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Epidemiologia no século XXI: perspectivas para o Brasil

Epidemiology in the XXIst century: prospects for Brazil

ARTIGO ESPECIAL SPECIAL ARTICLE

Epidemiologia no século XXI: perspectivas para o Brasil* * Conferência apresentada ao 4º Congresso Brasileiro de Epidemiologia; 1998 ago 1-5; Rio de Janeiro, Brasil.

Epidemiology in the XXIst century: prospects for Brazil

Rita Barradas Barata

Departamento de Medicina Social, Faculdade de Ciências Médicas, Santa Casa de São Paulo. Rua Dr. Cesário Motta Jr., 61 - 5º andar; 01221-020 São Paulo, SP - Brasil; E-mail: ch.medsoc@santacasasp.org.br

Apesar do impulso permanente que os epidemiologistas, habitualmente tem, de fazer previsões e predições a partir de suas observações, tais procedimentos mostram-se sempre arriscados na medida que a estrutura de determinantes e a configuração dos processos de gênese das integrais saúde-doença-cuidado são extremamente variáveis e rapidamente modificáveis. Assim sendo, a tarefa de abordar as perspectivas para a epidemiologia brasileira no próximo século parece comportar riscos.

Ao invés de realizar exercícios de projeção e futurologia podemos tratar dos desafios que se colocam para a epidemiologia em três diferentes planos de análise: o plano teórico, o plano ético e o plano "práxico".

No plano teórico, abordaremos os aspectos mais relevantes da crise da ciência moderna e suas repercussões no campo da epidemiologia, destacando as propostas de superação. No plano ético, trataremos dos desafios colocados pelas desigualdades sociais e a iniquidade em saúde enquanto objeto privilegiado para uma ciência epidemiológica instituída a partir da práxis e comprometida visceralmente com os problemas da sociedades nas quais esse saber se exerce. Finalmente, no plano "práxico", destacaremos as relações entre a epidemiologia e o campo da saúde coletiva, privilegiando a aplicação dos conhecimentos e do raciocínio epidemiológicos na solução dos problemas de saúde dos grupos humanos.

A crise da ciência moderna

A ciência desencanta o mundo; tudo o que ela descreve se encontra irremediavelmente reduzido a um caso de aplicação de leis gerais desprovido de interesse particular. Esta é, no dizer de Prigogine e Stengers1 a principal característica da ciência moderna. Tal processo de desencantamento visa tornar o mundo o domínio dos homens. Entretanto, nesse processo de desencantamento "nosso mundo de percepções sensíveis e qualidades, mundo no qual vivemos, amamos e morremos" é substituído pelo "mundo da quantidade, da geometria deificada, no qual há lugar para tudo menos para o homem" (Prigogine e Stengers1 1997).

A ciência moderna nasceu da ruptura da aliança animista com a natureza presente no pensamento mítico e religioso. A aplicação do modelo newtoniano, das leis da dinâmica, a todos os fenômenos da natureza pressupõe a existência de um Universo estático e a-histórico, uma natureza indiferente na qual todos os fenômenos se equivalem; uma realidade plana, homogênea, sem relevo. A obsessão pela descrição em um nível elementar, simples, porém fundamental, capaz de unificar todos os campos científicos só foi realmente rompida com a termodinâmica, já no final do século XIX (Prigoginee Stengers1 1997).

A ciência clássica constitui-se como o conhecimento acerca de objetos materiais discretos, isoláveis, subsistentes por si mesmos sem a interferência do sujeito que os observa. A análise, processo de fragmentação do real, visa decompor os fenômenos, evidenciando os elementos mais simples de sua configuração. A explicação científica constitui-se de regras simples de operação, isto é, leis universais construídas a partir de relações entre algumas variáveis cujas condições iniciais são conhecidas e permitem, portanto, a previsão de todos os estados subseqüentes (Morin2 1977).

Essas características do objeto científico construído pela física clássica e estendidas para os demais campos do saber, dão origem à lógica conjuntista-identitária, isto é, aquele sistema de lógica regido pelos princípios da identidade, da não -contradição e do terceiro excluído, aplicáveis a objetos-eventos discretos, identificáveis e isoláveis, capazes de serem incluídos/excluídos em agregados ou conjuntos classificatórios (Castoriadis3 1987; Morin4 1991).

As teorias racionais são sistemas de idéias coerentes, cujos elementos estão articulados segundo preceitos lógicos formais, cujos enunciados não admitem contradição e são passíveis de verificação. O pensamento racional só admite, como formas válidas de inferência, a dialógica indução/dedução, freqüentemente operando a separação irreconciliável de cada um desses pólos (Morin4 1991).

A emergência da ciência é marcada pela ruptura com a cultura humanista que, até então, havia orientado a reflexão filosófica sobre as relações do homem com a natureza. Ao caráter antropocentrado, contextualizado e valorativo da cultura humanística, a cultura científica irá contrapor a especialização, a neutralidade do observador, a formalização, a redução e a disjunção (Morin4 1991).

O exercício da ciência normal no interior de um paradigma científico tende a tornar-se uma prática doutrinária mais do que crítica porque: a coerência interna não permite a falsificação das proposições e leis; o sistema de axiomas é soberano; o princípio de exclusão impede que fenômenos que não se ajustam às características definidas para os objetos sejam considerados; o que é excluído torna-se um ponto cego; as regras de funcionamento são relativamente ocultas e invisíveis, além de serem constituintes orgânicas da visão de mundo compartilhada pela comunidade científica. Por último, um paradigma sempre mantém relações antinômicas com outros paradigmas, isto é, eles são ambos verdadeiros, não sendo possível decidir racionalmente por uma das alternativas existentes (Morin4 1991; Kuhn5 1975).

A crise de paradigma surge quando se acumulam as fissuras, erosões e corrosões no seu edifício teórico. Kuhn5 (1975) denomina de anomalias o surgimento de fenômenos que não podem ser adequadamente explicados no interior do paradigma dominante. Almeida Filho6 (1994) acrescenta os paradoxos, os limites e os pontos cegos entre as ocorrências que acabam por determinar a substituição do paradigma dominante.

No caso da física clássica, a primeira ruptura do paradigma da dinâmica ocorreu com os estudos sobre o calor e a formulação das leis da termodinâmica que rompem com as idéias da reversibilidade, determinismo e equilíbrio, introduzindo na explicação científica a ordem por flutuação e a irreversibilidade. A teoria da relatividade aprofunda ainda mais a crise instalada pela termodinâmica, provocando a substituição do paradigma newtoniano. A partir da relatividade o comportamento dos fenômenos da natureza serão diferenciados segundo a escala física; o observador passa a pertencer obrigatoriamente ao sistema observado e as condições iniciais não podem ser consideradas irrelevantes. A mecânica quântica, por sua vez, representa novo aprofundamento das mudanças, introduzindo na ciência a relação de incerteza e o princípio da complementaridade (Prigogine e Stengers1 1997).

As noções de turbulência, instabilidade e desequilíbrio, relacionadas com a segunda lei da termodinâmica e a produção de entropia, na biologia estarão relacionadas com a criação de ordem e organização. Na ciência do século XX progressivamente os objetos simples serão substituídos pelos sistemas ou organizações que são unidades complexas, totalidades, unidade da diversidade. Bachelard7 (1986) afirma, de maneira emblemática, que o simples é sempre o simplificado, recusando assim o reducionismo das explicações mecânicas.

Após a ruptura com o reducionismo mecanicista e a derrota das concepções vitalistas a vida passa a ser estudada como fenômeno hipercomplexo, isto é, como um sistema aberto em permanente desordem constituído pelo jogo de ações aleatórias (acaso) e com diminuição das restrições impostas pelas necessidades. Por seu componente físico-químico, pertence à physis e, por seu componente cibernético, caracteriza-se como organização (Morin8 1973).

As tentativas de superação da crise e do esgotamento da ciência moderna fazem-se em duas direções bastante diversas. De um lado, busca-se a ultrapassagem dos limites através da unificação dos métodos ou pela redução de todos eles a um só, ou seja, a matematização. De outro, busca-se construir um novo paradigma que dê conta da complexidade. (Castoriadis3 1987).

Entretanto, nem mesmo a matemática e a lógica estarão a salvo da crise da ciência moderna. A insuficiência da lógica formal seja na vertente indutiva, seja na hipotético-dedutiva, dá lugar ao surgimento de várias lógicas que buscam admitir a contradição e a indecibilidade (Costa9 1980) Na matemática, os teoremas de Gödel abrem um ciclo de revisão dos fundamentos conjuntistas, apontando a impossibilidade de verificação de um sistema lógico em seu próprio interior. (Morin2 1977).

Os objetos científicos doravante se apresentam como seres complexos, totalidades que contêm partes diferenciáveis em qualidade e quantidade. Apresentam-se como objetos fragmentáveis de inúmeras maneiras e cada plano de clivagem admite ser estudado mediante o uso de um número infinito de variáveis (Samaja10 1993)

O novo método terá que conceber a dialética entre ordem/ desordem/ organização para dar conta da natureza complexa das emergências fenomênicas e do caráter de autonomia/dependência que os seres vivos apresentam em relação ao contexto no qual se desenvolvem. Tratar da complexidade exige o máximo de informações e o reconhecimento do variado, do variável, do ambíguo, do aleatório, do incerto (Morin11 1977). A lógica da investigação tem que incorporar os procedimentos analógicos para a modelização e formalização dos sistemas complexos, suprindo as deficiências dos procedimentos indutivos e dedutivos. O uso de metáforas que sintetizam a dialética expressão /compreensão passa a ser um procedimento do saber científico tanto quanto do conhecimento estético, cotidiano, moral e ético (Morin12 1986).

O produto das investigações científicas passa a incluir obrigatoriamente a compreensão dos fenômenos, através de procedimentos de projeção e identificação e a explicação , isto é, o processo abstrato de demonstração lógica pelo qual o objeto é situado em relação à sua origem ou modo de produção, suas partes constituintes, sua utilidade ou finalidade (Morin12 1986).

A nova abordagem científica torna relativos os princípios básicos da lógica conjuntista-identitária e passa a aceitar a impossibilidade da existência de seres perfeitamente discretos e identificáveis no mundo real, além de admitir as diversas figuras da contradição: os paradoxos, as antinomias, as aporias e os oxímoros, o que invalida o princípio do terceiro excluído (Morin4 1991).

A crise na epidemiologia

A lógica epidemiológica é a aplicação setorial da lógica conjuntista-identitária que preside o conhecimento científico moderno. Os sinais de crise nesse campo demoraram mais a surgir e a serem reconhecidos, tendo em vista que a epidemiologia apenas se constituiu como ciência no século XIX. As transformações ocorridas no âmbito da física, da química e da biologia, desde o início do século, apenas agora se fazem sentir no campo da saúde e da epidemiologia em particular.

A emergência de novos problemas no interior da disciplina e a construção de modelos locais para explicá-los apontam para uma crise de complexificação do campo (Schramm e Castiel13 1992).

Dentre os problemas teóricos apontados pelos críticos destaca-se o empobrecimento teórico da epidemiologia. A tendência presente desde meados deste século, de considerar-se o saber da epidemiologia como método aplicável a um conjunto indistinto de objetos, e a aplicação indiscriminada de procedimentos de formalização matemática têm contribuído para o esvaziamento teórico da disciplina, culminando com a definição de Miettinem14 (1985) da epidemiologia enquanto estudo das funções de ocorrência (Vandenbrucke15 1990; CORISCO16 1993; Barata e Barreto17 1996).

Nesse processo de empobrecimento teórico duas questões adquirem relevância: a questão da elaboração do objeto científico e a da causalidade. A elaboração do objeto tem que partir da concepção da realidade estruturada em diferentes níveis de organização e complexidade, como sistema auto-organizado (Schramm e Castiel13 1992). A causalidade ou o determinismo causal deve dar lugar a outras formas de determinismo, além de abrir a possibilidade para diferentes interpretações acerca do nexo causal (CORISCO16 1993).

Há uma série de propostas de construção do objeto - processo saúde-doença em coletividades humanas - em pleno uso nas investigações epidemiológicas latino-americanas. Podem ser citadas as proposições de Breilh e col.18 (1990) e do grupo de pesquisadores do CEAS do Equador, consubstanciadas no conceito de perfil epidemiológico das classes sociais articulando os momentos socioeconômicos da produção -distribuição - consumo e os impactos de tais processos na saúde. Laurell e Noriega19 (1989) e os pesquisadores da UAM-Xochimilco adotam o conceito de nexo biopsíquico e processo de desgaste como expressão corporal da ação dos determinantes presentes na estrutura social. Samaja20 (1993) e Castellanos21 (1990) propõem o conceito de reprodução social como o conceito central para construir o objeto da investigação epidemiológica, buscando a articulação entre condições de vida e situação de saúde. Finalmente, Almeida Filho6 (1994) sugere integrais saúde-doença-cuidado como objetos privilegiados a serem construídos na e pela pesquisa epidemiológica.

A substituição da noção de causalidade, nas diferentes vertentes da multicausalidade, pelo par determinação/mediação, comportando uma grande variedade de formas que vão desde a determinação causal mecânica até a determinação histórica, passando pelas determinações probabilísticas, também vem sendo paulatinamente observada nas pesquisas da área.

No plano dos conceitos merece maior atenção a reconceituação de risco e população. Na perspectiva cartesiana e reducionista da ciência clássica o conceito população se refere a um conjunto de elementos individualizados que, por determinadas características comuns, podem ser agrupados. Nessa perspectiva não há referência aos vínculos e relações orgânicas que por ventura existam entre esses indivíduos, caracterizando-os como um coletivo historicamente constituído (Loomis e Wing22 1990). O desafio que se coloca para a epidemiologia é repensar o conceito chave de população, levando em conta a ultrapassagem do antagonismo entre individualidade e sociedade, isto é, superando a concepção de coletivo quer seja como algo que paira acima e além dos indivíduos, quer seja como a somatório de elementos distintos, unidos apenas por certos traços ou características julgados pertinentes naquele momento (CORISCO16 1993). Essas mesmas questões remetem ao conceito de risco como probabilidade de ocorrências de eventos de interesse para a saúde em determinados grupos populacionais.

Do ponto de vista metodológico impõe-se a formulação de novas estratégias de investigação que permitam suplantar as disjuntivas perpetuadas pela ciência moderna entre teoria e prática, sujeito e objeto, objeto e contexto, descritivo e analítico, observação e experimento, quantitativo e qualitativo, lógica formal e lógica dialética, empirismo e racionalismo. A persistência dessas disjuntivas tem contribuído apenas para estabelecer divisões rígidas e artificiais entre diferentes domínios do conhecimento, entre diferentes campos disciplinares e entre diversas abordagens nos mesmos campos.

A chave para a construção do "novo espírito científico" no campo da epidemiologia, segundo Almeida Filho6,23, está em adotar uma abordagem que reúna a transdiciplinariedade, a complexidade, a pluralidade e a práxis.

Complexidade na construção do objeto integrais saúde-doença-cuidado, respeitando os vínculos orgânicos entre objeto e organização social histórica, entre individualidade e coletivo, abandonando os objetos simples e substituindo-os por objetos modelos sistêmicos ou estruturais referidos a modelos abstratos não-lineares, abarcando múltiplos níveis de existência na realidade, comportando múltiplas faces e fisionomias diversas.

Pluralidade na adoção de estratégias metodológicas e táticas de investigação que incorporem novos sistemas de lógica nos quais a indeterminação entre os limites do objeto e do contexto seja admitida; nas quais as figuras da contradição possam ser tratadas e, principalmente, que possibilitem a superação das disjuntivas anteriormente apontadas. A estratégia de estudos de agregados, particularmente, deverá ser reabilitada na medida que possibilite o estudo de fenômenos em dimensão coletiva, trabalhando com unidades de informação e análise que se apresentam ao pesquisador como totalidades, colocando-se na dimensão particular dos fenômenos da realidade, nível de ancoragem, por excelência, dos estudos epidemiológicos.

Transdiciplinariedade entendida como possibilidade de comunicação entre agentes, trânsito dos sujeitos de discursos e práticas científicas, processo "práxico" exercido por pesquisadores em trânsito entre diversos campos disciplinares correlatos, articulados pelo objeto de investigação construído. Processo de criação de saberes científicos marcados pelo caráter social e coletivo, político-institucional, produzidos de maneira matricial e amplificada (Almeida Filho23 1997). Não mais o trabalho em equipe em que se justapõem ou articulam externamente conhecimentos operados por diversos especialistas construindo desenhos caleidoscópicos sobre a realidade, mas elaboração e criação do novo transgredindo as fronteiras disciplinares e as especializações, construindo um conhecimento rico e complexo que permita compreender e explicar os processos em sua gênese e desenvolvimento.

Práxis como solo no qual se encontram os elementos simbólicos, éticos, políticos e pragmáticos que participam na instituição dos campos disciplinares; local de compartilhamento de linguagens e discursos científicos; produto dos mais diversos saber-fazer da espécie humana.

Encerrando a apresentação dos desafios que se colocam para a epidemiologia no plano teórico recorro novamente a Prigogine e Stengers1 (1997):

"A ciência se afirma hoje como ciência humana, ciência feita por homens para homens. ... A antiga aliança animista está morta. Está bem morto o mundo finalizado, estático e harmonioso que a revolução copernicana destruiu quando lançou a Terra nos espaços infinitos. Chegou o tempo de assumir os riscos da aventura dos homens: o saber científico pode descobrir-se hoje simultaneamente como uma "escuta poética" da natureza e processo aberto de produção e invenção, num mundo aberto, produtivo e inventivo. Chegou o tempo de novas alianças formadas entre a história dos homens, de suas sociedades, de seus saberes e a aventura exploradora da natureza".

Desigualdades sociais e iniquidades em saúde

O maior desafio que se coloca para a epidemiologia, enquanto ciência humana feita por homens e para homens, é a obrigação de tratar das questões relativas às desigualdades sociais e às iniqüidades em saúde que elas promovem.

Em termos éticos a igualdade e a equidade remetem à "relação entre os indivíduos, em virtude da qual todos eles são portadores dos mesmos direitos fundamentais que provêm da humanidade e definem a dignidade da pessoa humana" (Ferreira24 1986). A eqüidade e a igualdade pressupõem, portanto, muito mais do que a simples anulação das diferenças, implicando a possibilidade concreta de que todos os indivíduos possam desenvolver suas potencialidades humanas sem constrangimentos de ordem social.

Na história da humanidade, todas as formas de organização social foram marcadas, com maior ou menor intensidade, pelas posições desiguais que os sujeitos ocuparam na estrutura social. Sejam castas, classes ou estratos demográficos, todas as formações sociais apresentaram grupos distintos em sua estrutura e justificativas no plano jurídico e político para tais desigualdades. Apenas as sociedades capitalistas apresentam uma contradição flagrante entre a afirmação da liberdade e da igualdade no plano político- ideológico e as condições concretas de existência dos sujeitos, situação esta, frequentemente marcada pela exclusão e desigualdade (Barata e col.25 1997).

Segundo Merleau-Ponty26 (1984) a igualdade formal dos direitos e a liberdade política dos cidadãos nas sociedades capitalistas mascaram as relações de força e dominação predominantes na esfera da reprodução social. De acordo Cohn27 (1997), as sociedades modernas são permanentemente atravessadas pela contradição entre o princípio da emancipação, isto é, a busca da igualdade e da integração social capazes de permitir o afloramento de todas as potencialidades humanas, e o princípio da regulação que passa a gerir os processos de desigualdade e exclusão através de formas compensatórias ou até mesmo de mecanismos de marginalização crescentes.

O indivíduo é uma criação social decorrente de uma produção social específica. Castoriadis3 (1987) afirma que esta criação implica sempre a forma abstrata e parcial da igualdade capaz de conviver perfeitamente com as desigualdades concretas e substantivas, pois a idéia de igualdade social é uma significação imaginária que envolve a instituição da sociedade enquanto comunidade política. Comunidade na qual a igualdade política frequentemente é entendida como "cada cidadão um voto" nas democracias representativas do ocidente.

Este mascaramento ideológico obriga a precisar claramente o que se entende por desigualdade e em que medida ela remete a situações de iniqüidade em saúde. Evidentemente, nem toda diferença ou desigualdade entre indivíduos corresponde a uma situação de iniqüidade ou injustiça. É mais ou menos intuitivo que a igualdade absoluta é inalcançável e até mesmo indesejável, na medida que significaria a anulação da própria individualidade. No limite, não pode haver indivíduos sem que existam diferenças que os constituam como tais (Goldbaum28 1997).

Boaventura Santos diz que "temos o direito de ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza, e temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza" (Conh27 1997) Desta forma, o autor procura marcar claramente a sua posição com respeito a diferenças que são desejáveis e aquelas que constituem base para injustiças sociais.

Para Aristóteles toda partilha deve ser igual e toda transação entre homens livres deve ser regida pela igualdade. Entretanto, para que haja justiça, a igualdade não pode ser aritmética. A igualdade aritmética é desigualdade na medida em que é abstrata. Para que todos os indivíduos sejam tomados como idênticos será necessários descaracterizá-los em suas individualidades. Portanto, a igualdade só pode ser igualdade de proporção ou relativa. O critério marxista de "a cada um segundo suas necessidades e de cada um segundo suas capacidades" torna o indivíduo sua própria medida. Como a regra pode ser aplicada a todos, ela é ao mesmo tempo social e individual, universal e concreta. Ela vai além da simples igualdade, ela é eqüidade (Castoriadis3 1987).

Durante boa parte do século XIX e início do século XX as desigualdades sociais e seus impactos na saúde foram tratados predominantemente da ótica da dicotomia entre pobreza e riqueza, implicando assim uma abordagem quantitativa do problema. Desde a constituição da Epidemiologia como disciplina científica, os estudos da distribuição e dos determinantes das doenças nas populações dão importância às condições de vida dos grupos sociais, ressaltando os efeitos deletérios da pobreza para uma série de situações de saúde e, da riqueza, para outros. Durante muito tempo manteve-se entre alguns autores a idéia da dualidade complementar entre pobreza e riqueza, sem que houvesse uma teoria que articulasse de maneira satisfatória os dois lados da moeda (Barata e col.25 1997, Goldbaum28 1997). Havia, assim, as doenças da pobreza e as doenças da riqueza, ou ainda, as doenças para as quais os fatores sociais eram considerados relevantes. Deste modo se ocultava a determinação/ mediação exercida pelas condições concretas de existência sobre o processo saúde-doença dos grupos humanos e dos indivíduos que os constituíam.

A partir das três últimas décadas do século XX as explicações baseadas no círculo vicioso da pobreza passam a ser substituídas pela discussão da desigualdade e da exclusão social como processos mais importantes para a compreensão dos diferencias de saúde-doença dos grupos sociais. (Cohn27 1997) A questão deixa de ser tratada apenas como um problema de quantidades, para ser entendida em sua gênese e em sua diversidade de manifestações.

Castellanos29 (1997) define as iniqüidades em saúde como diferenças ou desigualdades redutíveis, vinculadas a condições heterogêneas de vida. Desta forma, é possível precisar a abrangência das desigualdades que devem constituir o interesse primordial da epidemiologia, isto é, aquelas diferenças nos perfis de saúde-doença dos grupos sociais, cuja determinação maior se encontra no processo de reprodução social desses grupos, e que poderiam ser reduzidas à medida que o projeto emancipatório se tornasse proeminente face aos mecanismos de dominação/exclusão.

Parte dessas iniqüidades em saúde são passíveis de redução através de políticas sociais compensatórias, entretanto, mesmo os países mais desenvolvidos e com gastos relativamente importantes em políticas sociais, dentre as quais, as de saúde, têm sido incapazes de reduzir as diferenças entre os diferentes grupos, demonstrando que as desigualdades produzidas a partir da inserção social não são completamente compensadas na esfera da distribuição e do consumo (Wilkinson30 1997). Em outros termos, a partilha desigual de condições de vida, decorrente da inserção dos grupos na estrutura social, não consegue ser reparada totalmente através de políticas paliativas, sejam elas tributárias dos enfoques de massa da saúde pública ou do enfoque focal do liberalismo (Cohn27 1997).

O processo de reprodução social dos grupos humanos implica a reprodução de diferentes domínios da vida. No nível mais elementar está a reprodução biológica do indivíduo que garante suas características como espécie biológica marcada principalmente pela interação entre genotipo e fenotipo, isto é, entre a herança genética e a modulação das potencialidades herdadas pelas condições concretas de existência que irão resultar nas manifestações fenotípicas. Como os homens vivem em comunidade, compartilhando um espaço e um tempo particulares, a reprodução social implica também na reprodução de um segundo domínio: o das relações ecológicas dos grupos, ou seja, de suas relações com os ambientes, senso lato, em que tais comunidades se constituem. Estas comunidades partilham formas de consciência e de conduta resultantes das interações intersubjetivas que também participam dos processos de reprodução, configurando o terceiro domínio: o da cultura. Finalmente, os grupos sociais se reproduzem reproduzindo as formas econômicas que lhes garantem o domínio sobre a natureza (Samaja31 1994).

Todos esses processos implicam impactos sobre a saúde e a doença dos indivíduos, representando, cada um deles, um conjunto de determinações e mediações cujo resultado final será a preservação da saúde ou a ocorrência da doença ou agravos à saúde. As desigualdades nas condições de vida, decorrentes de diferenças substantivas nesse processo de reprodução social, terão reflexos nas situações de saúde que serão então identificadas como iniqüidades.

Por que considerar a questão da desigualdade social e das iniqüidades em saúde como o desafio ético fundamental para a epidemiologia no princípio do novo milênio?

A autonomia e a liberdade tornaram-se valores universais a partir da emergência das sociedades capitalistas ocidentais, marcadas em seu nascimento pelo predomínio da Razão sobre todos os preconceitos, mitos e crenças que impediram o desenvolvimento pleno das potencialidades humanas antes do advento do século das luzes. Entretanto, da mesma maneira que a organização social capitalista tornou inviável a igualdade concreta entre os homens na esfera da reprodução social, o predomínio da Razão, inicialmente, processo aberto de crítica e elucidação, transformou-se com o passar do tempo em "computação mecânica e uniformizante". A atividade científica, por exemplo, tornou-se atividade tecnopragmática, manipuladora de objetos, instrumentos, algoritmos e conceitos, contentando-se com que tudo funcione. A razão instrumental substituiu, em todos os domínios culturais e técnicos, a razão crítica, acabando por eclipsar o projeto de autonomia presente em sua origem.

O desencanto face ao fracasso dos movimentos de transformação social que marcaram os anos 60 e a subsequente retração da ação política no conformismo característico das últimas três décadas parecem ter acentuado a aparente incapacidade de se constituir como indivíduo sem excluir o outro, e ainda, a incapacidade de excluir o outro sem desvalorizá-lo (Castoriadis3 1987).

As relações humanas são esvaziadas de sentido e o outro, principalmente se for diferente quanto à classe social, ao gênero, à raça, às preferências políticas e às práticas religiosas, passa a ser visto e tratado como alvo de menosprezo, discriminação e ódio. Na melhor das hipóteses as desigualdades levam a um sentimento de irrelevância, como se parte da humanidade pudesse simplesmente ser "descartada". A obsolescência frenética de objetos materiais, conceitos, tecnologias, valores estéticos, atinge a própria humanidade, tornando parte significante dos seres humanos, incapaz de encontrar lugar na nova ordem mundial.

O agravamento das desigualdades, ao invés de fomentar a indignação e a busca de superação através de movimentos emancipatórios baseados no aprofundamento dos laços solidários e de integração social, dá lugar a comportamentos de discriminação e exclusão.

A explosão da violência urbana na maioria das grandes metrópoles é apenas a face mais evidente e notória do processo de deterioração dos vínculos mais elementares de sociabilidade. Os conflitos étnicos e raciais, a violência cotidiana nas relações de gênero e nas relações intergeracionais, com sua parcela de sofrimento e dor, acabam por afetar muito mais do que a saúde mental daqueles diretamente atingidos. A dialética senhor-escravo, proposta por HEGEL e re-elaborada por MARX para analisar os fenômenos da alienação na dimensão filosófica, fornece o instrumental teórico para a compreensão da sensação de estranhamento e do sentimento de infelicidade que perpassam as sociedades modernas.

A epidemiologia que tem por objeto de estudo a distribuição e os determinantes dos processos saúde- doença em coletivos humanos não pode, ao construir suas medidas de ocorrência e de risco, ignorar o fato fundamental de que os coletivos humanos são mais do que a simples soma de elementos agrupados por pertencerem a esta ou aquela categoria artificialmente criada pelos investigadores. Os coletivos humanos são grupos sociais nos quais os elementos mantêm relações entre si e justamente essas relações determinam o afloramento de qualidades novas no âmbito coletivo, diferentes daquelas que cada indivíduo poderia apresentar se fosse possível a sua existência enquanto ser isolado. Dito de outro modo, cada coletivo constitui uma totalidade por referência aos indivíduos que o formam, embora possa constituir uma singularidade para a totalidade maior que o engloba.

As metodologias de investigação epidemiológica e os instrumentos técnicos para obtenção e análise dos dados não podem ser construídos sem levar em conta a necessidade de lidar com a desigualdade sob pena de tornar ineficiente e inoperante o conhecimento produzido.

Tratar da desigualdade social e iniqüidades em saúde é um desafio ético para a epidemiologia que se inscreve na luta por eqüidade em sua mais ampla dimensão, na efetivação do sonho de liberdade e autonomia que o iluminismo anunciou para todos aqueles que aderissem às luzes da razão.

Breilh32 (1995) afirma que

"nem sequer o sofrimento e a coerção das épocas mais obscuras da história foram capazes de arrebatar das coletividades seus sonhos e conter essa vocação genérica para a superação das dominações e iniqüidades e para a realização de um projeto de avanço que, na essência, está sempre vinculado a promessas originais ainda não realizadas"

Epidemiologia e saúde coletiva: o plano "práxico"

Enfrentar o desafio ético, anteriormente apontado, construindo paulatinamente o caminho para esta utopia, esbarra em outras tantas dificuldades.

Dentre os inúmeros desafios que se colocam para a epidemiologia no campo práxico destaca-se a sua vinculação ao campo da saúde coletiva, relativamente ameaçada por uma tendência em sentido oposto de aumentar seus vínculos com o campo biomédico, transpondo progressivamente seu objeto de estudo para os problemas de saúde de indivíduos em populações.

Muito embora, eminentes epidemiologistas comprometidos com a manutenção do caráter populacional da prática epidemiológica, como Susser33 (1989), apontem a íntima relação da epidemiologia com a medicina e a saúde pública como inevitáveis, visto que seus conhecimentos e práticas de intervenção são claramente complementares, os movimentos em uma ou outra direção têm-se mostrado francamente antagônicos.

Castellanos29 (1997) lança luz sobre a discussão, mostrando que progressivamente a epidemiologia foi tendo seu interesse deslocado dos estudos da situação de saúde de grupos populacionais, que ele denomina de "epidemiologia de quem", para estudos de problemas de saúde específicos, que ele denomina de "epidemiologia de quê". Em outros termos, isto significa o abandono de abordagens mais compreensivas acerca dos perfis epidemiológicos fortemente vinculados às constituições locais ou condições de vida temporalmente datadas e espacialmente localizadas, por abordagens mais abstratas, relativas aos riscos de ocorrência de doenças específicas em determinados grupos de indivíduos.

Certamente, mesmo nos primórdios dos estudos epidemiológicos, existiam investigações voltadas para o conhecimento e o controle de doenças específicas; entretanto, tais estudos eram minoritários por comparação com aqueles que se voltavam para as relações entre as condições de vida e a situação de saúde das populações. Com o decorrer do tempo essa relação foi se invertendo, resultando em abandono progressivo dos estudos de situação de saúde.

Ayres34 (1997) aponta a existência de três vertentes na epidemiologia norteamericana surgidas no século passado e que se mantiveram relativamente presentes até a década de trinta: uma vertente ambientalista, uma vertente socio-política e uma vertente biomédica. Progressivamente, todas vão cedendo espaço ao que constituiria o movimento preventivista do pós-guerra que implicaria na substituição das preocupações populacionais por abordagens individuais.

A inflexão observada na produção de conhecimentos e nas ações práticas, após a Segunda Guerra, foi acompanhada de rarefação teórica, circunscrição aos problemas do método, formalização discursiva, adoção da doença como elemento nuclear e do conceito de risco como ferramenta privilegiada (Ayres34 1997). A epidemiologia será cada vez mais tratada como um método aplicável a determinada classe de fenômenos suscetíveis de tratamento matemático probabilístico.

A adoção da doença como elemento nuclear necessário para a construção quantitativa do conceito de risco torna a epidemiologia, num certo sentido, dependente do campo biomédico, na medida em que será nesse campo que a noção de doença será construída. Desta forma, fica favorecido o deslocamento da disciplina do campo da saúde pública para o campo biomédico, não mais em uma relação de complementaridade, mas antes, em uma relação de franca subordinação.

A perda de hegemonia do discurso sanitário nas últimas décadas e o afloramento da crise da saúde pública podem ser vistas como a resultante de um processo complexo no qual se entrelaçam as limitações conceituais, metodológicas e técnicas, face aos novos problemas de saúde postos pela realidade, o empobrecimento teórico da epidemiologia, na medida que abandonou o caráter coletivo e populacional de seu objeto e a ineficiência prática que daí se deriva, as transformações políticas com a derrota dos movimentos emancipatórios e o predomínio de um individualismo estéril e consumista (Castellanos291997).

O predomínio da lógica de mercado em todas as esferas da vida faz da acumulação e do consumo os bens supremos a que os indivíduos devem aspirar. Esta lógica, quando aplicada à política de saúde e à organização de serviços, se traduz no predomínio da ótica administrativa de adequação dos fins aos meios, ignorando as necessidades sociais de saúde, pautando-se mais pelos ditames econômicos do que pela busca de superação dos problemas e pela diminuição do sofrimento humano (Barata e Barreto17 1996).

Entretanto, o discurso do risco também não demonstra sua eficácia no plano "práxico", dadas as dificuldades que apresenta. As limitações que a própria teoria das probabilidades tem no sentido de permitir o trânsito entre a construção da probabilidade no âmbito do coletivo, ainda que tomado como conjunto ou classe de elementos, e sua aplicação a cada um dos indivíduos que o compõem; o caráter fragmentário dos resultados de inúmeras associações testadas fora de um marco explicativo que permita articulá-las com coerência, a estrita validade externa dos ensaios clínicos, são algumas dessas insuficiências.

No plano prático da vida cotidiana o discurso do risco tem se mostrado incapaz de elaborar propostas coerentes de promoção de saúde e prevenção de problemas que possam ser adotadas com segurança pelas pessoas, gerando com frequência, perplexidade ante os resultados contraditórios dos diferentes estudos, descrédito face à dificuldade que as pessoas tem de entender as mediações necessárias entre verdades construídas a partir de coletivos e sua aplicação aos indivíduos singulares, dificuldade que os indivíduos têm em se identificar como fazendo parte desses coletivos compartilhando o risco.

Esta ineficiência aparente, associada ao enfraquecimento da saúde pública, acaba por produzir três movimentos antagônicos entre os praticantes da epidemiologia: o afastamento em relação à saúde pública, representado pela corrente da epidemiologia clínica, a formalização crescente do discurso e a redução aos aspectos metodológicos e, o estreitamento dos vínculos com a saúde coletiva buscando a superação das limitações e dos entraves.

O movimento da epidemiologia clínica representa a inserção da epidemiologia no campo biomédico sob a forma de um conjunto de técnicas de análise que podem ser aplicadas aos problemas clínicos, conferindo-lhes maior rigor científico. A epidemiologia, no papel secundário que lhe é reservado nesse movimento, se limita a apoiar instrumentalmente as investigações biomédicas, abrindo mão de seu objeto próprio, limitando suas estratégias de investigação ao receituário dos ensaios clínicos controlados, violando as bases teóricas e os pressupostos estatísticos mais elementares para ajustar seus recursos à análise de fenômenos individuais mas, principalmente, abandonando as tecnologias de intervenção em massa, substituindo-as pelas medidas preventivas e curativas de âmbito individual.

O movimento de formalização crescente do discurso representa a esterilização do potencial de intervenção prática e o esvaziamento teórico da disciplina, resumindo-se no aprofundamento de questões metodológicas e menos do que isso, no aprimoramento de técnicas de análises de dados, muitas vezes sem levar em consideração a complexidade dos fenômenos de saúde-doença e os compromissos pragmáticos da epidemiologia.

O movimento de estreitamento dos vínculos com a saúde coletiva representa a tentativa de fazer frente ao predomínio da razão instrumental instalado em todos os campos do saber, retomando as perspectivas da ação comunicativa voltada para o projeto de emancipação. Esse movimento pressupõe a atualização do próprio campo da saúde pública, superando seu viés racionalizador e estatal.

A Saúde Coletiva, do ponto de vista da sua constituição enquanto campo de práticas científicas, pode ser pensada como um campo de saberes e práticas que tem por objeto o processo saúde - doença e as respostas sociais aos problemas de saúde referidos à dimensão coletiva, entendida como relações sociais estruturadas, na qual a saúde e a doença adquirem significação (Paim35 1992).

Por outro lado, enquanto campo de práticas cotidianas ela pode ser pensada como um conjunto de práticas de cidadania, construídas através de processos simbólicos, lutas políticas e processos técnicos de trabalho, voltados para a promoção da saúde e a prevenção de problemas de saúde (CORISCO16 1993).

O surgimento da saúde coletiva significou a invenção de um novo campo resultante da implosão de campos disciplinares rigidamente estruturados, motivado por problemáticas complexas e abrangentes, confluência de diversos saberes, intersecções e expansões entre fronteiras disciplinares prévias, mas principalmente pela emergência de novos atores políticos no espaço público, rompendo a hegemonia do Estado na definição dos problemas de saúde, bem como no encaminhamento das suas soluções (Birman36 1996).

A epidemiologia, enquanto prática de produção de conhecimentos e enquanto prática de intervenção social cuja finalidade é modificar favoravelmente a situação de saúde de grupos humanos, através de alterações em suas condições de vida, encontra-se inevitavelmente ligada à saúde coletiva.

A racionalidade epidemiológica pode ser associada à racionalidade administrativa, reorientando a organização de serviços no sentido de buscar a satisfação das necessidades de saúde dos grupos populacionais. Os epidemiologistas têm contribuições a dar a cada uma das etapas do processo de elaboração das políticas de saúde e de planejamento dos serviços.

Assim concebida, a prática epidemiológica pode fornecer elementos fundamentais para a definição de políticas de saúde que vão desde as técnicas de apreensão das necessidades que compõem o diagnóstico de saúde, até as técnicas de estabelecimentos de prioridades. Nesse processo ela deve ser capaz de possibilitar a articulação das necessidades dos indivíduos às necessidades sociais dos grupos, sem que a subsunção do individual ao coletivo represente a anulação das subjetividades nem tão pouco o predomínio dos individualismos.

Além da formulação de políticas os epidemiologistas podem contribuir para a elaboração de modelos tecnológicos de intervenção que configurem estratégias de atuação voltadas para a alteração das estruturas de determinantes que se encontram na base da produção dos perfis epidemiológicos dos distintos grupos sociais, articulando os conhecimentos teóricos aos instrumentos técnicos, de maneira que haja equilíbrio entre a intervenção massiva e indiscriminada das práticas de saúde pública e a autonomia e conscientização dos sujeitos acerca de seus problemas e de suas soluções.

Finalmente, os epidemiologistas devem ser capazes de avaliar o impacto que tais intervenções tenham sobre a situação de saúde das populações, tendo em vista a redução das desigualdades e a promoção da saúde, articulando-se com portadores de outros saberes e enfoques na construção de uma abordagem transdiciplinar e intersetorial.

De acordo com Castellanos29 (1997):

"Não resta dúvida de que todos os desenvolvimentos conceituais e metodológicos hoje disponíveis têm contribuído para converter o campo da análise da situação de saúde e das condições de vida em um campo intelectualmente desafiador, assim como a epidemiologia em uma ciência que se incorpore progressivamente ao campo das ciências contemporâneas mais produtivas, retomando suas raízes como disciplina básica da saúde pública e seus compromissos permanentes com os esforços de redução das iniqüidades sociais em saúde, superando gradualmente o marasmo predominante nas ciências denominadas modernas".

Desta maneira será possível realizar, no campo da epidemiologia, a nova aliança proposta por Prigogine e Stengers1 reinscrevendo a prática científica na tradição da cultura humanista que ela abandonou ao se despreender do pensamento filosófico durante o renascimento, refazendo os compromissos da velha Medicina Social surgida no seio do romantismo e concretizando os ideais da Saúde Coletiva, derradeira tentativa de superar a alienação e a apatia dos homens, devolvendo-lhes um projeto emancipatório utópico pelo qual vale a pena lutar.

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    Conferência apresentada ao 4º Congresso Brasileiro de Epidemiologia; 1998 ago 1-5; Rio de Janeiro, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 1999
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