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Editorial

Editorial

José da Rocha Carvalheiro

Iniciamos o segundo ano com a sensação de uma batalha vencida, numa guerra que se afigura mais árdua do que esperávamos no início. Manter rigorosamente os princípios da Revista, da revisão por pares centrada num editor Associado, pelo menos três revisores ad hoc, com todas as idas e vindas, redunda num processo lento e muitas vezes frustrante. Apuramos o processo através de Artigos Especiais, Discussões, Gavetas e Prateleiras. Estão em fase de preparação alguns números temáticos, com organizadores já contatados e trabalhando. Esperamos colocar-nos brevemente em dia com os sócios da Abrasco, outros assinantes e leitores em geral.

Manter os princípios da revisão por pares comporta problemas que têm sido exaustivamente discutidos nas reuniões internacionais de editores científicos. Mesmo no âmbito nacional, as periódicas reuniões da Associação Brasileira de Editores Científicos, ABEC, também tem transitado pela temática da ética da autoria em periódicos com crítica e julgamento por pares. Estabelece-se uma espécie de produção com responsabilidade coletiva e compartilhada: autores, revisores e editores.

Com o advento da Internet e da proposta de "revistas virtuais" o problema tem se agravado. Repudiada por muitos, a proposta goza de prestigio em círculos diversos. Apesar de toda a celeuma, o National Institutes of Health, NIH, decidiu considerar quase no mesmo patamar as publicações das revistas impressas e das virtuais. Desde que, é claro, estas sigam um mínimo indispensável de critério na seleção dos trabalhos divulgados. Os cientistas franceses encaram o tema com alguma expectativa de que o processo de divulgação virtual possa vir a resgatar a importância das línguas que perderam o centro do palco da ciência moderna para o inglês, a língua franca do seculo XX. Quem sabe o próximo século poderá de fato trazer novidades neste sentido. Nossa revista, que adota um complexo sistema de divulgação do "Extended Summary" em inglês, além do convencional "Abstract", precisa discutir urgentemente estas questões. Que fazer de uma Revista como a nossa que adota a língua franca como principal, mas publica também em Português e Espanhol.

Por enquanto, e apesar de tudo, sobrevivemos. Prosseguir exige um debate amplo sobre quais são nossas perspectivas reais. Esperamos que os leitores participem ativamente do debate desta questão, enviando contribuições.

O Artigo Especial deste número é uma transcrição de Conferência proferida no último Congresso de Epidemiologia da Abrasco, EpiRio 98. A Autora é Professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Transita por uma instigante discussão a respeito das perspectivas da Epidemiologia no Brasil no século XXI. Como é compreensível, não pode isolar nossas tendências daquelas do resto do mundo científico. Constrói, assim, um quadro impressionante da atualidade epidemiológica, complementando as visões apresentadas pelos Artigos Especiais nos dois números anteriores da Revista: uma mais voltada para o desenvolvimento hegemônico da disciplina nos países do primeiro mundo, outra, na América Latina, contra-hegemônica. Detém-se, nos planos teórico ('a crise da ciência moderna'), ético ('as desigualdades sociais, a iniqüidade em saúde e as brechas redutíveis') e práxico ('a relação da Epidemiologia com a Saúde Coletiva'). Analisa as propostas atuais da discussão acerca da 'construção do objeto' e dos novos conceitos. Em particular, preocupa-se com o conceito de risco e a dinâmica individual/coletivo, ou indivíduo/sociedade. Alerta para as falácias da aplicação acrítica de 'verdades coletivas' a indivíduos singulares que têm dificuldade em se identificarem nesse coletivo e assimilarem um 'compartilhar de riscos'. Conclui com um enfático apelo à necessidade imperiosa da Epidemiologia 'refazer seu compromisso com a Saúde Pública e (re)formular seu projeto emancipatório utópico'. Vale a pena sonhar !

Um artigo, de Professora da Universidade de Havana, Cuba, reflete sobre duas questões da maior relevância em um contexto único: um país do terceiro mundo que, com vontade política, comunidade organizada, financiamento garantido e recursos humanos qualificados, estabeleceu o princípio do acesso universal e igualitário. O Sistema de Saúde cubano está orientado epidemiologicamente ? Existe uma 'escola cubana de epidemiologia' ? Adota como marco de referência em sua periodização o Seminário de Tendências e Perspectivas da Epidemiologia, patrocinado pela Organização Pan Americana da Saúde e realizado em Buenos Aires em 1983. Reconhece, afinal, um 'certo vazio' entre a argumentação teórica e a prática epidemiológica do Sistema de Saúde cubano.

Três trabalhos tratam de questões associadas à desigualdade social. Dois deles analisam os diferenciais na distribuição de óbitos no Município de São Paulo. Ambos aproveitam os sistemas de informação existentes para abordar desigualdades sócio-espaciais: em adultos num dos casos, em adolescentes e adultos jovens no outro. Trabalham com a violência, em especial os homicídios, característica marcante das metrópoles em todo o mundo, mas exagerada na maior cidade brasileira. Um deles contempla, ainda, as doenças crônicas não transmissíveis. Em ambos, com metodologias distintas, releva a determinação social e econômica das causas de morte. Os pobres morrem com maior intensidade em ambos os estudos, como acontece em toda a parte. Um desses trabalhos é de autoria de professores da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, o outro de Professora da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP e de epidemiologista do Sistema de Registro da Mortalidade no Município de São Paulo, Pro-AIM. O terceiro trabalho deste bloco foi realizado em São Luís por professores da Universidade Federal do Maranhão, e um da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP. Discute os fatores ligados ao atendimento ambulatorial em crianças menores de cinco anos, de diversos estratos sociais definidos por variáveis usuais em estudos epidemiológicos, em especial a escolaridade dos pais. A surpreendente conclusão de que a expansão do atendimento público ambulatorial suavizou os diferenciais no acesso aos cuidados é contrastada com a manutenção da desigualdade nas internações. Apontam, como possível explicação, a diferença na qualidade e na resolutividade dos serviços que atendem as demandas nos diferentes estratos.

Outro trabalho tem autoria de professores e profissionais de universidades e instituições da América do Norte. Um deles, professor na Universidade de Montreal, Canadá. Outro, na Universidade de Pittsbourgh e o terceiro trabalha em empresa de informática na Flórida, ambas nos EUA. Relatam experiência com uma proposta de difusão ampla do conhecimento epidemiológico para assegurar 'saúde pública para todos'. Em particular para os países em desenvolvimento. Trabalham com três processos fundamentais: difusão das modernas técnicas e métodos de mensuração de doenças, construindo e desenvolvendo listas de participantes; discussão de temas relacionados com esses avanços em seminários virtuais; suporte às listas por meio de página na internet.

Finalmente, dois trabalhos tratam de questões relacionadas com técnicas de apoio às investigações epidemiológicas. Um, de professores do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e profissionais do Instituto Fernandes Figueira (da FIOCRUZ, Rio de Janeiro), discute um método prático para treinamento de antropologistas na mensuração de dobras cutâneas, considerando a concordância entre os técnicos. Busca produzir informação confiável sobre a quantidade e distribuição de gordura no organismo de sujeitos em investigações epidemiológicas. Outro, de professor da Faculdade de Saúde Pública (USP) e de profissional do DataSUS, do Ministério da Saúde, introduz um programa para microcomputador como instrumento de 'tabulação de causas múltiplas de óbito'. Parte da idéia de que o conceito de causa básica de óbito encontra limitações na orientação de prevenção de mortes prematuras com os atuais padrões de mortalidade: doenças crônico-degenerativas com múltiplas condições associadas. O tabulador proposto gera uma matriz da qual se pode extrair maior conhecimento do quadro de mortalidade.

Acreditamos que, pela amplitude e importância dos temas tratados e pela diversidade da vinculação institucional e origem geográfica dos autores dos trabalhos, a Revista demonstra vitalidade. Esperamos que se constitua num referencial importante no cenário editorial da Epidemiologia na virada do milênio. Talvez venha a ser instrumento de nossa presença na definição de uma nova geografia do saber no mundo, na feliz expressão cunhada por autores franceses ao discutirem a questão da difusão do conhecimento por meios virtuais. Para tanto, basta a contribuição dos epidemiologistas que têm se dedicado a colaborar com seus trabalhos, sugestões e críticas.

O Editor

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 1999
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