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Mulheres na Ciência: precisamos corrigir o passado para enfrentar o futuro?

Women in Science: do we need to correct the past to face the future?

Março de 2021. A revista Nature (2021NATURE. Women must not be obscured in science’s history. Nature, n. 591, p. 501-502, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-021-00770-0 . 29 mar. 2021.
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) publicou no mês da mulher um editorial denominado "Women must not be obscured in science 's history". O ponto principal do editorial se caracteriza pela afirmação de que a Nature está consciente de como a literatura da história da ciência - incluindo grande parte do acervo da Nature - falhou em reconhecer as contribuições científicas das pesquisadoras, especialmente daquelas das comunidades marginalizadas. Reconhece que os trabalhos dessas pesquisadoras foram não só obscurecidos, como eliminados do registro. Erros que precisam ser corrigidos para trilharmos um futuro mais equitativo para as mulheres cientistas e aproveitarmos todas as suas contribuições.

Mais do que isso, o editorial chama atenção - ainda que rapidamente - para aspectos sócio-culturais e socioeconômicos, nos quais as ciências se constituem. Na maioria das áreas do conhecimento, a ciência publicada (e, em decorrência disso, a aceita) é predominantemente branca, masculina e advinda dos países desenvolvidos. Podemos também incluir nesse raciocínio, a ciência advinda do conhecimento ocidentalizado do Norte Global, a qual é pouco afeita aos conhecimentos tradicionais, indígenas e ancestrais.

É inegável que o debate sobre o reconhecimento e a participação das mulheres na ciência e na academia ganhou maior notoriedade durante a pandemia do Covid-19. O próprio exemplo utilizado pelo editorial da Nature mostrou o baixo número de submissão de manuscrito de autoras após o início da pandemia, em comparação aos homens. A hipótese é que, provavelmente, mais mulheres do que homens assumiram responsabilidades domésticas e familiares durante o afastamento social. Entretanto, a menor produtividade das mulheres na ciência em termos de publicação parece ter outras explicações além dos afazeres domésticos, como argumentam Aiston e Jung (2015AISTON, S. J.; JUNG, J. Women academics and research productivity: an international comparison. Gender and Education, v. 27, n. 3, p. 205-220, 2015.). Essas autoras sugerem que outros fatores estruturais e vieses de gênero entre editores e revisores podem estar exercendo um importante papel, visto que há estudos mostrando que mulheres casadas têm maior ou igual produtividade que os homens.

A pandemia, sem dúvida, colapsou o sistema sanitário, assim como o sistema econômico, mas também vem afetando significativamente a saúde mental de boa parte das pessoas ao redor do mundo. Diversos estudos, tais como Salari et al. (2020SALARI, N. et al. Prevalence of stress, anxiety, depression among the general population during the COVID-19 pandemic: a systematic review and meta-analysis. Globalization and Health, v. 16, n. 1, p. 57, 2020.) e Wang et al. (2020WANG, C. et al. A novel coronavirus outbreak of global health concern. The Lancet, v. 395, n. 10223, p. 470-473, 2020.), mostram o agravamento de quadros de depressão e ansiedade, em especial nas mulheres, que continuam apresentando taxas mais elevadas em comparação com os homens. Além disso, acentuam-se os quadros de burnout, em particular na carreira acadêmica. O estudo conduzido pela Chronicle of Higher Education (com dados comparativos entre março e outubro de 2020) aponta que 75% das mulheres acadêmicas reportaram quadros de estresse e burnout, em comparação com 59% dos homens (GEWIN, 2021GEWIN, Virginia. Pandemic burnout is rampant in academia. Nature, n. 591, p. 489-491, 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1038/d41586-021-00663-2 . Acesso em: 29 mar. 2021.
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).

Feng e Savani (2020FENG, Z.; SAVANI, K. Covid-19 created a gender gap in perceived work productivity and job satisfaction : implications for dual-career parents working from home, Gender in Management: an International Journal, v. ahead-of-p, 2020. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1108/GM-07-2020-0202 . Acesso em: 29 mar. 2021.
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) apresentam que a sobrecarga da atividade doméstica por apoio aos filhos em ensino remoto ou cuidado com os pais ou netos associados aos demais afazeres no lar, o compartilhamento contínuo dos espaços de convivência com a família, a redução das interações sociais com amigas, familiares e colegas de trabalho se somam às demandas e responsabilidades múltiplas do trabalho. A evolução na carreira, já mais lenta ou até menos perseguida por mulheres, fica ainda mais prejudicada diante deste cenário. Isso tudo potencializa o burnout.

Ainda que a discussão sobre a representatividade das mulheres nos diversos setores da sociedade não seja recente, tendo em vista os vários movimentos de mulheres, que remontam sua atuação aos anos 1960, os debates sobre igualdade de gênero retornaram com mais força culminando na aprovação do Pacto Mundial em prol dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), que incluiu a Igualdade de Gênero. No mesmo ano do estabelecimento da agenda 2030 da ONU, em 2015, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu por resolução o dia 11 de fevereiro como sendo o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência. Essa data celebra a força de movimentos como o "Women doing science", que engajou diversas acadêmicas, mulheres e escolas em prol da representatividade da mulher na ciência.

É sabido que as mulheres hoje representam a maioria nos programas de pós-graduação e no início da carreira docente universitária, mas não no topo da carreira, como professoras titulares ou ocupando cargos elevados na gestão. Por conta disso, várias iniciativas vêm sendo lideradas por acadêmicas. No dia 24 de março de 2021, acadêmicas de Harvard e MIT se uniram para promover no "Fórum do MIT para Equidade: Liderança Feminina no Ensino Superior" uma discussão sobre os obstáculos específicos que as mulheres enfrentam no comando de faculdades e universidades e debateram formas e medidas de equidade e inclusão nas universidades.

De acordo com o relatório da Unesco-IESALC (2021UNESCO-IESALC . Women in higher education: has the female advantage put an end to gender inequalities? Paris: UNESCO-IESALC, 2021), apenas 30% dos pesquisadores universitários no mundo são mulheres. As mulheres representavam um percentual ligeiramente superior (53%) dos graduados e mestres em 2014, mas no nível de doutorado a proporção de concluintes do sexo feminino cai para 44%. Em 2018, as mulheres representavam 43% dos professores no ensino superior, em comparação com 66% e 54% no ensino primário e secundário, respetivamente. Entretanto, esses números precisam ser melhor analisados. Isto porque há uma assimetria muito grande quando olhamos para áreas predominantemente masculinas, como engenharia, matemática, etc. Por outro lado, ainda que haja mulheres na academia, elas são a minoria entre os professores associados e professores titulares, assim como há menos pesquisadoras e autoras com trabalhos publicados. Howe-Walsh e Turnbull (2016HOWE-WALSH, L.; TURNBULL, S. Barriers to women leaders in Academia: tales from science and technology. Studies in Higher Education, v. 41, n. 3, p. 415-428, 2016.) têm demonstrado o efeito da estrutura organizacional para que as mulheres ocupem papel de liderança. Neste aspecto, inclui-se trabalho temporário, redes dominadas por homens, intimidação e assédio e questões pessoais como falta de confiança.

As instituições de ensino superior devem se comprometer a ser a plataforma para impulsionar maior liderança feminina. Muito se tem discutido as possíveis ações institucionais para avançar às mulheres para tais posições. Um estudo australiano analisou a diferença entre o percentual de mulheres nas universidades e observou um aumento de 6% para 31% nas posições seniores em duas décadas, mas reconheceu o fenômeno do leaky pipeline, que expressa a perda de mulheres na medida em que se sobe na carreira. Já em 1994, mulheres seniores formaram o Australian Colloquium of Senior Women Executives in Higher Education (the Colloquium), atualmente conhecido como Universities Australia Executive Women (UAEW). Segundo Winchester e Browning (2015WINCHESTER, H. P. M.; BROWNING, L. Equality in Academia: a critical reflection. Journal of Higher Education Policy and Management, v. 37, n. 3, p. 269-281, 2015.), as estratégias que funcionaram foram mentoria disponível, treinamento em liderança e mídia. Entre as estratégias sabidamente eficazes em ajudar mulheres a progredir na carreira acadêmica, inclui-se a existência de modelos que inspiram e a possibilidade de ter mulheres como apoiadoras (sororidade) e também como “coaches” na instituição.

A pouca representatividade das mulheres nas lideranças universitárias inspirou, em 1995 nos Estados Unidos, a criação do programa Executive Leadership on Academic Medicine (ELAM), pela Drexel University, na Philadelphia, que oferece 60 vagas ao ano. Esse programa oferece uma bolsa intensiva de um ano de treinamento de liderança com extensas oportunidades de coaching, networking e mentoria com o objetivo de expandir a qualificação e a liderança acadêmica das mulheres nas áreas de medicina, odontologia, saúde pública e farmácia. O sucesso deste programa e o impulso que deu à carreira de mais de 1.000 mulheres inspirou a criação, após mais de 10 anos, do programa similar para mulheres acadêmicas do STEM, denominado ELATE (Executive Leadership in Academic Technology and Engineering). A fim de trilharmos uma ciência mais diversa e inclusiva, acadêmicos e instituições devem adotar uma abordagem mais inclusiva, fomentando discussões sobre igualdade de gênero e sobre micro-agressões de gênero. As micro-agressões de gênero na educação superior são atitudes, comentários ou comportamentos de omissão ou falhas em agir de maneira não enviesada para gênero. Schmaling (2007SCHMALING, K. B. Gender microaggressions in higher education: proposed taxonomy and change through cognitive-behavioral strategies. Forum on Public Policy, n. 3, 2007.) define quatro categorias de micro-agressões de gênero: por delegação (que se refere aos papéis que a mulher poderia ou não cumprir na academia), por ação anti-afirmativa, (que desvaloriza a mulher e suas atribuições), por fórum de gênero ou clubismo que exclui mulheres e por paternalismo passivo-agressivo que demonstra oposição, ressentimento ou atribui culpa a elas. É de extrema importância que medidas institucionais que corrijam essas distorções, reforçadas por questões socioculturais, sejam impulsionadas. Estamos no caminho dessa correção, mas é importante que revisemos o passado para que a história não se repita mais.

Referências

  • AISTON, S. J.; JUNG, J. Women academics and research productivity: an international comparison. Gender and Education, v. 27, n. 3, p. 205-220, 2015.
  • FENG, Z.; SAVANI, K. Covid-19 created a gender gap in perceived work productivity and job satisfaction : implications for dual-career parents working from home, Gender in Management: an International Journal, v. ahead-of-p, 2020. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1108/GM-07-2020-0202 Acesso em: 29 mar. 2021.
    » https://doi.org/10.1108/GM-07-2020-0202
  • GEWIN, Virginia. Pandemic burnout is rampant in academia. Nature, n. 591, p. 489-491, 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1038/d41586-021-00663-2 Acesso em: 29 mar. 2021.
    » https://doi.org/10.1038/d41586-021-00663-2
  • HOWE-WALSH, L.; TURNBULL, S. Barriers to women leaders in Academia: tales from science and technology. Studies in Higher Education, v. 41, n. 3, p. 415-428, 2016.
  • NATURE. Women must not be obscured in science’s history. Nature, n. 591, p. 501-502, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-021-00770-0 29 mar. 2021.
    » https://www.nature.com/articles/d41586-021-00770-0
  • SALARI, N. et al Prevalence of stress, anxiety, depression among the general population during the COVID-19 pandemic: a systematic review and meta-analysis. Globalization and Health, v. 16, n. 1, p. 57, 2020.
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  • WANG, C. et al A novel coronavirus outbreak of global health concern. The Lancet, v. 395, n. 10223, p. 470-473, 2020.
  • WINCHESTER, H. P. M.; BROWNING, L. Equality in Academia: a critical reflection. Journal of Higher Education Policy and Management, v. 37, n. 3, p. 269-281, 2015.
  • UNESCO-IESALC . Women in higher education: has the female advantage put an end to gender inequalities? Paris: UNESCO-IESALC, 2021

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021
Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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