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Foi e Não se Sabe se Volta: O Sumiço Progressivo da Teoria Original

RESUMO

Objetivo:

o objetivo desta pensata é questionar a produção acadêmica que se concentra ou nas descrições sobre a matéria pesquisada, com reflexões em que predomina a forma imediata do objeto, ou na utilização de modelos e concepções teóricas pré-existentes, que acabam por direcionar a investigação aos conteúdos pressupostos.

Provocação:

a lógica produtivista tem jogado a teoria para longe dos holofotes acadêmicos, dando mais valor ao objetivismo pragmático e às provas incontestáveis fornecidas pelo empirismo. A produção científica produtivista passa a se basear ou na determinação imediata da matéria na constituição do conhecimento, ou é resultado direto do pensamento pressuposto sobre a realidade: em ambos os casos, o conhecimento emergiria da ausência da permanente interação entre a matéria e a consciência, dialeticamente mediada pelo pensamento. Elaborar teoria original exige do Ato Epistemológico um investimento permanente e crítico sobre a realidade e as teorias disponíveis. Na ausência desse investimento, as análises descritivas e aquelas que reproduzem suposições teóricas antecipadas, como se a teoria existente fosse imediatamente uma condição de representação da matéria, cumprem um ritual formalístico e não revelam as multideterminações da matéria em sua constituição concreta.

Conclusão:

é urgente reafirmar o lugar da teoria como a forma objetivamente elaborada da representação da realidade, como exigência da condição científica para além da descrição, das menções fenomênicas, dos apontamentos, das narrativas, das formas, dos pressupostos e do misticismo ideológico. A teoria não é a garantia dogmática do conhecimento verdadeiro definitivo, mas da elaboração em profundidade, metodologicamente orientada, da condição ontoprática e epistêmica.

Palavras-chave:
ato epistemológico; teoria; produção acadêmica; produtivismo

ABSTRACT

Objective:

the objective of this text is to question the academic production that focuses on either the descriptions about the researched subject, with reflections in which the immediate form of the object predominates, or the use of pre-existing theoretical models and conceptions, which end up directing the investigation to the presupposition contents.

Provocation:

‘productivist logic’ has thrown theory away from the academic spotlight, giving more value to pragmatic objectivism and the undeniable evidence provided by empiricism. The so-called ‘scientific productivism’ is based either on the immediate determination of the object in the constitution of knowledge or on a direct result of the thought assumption about reality: in both cases, knowledge would emerge from the absence of the permanent interaction between the object and the consciousness, dialectically mediated by thought. Elaborating original theory requires from the ‘Epistemological Act’ a permanent and critical investment in the reality and in the theories available. In the absence of this investment, descriptive analyses and those that reproduce early theoretical assumptions, as if the existing theory were immediately a condition of representation of the reality, fulfill a formalistic ritual and do not reveal the multideterminations of the objects in its concrete constitution.

Conclusion:

it is urgent to reaffirm the place of theory as the objectively elaborated form of the representation of reality, as a requirement of the scientific condition beyond description, phenomenal mentions, notes, narratives, forms, assumptions, and ideological mysticism. The theory is not the dogmatic guarantee of definitive true knowledge, but of the in-depth, methodologically oriented elaboration of the onto-practical and epistemic condition.

Keywords:
epistemological act; theory; academic production; productivism

Uma rápida olhada nas publicações em periódicos qualificados no campo das ciências sociais aplicadas sugere que em muitos lugares a teoria original ‘entrou em férias’ ou em modo de hibernação e não sabe se volta a trabalhar no mundo acadêmico. A teoria original não é a teoria existente como pressuposto, aquela da revisão que consagra a ideia da matéria antes da matéria da ideia, mas aquela que se constitui como forma de expressão da representação da realidade pesquisada, a teoria que inova e amplia a representação da realidade em suas múltiplas determinações. Essa teoria deixou em seu lugar, sem o mesmo brilho, as análises descritivas, as lógicas formais aristotélicas, por vezes recheadas de estatísticas que são as confirmações supremas de que a realidade está definitivamente escrutinada e que não há como ela ser refletida ou elaborada. Também deixou em seu lugar alguns esqueletos teóricos, fantasmas místicos e cadáveres conceituais insepultos, ou seja, formulações que se consolidaram sem crítica e que servem de parâmetro confortável para elucubrações conceituais.

Seguindo as fórmulas de publicação das ciências da saúde, da química, física, etc. (problema → método → descrição do caso → discussão → conclusão), o modelo que se sustenta na supremacia dos números, nas constatações discursivas, nas descrições, nos pressupostos e na observação padronizada, enfim, no metodologismo tecnicista (na supremacia da técnica sobre o objeto), passou a ser também nas ciências sociais e aplicadas o santo padroeiro das produções acadêmicas. Onde foram parar as reflexões, as análises críticas, o tensionamento da realidade? Onde foi parar a elaboração teórica original? Onde foram parar a vigilância filosófica, a ontologia e a epistemologia? Certamente, não devem estar reclusas por obra de alguma pandemia recente, porque já haviam desaparecido há algum tempo dos encontros acadêmicos, dos periódicos, das dissertações e teses. Haveria outra prática para a mesma teoria?

A concepção de que “na prática a teoria é outra” habita a crença popular sem reflexão, sendo às vezes pronunciada como um mantra para diferenciar a ideia da realidade. Tornou-se uma forma de lugar-comum a concepção de que: (a) a teoria se diferencia ou se distancia completamente da prática de maneira que uma e outra se referem a problemas diversos ou a diferentes abordagens da realidade; (b) a teoria é uma suposição (ou hipótese) sobre algo; (c) a teoria tem lugar na imaginação humana, enquanto a prática se dá na realidade; (d) a teoria é uma proposição lógico-abstrata que deve ser comprovada em confronto com a realidade a que ela se refere. Em nenhum caso a teoria é a forma objetivada da pesquisa.

Rigorosamente, se a realidade que a teoria pretende traduzir não está contemplada adequadamente nessa teoria, então, na prática, a teoria deve dar lugar a outra teoria. A teoria é a forma de representação do real segundo determinados condicionantes. Se uma prática não se encontra representada na teoria é porque: (a) a teoria original teve sua inscrição no plano puramente idealista formal (uma lógica); (b) a teoria é, de fato, uma hipótese sobre a estrutura e o movimento do concreto (procedimento comum na física clássica, quântica, moderna, nuclear, etc.); (c) o movimento dinâmico e contraditório de ambas (prática e teoria) exigiu uma reelaboração do conhecimento teórico originalmente elaborado; (d) as condições de produção do conhecimento (teóricas, metodológicas, tecnológicas e instrumentais) evoluíram de forma a superar o conhecimento possível sobre o objeto nas condições originais, exigindo outras elaborações.

Elaborar teoria original exige do Ato Epistemológico (Faria, in press) um investimento permanente e crítico sobre a realidade e as teorias disponíveis. Na ausência desse investimento, as análises descritivas e aquelas que reproduzem pressupostos teóricos como se a teoria existente fosse imediatamente (sem um aprofundamento crítico) uma condição de representação da matéria colocaram suas melhores vestimentas e deitaram as normativas da moda, apresentando-se nos critérios de avaliação de dissertações e teses e de submissão e publicação de artigos em periódicos e em eventos. Disciplinas de metodologia da pesquisa, com seus trajes lineares e técnicos, ocuparam o lugar do ‘menu produtivista’, com receitas-padrão que fazem da pesquisa um jogo de Lego: basta saber montar segundo a lógica do encaixe. Cursos de extensão sobre ‘como produzir um artigo a ser publicado em uma revista bem qualificada’ em uma base de dados se tornaram muito comuns. Sites de traduções para o esperanto acadêmico (o inglês imperial) viralizam nas redes de prestação de serviços com apoio financeiro institucional. O idioma, assim como as questões sociais relevantes a que as pesquisas deveriam responder (mesmo segundo a concepção neokantiana de Habermas, 2016Habermas, J. (2016). Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: UNESP.), foram colocadas em um plano quaternário. O lugar e a forma são mais relevantes do que o conteúdo.

Isto significa que se deve rejeitar toda teoria existente ou todos os dados descritivos disponíveis? De forma alguma. As teorias disponíveis e as descrições de dados da realidade empírica podem ser (e geralmente são) partes importantes na produção do conhecimento, mas jamais serão em si mesmas conhecimento elaborado em profundidade. Sem produção conceitual e teórica, a pesquisa é descritiva e convencional. Em sua concepção pouco rigorosa, a teoria muitas vezes tem sido confundida com elucubração, com ideologia, com pressuposição, com misticismo ou, nas melhores definições, com hipóteses. Essas concepções sobre o que é teoria e os questionamentos sobre sua validade e prática a tem colocado, para espanto epistemológico, na fronteira da especulação, no lugar da pressuposição normativa, na plena idealidade e no que se chama de ciência pura.

Entretanto, a teoria, quando se refere à estrutura do corpo da ciência, não é senão

“um conjunto coerente e sistematizado de conceitos e de concepções, baseado em regras metodológicas aceitas cientificamente (validação, hipótese, coleta e tratamento de dados, abrangência, etc.) formando proposições que permitam objetivar a representação da realidade pesquisada, seja construindo um entendimento acerca dos fenômenos investigados para oferecer meios de representação do real pela via do pensamento, seja contribuindo ou criando condições reflexivas para descobrir, desvendar, revelar ou hipotetizar sobre a realidade cognoscível” (Faria, in press, p. 146).

Neste sentido, a teoria é uma representação abstrata da realidade e, portanto, ao mesmo tempo, uma materialidade. Deste modo, para a produção do conhecimento, ou seja, para o Ato Epistemológico, a teoria pode ser tanto (a) uma referência, quando é convocada para dar sustentação à análise, como (b) um objeto, quando é ela mesma o produto da representação ou uma matéria a ser submetida à análise. Se, contudo, a teoria for tomada como pressuposto da representação da realidade, ela se esgota na ideologia, na ideia preconcebida da matéria.

A teoria, portanto, considerada de maneira simplificada, é um conjunto de conceitos produzidos a partir da relação de interação do sujeito com o real cuja finalidade é resolver problemas científicos e/ou práticos/tecnológicos, dar respostas a outros problemas teóricos e científicos e/ou esclarecer, dentro dos limites possíveis, fenômenos e fatos de interesse da humanidade. Formular e desenvolver teorias é obviamente mais exigente que descrever os dados da realidade ou partir de modelos (teóricos) prontos. A teoria exige criatividade, originalidade, aprofundamento e rigorosa elaboração coerente. A descrição exige registro fiel ao visível e pouco se atém aos problemas de uma hermenêutica ou de uma representação consistente, enquanto o modelo cobra somente a testabilidade. A teoria é polêmica, enquanto a descrição e a reprodução são registros operacionais sustentados pela técnica que as permite, ou seja, uma vez reproduzida a técnica, a descrição é aceita como adequada; uma vez testado o modelo pressuposto, o resultado é a confirmação ou a refutação total ou parcial: nada mais conveniente que este acordo contratual.

A zona de escape da teoria como pressuposto passou a ser sua oportuna confirmação ou refutação com base em um caso? É possível que uma singularidade seja plenamente compatível com a universalidade ou que a universalidade seja derrubada por uma singularidade? O problema popperiano dos cisnes entrou no lago. Com isso os estudos de caso singulares ganharam uma amplitude para além de sua consistência. Como uma teoria que não pode ser contestada, superada ou refutada é considerada, por Popper (1975Popper, K. (1975). Conhecimento objetivo. São Paulo: EDUSP.; 2012), por exemplo, um dogma, uma elaboração metafísica ou uma falsa proposição, testar a teoria em estudos de caso ganhou ares de cientificidade. No caso, a teoria a ser testada é concebida em uma perspectiva de universalidade, ou seja, de acordo com uma dada capacidade de generalização. Todavia, o problema popperiano não é o da testagem, mas o da diferenciação entre teoria e dogma. Desta forma, mesmo na perspectiva do racionalismo, da falsificabilidade lógica e metodológica popperiana, a teoria não se confunde com a descrição de um fato, não se esgota na concepção primitiva do empirismo puro ou da pura razão na produção do conhecimento.

Todo Ato Epistemológico é sempre, necessariamente, uma interação entre o sujeito e o objeto, o pensamento e a matéria, que se expressa na forma teórica. Enquanto a teoria exige elaboração abstrata, a descrição de um fato e os testes não exigem nada além da constatação. Então, por que a preferência pela liquidez das descrições e das testagens diante das elaborações teóricas consistentes? A coerção dos fatos é um dos argumentos de Durkheim (1978Durkheim, E. (1978). As regras do método sociológico. São Paulo: Abril Cultural.), mas mesmo ele não se dava ao trabalho descritivo e de testagem. Os textos descritivos e de reprodução passaram a ser uma forma de porto seguro das publicações, uma garantia da ausência de polêmica com base no argumento especulativo de que dados são dados, de forma que os próprios dados não estão em discussão, senão as técnicas de sua produção e análise formal.

A emergência produtivista, instrumental e utilitária dos dados acabou por conduzir a teoria para longe dos holofotes acadêmicos em nome do objetivismo pragmático e das provas incontestáveis fornecidas pelo empirismo. Toda filosofia foi jogada no dito lago dos cisnes da subjetividade em nome do realismo fantástico. A produção científica produtivista passa a se basear na determinação imediata da matéria na constituição do conhecimento sem que o sujeito reflita sobre ela, ou seja, o conhecimento é resultado direto do pensamento pressuposto sobre a realidade ou decorre da imposição imediata do real sobre a consciência: em ambos os casos, o conhecimento brotaria da ausência da permanente interação entre a matéria e a consciência, dialeticamente mediada pelo pensamento.

Não é o enunciado que permite constituir a realidade, que sugere o conteúdo do fenômeno ou que representa exatamente a coisa em si. Entretanto, a primazia do real na produção do conhecimento não é a supremacia ou a determinidade impositiva da matéria, não é a supressão do pensamento (que seria mero receptáculo ou espelho do real), não é a subordinação do pensamento ao real, não é lugar de origem do pensamento ele mesmo, mas de origem do pensamento e do conhecimento sobre o real. Ainda que seja na realidade mesma que se encontra a origem da sua representação abstrata pelo pensamento, sem elaboração teórica crítica não há consciência da matéria em sua totalidade cognoscível. É necessário, portanto, superar os velhos problemas do empirismo, que subtrai o pensamento do processo de conhecimento, e do idealismo, que insiste em construir a substância abstrata da coisa para depois tomá-la como sendo a origem explicativa da própria coisa. A primazia do real sustenta que iniciar uma pesquisa sobre um fenômeno a partir da ideia que se tem dele (teorias, modelos, concepções) pode apenas resultar na descrição da realidade ou na formulação de suposições e abstrações lógicas, fórmulas a serem testadas, proposições metafísicas, referências nominais, classificações e tipologias. Mas isto não pode ser chamado de conhecimento científico concreto elaborado, ainda que possa ser parte do processo epistemológico (Faria, 2015Faria, J. H. de. (2015). Epistemologia crítica do concreto e os momentos da pesquisa: Uma proposição para os estudos organizacionais. RAM, Revista de Administração Mackenzie, 16(5), 15-40. https://doi.org/10.1590/1678-69712015/administracao.v16n5p15-40
https://doi.org/10.1590/1678-69712015/ad...
).

Todo pesquisador, cedo ou tarde, se dá conta de que a realidade, em sua forma imediata, é caótica. Procedimentos idealistas, esquemas de análise, técnicas de coleta e tratamento de dados, que consistem em estabelecer previamente as condições em que a realidade deve se manifestar - em uma espécie de censura pré-epistemológica ao objeto, contribuem para o não enfrentamento da realidade, para evitar dar conta da complexidade da concretude. Quando os pesquisadores adotam modelos de investigação que consistem na estrutura apriorística da teoria de referência, na definição das técnicas de investigação e formas de análise, na elaboração de hipóteses, variáveis, indicadores, questões e problemas de pesquisa, cronograma de execução e toda sorte de enquadramento da realidade a um projeto desenvolvido nos gabinetes e salas de pesquisa, a forma ideal de acesso e de exposição do real se torna mais importante que o próprio real, que a significação de seu conteúdo concreto. Nos modelos presumidos, a realidade é acessória e a ela sobra apenas uma oportunidade, concedida pelos pesquisadores, de se manifestar conforme o esquema previamente proposto e que independe de sua própria constituição como realidade material. A teoria disponível deixa de ser condição dialógica de representação do real para se tornar mero parâmetro. É nesta concepção que a teoria, como forma de representação do real, como produção do conhecimento original, está sendo expulsa do campo epistemológico.

A centralidade da pesquisa, nesta concepção produtivista de testagens e descrições, não está na primazia do concreto, no tensionamento da realidade, nas descobertas sobre o que não está imediatamente exposto, nas contradições, nos movimentos complexos da realidade, mas na dos modelos, sistemas, esquemas, mapas, definições constitutivas e operacionais pré-categóricas, com suas leis coercitivas, funções pressupostas, relações predefinidas, que são impostas à realidade de forma a organizar antecipadamente o modo de estabelecer o processo epistemológico entre o pesquisador e a realidade caótica. Nesta concepção idealista, pesquisador e realidade se encontram efetivamente separados por regras burocráticas, modelos de procedimentos formais impostos, processos de avaliação, esquemas funcionais, concepções fossilizadas e todo tipo de processo que reduz a pesquisa original ao mero cumprimento de práticas normativas1 1 . Este processo burocrático e coercitivo é reproduzido com requintes minudentes nas instituições acadêmicas (normas, resoluções, decretos, medidas, instruções normativas, disciplinas ditas transversais, etc.) e serve de parâmetro dogmático aos gestores institucionais e aos pesquisadores. Parece haver certo prazer libidinal, egóico e orgástico no pronunciamento das regras e em sua fiscalização, bem como no atingimento das metas. . Assim, o real é previamente enquadrado para reduzir surpresas e incertezas, de forma que o pesquisador possa acessá-lo já domesticado e passivo. ‘O real domesticado’ nada tem a dizer, além daquilo que foi predeterminado, e o pesquisador nada tem a saber sobre o real além do que foi confirmar.2 2 . Um dos fenômenos mais comuns na execução das pesquisas é encontrar um pesquisador à procura de um objeto que possa caber em seu modelo de análise. Todo o processo de pesquisa elaborado no gabinete está pronto, faltando apenas um objeto razoavelmente acessível e minimamente disponível e compatível. A disponibilidade e a compatibilidade, por seu turno, só são confirmadas depois de algumas tentativas de acesso ao ‘campo empírico’. Quando o pesquisador finalmente encontra algum caso empírico disponível e razoavelmente próximo de seu projeto, ocorre a magia da transformação em que, enfim, ele pode marcar a cerimônia da união voluntária entre o seu projeto e a realidade empírica, nas condições admitidas e sancionadas pelo aparato religioso da avaliação, de modo que se estabeleça uma família acadêmica legítima. Qualquer manifestação contrária alcança a possibilidade de uma hipótese para uma futura investigação ou de uma disfuncionalidade dita pretensiosamente constitutiva. É esta a forma de impedir a manifestação concreta da realidade e de reduzir a pesquisa a um ato confirmatório de suposições.

Assim, uma vez definido o modelo de interpretação, em sua amplitude genérica, todos os fatos específicos e singulares que forem passíveis de explicação serão confirmações ou negações do modelo. Como o modelo é detentor de certa flexibilidade explicativa (este largo terreno de possibilidades interpretativas), o pesquisador pode fazer incursões aleatórias nos eventos e introduzi-los no corpo da explicação. O que não for assimilável ou explicável pelo modelo é considerado como exceção que confirma a regra ou como uma espécie de travessura (desobediência) da realidade. Este procedimento é, equivocadamente, concebido como busca de sentido, em que o próprio sentido não faz qualquer sentido.

Tal procedimento idealista, como já afirmava Engels (1979Engels, F. (1979). Anti-düring. Porto: Presença., p. 81), consiste em “analisar um determinado grupo de objetos do conhecimento, em seus pretendidos elementos simples, aplicando a estes elementos uns tantos axiomas não menos simples, considerados evidentes pelo autor, para, em seguida, operar com os resultados assim obtidos”. Este procedimento epistemológico, aplicado como modelo atual de produção de conhecimento científico, não é outra coisa senão a nova forma do “velho e favorito método ideológico, também chamado apriorístico, que consiste em estabelecer e provar as propriedades de um objeto, não partindo do próprio objeto, mas derivando-as do seu conceito”. A primeira coisa a fazer, continua Engels (1979, p. 81), é “converter o objeto num conceito desse objeto; em segundo lugar, não é preciso mais que inverter a ordem das coisas e medir o objeto pela sua imagem, o conceito”. Assim, a produção do conhecimento científico sobre a realidade se torna nada mais do que uma realidade que é deduzida, não de si mesma, em sua complexidade, mas da ideia; não de suas múltiplas determinações, mas de sua forma descritiva.

Aqui se encontra um problema prático e normativo que é o conteúdo das disciplinas de ‘metodologia da pesquisa’. Sem delongas, uma rápida olhada em programas da disciplina de ‘metodologia da pesquisa’, especialmente nos cursos de pós-graduação ‘stricto sensu’, sugere que o procedimento de investigação se dá a partir de um modelo relativamente padronizado. Tal modelo é adotado, igualmente, como uma orientação dogmática nos procedimentos de avaliação de artigos acadêmicos utilizados por revistas científicas e em congressos e encontros na área. Todo avaliador deve seguir o modelo idealizado de avaliação dos artigos, que indica o que avaliar e quanto cada item representa na nota final. Segundo esta proposta, a metodologia científica deve seguir um roteiro em que se destacam: (a) a exigência de um referencial teórico de partida (a captação do real depende de uma teoria); (b) a explicitação da metodologia (a rigor, das técnicas a serem empregadas de acordo com a repetitiva bibliografia disponível); (c) a apresentação dos dados do campo empírico (da descrição do caso em estudo); (d) a análise dos dados à luz da teoria (um confronto entre o idealizado e sua forma previamente condicionada de manifestação); (e) e a conclusão (não muito distante da obviedade). Tudo pode ser suprimido se o autor do texto optar por classificar sua pesquisa como ensaio teórico, ou seja, se admitir que a teoria não necessita da realidade e que ela dispensa o uso de técnicas (chamadas de metodologias).

Observando com atenção, este modelo não é apenas uma proposição de procedimentos, não é apenas uma forma de exposição, cumprindo uma disposição protocolar, mas é o próprio processo de produção do conhecimento, um já dado esquema epistemológico e metodológico. É epistemológico porque indica como o conhecimento científico deve ser produzido, ou seja, da teoria pressuposta para o campo empírico e, deste, de volta para a teoria, confirmando-a ou infirmando-a, total ou parcialmente. É metodológico porque, do mesmo modo, indica que o método de investigação parte de um referencial teórico dado que, uma vez submetido a determinadas técnicas de pesquisa, aponta para resultados que, de alguma forma, estão contidos tanto na teoria quanto nas técnicas empregadas. Assim, os resultados existem antes mesmo da investigação, pois são pressupostos, restando ao pesquisador apenas expor os detalhes singulares do que eventualmente encontrou em algum campo empírico (descrever seu ‘achado’). Não há possibilidades de diferentes dimensões epistemológicas e metodológicas que não sigam tal padrão. Este modelo de pesquisa é o que Hegel (2014Hegel, G. F. (2014). Fenomenologia do Espírito (9 ed.). Petrópolis: Vozes.; 2016-2018) chama de certeza sensível, ou seja, que se esgota na aproximação precária do sujeito pesquisador com o objeto, na captação imediata do real.

O modelo idealista desconsidera que a realidade imediata atua como um dado confuso para o sujeito, como uma apropriação fenomenológica provisória e convencional, que necessita ser inventariada e classificada segundo ensina Bachelard (2006Bachelard, G. (2006). A epistemologia. Lisboa: Edições 70.), pois a realidade se expressa necessariamente na fórmula garantida pela propriedade do modelo. Toda a aparência é uma confirmação que se esgota no imediato. Nesta concepção, a fase precedente (problematização) se confunde com a fase investigativa do campo empírico e ambas com a fase expositiva, porque a rigor a investigação parte de pressupostos teóricos precedentes cuja exposição precede a própria investigação empírica. Não há produção teórica. Há reprodução. A forma de exposição obedece a critérios formais, propedêuticos, didáticos, mas estes critérios não podem ser eles mesmos métodos de produção do conhecimento.

De fato, neste esquema, finda a prática idealista de investigação. O procedimento seguinte consiste em reproduzir o ‘modelo-padrão de exposição’. Assim, uma vez adotado o modelo de investigação idealizado (que junta as fases precedentes/problematizadoras e investigativas), segue-se o modelo de exposição (fase expositiva), que é ensinado em cursos específicos sobre ‘como escrever um trabalho acadêmico’. Os modelos de exposição obedecem a critérios avaliativos que nem sempre consideram a qualidade e o impacto social da pesquisa, na medida em que valorizam as citações recentes por pares em plataformas privadas. Chega-se a avaliar um estudo acadêmico considerando o critério do percentual de citações de outros estudos publicados em anos mais recentes em dadas bases convencionadas.

Por exemplo, o ISI3 3 . Eugene Garfield propôs o Science Citation Index (SCI) e fundou o Institute for Scientific Information (ISI), que desde 1992 pertence à Thomson Reuters. O modelo do fator de impacto foi primeiramente proposto para avaliar publicações de artigos científicos nas áreas das ciências físicas e da natureza, sendo, depois, estendido aos estudos em ciências humanas e sociais como uma espécie de régua universal. O Web of Science é um site que tem por base vários bancos de dados que fornecem dados de citações acadêmicas. Este site foi originalmente produzido pelo ISI e atualmente é mantido pela Clarivate Analytics. produz um banco de dados a partir de periódicos selecionados que compõem a análise quantitativa de referências e citações para o cálculo do fator de impacto, que utiliza a métrica por citações de artigos para qualificar as revistas. Com o tempo, surgiram outros indexadores que compõem a coleção Web of Science. É a partir dos periódicos que compõem o Web of Science que se calculam as diferentes estatísticas do Journal Citation Ranking (JCR), como o fator de impacto4 4 . Os fatores de impacto, a princípio, eram apenas um estudo estatístico de correlação. Posteriormente, se tornaram mandamentos religiosos, seguidos por instituições e pesquisadores sem nenhuma avaliação crítica. Daí a se tornarem regras policiais foi apenas um pequeno passo. O instituto se tornou um negócio no mercado acadêmico e o modelo se tornou o seu produto destinado a atender a consumidores de indicadores ávidos por algum livro sagrado do produtivismo acadêmico com seus mandamentos divinos imperativos. . O modelo de avaliação métrica rapidamente se tornou fator de avaliação científica, orientando processos de credenciamento e descredenciamento de docentes e de avaliação de programas por agências oficiais, realizados exatamente por pesquisadores que consideram a forma padronizada de pesquisa como a única ou mais importante referência científica. Este procedimento é, historicamente, uma negação da própria ciência e uma negação da sua condição de superar os ‘obstáculos epistemológicos’. As formas e os lugares de exposição vão se impondo sobre o conteúdo das pesquisas. As pesquisas vão se tornando cada vez mais descritivas e reprodutivas para assegurar a aprovação por pares sem maiores polêmicas.

A adoção de um modelo-padrão de pesquisa como sendo portador de práticas verdadeiramente científicas, considerando todas as demais falsas e/ou ‘subjetivas’, é acompanhada do modelo de avaliação das publicações que segue os mesmos procedimentos. O avaliador dos artigos segue o mesmo roteiro de análise imposto aos pesquisadores. Este processo de produção e avaliação em linha de montagem ou em cadeia produtiva cria o ‘monopólio epistemológico’, em que uma única concepção de produção do conhecimento detém o comando do ‘mercado epistêmico’ de determinado produto acadêmico, influenciando o valor da execução e da avaliação do Ato Epistemológico devido à regulamentação coercitiva e ao hábito (lembrando o Círculo de Viena) de manutenção e ampliação dos interesses de grupos acadêmicos que se reproduzem nas avaliações por pares. O monopólio epistemológico é a consecução da imposição de uma prática de produção do conhecimento que nega o próprio ato de produção do conhecimento (Ato Epistemológico). A separação entre conhecimentos precedentes (problematização), investigação e exposição alcança sua proeminência nos processos avaliativos regulares da agência pública5 5 . Em geral, estes processos avaliativos são burocráticos, tecnocráticos, recheados de registros nominais, e não se detêm na qualidade acadêmica e social do que avaliam, mas na produção de indicadores sem conteúdo, de “estatísticas” oficiais, de relatórios descritivos, de indicações classificatórias comparativas, enfim, de valorização do empirismo exatamente onde deveria ser o reino da ciência. Este processo mobiliza gestores e pesquisadores que, ao final, conseguem produzir apenas um relatório formal. .

É preciso questionar o modelo padrão idealista de pesquisa, cujos resultados se esgotam em análises descritivas, carentes de formulações teóricas e de aprofundamento criticamente elaborado. Se a realidade imediata se apresenta ao pesquisador enquanto um todo caótico, qual a justificativa para impor à realidade uma censura epistemológica? Por qual razão fundamentada a realidade deve ser analisada segundo um esquema apriorístico que se baseia na adoção das regras do monopólio epistemológico? Qual aprofundamento teórico pode ser obtido com descrições de fatos segundo rituais prescritivos e esquemas protocolares? O que garante que a teoria existente possa ser considerada uma verdade em si mesma ou uma verdade a ser testada (na versão neopopperiana)? Se a humanidade, como já alertava Engels (1979Engels, F. (1979). Anti-düring. Porto: Presença., p. 73), chegasse, em algum tempo,

“a um tal grau de progresso que só atuasse com verdades eternas, com produtos do exercício do pensamento que pudessem reivindicar uma validez soberana e títulos incondicionais de verdade, teria alcançado o ponto em que se teria esgotado a infinidade do mundo intelectual, tanto em relação à realidade como em relação às possibilidades, efetuando-se assim o famoso milagre da contagem do inumerável”.

Parece evidente, inclusive para os popperianos originais, que a contestação de uma teoria apenas pode ser realizada a partir de evidências empíricas. Então, por que a contestação de teorias deve se esgotar em descrições que não enfrentam estas teorias com outras teorias resultantes da investigação? Por que submeter a construção teórica crítica a um método autocentrado e a um modelo apriorístico de reprodução da teoria?

As deficiências encontradas pelo pesquisador em cada etapa de pesquisa dizem respeito ao próprio objetivo da investigação, à questão de pesquisa e às limitações teóricas, técnicas e do campo empírico, entre outros motivos que devem ser rigorosa e permanentemente avaliados pelo pesquisador. Contudo, quando o pesquisador define, em seu gabinete de pesquisa, o referencial teórico e os instrumentos de coleta de dados a priori, independentemente do objeto que deseja investigar, ele se encontra submetido a um tipo de censura epistemológica prévia (ao objeto, à construção teórica e ao pesquisador), que acompanhará sua pesquisa durante toda a investigação. Ao confrontar sua ideia, segundo uma teoria prévia, seu método e suas técnicas, com a realidade examinada, fatalmente o pesquisador idealista tenderá a encontrar o que pretendia ter encontrado antes mesmo de encontrá-lo, positiva ou negativamente, positiva ou negativamente, confirmando ou negando sua ‘hipótese’. Desse modo, o objeto (a matéria) dificilmente oferecerá resistência ao esquema, à técnica, ao método e ao pensamento, pois ele se encontra desde o início censurado pela ideia prévia que o pesquisador tem sobre ele. Com isso, o pesquisador também jamais poderá apreender o real de uma forma diferente e mais profunda do que aquela que já estava delimitada anteriormente. O que se tem, nesta relação, é o cerceamento do objeto e do pesquisador. Pouca coisa poderá sair desse script além do que já estava previamente ensaiado.

Se acontecer de o sujeito pesquisador perceber que o real tem mais a dizer do que o esquema de apreensão idealmente concebido ou que o que tem a mostrar possui um formato diferente do que aquele previsto na estampa teórica racionalizada no seu gabinete, o próprio procedimento o levará a buscar ou ‘recortar’ a realidade para fazê-la caber no esquema previamente montado ou ‘manipular o formato do esquema’, não para ampliá-lo, mas simplesmente para ajustá-lo à realidade encontrada. Isso ocorre porque, desde o início, a representação do real estava antes na ideia do que na relação entre o real e a ideia, entre a matéria e a consciência, entre o objeto e o sujeito.

É por isso que, ao criticar os chamados métodos empíricos, Adorno (2001Adorno, T. W. (2001). Epistemología y ciencias sociales. Madrid: Cátedra.) sustenta que esses métodos, cuja força de atração procede da pretensão à objetividade, privilegiam a subjetividade, as atitudes, as formas de comportamento dos sujeitos, cuja abstração se transforma em dados quantificáveis. Somente neste âmbito reduzido é que se preserva sua especificidade. A objetividade da investigação empírica é uma objetividade do método e não do objeto ou fato investigado. Os dados empíricos não se referem apenas aos obtidos pelas técnicas quantitativas. As técnicas qualitativas também se valem de artifícios empiristas. Isto significa que devem ser abandonadas as referências empíricas? De forma alguma. Isto significa que os dados em si, expostos como descrição de fatos, fenômenos ou objetos, não acrescentam senão uma informação, embora tratada, ao conhecimento. Os dados constituem partes importantíssimas de toda pesquisa, mas eles não constituem já a realidade senão sua forma abstrata em determinado nível. Sem elaboração teórica os dados não têm nada a agregar epistemologicamente à pesquisa além deles mesmos.

Sem embargo, as técnicas empiristas, sem elaboração teórica crítica, acabam por fetichizar o objeto degenerando-o em um objeto com poder sobrenatural de representar a realidade pesquisada. Os dados em si se tornam mais importantes que as reflexões teóricas que eles podem promover. A segurança da obviedade da análise (descritiva ou ancorada em pressupostos idealistas) ocupa o lugar da crítica, tendo por justificativa a objetividade e a neutralidade. É neste sentido que os dados obtidos empiricamente podem transformar aquilo que pretendem expor em um fetiche do concreto, fazendo desaparecer os sujeitos históricos reais e reduzindo-os a métricas (medidas, probabilidades, margem, média, mediana, repetições, incidência, etc.) puramente abstratas. Há procedimentos no processo de pesquisa que não têm como ser definidos a priori e que são apenas identificados concretamente durante o Ato Epistemológico. Isto não significa que técnicas estatísticas ou que análises empíricas de conteúdo ou de discurso sejam inúteis ou inadequadas. Tampouco significa ausência de rigor na definição de seus procedimentos. Significa a recusa à imposição de procedimentos apriorísticos aos processos de investigação, de análises descritivas e, portanto, a busca da garantia da observância da condição fundamental de não tornar tais procedimentos um obstáculo ao Ato Epistemológico criativo, crítico, capaz de romper teorias, conceitos e concepções existentes.

A ciência trabalha, necessariamente, com o que representa o alcance cognoscível da realidade, já que é altamente complexo (quando não impossível) representar a realidade em sua totalidade absoluta6 6 . As técnicas estatísticas procuram superar esta limitação pela definição não apenas da amostra do universo (da população), como da sua representatividade (por categorias, classes, etc.), dos procedimentos de sua obtenção, dos limites da representatividade (margem de erro, grau de confiança, etc.) e dos condicionantes dos resultados obtidos e seus significados. Evidentemente, por mais precisas que sejam as técnicas e os procedimentos, toda representatividade é uma abstração. . A impossibilidade concreta de representar a realidade em toda sua constituição e em todas as suas singularidades impõe a definição de elementos constitutivos e categorias de análise, que são abstrações necessárias da representação da realidade. A busca pela certeza inalcançável, nas condições de sua absolutização, impõe, portanto, uma reflexão sobre as possibilidades do Ato Epistemológico.

Neste sentido, é preciso superar as práticas pré-epistemológicas (o conhecimento é deduzido imediatamente, sem elaboração) que consistem em tomar os dados do campo empírico como verdades em si mesmas (a verdade é a matéria ela mesma à qual o sujeito tem acesso direto e imediato), ou em atribuir a verdadeira existência do objeto ao pensamento sobre ele, de forma que a matéria é o próprio pensamento criador. Também é preciso investir tanto (a) contra o hábito de tomar o modelo explicativo, o mapa mental ou mesmo as hipóteses enquanto sendo já, imediatamente, a realidade, como (b) contra o hábito de tomar os dados estatísticos, as narrativas, os documentos, as observações, enfim, os enunciados sobre o real como sendo eles mesmos o próprio real. Tomados como fundamentos da investigação, estes procedimentos pré-epistemológicos assemelham-se a tentativas de encaixar as peças conceituais com os enunciados (e vice-versa) em busca de algum significado que permita, ainda que aparentemente, confirmar o que já estava previamente definido pelo esquema teórico pressuposto.

Todo conhecimento dito verdadeiro, do senso comum ao científico, é produzido pela interação complexa, dinâmica e dialética entre a matéria e o pensamento, em que aquela é representada por este. A representação elaborada da realidade pelo pensamento é apropriada pela consciência como matéria (concreta) pensada. Por isto é que as formas da matéria se distinguem pela substância e não pelo ser matéria. Diferentemente da concepção que confere o protagonismo epistemológico à mistificação, em que as ideias sobre as coisas assumem o lugar das coisas das ideias, bem como da concepção que confere ao objeto a proeza de ser a origem imediata do seu conceito, a ‘consciência da matéria é matéria da consciência’. Deste modo, para se apropriar da matéria, o pensamento deve reconhecer a primazia do real ao mesmo tempo que estabelece sua interação com ele, ou seja, reconhecer que a matéria é exterior e anterior ao pensamento, mas não pode ser representada pela consciência sem a elaboração aprofundada do pensamento.

É preciso reafirmar o lugar da teoria como a forma objetivamente elaborada da representação da realidade, como exigência da condição científica para além da descrição, das menções fenomênicas, dos apontamentos, das narrativas, das formas, dos pressupostos e do misticismo ideológico. A teoria não é a garantia dogmática do conhecimento verdadeiro definitivo, mas da elaboração em profundidade, metodologicamente orientada, da condição ontoprática e epistêmica.

Portanto, sempre que um sujeito afirma o conhecimento sobre um fenômeno sem precisar demonstrá-lo concretamente, ele somente pode fazê-lo de duas formas: como ideologia, porque para o misticismo o pensamento se movimenta por si mesmo em sua pretensão de informar o objeto; ou como imediatismo, porque para o puro empirismo a aparência da coisa é já a própria coisa (a estátua da divindade é a divindade ela mesma). Ambos os processos se alimentam de concepções convencionadas que são ou meramente metafísicas (quando o conhecimento abstrai as referências concretas do objeto real), ou imediatamente físicas (quando o conhecimento sobre o objeto nada mais é do que uma elaboração nominal do pensamento).

Retomando o exposto logo no início desta pensata, o desafio da pesquisa qualificada é produzir teoria original, o que significa não deixar escapar pelos labirintos do produtivismo, do convencionalismo formal e da coerção imposta pelos critérios de avaliação e publicação as reflexões investigativas, as análises críticas, o tensionamento da realidade, a vigilância filosófica e a coerência ontoprática e epistemológica.

REFERÊNCIAS

  • Adorno, T. W. (2001). Epistemología y ciencias sociales. Madrid: Cátedra.
  • Bachelard, G. (2006). A epistemologia. Lisboa: Edições 70.
  • Durkheim, E. (1978). As regras do método sociológico. São Paulo: Abril Cultural.
  • Engels, F. (1979). Anti-düring. Porto: Presença.
  • Faria, J. H. de. (2015). Epistemologia crítica do concreto e os momentos da pesquisa: Uma proposição para os estudos organizacionais. RAM, Revista de Administração Mackenzie, 16(5), 15-40. https://doi.org/10.1590/1678-69712015/administracao.v16n5p15-40
    » https://doi.org/10.1590/1678-69712015/administracao.v16n5p15-40
  • Faria, J. H. de. (in press). Introdução à epistemologia: As dimensões do ato epistemológico. Jundiaí: Paco Editorial.
  • Habermas, J. (2016). Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: UNESP.
  • Hegel, G. F. (2014). Fenomenologia do Espírito (9 ed.). Petrópolis: Vozes.
  • Hegel, G. W. F. (2016). Ciência da lógica: A doutrina do ser. Petrópolis: Vozes.
  • Hegel, G. W. F. (2017). Ciência da lógica: A doutrina da essência. Petrópolis: Vozes.
  • Hegel, G. W. F. (2018). Ciência da lógica: A doutrina do conceito. Petrópolis: Vozes.
  • Popper, K. (2012). A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix.
  • Popper, K. (1975). Conhecimento objetivo. São Paulo: EDUSP.
  • Classificação JEL:

    M1, I2.
  • Relatório de Revisão por Pares:

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  • 1
    . Este processo burocrático e coercitivo é reproduzido com requintes minudentes nas instituições acadêmicas (normas, resoluções, decretos, medidas, instruções normativas, disciplinas ditas transversais, etc.) e serve de parâmetro dogmático aos gestores institucionais e aos pesquisadores. Parece haver certo prazer libidinal, egóico e orgástico no pronunciamento das regras e em sua fiscalização, bem como no atingimento das metas.
  • 2
    . Um dos fenômenos mais comuns na execução das pesquisas é encontrar um pesquisador à procura de um objeto que possa caber em seu modelo de análise. Todo o processo de pesquisa elaborado no gabinete está pronto, faltando apenas um objeto razoavelmente acessível e minimamente disponível e compatível. A disponibilidade e a compatibilidade, por seu turno, só são confirmadas depois de algumas tentativas de acesso ao ‘campo empírico’. Quando o pesquisador finalmente encontra algum caso empírico disponível e razoavelmente próximo de seu projeto, ocorre a magia da transformação em que, enfim, ele pode marcar a cerimônia da união voluntária entre o seu projeto e a realidade empírica, nas condições admitidas e sancionadas pelo aparato religioso da avaliação, de modo que se estabeleça uma família acadêmica legítima.
  • 3
    . Eugene Garfield propôs o Science Citation Index (SCI) e fundou o Institute for Scientific Information (ISI), que desde 1992 pertence à Thomson Reuters. O modelo do fator de impacto foi primeiramente proposto para avaliar publicações de artigos científicos nas áreas das ciências físicas e da natureza, sendo, depois, estendido aos estudos em ciências humanas e sociais como uma espécie de régua universal. O Web of Science é um site que tem por base vários bancos de dados que fornecem dados de citações acadêmicas. Este site foi originalmente produzido pelo ISI e atualmente é mantido pela Clarivate Analytics.
  • 4
    . Os fatores de impacto, a princípio, eram apenas um estudo estatístico de correlação. Posteriormente, se tornaram mandamentos religiosos, seguidos por instituições e pesquisadores sem nenhuma avaliação crítica. Daí a se tornarem regras policiais foi apenas um pequeno passo. O instituto se tornou um negócio no mercado acadêmico e o modelo se tornou o seu produto destinado a atender a consumidores de indicadores ávidos por algum livro sagrado do produtivismo acadêmico com seus mandamentos divinos imperativos.
  • 5
    . Em geral, estes processos avaliativos são burocráticos, tecnocráticos, recheados de registros nominais, e não se detêm na qualidade acadêmica e social do que avaliam, mas na produção de indicadores sem conteúdo, de “estatísticas” oficiais, de relatórios descritivos, de indicações classificatórias comparativas, enfim, de valorização do empirismo exatamente onde deveria ser o reino da ciência. Este processo mobiliza gestores e pesquisadores que, ao final, conseguem produzir apenas um relatório formal.
  • 6
    . As técnicas estatísticas procuram superar esta limitação pela definição não apenas da amostra do universo (da população), como da sua representatividade (por categorias, classes, etc.), dos procedimentos de sua obtenção, dos limites da representatividade (margem de erro, grau de confiança, etc.) e dos condicionantes dos resultados obtidos e seus significados. Evidentemente, por mais precisas que sejam as técnicas e os procedimentos, toda representatividade é uma abstração.
  • Método de Revisão por Pares

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Editado por

Editor-chefe:

Marcelo de Souza Bispo (Universidade Federal da Paraíba, PPGA, Brasil)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2022
  • Revisado
    18 Abr 2022
  • Aceito
    19 Abr 2022
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