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"Atuação psicológica"

"Atuação psicológica"

Ana Maria Almeida Carvalho

Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia-USP

Alguns elementos para uma reflexão sobre os rumos da profissão e da formação

Nos vários trabalhos — que nos últimos anos têm se multiplicado — sobre as condições de atuaçõo do psicólogo em nosso meio, é uma freqüente a constatação da limitada diversidade dessa atuaçõo, associada a uma restrição progressiva do espaço que os novos profissionais encontram no mercado de trabalho. A análise dos determinantes dessa situação pode ser feita — e o tem sido — em diversos níveis: o da história e da ideologia da profissão em nosso meio, e das condições em que se dá a formação profissional, o da imagem social da profissão e dos espaços criados para ela em nossa sociedade, o das características da população que procura os cursos de Psicologia, e assim por diante (Mello, 1975; Carvalho, 1982; Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo e Conselho Regional de Psicologia — 6ª Região, 1984 e Gip, 1982).

O que vamos tentar fazer aqui é retomar o problema da limitação da atuação profissional através da pergunta: — O que é, para o psicólogo, "atuação psicológica"? Esta formulação, obviamente, não exclui ou dispensa os níveis de análise citados acima: ao contrário, tem que ser pensada como resultante deles e neles implícita, como um dos elementos mediadores na rede de relações que explica as características concretas da atuação psicológica em nosso meio.

Este ângulo de análise foi sugerido e já esboçado em um trabalho anterior (Carvalho, 1984-a), no qual encontramos indícios de que um conceito limitado de atuação psicológica pode constituir um dos empecilhos para o exercício de atividades profissionais em áreas novas; isto ocorreria, principalmente, através dos sentimentos de desconforto e insegurança que são despertados no psicólogo pelo exercício de atividades que não lhe propiciam uma "identidade profissional" inequivocamente psicológica, e que acabam por levá-lo ao abandono da atividade, ou mesmo da profissão.

O que é, para o psicólogo, "atuação psicológica"? Não dispomos de dados diretos sobre essa questão, pois ela não foi formulada aos nossos entrevistados; a contribuição que podemos — ou esperamos — dar para sua resposta é reunir alguns aspectos dos resultados de nosso levantamento com psicólogos recém formados em São Paulo (Carvalho, 1982) — aqueles aspectos que nos pareceram capazes de alimentar uma reflexão sobre a pergunta proposta.

O Critério da Conceituação

Entre os critérios pelos quais "atuação psicológica" pode ser conceituada, os psicólogos de nossa amostra tendem a priorizar a natureza da agência através da qual prestam serviço. O fato de utilizarem técnicas psicológicas e o de lidarem com "fenômenos psicológicos" só aparecem como critérios quando se trata dos domínios mais tradicionais da Psicologia: testes, lidar com problemas de desajustamento individual, etc..

Quando a natureza da agência é priorizada como critério, encontramos, por exemplo, psicólogos que definem sua atuaçõo como clínica, em função de ser exercida em consultórios particulares (Mello, 1975); ou os que definem como "Psicologia Social", e não como clínica, o atendimento clínico que oferecem para população de baixa renda em instituições ou centros comunitários (Carvalho, 1984-a).

Por outro lado, encontramos psicólogos que chamam de Trabalho em Psicologia a sua atuação de caráter voluntário e assistencial em entidades como a Organização Auxílio Fraterno (OAF); e aqueles que, atuando por exemplo na direção de uma creche, têm dificuldades com sua identidade profissional, por não perceberem nitidamente os limites entre seu nível de atuação e o do pedagogo ou o do assistente social (Carvalho, 1984-a).

O que esses fatos sugerem é que o conceito de atuação psicológica não é claro para estes psicólogos, ou mesmo que não existe para eles um conceito da atuação psicológica por equiparação a um modelo aprendido — as atuações claramente percebidas como psicológicas são as que envolvem as técnicas específicas e problemas específicos com os quais o psicólogo entrou em contato durante sua formação. Nesse sentido, a limitação no conceito de atuação psicológica, que encontramos nestes psicólogos, reflete também a pequena diversidade de modelos de atuação a que são expostos nos cursos — e isso nos remete a um outro ponto.

A Questão da Formação

Ao analisarmos a avaliação que os psicólogos da amostra fizeram sobre seu curso de graduação (Carvalho, 1984-b), encontramos duas constantes: a oposição entre formação teórica e formação prática, e a questão da diversificação de opções.

Nas quatro faculdades que foram amostradas (USP, PUC, São Marcos e Objetivo), a formação "Teórica" tende a ser avaliada positivamente (68% das respostas que focalizaram este aspecto) e a formação "prática" negativamente (86% das respostas que focalizaram este aspecto); essa dicotomização já reflete, nos parece, um modo particular de conceber a preparação para a atuação profissional, e, implicitamente, também uma determinada concepção sobre o que é essa atuação.

Além disso, em diversos momentos os psicólogos entrevistados indicam sua insatisfação com a pequena diversidade de opções de atuação oferecidas pelos cursos. Dos 367 psicólogos entrevistados que responderam à questão: "Área de atuação para a qual seu curso preparou melhor", 66% indicaram a área clínica, 7% a área de trabalho, 5,4% a área escolar, e os restantes deram outras respostas (Outra área: 3%; todas as áreas, 18,5%). Há algumas diferenças sugestivas entre as faculdades: a diversificação das respostas tende a ser maior nas faculdades em que há opção obrigatória ou pelo menos opção possível pela especialização em uma área, como era o caso da São Marcos na ocasião em que foi feito o levantamento de dados.

Por outro lado, quando se analisa o conteúdo das avaliações feitas por esses mesmos psicólogos sobre sua formação verificamos que a ênfase em uma área tende a ser avaliada positivamente (com exceção de alunos da USP), e que, nas quatro faculdades, a falta de ênfase em mais áreas é avaliada negativamente. E, ainda, que os estágios tendem a ser avaliados positivamente do ponto de vista qualitativo, e negativamente do ponto de vista quantitativo.

Tomados em conjunto, esses vários aspectos — inclusive, e talvez até principalmente a oposição entre formação teórica e formação prática — nos sugerem que a concepção de formação profissional que prevalece nessa população é a da formação especializada, ou da compartimentalização das áreas de atuação, como se, para atuar em diferentes situações de trabalho, o psicólogo devesse conhecer diferentes referenciais de análise e diferentes técnicas — diferentes Psicologias? Esse modo de pensar a formação profissional se aproxima perigosamente, de acordo com nosso ponto de vista, de um modelo de formação técnica, entendida como o treinamento do profissional no uso de instrumentos prontos, designados para cada situação específica de trabalho.

Este comentário não implica a sugestão de que os cursos não deveriam diversificar as situações nas quais o aluno é exposto à Psicologia. Antes, implica que o objetivo dessa diversificação não seria dar "formação prática" em cada uma das possíveis situações de atuação do psicólogo — o que é, no mínimo um objetivo pouco viável — mas, sim capacitar o aluno para a análise dessas situações,e do nível em que a atuação psicológica é possível em cada uma delas, para a escolha — ou mesmo a criação ou adequação — de técnicas para essa atuação; dito de outra forma, a diversificação de situações de trabalho durante a formação poderá dar ao aluno a oportunidade de construir um conceito de atuação psicológica — o que não se confunde com o "reconhecimento" de determinada modalidade de atuação como psicológica por sua semelhança ou equiparação a modelos conhecidos e definidos como tal.

Deve-se ainda salientar que a oposição ou dicotomização entre formação "teórica" e "prática", que também subjaz à concepção da formação profissional como uma série de especializações, não aparece gratuitamente na cabeça do aluno — pelo menos em alguma medida, ela reflete as características dos cursos de psicologia, sua estrutura curricular, seu caráter fragmentado, e, talvez, principalmente, sua desvinculação da realidade — para usar as palavras com que vários de nossos entrevistados, independentemente da faculdade de origem, criticam o caráter acadêmico e estático dos cursos que fizeram.

Se a formação em psicologia não transmite ao aluno — ou não o leva a elaborar — um conceito amplo de atuação psicológica, abstraído dos modelos específicos de trabalho aos quais é exposto nos cursos, parece-nos que não estamos formando profissionais capazes de construir a psicologia, mas apenas de repeti-la — o que é mais um entre os múltiplos fatores que emperram a expansão da profissão em nosso meio.

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, A.M.A. A profissão em perspectiva. Psicologia, 1982, 8 (2).

CARVALHO, A.M.A. Modalidades alternativas de trabalho para psicólogos recém-formados.Cadernos de Análise do Comportamento, 1984-a, 6, 1-14

CARVALHO, A.M.A. Formação em Psicologia em São Paulo: o ponto de vista do aluno. Comunicação apresentada na 36ª Reunião Anual da SBPC, S.P., 1984-b.

GIL, A.C. O psicólogo e sua ideologia. Tese de Doutoramento não publicada, FESPSP, 1982.

MELLO, S.L. Psicologia e Profissão em São Paulo. S.P. Ática. 1975.

SINDICATO DOS PSICÓLOGOS NO ESTADO DE SÃO PAULO E CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA — 6ª Região. O perfil do psicólogo no Estado de São Paulo. S.P., Cortez, 1984.

  • CARVALHO, A.M.A. A profissão em perspectiva. Psicologia, 1982, 8 (2).
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  • GIL, A.C. O psicólogo e sua ideologia. Tese de Doutoramento não publicada, FESPSP, 1982.
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  • SINDICATO DOS PSICÓLOGOS NO ESTADO DE SÃO PAULO E CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA — 6ª Região. O perfil do psicólogo no Estado de São Paulo. S.P., Cortez, 1984

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2012
  • Data do Fascículo
    1984
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