia ser descrito nos seguintes termos: “Eu já fui algo ou alguém e hoje eu não sou mais”. Há neles uma fixação à reivindicação de retorno ao seu próprio modelo narcísico ideal, a qual redundaria na constatação de que “se não sou mais o que fui (em outras palavras, se não sou o todo da relação ego-ideal), não quero mais nada” (PINHEIRO; QUINTELLA; VERZTMAN, 2009Pinheiro, T., Quintella, R.; Verztman, J. Distinção teórico-clínica entre depressão, luto e melancolia. Psicologia clínica, v. 22, n. 2, p. 147-168, 2010., p. 161).

É o que podemos notar nos sujeitos incluídos nesta pesquisa. São pacientes que se projetam no passado e se mantêm fixados à instância do Ego Ideal, agarrados à ilusão de terem sido dotados, antigamente, em um antes-da-doença, de toda a perfeição narcísica. A superestimação das lembranças do passado, ou mais especificamente, a rememoração repetida de que “eu já fui algo ou alguém e hoje não sou mais” (ibidem, p. 148), visam dar consistência a uma imagem de si absoluta e sem falhas. Se, de um lado, o sujeito constata a impotência do Ego - as perdas cognitivas se fazendo perceber continuamente nas falhas de suas funções egoicas -, por outro, defensivamente, o sujeito se aferra à ilusão de um Ego Ideal perdido, graças às lembranças de si no passado que lhe atestariam a existência pregressa de um Ego grandioso.

É possível descrever tal predisposição nostálgica nos termos da economia libidinal. FerencziFerenczi, S. Para compreender as psiconeuroses do envelhecimento (1921). In: Psicanálise III/Sándor Ferenczi. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. (1921/2011), ao se debruçar sobre a análise dos quadros psicopatológicos no envelhecimento, esclarece como se daria a redistribuição da libido nos casos de demência senil, explicação que nos fornece indícios para compreender a economia libidinal própria aos pacientes neurológicos.

Parece totalmente plausível explicar a perda frequente da capacidade de registrar novas impressões sensoriais quando, por outro lado, há conservação de lembranças antigas, não por alterações histopatológicas do cérebro, mas em consequência do empobrecimento da libido objetal disponível: as lembranças antigas devem sua capacidade de reprodução à viva nuança afetiva que, vestígio da libido ainda intacta, permanece ligada a elas. (FERENCZIFerenczi, S. A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral - teoria (1922). In: Psicanálise III/Sándor Ferenczi. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011., 1921/2011, p. 161).

Talvez mais do que a presença de um vestígio da libido nas representações do passado, encontremos nos casos aqui estudados o superinvestimento libidinal de uma imagem idealizada de si, herdeira do narcisismo primário, a qual se traduz por um exagerado sentimento nostálgico. Partindo desta hipótese, seguiremos com a análise da figura da nostalgia, uma vez que sua presença se faz notar de forma expressiva. Trata-se de um conteúdo afetivo que se mostra inseparável da análise dos aspectos subjetivos do adoecimento neurológico.

O sentimento nostálgico

Lambotte, ao analisar a noção de nostalgia, aproximando-a do campo teórico psicanalítico, procura marcar a distinção entre esta noção e a especificidade da melancolia. A autora descreve o sentimento nostálgico como um estado psíquico que produz uma aspiração dolorosa de retorno a um passado saudoso, cuja satisfação perdida é recorrentemente evocada pela fantasia. A origem etimológica do termo deixa claro seu sentido. Provém das palavras gregas nostos (retorno) e algos (sofrimento), tendo sido introduzida na nosologia médica no século XVII para designar uma doença próxima à melancolia, cujos sintomas de tristeza e letargia seriam explicados exclusivamente pelo desejo de retorno à pátria, ao país de origem. Do mesmo modo como ocorre na melancolia, com relação ao objeto perdido, o indivíduo nostálgico não é capaz de se interessar por nada, a não ser por essa aspiração intensa de retorno (LAMBOTTELambotte, M.-C. La melancolie: études cliniques. Paris: Ed. Economica, 2007., 2007).

O interesse pela noção de nostalgia por parte do campo psicanalítico se justifica, segundo Lambotte (idem), pelo fato desta se aproximar de outros mecanismos psíquicos comumente examinados pelas pesquisas psicanalíticas. Sob a rubrica da nostalgia, diz ela, seria possível designar o desejo de retorno ao infantil, seja ao paraíso perdido dos amores infantis, seja à onipotência narcísica, ou mesmo, em última instância, o retorno a uma unidade harmoniosa perdida, representada pela fusão com o objeto materno.

Um bom exemplo de sentimento nostálgico está no testemunho de Stefan Zweig sobre sua Viena de ontem, ensaio escrito quando residia em Londres, exilado por ocasião da 2a Guerra Mundial. Ao mergulhar em suas lembranças, Zweig descreve uma cidade ideal, capaz de acolher indiscriminadamente imigrantes de várias origens, característica que parece ter sido destacada para distingui-la da ideologia do antissemitismo. Valoriza a capacidade vienense de acolher a diferença, cidade supostamente livre de qualquer traço de narcisismo da pequena diferença. Lá, diz ele, “o que vinha de fora não era considerado hostil, antinacional, não era arrogantemente rechaçado como algo não alemão, não austríaco, e sim venerado e procurado” (ZWEIGZweig, S. Viena de ontem. In: Zweig, S. O mundo insone e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2013., 1940/2013, p. 282). A isso, acrescenta: “Só por meio da mescla os contrastes perdiam sua severidade, tudo se tornava mais ameno, mais educado, conciliador, solidário, amável - ou seja, mais austríaco, mais vienense” (idem). Vemos aí a natureza vienense ser claramente esboçada em colorido nostálgico, um traço que, segundo Dines (2013Dines, A. Um gênero inconfortável. In: Zweig, S. O mundo insone e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.), biógrafo de Zweig, pode ser considerado a marca registrada do autor.

O que nos interessa assinalar, nesta breve digressão, é o fato de o sentimento nostálgico de ZweigZweig, S. Viena de ontem. In: Zweig, S. O mundo insone e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. (1940/2013) referido a uma Viena de ontem se apresentar como reação ao corte abrupto e violento da guerra. Fato que se assemelha, em intensidade, ao aspecto inesperado e disruptivo do golpe narcísico produzido pela percepção das sequelas cognitivas de um adoecimento neurológico. A perda de uma parte de si - uma das partes mais estimadas, representada pelas nobres funções cognitivas - produz, como assinalamos, um corte violento no próprio Ego. Como resposta, desfaz-se a imagem de si tal como o sujeito outrora se identificava e regride-se a uma representação idealizada do Eu de ontem, o Ego Ideal, ao qual se liga o afeto nostálgico. Isto é, recorre-se a um processo de idealização de si no passado ao qual se contrapõe, de forma radical, o Ego atual e suas disfunções.

A medida defensiva da auto-observação

Está claro que, nesses casos, tal como na melancolia clássica, uma parte do Ego se coloca contra a outra, julgando-a criticamente e tomando-a como objeto. Presume-se aí um conflito violento entre o Superego e o Ego atual. Nas psicopatologias decorrentes de um adoecimento neurológico, como vimos, observa-se, de um lado, a imagem que o sujeito tem de si no presente - o Ego atual, figura da impotência - e, de outro, a imagem ideal projetada no passado, modelo pelo qual o Superego mede seu Ego atual. Verifica-se, nos casos atendidos na pesquisa, que a impotência do Ego torna-se alvo do julgamento severo do Superego. O funcionamento do Superego, por meio do qual “o ego se avalia, que o estimula e cuja exigência por uma perfeição sempre maior ele se esforça por cumprir” (FREUDFREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise (1933 [1932]). Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22)., 1933 [1932]/1974, p. 84), apresenta aqui traços mais severos. Se a ideia de uma aspiração ao aperfeiçoamento, implícita na assertiva freudiana, encontra obstáculos no caso dos pacientes neurológicos (a autopercepção do mau funcionamento neurocognitivo põe em xeque tal ideia), cabe a eles fixar-se defensivamente no absolutismo de uma perfeição a ser remetida a um tempo antes-da-doença.

Cabe lembrar que uma das formulações freudianas do Superego o define como sede da função egoica de auto-observação: “Observar é apenas uma preparação do julgar e do punir” (FREUDFREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise (1933 [1932]). Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22)., 1933 [1932]/1974, p. 78). Assim, nos pacientes neurológicos, verifica-se comumente atitudes de rigidez comportamental que visam um controle compulsivo das disfunções (DUMONT; FAYOL; CARRIÈRE, 2012Dumont, J. J, Fayol, P.; Carrière, H. Abords psychothérapeutiques des traumatisés crâniens. L’information psychiatrique, v. 88, n. 5, p. 353-360, 2012.). Nessa atitude, a atividade superegoica de auto-observação ganha um caráter narcísico.4 4 O caráter narcísico da função de auto-observação foi sublinhado por Ferenczi a respeito do fenômeno dos tiques. Estes seriam derivados de ações estereotipadas que se caracterizam por uma atividade de “observação hipocondríaca de si” (FERENCZI, 1921a/2011, p. 89). A auto-observação narcísica consistiria, assim, na tendência exagerada para registrar constantemente os próprios processos psíquicos ou somáticos. A auto-observação se traduz aqui por um ato contínuo de vigiar-se com o objetivo cruel e impossível de controlar as falhas que revelam a impotência do Ego atual.

O interesse excessivo pelas próprias (in)habilidades cognitivas, somado à excessiva exigência superegoica, acaba por perturbar a performance cognitiva do sujeito. O fenômeno do “branco do pensamento”, por exemplo, é comum nesses pacientes. É como se houvesse uma paralisia do pensamento justamente quando o sujeito se sente forçado a rememorar; a auto-observação da própria (in)capacidade vindo a funcionar como um sério obstáculo para a evocação dos conteúdos mnêmicos e da linguagem, por exemplo. O que se passa aqui é que o acirramento da auto-observação parece trabalhar no mesmo sentido da deterioração neurocognitiva decorrente da doença, ou, dito de outra forma, acentuando as disfunções e as dificuldades em um moto contínuo ainda mais mortífero, fazendo com que o sujeito encontre obstáculos adicionais ao tentar alguma fluidez na associação dos conteúdos representacionais.

O caráter compulsivo da auto-observação deve ser entendido, neste ponto de vista, como uma modalidade de defesa erigida para evitar um temor muito mais terrível: o aniquilamento do Ego. A angústia de aniquilamento de si apresenta-se nesses casos de forma ruidosa e extremamente intensa, uma vez que a perda narcísica experimentada a partir da percepção das sequelas cognitivas aponta para a ameaça real de aniquilamento, pois o progresso da doença, sobretudo nas síndromes neurodegenerativas, leva, de fato, à morte. Com a percepção da degradação cognitiva, irrompe no sujeito um temor de perda da unidade integrada de seu Ego, temor que justifica a criação de defesas bem organizadas a fim de impedir que sobrevenha uma experiência psíquica de colapso.

Como ensinou Winnicott, o medo do colapso (breakdown) designa uma experiência psíquica relacionada a uma bancarrota subjetiva, a qual se traduziria por uma falência do Ego unitário. O sujeito teme ser assim invadido por angústias inomináveis, entre elas, a angústia de retorno a um estado de não-integração, a sensação de despedaçamento ou despersonalização e outras angústias que seriam classificadas como psicóticas (WINNICOTTWinnicott, D. W. O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê (1960). In: Winnicott, D. W. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 2011., 1960/2011; 1974/2000Winnicott, D. W. La crainte de l’effondrement (1974). In: Winnicott, D. W. La crainte de l’effondrement et autres situations cliniques. Paris: Gallimard, 2000.).

O funcionamento psíquico dos pacientes neurológicos, cujo pensamento os mantém fixados no julgamento e na observação de si, parece ter um objetivo autoprotetor com a finalidade de encobrir o temor do colapso. Se, por um lado, devemos compreender as angústias de aniquilamento ou de despersonalização como o elemento irrepresentável central da experiência do adoecimento neurológico, por outro, não podemos deixar de levar em conta a autenticidade dessa ameaça de falência de si. Diante da realidade da deterioração cognitiva, o sujeito precisa erigir estratégias de defesa contra tal pavor, seja através do processo de auto-observação narcísica, seja por meio da rememoração de uma suposta existência idílica e ideal.

Considerações finais

A violência implicada no adoecimento neurológico, as perdas sofridas pelo Ego, o impacto sobre a organização psíquica e suas relações intersubjetivas são todos aspectos do sofrimento subjetivo presente nesses quadros clínicos que justificam uma intervenção psicoterapêutica. Com a sensação de um Ego em colapso, a coesão egoica é buscada através de uma fixação às representações de si idealizadas do passado, o que é fonte de intenso sofrimento psíquico. Diante do comprometimento neurológico que implica a perda de capacidades cognitivas tão valorizadas, o trabalho psicanalítico deve poder favorecer certo desinvestimento das representações idealizadas do Ego ideal, possibilitando um trabalho de luto da parte de si perdida, a fim de que o paciente possa elaborar as perdas sofridas com o adoecimento.

Retomemos, para concluir, algumas das assertivas freudianas relativas ao trabalho de luto (FREUDFREUD, S. Luto e melancolia (1917 {1915}). São Paulo: Cosac Naify, 2011., 1917 [1915]/2011). Freud o define como trabalho psíquico em reação à perda objetal. Ao contrário de um mecanismo de negação da perda, trata-se de um movimento que consiste em tornar consciente a perda sofrida, com a aceitação da prova de realidade, de modo a incluir o objeto perdido no contexto das representações significativas do sujeito. Assim, após trazer à consciência as recordações ligadas ao objeto perdido, o enlutado pode promover um gradual desligamento da libido deste objeto, a fim de que, no final do processo, o mundo e o próprio sujeito - os quais haviam se tornado, durante o luto, pobres e vazios - sejam novamente investidos. Neste sentido, o trabalho psicanalítico com esses pacientes, ao possibilitar certa abertura para o luto, pode dar condições para o sujeito esboçar para si mesmo novos ideais, com os quais possa vir a se reconhecer. Para tanto, um trabalho analítico que promova certa “benignização do superego” (LIMA SILVA, 2004LIMA SILVA, P. S. Onde o superego vocifera, o ego deverá falar: questões especiais na supervisão psicanalítica. Cadernos de Psicanálise, v. 26, n. 17, p. 157-172, 2004.) é condição fundamental para que o sujeito possa investir em sua capacidade de “empatizar consigo mesmo” (MINERBO, 2015MINERBO, M. Contribuições para uma teoria sobre a constituição do supereu cruel. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 49, n.4, p. 73-89, 2015.). Se o adoecimento neurológico era vivido como um corte violento na coesão egoica do sujeito, o trabalho analítico deve favorecer certa conciliação entre as partes de si que representam o Ego de antes e o Ego atual, tecendo as partes em uma unidade - um processo de apropriação subjetiva das limitações e disfunções decorrentes do adoecimento.

Referências

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  • Zweig, S. Viena de ontem. In: Zweig, S. O mundo insone e outros ensaios Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
  • 1
    Trata-se das pesquisas intituladas Aspectos subjetivos do adoecimento neurológico e Do cérebro à palavra: a clínica com pacientes neurológicos, realizadas com o apoio da FAPERJ (processo n. E-26/101.766/2014) e do CNPq (processo n. 305175/2012-2). Estas pesquisas, aprovadas pela Comissão de Ética na Pesquisa da PUC-Rio, baseiam-se na análise de casos de pacientes neurológicos em tratamento psicanalítico no Setor de Psicologia Aplicada da PUC-Rio.
  • 2
    O abalo nas representações sobre si mesmo diz respeito, nesses casos, a dificuldades no domínio da “certeza de si” (PINHEIRO; VIANA, 2011PINHEIRO, T.; VIANA, D. Losing the certainty of self. American Journal of Psychoanalysis, v. 71, n. 4, p. 352-360, 2011.). Segundo as autoras, trata-se daquilo que assegura ao Ego a ilusão de unidade, isto é, “um referencial único e estável que funciona como eixo de organização identificatória” (idem, p. 352).
  • 3
    A noção de autoestima (no original, Selbstgefühl) pode ser traduzida também por “amor-próprio”, “sentimento de si” ou “sentimento do próprio valor”, como explicam os tradutores Marilene Carone (FREUD, 1917 [1915]/2011) e Paulo César de Souza (FREUD, 1914/2010).
  • 4
    O caráter narcísico da função de auto-observação foi sublinhado por Ferenczi a respeito do fenômeno dos tiques. Estes seriam derivados de ações estereotipadas que se caracterizam por uma atividade de “observação hipocondríaca de si” (FERENCZI, 1921a/2011, p. 89). A auto-observação narcísica consistiria, assim, na tendência exagerada para registrar constantemente os próprios processos psíquicos ou somáticos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2016
  • Aceito
    25 Nov 2017
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