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A infância pelo olhar da psiquiatria na Itália do início do século XX: Sante De Sanctis

Childhood through the eyes of psychiatry in Italy at the beginning of the 20th century: Sante De Sanctis

Sante De Sanctis le origini dela neuropsichiatria infantile nell’Universitá di Roma: la dementia praecocíssimaMorgese, G.; Lombardo, G. P.. Roma, IT: Sapienza Universitá Editrice, 2017, 194 págs.

Nesse livro mergulhamos nas origens da neuropsiquiatria infantil na Itália, por meio da obra de Sante De Sanctis (1862-1935), autor que contribuiu para a formação do campo da neuropsiquiatria como disciplina autônoma, e um de seus fundadores. A importância dessa obra deriva, dentre outras razões, da escassez de estudos históricos sobre o percurso científico e institucional da neuropsiquiatria infantil. O livro é produto do Laboratório de História da Psicologia, da Università di Roma Sapienza (Lombardo & Morgese, 2017Lombardo, G. P. , & Morgese, G. (2017). Fare e divulgare la ricerca storica: il laboratorio e l’archivio online di storia della psicologia della “Sapienza” Università di Roma. Memorandum, 33, 37-50. ).

A introdução contém uma apresentação da trajetória de De Sanctis, médico, e figura de interesse para a história da psicologia e da psiquiatria, especialmente na Itália. O autor obteve projeção destacada em seu país, e reconhecimento em outros países, incluindo o Brasil. Foi catedrático de Psicologia Experimental e de Clínica das Doenças Nervosas e Mentais na Universidade de Roma Sapienza. Contribuiu para a construção de uma concepção de neuropsiquiatria infantil que ultrapassasse as noções fundamentadas em argumentos biológicos, consensualmente estabelecidas no contexto científico da época, marcados pela antropologia positivista, destacando-se influências de Morel (1809-1873) e Lombroso (1835-1909).

O primeiro capítulo apresenta uma reconstrução do contexto psiquiátrico italiano do final do século XIX e início do século XX, período em que há um esforço para a formulação de classificação para as doenças mentais e para a criação de legislação que estabelecesse o trato oficial com a loucura. Na Itália, essa lei será efetivamente promulgada em 1904 e permanecerá em vigor até 1978. Esta não fazia menção à infância, e não havia uma lei específica para tal. As primeiras instituições destinadas à infância foram inauguradas no final do século XIX, e buscavam tratar crianças consideradas degeneradas, com tendências criminais. Em 1899, De Sanctis fundou um asilo-escola para a assistência de crianças consideradas anormais.

A criação de instituições para a infância veio no bojo de uma trans-formação da sua concepção. Passa a ser esquadrinhada, com medidas antro-pométricas e testes psicológicos. O desenvolvimento da psiquiatria infantil se deu em contexto de formação do Estado Moderno e defesa social, com necessidade crescente de controle sobre os indivíduos.

O segundo capítulo aborda a educabilidade da infância considerada anormal. De Sanctis, nos estudos da inteligência, dispensa medidas antro-pométricas e desenvolve um teste psicológico de inteligência, os Reativos de De Sanctis, para definir o grau de deficiência intelectual entre grave, médio e leve. Defendia a importância de estabelecer diagnóstico, prognóstico e consequente tratamento para a infância, com programa educativo individual. A escola deveria ser um espaço para contrabalançar a anomalia hereditária. O ambiente seria elemento mais importante para o prognóstico que as deter-minações biológicas.

No capítulo 3 há uma incursão ao diagnóstico de dementia praeco-cissima definido por De Sanctis, e sua relação com a classificação nosográfica do período. Em 1906, o autor define esse diagnóstico como uma condição psicopatológica com sintomas de incoerência afetiva; estranheza de humor, comportamento e expressão; tendência a falar, rir e gesticular sozinho; linguagem incoerente e estereotipias verbais. Esse diagnóstico se aproxima ao de demência precoce de Emil Kraepelin (1856-1926), com o diferencial de ter início na infância. Foi reconhecido em território nacional e internacional, sendo utilizado em hospitais psiquiátricos na Itália.

No quarto capítulo há uma análise da institucionalização e reconhe-cimento acadêmico da neuropsiquiatria infantil na Itália, que ocorre após a Segunda Guerra Mundial, em um processo no qual Carlo De Sanctis (1888-1973) e Giovanni Bollea (1913-2011) tiveram papel de relevância. Os autores viam a educabilidade de De Sanctis, vinculada à família e ao ambiente, e o asilo-escola, instituição que De Sanctis defendia, como importante recurso se direcionado também à educação dos pais.

Ao final do livro, estão publicados três textos de autoria de Sante De Sanctis, relevantes para compreender a sua concepção de neuropsiquiatria infantil e da demência precocíssima. Sendo: “Sopra alcune varietà dela demenza precoce”, de 1906; “La neuropsichiatria infantile”, de 1923; e, um capítulo de Neuropsiquiatria infantil, publicado em 1925, intitulado “Demenza precoce infanto-puerile (demenza precocíssima o schizofrenia prepuberale)”.

A publicação de Morgese e Lombardo (2017)Morgese, G., & Lombardo, G. P. (2017). Sante De Sanctis le origini dela neuropsichiatria infantile nell’Università di Roma: la dementia praecocissima. Roma, IT: Sapienza Università Editrice. é uma obra completa que aborda as origens da neuropsiquiatria infantil na Itália, reconstruindo o contexto intelectual e institucional do período, da Itália e Europa, sobre infância, loucura, deficiência intelectual e educação, e apresentam de forma cuidadosa um intelectual com inúmeras contribuições no campo da psicologia e da psiquiatria.

A obra aponta para a compreensão da produção de uma concepção de infância anormal, digna de estudos científicos pela psiquiatria, psicologia e pedagogia. Infância que se torna objeto de estudos e de assistência. Pode-se ver semelhanças com o contexto brasileiro. Influências teóricas presentes no cenário italiano tornaram-se relevantes para compreender a produção intelectual brasileira do fim do século XIX e início do século XX. Fatores como a formação do Estado Moderno, e a relevância que a infância assume, também estão presentes no Brasil desse período (Ribeiro, 2003Ribeiro, P. R. M. (2003). A criança brasileira nas primeiras décadas do século XX: a ação da higiene mental na psiquiatria, na psicologia e na educação. In M. L. Boarini, Higiene e raça como projetos: higienismo e eugenismo no Brasil. Maringá, PR: Eduem.). Neste sentido, a obra serve de guia para uma compreensão das origens históricas da neuropsiquiatria infantil. E oferece a oportunidade de ler importantes textos de De Sanctis relacionados à área.

Referências

  • Lombardo, G. P. , & Morgese, G. (2017). Fare e divulgare la ricerca storica: il laboratorio e l’archivio online di storia della psicologia della “Sapienza” Università di Roma. Memorandum, 33, 37-50.
  • Morgese, G., & Lombardo, G. P. (2017). Sante De Sanctis le origini dela neuropsichiatria infantile nell’Università di Roma: la dementia praecocissima Roma, IT: Sapienza Università Editrice.
  • Ribeiro, P. R. M. (2003). A criança brasileira nas primeiras décadas do século XX: a ação da higiene mental na psiquiatria, na psicologia e na educação. In M. L. Boarini, Higiene e raça como projetos: higienismo e eugenismo no Brasil Maringá, PR: Eduem.
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2020
  • Aceito
    15 Nov 2020
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