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Educação em Saúde segundo os preceitos do Movimento Feminista: estratégias inovadoras para promoção da saúde sexual e reprodutiva

Educación en Salud de acuerdo a los preceptos del Movimiento Feminista: estrategias innovadoras para promoción de la salud sexual y reproductiva

Resumo

Objetivo:

Apresentar uma reflexão sobre a prática educativa em saúde sexual e reprodutiva, segundo o Movimento Feminista.

Métodos:

Estudo teórico-reflexivo, baseado na literatura e na percepção das autoras, com intuito de fomentar a discussão sobre as possibilidades e potencialidades da prática educativa para promover a saúde sexual e reprodutiva.

Resultados:

A promoção da saúde sexual e reprodutiva, pode ser enriquecida com os ensinamentos, metodologias e abordagens oriundas do Movimento Feminista, que consideram a integralidade como norteadora das ações educativas.

Conclusão:

Assim, para o delineamento de novas maneiras de intervir neste contexto da saúde sexual e reprodutiva através da prática educativa, é válido resgatar as abordagens e a concepção de integralidade através da valorização do sujeito e das suas experiências vivida, como era feito pelo Movimento Feminista.

Palavras-chave:
Educação em Saúde; Feminismo; Direitos Sexuais e Reprodutivos.

Resumen

Objetivo:

Presentar una reflexión acerca de la práctica educativa en salud sexual y reproductiva según los preceptos del Movimiento Feminista.

Métodos:

Estudio teórico y reflexivo, basado en la literatura y percepción de los autores con el objetivo de fomentar el debate sobre las posibilidades y potencialidades de la práctica educativa para promoción de la salud sexual y reproductiva.

Resultados:

La promoción puede ser enriquecida a partir de las enseñanzas, metodologías y enfoques oriundos del Movimiento Feminista, que considera la integralidad el guía de las actividades educativas.

Conclusión:

De ese modo, para el diseño de nuevas formas de intervención en este contexto de salud sexual y reproductiva por medio de la práctica educativa, vale la pena rescatar los enfoques y la integridad de la concepción a través de la apreciación del sujeto y sus experiencias, como se hacía en el Movimiento Feminista.

Palabras chave:
Educación en Salud; Feminismo; Derechos Sexuales y Reproductivos.

Abstract

Objective:

To present a reflection on the educational practice in sexual and reproductive health, according to the feminist movement.

Methods:

A theoretical and reflective study was performed, based on the literature and perception of the authors, aiming to foster discussion about the possibilities and potential of educational practice to promote sexual and reproductive health.

Results:

The promotion of sexual and reproductive health can be enriched with the teachings, methodologies and approaches coming from the feminist movement, considering comprehensiveness as the guiding principle for educational activities.

Conclusion:

Approaches and the concept of comprehensiveness should be recovered through the appreciation of participants and their experiences, as performed by the Movement feminist, so that new ways to intervene in the context of sexual and reproductive health through educational practice can be developed.

Keywords:
Health Education; Feminism; Sexual and Reproductive Rights

INTRODUÇÃO

Buscando conhecer os temas abordados nos grupos de Educação em Saúde Sexual e Reprodutiva, foi realizada revisão integrativa no período de julho a agosto de 2014, na base de dados da Biblioteca Virtual de Saúde, sendo identificada uma lacuna entre o que foi proposto pelas diretrizes do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), um marco histórico na atenção à saúde da mulher, pela atual Política Nacional de Atenção à Saúde da Mulher (PNAISM) e o que está sendo oferecido na prática, pois a revisão revelou que grande parte das atividades educativas estão reduzidas à transmissão de informação sobre contracepção e doenças sexualmente transmissíveis. Assim, além de não serem contemplados temas referentes à sexualidade, métodos conceptivos e questões de gênero, entre outras, a realidade e as necessidades dos participantes estão sendo ignoradas11 Paiva CCN, Villar ASE, Lemos A. 2014. Temas abordados nos grupos educativos de Saúde Sexual e Reprodutiva: uma Revisão Integrativa. Revista Cuidado é fundamental online. No prelo 2015..

Portanto, faz-se pertinente resgatar alguns preceitos da educação em saúde defendidos e divulgados pelo Movimento Feminista, que buscam favorecer a real importância da prática educativa na promoção da igualdade de direitos, cidadania e do respeito no que tange à saúde sexual e reprodutiva, sendo que tais preceitos estão sendo colocados em segundo plano na realidade atual22 Falkenberg MB, Mendes TPL, Moraes EP, Souza EM. Educação em saúde e educação na saúde: conceitos e implicações para a saúde coletiva. Cienc. saude colet. 2014 Mar.; [citado 2015 abr 01];19(3): 847-52. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014193.0157201.
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Empregar as ações educativas reconhecendo-as em sua essência e valor, assim como era considerada pelo Movimento Feminista nas décadas de 70 e 80, pode ser uma estratégia de sucesso, para que tal desafio se torne realidade. Esse Movimento defendia que a promoção da saúde deveria ser considerada uma forma de garantir a participação da população para que, de fato, esta alcançasse a melhoria na qualidade de vida e saúde. Assim, a Educação em Saúde como estratégia pautada na integralidade, deve reforçar e estimular a participação do indivíduo como sujeito ativo, consciente, autônomo em relação ao seu corpo, saúde e bem estar, livre para fazer suas escolhas e buscar o atendimento de suas necessidades33 Vasconcelos, V.M., Frota, M. A., Martins, M. C., & Machado, M. M. T. Child care in nursing and health education: mother's perception in family health strategy. Esc. Anna Nery. 2012 Apr./June;[cited 2015 apr 01];16(2):326-31. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v16n2/17.pdf
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No contexto da abordagem educativa, a integralidade corresponde a uma assistência oferecida individual ou coletivamente, pautada na escuta ativa e compreensiva, que valoriza a subjetividade do usuário buscando compreender e atender as suas necessidades de modo empático e resolutivo44 Pereira AL. Ações educativas em contracepção: teoria e prática dos profissionais de saúde [tese]. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação e Saúde Coletiva, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2008.. É nesse contexto que abordaremos questões inerentes à saúde sexual e reprodutiva segundo a proposta de saúde integral da mulher, estimulada pelo Movimento Feminista e reforçada pelo PAISM, em cujos âmbitos o conceito de "saúde reprodutiva" faz alusão ao preceito da reprodução como direito, e não como dever. Já a "saúde sexual" procura garantir o exercício livre da sexualidade como elemento fundamental da autonomia feminina, no sentido de abarcar uma mudança de olhar e de perspectiva em relação às mulheres que, desse modo, passam a ser consideradas como sujeitos físicos e sociais55 Villela W. Redefinindo o objeto de trabalho a partir do conceito de gênero e da conferência internacional sobre população e desenvolvimento. In: Saúde das mulheres. Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000..

Apesar das políticas que orientaram os preceitos da prática educativa em saúde sexual e reprodutiva, algumas pesquisas apontam que tal abordagem está sendo relegada a "segundo plano no planejamento e organização dos serviços, na execução das ações de cuidado e na própria gestão"2:8482 Falkenberg MB, Mendes TPL, Moraes EP, Souza EM. Educação em saúde e educação na saúde: conceitos e implicações para a saúde coletiva. Cienc. saude colet. 2014 Mar.; [citado 2015 abr 01];19(3): 847-52. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014193.0157201.
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. Dessa forma, concorda-se com a literatura científica quando afirma que, de fato, existe um desafio a ser superado, qual seja, o de se mudar a concepção de educação tradicional66 Nunes V, Sampaio A, Nogueira D, Almeida JH. Educação em saúde envolvendo cuidadores de idosos no ambiente domiciliar. Rev. Bras. Med. Fam. Comunidade. 2014 Abr./Jun.; [citado 2015 abr 01];9(31): 227-32. Disponível: http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc9(31)697
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, uma vez que na atualidade, muitas destas práticas estão pautadas no modelo biológico, o que impossibilita o alcance do propósito da Educação em Saúde que, como foi bem assinalado pelo Movimento Feminista, deve garantir a autonomia, a emancipação e a capacitação dos envolvidos a fim de que façam escolhas e tomem decisões apropriadas para promover, manter e recuperar sua saúde.

Assim, o ato de educar em saúde, ou o processo de Educação em Saúde, caracteriza-se por um conjunto de práticas que colaboram para a autonomia das pessoas no seu cuidado e no debate com os profissionais e as esferas governamentais, a fim de alcançar uma atenção de saúde compatível com as necessidades dos usuários do sistema de saúde77 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. 4ª ed. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2006. 68p..

A saúde sexual e reprodutiva é um dos temas de saúde contemplado pela estratégia educativa desde o Movimento Feminista e do PAISM, sendo considerado essencial para estimular o empoderamento das mulheres no cuidado com sua vida e saúde. A propósito, o Ministério da Saúde orienta que o planejamento familiar deve ofertar atividade educativa, aconselhamento e atividade clínica, considerando a saúde sexual e reprodutiva como um direito de qualquer cidadão88 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Assistência em Planejamento Familiar: Manual Técnico/Secretaria de Políticas de Saúde, Área Técnica de Saúde da Mulher. 4ª ed. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2002. 150p. no âmbito da assistência na atenção primária à saúde, através do Programa Saúde da Família (PSF) criado em 1994 com o propósito de reorganizar a assistência nesse nível de atenção, a fim de reconhecer as necessidades dos usuários para reorientação das práticas de saúde com ênfase sua na promoção99 Alves LHS, Boehs AE, Heidemann ITSB. A percepção dos profissionais e usuários da estratégia de saúde da família sobre os grupos de promoção da saúde. Texto Contexto Enferm. [online]. 2012 Apr./June; [citado 2015 abr 01];21(2):401-8. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072012000200019.
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A literatura científica consultada1010 Santos JC, Freitas PM. Planejamento familiar na perspectiva do desenvolvimento. Cienc. saude colet. [online]. 2011 Mar.; [citado 2015 abr 01];16(3):1813-20. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011000300017.
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orienta quanto à ampliação dos temas abordados no planejamento familiar, sugerindo também a incorporação de temas direcionados ao desenvolvimento da família, tais como: planejamento do cuidado com a saúde, orçamento e questões reprodutivas, igualdade de gênero, aspectos afetivos, entre outros. Ainda assinala que a prática educativa é um ponto-chave para a efetividade do planejamento familiar, assim, destaca a importância da utilização de metodologias participativas com técnicas psicoeducativas, pois, desta forma, acredita-se que tal atividade pode colaborar na promoção e na manutenção da qualidade da saúde sexual e reprodutiva1010 Santos JC, Freitas PM. Planejamento familiar na perspectiva do desenvolvimento. Cienc. saude colet. [online]. 2011 Mar.; [citado 2015 abr 01];16(3):1813-20. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011000300017.
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O estudo de revisão integrativa de literatura1111 Mascarenhas BN, Melo MCM, Fagundes CN. Produção do conhecimento sobre promoção da saúde e prática da enfermeira na Atenção Primária. Rev. Bras. Enferm. 2012 Nov./Dec.; [citado 2015 abr 01]; 65(6)991-9. Disponível: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=267025361016.
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acerca do conhecimento da promoção da saúde e prática da enfermeira na Atenção Primária à Saúde (APS), mostrou que dentre as oito publicações analisadas, apenas uma reconheceu a atividade educativa como estratégia a ser utilizada para o alcance da promoção da saúde, fato este que chama atenção e leva a inferir que este assunto e outros a ele vinculados, possam estar sendo relegados a segundo plano ou mesmo sendo abordados inadequadamente na implementação dessa prática.

Desse modo, é possível inferir que, em alguns contextos, as práticas educativas ofertadas no âmbito da saúde sexual e reprodutiva destoaram daquilo que foi proposto pelo Movimento Feminista, haja vista que tal problemática reforça a necessidade de construção de atividade de educação em saúde transversal, por meio de ações contextualizadas de acordo com as necessidades dos participantes, aliadas a saberes e práticas que sejam pautadas no respeito, na dignidade, na humanização e na integralidade1111 Mascarenhas BN, Melo MCM, Fagundes CN. Produção do conhecimento sobre promoção da saúde e prática da enfermeira na Atenção Primária. Rev. Bras. Enferm. 2012 Nov./Dec.; [citado 2015 abr 01]; 65(6)991-9. Disponível: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=267025361016.
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Diante do exposto, este artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão acerca do verdadeiro ideal dessa prática em saúde sexual e reprodutiva, segundo as estratégias de ação orientadas pelo Movimento Feminista, isto porque percebe-se atualmente a necessidade de reestruturar essas práticas para que sejam efetivamente colocadas em primeiro plano nas ações de promoção da saúde sexual e reprodutiva, com observância rigorosa dos preceitos da integralidade. Desse modo, acredita-se que a prática educativa será uma aliada para fortalecer a capacidade de escolha do indivíduo, respeitando sua autonomia e garantindo sua emancipação nesse processo66 Nunes V, Sampaio A, Nogueira D, Almeida JH. Educação em saúde envolvendo cuidadores de idosos no ambiente domiciliar. Rev. Bras. Med. Fam. Comunidade. 2014 Abr./Jun.; [citado 2015 abr 01];9(31): 227-32. Disponível: http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc9(31)697
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MÉTODOS

Trata-se de estudo teórico-reflexivo, baseado na literatura e na percepção das autoras, buscando discutir sobre as possibilidades de promoção da saúde sexual e reprodutiva através da prática educativa, pela perspectiva do PAISM e do Movimento Feminista, os quais já indicaram a efetividade das metodologias e abordagens participativas, dentre outras estratégias que devem ser consideradas no âmbito da prática educativa.

Foi utilizado referencial teórico relativo à publicações sobre as ações educativas realizadas pelo Movimento Feminista e sobre as propostas do PAISM para a promoção da saúde sexual e reprodutiva das mulheres, por meio de fontes como publicações do Ministério da Saúde, livros e artigos de periódicos científicos disponibilizados na biblioteca virtual SciELO, utilizando os descritores: Saúde da Mulher, Movimento Feminista, Educação em Saúde, saúde Sexual e Reprodutiva. Foram utilizadas fontes publicadas no período de 2005 a 2014. A reflexão ressaltou aspectos referentes aos temas: Educação para autonomia e liberdade: histórico e influências do Movimento Feminista; Experiências dos grupos educativos no Movimento Feminista: contribuições para inovação da abordagem em saúde sexual e reprodutiva.

Educação para autonomia e liberdade: Histórico das influências do Movimento Feminista

Os grupos de mulheres que refletiam conjuntamente sobre o cotidiano do 'ser mulher', foram difundidos pelos Estados Unidos e incorporados ao Movimento Feminista internacional, em 1966. À época, eram grupos considerados autônomos, cujos membros realizavam reuniões semanais nas casas das próprias participantes, cerca de dez mulheres em cada encontro. Utilizavam a técnica dos revolucionários chineses de "Falar da Dor para Reviver a Dor" (e assim, superá-la); dessa forma, era possível o diálogo a respeito das vivências/experiências acerca de temas de interesse das participantes: sexualidade, maternidade, relações afetivas e de trabalho, entre outros1212 Sardenberg CMB. Considerações Introdutórias às Pedagogias Feministas. Feminismo, Ciência e Tecnologia. Salvador (BA): NEIM/UFBA:REDOR; 2002..

O primeiro grupo de feministas do Rio de Janeiro formou-se de forma lenta e tímida, em 1975, como um movimento político específico que recebeu o nome de Centro da Mulher Brasileira (CMB), sendo contrário à opressão histórica, política e capitalista a que eram submetidas as mulheres. O grupo oportunizou o início de trabalhos, reflexões e estudos que abordaram os problemas enfrentados pelas mulheres no Brasil, como o direito da vivência da maternidade como opção, e assim lutaram para que o Estado desenvolvesse ações propositivas em saúde reprodutiva1313 Pitanguy J. O movimento nacional e internacional de saúde e direitos reprodutivos. In: Giffin K, Costa SH, org. Questões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 19-38..

Em 1981, na cidade de São Paulo, Elisabeth Souza Lobo, Maria José de Oliveira Araújo e Maria Tereza Verardo fundaram o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que teve como propostas o resgate da saúde como uma questão de direito das mulheres e a discussão sobre as questões políticas e pessoais vivenciadas na época. Os primeiros trabalhos do Coletivo realizaram-se em sindicatos, associações de bairros e outras entidades, situados na periferia e nos municípios vizinhos de São Paulo, onde eram ministrados cursos de sensibilização para questões vinculadas à saúde da mulher com o propósito de possibilitar-lhe refletir sobre seu corpo, saúde, contracepção e maternidade, além de estimular a participação de outras mulheres na política em prol de reivindicar melhores condições de vida para todas1313 Pitanguy J. O movimento nacional e internacional de saúde e direitos reprodutivos. In: Giffin K, Costa SH, org. Questões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 19-38..

Com a ampliação dos cursos oferecidos pelo Coletivo, em São Paulo foi desenvolvido um grupo para trabalhar na formação de mulheres, com a finalidade de serem multiplicadoras dos ideais e proposta do movimento. Um resultado de tal atividade é a elaboração do caderno O Prazer é Revolucionário, e de outros materiais educativos referentes aos temas trabalhados nos cursos1414 Ávila MB. Apresentação. In: Saúde das mulheres. Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000..

Vale lembrar que na proposta do PAISM, a saúde integral da mulher foi estimulada pelo Movimento Feminista, e dessa forma, além de ser baseada nas premissas de determinação social do processo saúde e doença, também abarcava as perspectiva de gênero, como organizador social que dá suporte à desigualdade entre mulheres e homens. Neste sentido, foi dada grande ênfase às práticas educativas visando o autoconhecimento e as questões de saúde mental, a partir do reconhecimento de que grande parte do sofrimento psíquico feminino estaria relacionada às pressões que a cultura de gêneros exercia sobre as mulheres1515 Villela WV. Mulher e Saúde Mental [tese]. São Paulo: FMUSP, Universidade de São Paulo; 1992.. Porém, tal proposta se fez incompleta na medida em que não incluiu o reconhecimento do impacto da subordinação sobre a saúde e a busca de modos de romper com esta situação.

Desde 1985, o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde buscou desenvolver um trabalho de atendimento à mulher, denominado "medicina suave". Neste modelo de atendimento, os tratamentos naturais buscavam prepará-la para conhecer seu próprio corpo, e assim consideravam a autonomia da mulher no cuidado com sua saúde. Tal experiência possibilitou uma aproximação maior da mulher e do serviço de saúde, fato este que desvelou problemas sociais e familiares (coerção sexual, estupro, gravidez indesejada, desrespeito aos direitos trabalhistas e humanos, violência emocional entre outros) enfrentados por elas em sua vida cotidiana. Assim, além do tratamento dos agravos de saúde aparentes, como infecção vaginal e problemas de contracepção, o Coletivo criou grupos de reflexão e atendimento em saúde mental para que tais necessidades fossem atendidas1616 Giffin K, Costa SH. As práticas contraceptivas e o aborto no Brasil. In: Family Health International, organizador. Reflexões sobre gênero e fecundidade no Brasil. São Paulo: Family Health International; 1995. p. 54-75..

A força do Coletivo Feminista fez com que as mulheres ganhassem voz e pudessem iniciar a exposição de suas reflexões nos jornais. E assim foi que no Jornal da cidade de São Paulo publicaram matéria intitulada Nós, Mulheres, na qual abordaram os direitos da mulher e o "relacionamento da mulher e homens no seio familiar"13:6213 Pitanguy J. O movimento nacional e internacional de saúde e direitos reprodutivos. In: Giffin K, Costa SH, org. Questões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 19-38.. Estas ações possibilitaram o desenvolvimento de outros grupos de reflexão, constituídos também por mulheres provenientes da Europa, que "estudavam sobre a saúde, direito, educação, sexualidade"13:6313 Pitanguy J. O movimento nacional e internacional de saúde e direitos reprodutivos. In: Giffin K, Costa SH, org. Questões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 19-38..

Os grupos de reflexão criados pelo Movimento Feminista tornou-se um espaço solidário e de cuidado, onde as mulheres compartilhavam vivências corporais "na menarca, na menstruação, na sexualidade, na gestação e parto, na contracepção e no aborto"16:8416 Giffin K, Costa SH. As práticas contraceptivas e o aborto no Brasil. In: Family Health International, organizador. Reflexões sobre gênero e fecundidade no Brasil. São Paulo: Family Health International; 1995. p. 54-75.. Tais reflexões e conhecimentos fizeram com que elas reivindicassem "o controle do corpo por meio da contracepção e do direito ao aborto legal"16:8416 Giffin K, Costa SH. As práticas contraceptivas e o aborto no Brasil. In: Family Health International, organizador. Reflexões sobre gênero e fecundidade no Brasil. São Paulo: Family Health International; 1995. p. 54-75.. A experiência nesses grupos de reflexão ajudou na elaboração das ações educativas para promoção da saúde sexual e reprodutiva propostas pelo PAISM, elaborado em 1983, sob concepção e influências do Movimento Feminista. A integralidade defendida pelo Movimento representava o contexto social, psicológico e emocional das mulheres a serem atendidas1717 Osis MJMD. Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil. Cad. Saúde Pública. 1998;[citado 2015 abr 01];14(Suppl 1):25-32. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X1998000500011.
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Deve-se ressaltar que o PAISM, teve como base de ação programática, as influências do Movimento Feminista e também dos movimentos sanitaristas de saúde pública, no que se refere à adoção da concepção de integralidade. Assim, o Programa é tido como fruto do processo de luta pela democratização do país, respeito às liberdades individual e civil1313 Pitanguy J. O movimento nacional e internacional de saúde e direitos reprodutivos. In: Giffin K, Costa SH, org. Questões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 19-38..

Neste contexto, para ofertar a integralidade sob a perspectiva do PAISM, as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde devem ser realizadas para atender as necessidades de saúde das mulheres de uma forma geral1818 Ministério da Saúde (BR). Assistência Integral à Saúde da Mulher: Bases de Ação Programática. Brasília (DF): Centro de Documentação do Ministério da Saúde; 1984.. Por conseguinte, o PAISM redirecionou a saúde da mulher, de um modelo centrado no período gravídico-puerperal para uma proposta de modelo de assistência integral clínico - ginecológica e educativa, com enfoque no aprimoramento do controle pré-natal; no parto e no puérperio; na abordagem dos problemas presentes desde a adolescência até a terceira idade; no controle das doenças transmitidas sexualmente; no câncer cérvico-uterino e mamário e na assistência para concepção e contracepção1717 Osis MJMD. Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil. Cad. Saúde Pública. 1998;[citado 2015 abr 01];14(Suppl 1):25-32. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X1998000500011.
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,1919 Ávila MB. Direitos Sexuais e Reprodutivos: desafios para as políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública. 2003;19(Suppl 2):465-69.,2020 D'oliveira AFPL. Saúde e Educação: a discussão das relações de poder na atenção à saúde da mulher. Interface: Comunicação, Saúde, Educação. 1999 Fev.;[citado 2015 abr 01];3(4):105-122. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32831999000100009.
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O PAISM enfatizou a importância de ações relacionadas aos cuidados básicos de saúde e, por conseguinte, das "ações educativas". O Movimentos Feminista solicitou que fossem contempladas ações de educação sexual2121 Alvarez E. Engendering Democracy in Brazil. Women's Movement in Transition Politics. New Jersey (EUA): Princeton University Press; 1990., pois assim resguardariam o Programa das influências das políticas natalistas, enfatizando principalmente a importância do planejamento familiar como forma de conceder às mulheres e aos homens, autonomia e liberdade sobre a vida sexual e reprodutiva2020 D'oliveira AFPL. Saúde e Educação: a discussão das relações de poder na atenção à saúde da mulher. Interface: Comunicação, Saúde, Educação. 1999 Fev.;[citado 2015 abr 01];3(4):105-122. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32831999000100009.
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O Programa divulgou, então, diversos materiais educativos que contemplavam os temas referentes à saúde sexual e reprodutiva, sendo que a didática de discussão dos mesmos, na prática, baseou-se na mesma utilizada pelas feministas, nomeada de metodologia de trabalho feminista aplicada ao processo educativo, que considerava a integralidade como eixo, pois, nesta perspectiva de educação, o saber é articulado à experiência de forma dialogada, na medida que aborda com flexibilidade os temas da saúde que compreendem desde o conhecimento do corpo, sexualidade até a reprodução, doenças, questão de gênero, relacionamento familiar, entre outras questões reveladas, segundo as necessidades dos participantes e suas visões acerca dos referidos temas, possibilitando transformações e mudanças2020 D'oliveira AFPL. Saúde e Educação: a discussão das relações de poder na atenção à saúde da mulher. Interface: Comunicação, Saúde, Educação. 1999 Fev.;[citado 2015 abr 01];3(4):105-122. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32831999000100009.
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Experiências dos grupos educativos no movimento feminista: contribuições para inovação da abordagem educativa em saúde sexual e reprodutiva

O Movimento Feminista fez a prática educativa avançar no sentido de permitir o desvendar das necessidades de saúde das participantes dos grupos educativos por ele promovidos55 Villela W. Redefinindo o objeto de trabalho a partir do conceito de gênero e da conferência internacional sobre população e desenvolvimento. In: Saúde das mulheres. Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000.. Nesses grupos de vivências, identificaram que a reprodução ou sexo torna-se uma prática social que se expande em diferentes contextos dinâmicos e com vários significados que, por sua vez, são transformados segundo a época, a cultura, a sociedade, a política e os costumes da população.

Assim, a prática educativa deve ser valorizada como um espaço de troca de experiências tendo como princípio capacitar e encorajar transformações no sentido de serem vividas com saúde e autonomia, visto que a troca de experiências e vivências das usuárias permite concretizar o desenvolvimento da consciência do Ser humano como um indivíduo livre, informado e digno de direitos2222 Araujo MJO, Souza MJ, Verardo MT, Francisquetti PPSN, Morais RR, Bonciani, RDF et al. Saúde das mulheres: experiência e prática do coletivo feminista sexualidade e saúde. São Paulo; Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000. 135 p..

Nessa linha de pensamento, os grupos educativos e as consultas individuais eram realizadas pelo Coletivo Feminista sob vários formatos, como seminários e oficinas, entre outros, com a proposta de valorizar a experiência das pessoas. Tais ações reconheciam que as participantes tinham uma experiência, uma realidade de vida singular, preceitos esses que garantiam o sucesso do grupo2222 Araujo MJO, Souza MJ, Verardo MT, Francisquetti PPSN, Morais RR, Bonciani, RDF et al. Saúde das mulheres: experiência e prática do coletivo feminista sexualidade e saúde. São Paulo; Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000. 135 p.. Desse modo, valorizavam a educação em saúde em sua totalidade, e não só como transmissão de conhecimentos. Assim, as participantes eram orientadas em suas escolhas, encorajadas a refletir sobre suas convicções, sem nenhum tipo de imposição de ideias e/ou valores. O espaço era utilizado para construir, em conjunto, o conhecimento sobre o corpo, a alimentação saudável, a prevenção de doenças, as opções sexuais e reprodutivas. Desse modo, as participantes tornavam-se ativas no processo de promoção e autonomia da saúde2222 Araujo MJO, Souza MJ, Verardo MT, Francisquetti PPSN, Morais RR, Bonciani, RDF et al. Saúde das mulheres: experiência e prática do coletivo feminista sexualidade e saúde. São Paulo; Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000. 135 p..

A reflexão empregada como metodologia de trabalho grupal, considerando a realidade de vida de cada uma, possibilitava a troca de ensinamentos sobre tratamentos de saúde e seus efeitos, vantagens e desvantagens, entre outros aspectos que colaboravam para a promoção da saúde das participantes. Dessa forma, percebe-se que a missão do grupo ia além de auxiliar a mulher nas questões de saúde e dos seus direitos, como também possibilitava o desvendar de suas potencialidades, sendo encorajadas a vencer suas limitações. Assim, o grupo oferecia muito mais do que uma assistência em saúde sexual e reprodutiva, mas sim o empoderamento e a valorização da cidadania, dos direitos humanos e do respeito à diversidade e à individualidade humana2222 Araujo MJO, Souza MJ, Verardo MT, Francisquetti PPSN, Morais RR, Bonciani, RDF et al. Saúde das mulheres: experiência e prática do coletivo feminista sexualidade e saúde. São Paulo; Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000. 135 p..

Outro grupo do Movimento Feminista conhecido como SOS-Corpo, com sede em Recife, Pernambuco, criado em 1980, também promoveu ações educativas no âmbito da saúde integral da mulher. Como os demais grupos descritos anteriormente, este promovia o discurso das mulheres sobre suas experiências corporais2222 Araujo MJO, Souza MJ, Verardo MT, Francisquetti PPSN, Morais RR, Bonciani, RDF et al. Saúde das mulheres: experiência e prática do coletivo feminista sexualidade e saúde. São Paulo; Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000. 135 p.. Assim, elaborou materiais didáticos educativos e informativos que pontuavam a importância do conhecimento do corpo para, então, desvelar a identidade. Logo, eram contadas e discutidas as experiências corporais na primeira infância, a menstruação, as gestações, os partos e a sexualidade2222 Araujo MJO, Souza MJ, Verardo MT, Francisquetti PPSN, Morais RR, Bonciani, RDF et al. Saúde das mulheres: experiência e prática do coletivo feminista sexualidade e saúde. São Paulo; Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000. 135 p.. Os documentos que retratam tal grupo mostram que o desconhecimento do corpo, além de causar angústia, é responsável pelos sentimentos negativos vivenciados no processo de gestação, puerpério e amamentação.

As reuniões do SOS-Corpo visavam, sobretudo, a troca de experiências, quando se discutia o conhecimento do corpo, as doenças que acometem a mulher, os medos, tabus e a vergonha acerca da consulta ginecológica. Para abordar o auto-exame, as participantes eram colocadas em dupla a fim de que aprendessem a fazer o exame umas nas outras. No exame preventivo, denominado Papanicolaou, as mulheres tinham a oportunidade de ver que o colo do útero e a vagina são rosados e bonitos. Os temas eram trabalhados segundo a necessidade do grupo, perpassando pelos direitos, política, violência, relações familiares, sexualidade, trabalho, entre outros2222 Araujo MJO, Souza MJ, Verardo MT, Francisquetti PPSN, Morais RR, Bonciani, RDF et al. Saúde das mulheres: experiência e prática do coletivo feminista sexualidade e saúde. São Paulo; Experiência e prática do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000. 135 p..

Foi revelado por tal experiência que, posteriormente ao processo educativo, as mulheres se tornaram mais atentas quanto à sua saúde e à relação com o profissional de saúde, pois o ato de se conhecer e de se observar sem preconceitos, fez com que buscassem o serviço de saúde de forma mais consciente.

A prática educativa feminista aceita o princípio de que "ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo"2:392 Falkenberg MB, Mendes TPL, Moraes EP, Souza EM. Educação em saúde e educação na saúde: conceitos e implicações para a saúde coletiva. Cienc. saude colet. 2014 Mar.; [citado 2015 abr 01];19(3): 847-52. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014193.0157201.
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, logo, acreditam que um processo educativo que visa a integralidade da saúde deve considerar as transformações do corpo, da mente, da fisiologia e da saúde2323 Xavier D, Ávila MB, Corrêa S. Questões feministas para a ordem médica: o feminismo e o conceito de saúde integral. In: Labra ME, org. Mulher, saúde e sociedade no Brasil. Petrópolis (RJ): Vozes, 1989. p. 203-22..

Dessa forma, a pedagogia feminista, com a utilização das metodologias construtivas e participativas empregadas valorizando a igualdade, é entendida como princípio e prática que visa conscientizar indivíduos através da construção e da partilha do conhecimento, a fim de garantir a equidade e o direito à cidadania entre mulheres e homens na sociedade.

A pedagogia feminista pode colaborar muito para fortalecer os grupos educativos que são oferecidos atualmente pela APS, pois sua metodologia considera que a ação educativa é um instrumento de política para redução das desigualdades, que se configura segundo as necessidades da população; assim, valorizam o conhecimento, a realidade e a experiência dos participantes dos grupos através de métodos que propiciem a participação ativa dos integrantes, como dinâmicas de incentivo ao trabalho em equipe, oficinas, seminários e módulos participativos, com eventos que estimulem a participação e o diálogo, geradores de processos de auto-estima, autonomia e empoderamento; elaboração de cartilhas e manuais interativos, entre outros recursos didático2424 Portella AP, Gouveia T. Idéias e Dinâmicas para Trabalha com Gênero. Recife (PE): SOS CORPO; 1998. p 22-4..

Logo, ao entender a educação como um processo de troca de saberes, oriundo de reflexão, questionamento e autoconhecimento, é possível empregar seus resultados para transformar uma dada realidade, seja na sociedade, na vida pessoal e/ou profissional.

Para fortalecer o espaço educativo, a pedagogia do movimento feminista sugere a elaboração de um roteiro para o planejamento e realização das oficinas e outras atividades de cunho educativo, sendo que este planejamento deve prever: momentos de apresentação dos objetivos do trabalho do grupo e dos integrantes, dramatização do tema, diálogo para conhecer a vivência de cada pessoa em relação ao tema abordado; reflexão crítica/política conjunta; discussão da ação coletiva; avaliação e encaminhamentos; registro dos depoimentos e, no final, a elaboração do relatório da oficina2525 Lima MJ. "Linha de vida ou grupo de autoconsciência: uma reflexão sobre a ótica feminista". In: Mara Régia et al. Como Trabalhar com Mulheres. Petrópolis (RJ): Vozes; 1988..

Quanto à postura das coordenadoras e facilitadoras dos grupos treinadas para tal, a pedagogia feminista orienta que as atividades devem possuir objetivos claros, de modo que sejam enfocados também as regras de convivência no grupo, os horários e outras orientações julgadas pertinentes. Outra sugestão é que as técnicas e dinâmicas aplicadas sejam participativas, de modo a estimular a interação entre os participantes; além disso, aponta que no início dos grupos, deve ser estabelecido um contrato de sigilo das informações pessoais abordadas, a fim de estabelecer o respeito, a ética e de garantir a privacidade de todos2525 Lima MJ. "Linha de vida ou grupo de autoconsciência: uma reflexão sobre a ótica feminista". In: Mara Régia et al. Como Trabalhar com Mulheres. Petrópolis (RJ): Vozes; 1988..

A pedagogia feminista ainda esclarece que, para o bom andamento e aproveitamento do tempo da atividade grupal, é importante o profissional de saúde, além de ter uma fala concisa e clara, deve garantir a palavra a todas as pessoas presentes, sem demonstrar suas opiniões pessoais, julgamentos e outros comportamentos autoritários2525 Lima MJ. "Linha de vida ou grupo de autoconsciência: uma reflexão sobre a ótica feminista". In: Mara Régia et al. Como Trabalhar com Mulheres. Petrópolis (RJ): Vozes; 1988..

Outra recomendação é seguir a sequência das atividades programadas no tempo proposto para os grupos, segundo as necessidades que se apresentarem, além de fomentar a troca de vivências e manter a ordem nas atividades, para que no final as participantes possam avaliá-las tendo como finalidade a elaboração de um relatório2525 Lima MJ. "Linha de vida ou grupo de autoconsciência: uma reflexão sobre a ótica feminista". In: Mara Régia et al. Como Trabalhar com Mulheres. Petrópolis (RJ): Vozes; 1988..

Assim, segundo as experiências dos espaços educativos, foi perceptível que garantir a participação de todas nos círculos, propiciou ricos momentos de debates, diálogos e confiança, assim valorizando o corpo a corpo e o olho no olho. Desse modo, nas oficinas de autoconsciência, foi possível conhecer o interior e o intuitivo das participantes, como também acompanhar a evolução dos seus pensamentos críticos nas análises das concepções dialogadas nos grupos2525 Lima MJ. "Linha de vida ou grupo de autoconsciência: uma reflexão sobre a ótica feminista". In: Mara Régia et al. Como Trabalhar com Mulheres. Petrópolis (RJ): Vozes; 1988.. Dessa forma, foram desconstruídos alguns preceitos culturais socialmente impostos, mitos e preconceitos, permitindo que todas as participantes pudessem se expressar de forma livre2525 Lima MJ. "Linha de vida ou grupo de autoconsciência: uma reflexão sobre a ótica feminista". In: Mara Régia et al. Como Trabalhar com Mulheres. Petrópolis (RJ): Vozes; 1988..

Torna-se possível inferir, portanto, que os referidos grupos coordenados pelo Movimento Feminista tinham como característica comum a utilização do espaço de vivência e a troca de saberes para construir o conhecimento, e com isso, eram concretizados os seus objetivos de valorizar a cidadania, o direito, o empoderamento, o respeito e a dignidade de cada mulher, como um Ser único, com limitações e potencialidades dignas de respeito e atenção. E assim, cada participante foi despertada para fazer valer os seus direitos sociais e as questões de gênero.

O Movimento Feminista, valendo-se de diferentes metodologias, estratégias, dinâmicas de grupo, entre outras formas de elaborar as atividades educativas, aponta potencialidades de certo modo inovadoras, uma vez que, atualmente, alguns preceitos identificados em antigas práticas, estão sendo esquecidos.

Dessa forma, tomando como modelo as ações educativas do Movimento Feminista, o enfermeiro pode aprimorar e reestruturar essa prática educativa no campo da saúde sexual e reprodutiva, no sentido de garantir e atender as necessidades de homens e mulheres utilizando recursos didáticos simples mas que, em sua essência, valorize o Ser humano e suas experiências, bem como ofereça a quem necessitar o acompanhamento devido, assegurando o direito de viver uma vida reprodutiva e sexual segura, saudável, livre e satisfatória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sintetizando o que foi exposto, a prática educativa ofertada nos moldes do Movimento Feminista mostrou que é possível promover a saúde da população no que tange à saúde sexual e reprodutiva. Contudo, é preciso que os profissionais de saúde, em especial, os enfermeiros, estejam abertos a construir este espaço que garanta cidadania, autonomia, empoderamento e troca de conhecimento. Logo, pensar na prática educativa em primeiro plano, enquanto promotora dos direitos sexuais e reprodutivos, como também da saúde e bem estar, requer um trabalho em equipe dos profissionais envolvidos nessa atividade.

Assim, se faz mister relembrar os preceitos e a forma como tal prática educativa era oferecida pelo Movimento Feminista, pois os relatos e saberes divulgados nas vivências que apontam métodos, técnicas pedagógicas, temas e conhecimentos acerca desta atividade, vislumbram que é possível reconhecer e atender as necessidades dos participantes que buscam este tipo de atendimento no serviço de saúde.

Diante do "hiato" entre a prática de tempos atrás e a que está sendo ofertada atualmente, vale pensar a respeito das possíveis causas que propiciaram tal mudança, como: processo de trabalho, ausência da participação do movimento social nos serviços de saúde, ideologia individualista, valorização da técnica e da tecnologia em detrimento do investimento nas relações humanas. Essas são apenas algumas questões cujas respostas talvez possam ser conhecidas em futuras pesquisas, até porque a elaboração ações educativas de forma planejada, dinâmica e contextualizada, que reconheça e valorize a experiência do participante, compreendendo e respeitando o Ser humano em sua integralidade, contribuirá para o fortalecimento do vínculo e da sua aproximação do serviço de saúde, oportunizando a participação social e o fortalecimento do papel social e profissional do enfermeiro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2015
  • Aceito
    21 Out 2015
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