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Editorial

Crise é uma espécie de insidiosa pandemia que se espalha pelo mundo e acomete a toda gente. Coincidentemente, no atual lapso de tempo que estamos atravessando desenvolve-se o mais formidável e espetacular progresso tecnológico jamais alcançado em outras épocas. Também se deve observar que nunca antes houvera tanta riqueza material. Por outro lado, expande-se cada vez mais o mapa da fome, da violência e da pobreza no mundo. Ninguém está isento nesse fragmento da história humana a tantas contradições. Eruditos e incultos, escolarizados e iletrados, privilegiados e vulneráveis, empresários e trabalhadores, pais e filhos, ricos e miseráveis, jovens e velhos, esperançosos e desiludidos de todas as classes sociais e das mais diversas visões de mundo todos se encontram afetados por alguma crise, em diferentes situações e com os significados mais convenientes nas distintas circunstâncias. A famigerada crise está incorporada ao cotidiano vivido das famílias e amplamente repercutida por todos os meios de comunicação social. Crise da economia, das finanças, da moral, da ética, da política, das artes, dos valores, dos sentidos, das crenças, das utopias e de tudo o mais que se queira ou não se queira. Vale declarar seu sentido fundamental, para além de qualquer disfarce: crise da humanidade, ou seja, avanço da barbárie e regresso da civilização. É disso que essencialmente se trata: crise do humano, que a todos atinge no mais íntimo das individualidades e nas mais distintas e contraditórias esferas sociais. As vidas singulares e as convivências humanas estão atravessadas de conflitos e contradições oriundos e motivadores de uma severa crise de sentidos, ou seja, de uma grave crise dos princípios e valores fundamentais da civilização.

Crises econômicas são fenômenos complexos e cada vez mais têm alcance universal. Suas consequências ultrapassam os limites mais estreitos do dinheiro e da busca inescrupulosa e insaciável pela acumulação, o que não é nada irrisório. Golpeiam dura e dolorosamente as condições de saúde, segurança, moradia, alimentação, educação, bens simbólicos, autoestima, enfim, a vida real sobretudo dos carentes e mais vulneráveis em geral. Costumam aprofundar as desigualdades sociais, que são um solo fértil para o aumento da violência física e simbólica, do obscurantismo, do autoritarismo, dos radicalismos, dos golpes à democracia. Atingem profundamente as vidas dos indivíduos, incitam a amplificação das contradições sociais, enfraquecem os laços da sociabilidade e empurram Sociedades e Estados às políticas e práticas da direita e ao autoritarismo, à repressão e ao abafamento das condições de diálogo, como se não houvesse nenhuma outra alternativa.

Felizmente, apesar de tantas dificuldades e ameaças, grande parte da população, oxalá largamente majoritária, consegue preservar e seguir os princípios construtivos da humanidade. Há mais dignidade e nobreza naqueles que lutam por um mundo melhor, ainda que derrotados por aqueles que exercem em proveito próprio o mando do mundo. As derrotas podem ter um significado moral e eticamente positivo. Melhor seria não houvesse vencidos, mas se os vencedores são aqueles que não têm compromissos com o bem-estar geral da população e apenas tratam de seus interesses mesquinhos, então, do ponto de vista moral e ético, é mais dignificante estar entre os derrotados, só que isso acarreta tantos sacrifícios e privações, muitas vezes insuportáveis para um ser humano de carne, osso e espírito. Os vencedores, inescrupulosamente multimilionários e escandalosamente poderosos, condenam à vala da pobreza mais da metade da população mundial. Destes, milhões passam fome e sofrem todo tipo de necessidades, insalubridades, violências físicas e simbólicas, preconceitos, perseguições, vulnerabilidades de toda ordem e obstruções a uma vida que merecesse o nome de humana. A estes são negadas quaisquer condições de cidadania.

De uma ou de outra forma, a educação tem a ver com todo esse mundo caótico que errou os caminhos e se perdeu. A denúncia é geral e, de tão comum, quase já não mais provoca espanto e repugnância. Veem-se como normais e naturais, portanto inquestionáveis, a crise da educação, a crise da aprendizagem, a crise do sistema escolar. Necessário reafirmar que a verdadeira educação é essencialmente de natureza pública. Mesmo instituições catalogadas como privadas devem obrigar-se moralmente ao cumprimento dos princípios e fins da educação pública. O mesmo cabe dizer-se das instituições mantidas com recursos públicos. Elas não podem afastar-se dos reais compromissos com a população e a formação da cidadania. Não podem deixar de ser instrumentos essenciais de edificação humana e de avanço da civilização.

A atual crise está intimamente relacionada com a deterioração do que é público e a abdicação dos direitos fundamentais das pessoas. (Vem à tona neste momento a nefanda Escola Sem Partido. No Senado brasileiro, que deveria ser um lócus legislador a favor das liberdades humanas e defensor das riquezas morais e intelectuais do país, corre a abjeta proposta de revogação da lei que conferiu o título de Patrono da Educação Brasileira a Paulo Freire. Reconhecido pela Unesco como um Patrimônio da Humanidade, por sua enorme contribuição à Educação, aos olhos míopes e à mente regressiva e repressora da autora da proposta, Paulo Freire seria um "filósofo de esquerda" e possui ideias que "são um fracasso retumbante". Essa proposta, ela sim, é coisa retumbantemente intolerante, repressora, indigna, ignorante, ignóbil, repugnante...).

Costuma-se aceitar com demasiada facilidade que a crise da economia gera as crises de todos os outros setores. Essa crença resulta da hegemonia do poder simbólico que tudo reduz à questão econômica. Pode haver uma verdade parcial e aparente nisso. Contudo, não se há de ocultar o significado real da crise da economia e das finanças. Dinheiro no mundo não falta. Como nunca antes, hoje há uma expansiva produção de riquezas materiais. A questão central, sempre camuflada, é, pois, outra: a brutal e desumana desigualdade social. Crise econômica é, a rigor, a brutal desigualdade social. Então, é importante enxergar bem um aspecto dessa enorme crise da educação pública. Ela não ocorre por acaso, como se fosse uma fatalidade sem causa ou um fenômeno sem sujeito. Ao contrário: em grande parte, ainda que não exclusivamente, ela é um fenômeno de abrangência internacional deliberadamente concertado para ampliar e fortalecer a dominação dos mais ricos, sejam estes indivíduos, corporações financeiras ou países hegemônicos. O objetivo central consiste na submissão do Estado, crescentemente mais desidratado, à dominação do Mercado, por meio da criação de obstáculos à formação e ao exercício da cidadania consciente. Dizendo de outra maneira, trata-se de projeto de desmanche do público e supremacia do privado.

Aos mais vulneráveis vem sendo negado o acesso à escolarização ou lhes é facultado tão somente um percurso escolar de enormes dificuldades e, geralmente, de baixa qualidade, quase somente na rede de instituições públicas desassistidas. Assim, a formação escolar dos mais pobres e socialmente rejeitados, quando existe, raramente fornecerá bases suficientes para a competição justa com os segmentos de maior posse e de variados outros recursos. A educação, como hoje se apresenta, ressalvadas as honrosas exceções, é um instrumento possível de ascensão pessoal, mas, quando de baixa qualidade, paradoxalmente, não deixa de ser um mecanismo de aprofundamento e ampliação das desigualdades sociais.

O ônus não pode ser atribuído aos segmentos mais frágeis e abandonados da sociedade. Ao Estado submisso aos interesses excludentes dos poderosos cabe importante parcela do descalabro educacional. A educação que perdeu seu sentido público de formação da cidadania ajuda a alimentar a crise do humano. Uma insidiosa ideologia passa à opinião pública a ideia infame de que os culpados são os estudantes e demais indivíduos pobres e miseráveis, os quais, por desídia, preguiça ou por uma suposta natural inferioridade como seres humanos, não estariam aproveitando as benesses que lhes são dadas.

A crise da educação (e também de outros setores) não é um fato isolado e sem consequências para além das escolas. Antes, reiterando, é um projeto intencionalmente destinado à corrosão da educação pública e do sistema público de pesquisa científica e tecnológica. Os drásticos recortes orçamentários asfixiam universidades e demais instituições públicas da área do conhecimento e da formação, erodindo, dessa forma, instrumentos fundamentais da soberania nacional e da construção da Nação. São tonitruantes as vozes que clamam pelo fim da gratuidade e de algumas medidas que facilitam a ampliação mais democrática do acesso e da permanência de estudantes de historicamente injustiçados. Importantes meios de comunicação social e alguns chamados formadores de ideias propõem a adoção do ensino pago como solução dos problemas orçamentárias das instituições. Ledo engano e perigosas intenções ocultas. Insidiosa proposta que favorece ainda mais as elites e produz terríveis consequências para as categorias de baixa renda e de todos os tipos de injustiçados de sempre. Estes estariam, então, mais distantes do acesso a estudos superiores. Ao contrário, são valiosíssimas todas as iniciativas que possibilitam mais efetivamente o acesso e a permanência com qualidade de milhões de jovens pobres e historicamente injustiçados.

Sem recursos adequados - concordam todos e até mesmo os responsáveis e operadores desse atentado aos reais projetos de edificação da Pátria hão de saber - é impossível produzir conhecimentos e formação com qualidade e quantidade que satisfaçam os legítimos direitos das pessoas e da cidadania. Impossível consolidar uma Nação no presente e edificar as condições de um futuro próspero e fundado na justiça, liberdade e permanente busca da igualdade social e da dignidade de todos os cidadãos. Sem adequada remuneração e boas condições gerais de trabalho, não há como organizar as redes públicas de professores, pesquisadores e estudantes valorizados socialmente e comprometidos com o universo da educação em seu sentido amplo, radical e forte. Sem investimentos em educação pública, ficam comprometidos os projetos e os sonhos de todas as pessoas em vista da melhor realização possível de sua existência humana.

O abandono da educação pública, orquestrado pelos membros da supremacia mundial (indivíduos, corporações mercantis, organizações multilaterais, instituições etc.) induzem o esfacelamento das soberanias nacionais, a liquefação dos projetos de Nação e sustentam a entronização do Capital. No limite, em lugar do Estado, erige-se o Mercado. À fragilização da Sociedade corresponde o fortalecimento do indivíduo autocentrado. Acima da Dignidade e da Liberdade, que são valores fundamentais da humanização, superpõem-se os interesses das empresas e suas ideologias mercantilistas. Ao invés da educação, da ciência e da tecnologia praticados como processos inalienáveis e básicos do desenvolvimento das Pessoas, das Sociedades e das Nações, desenvolvem-se processos de educação, ciência e tecnologia como mecanismos de ponta da restritiva economia neoliberal. Onde reina o Mercado, não há espaço para a solidariedade e convívio de comunidades que busquem a realização de projetos comuns. A obsessão pelo permanente acréscimo de lucro e pelo poder daí derivado é terreno fértil para a prevalência das chamadas tribos ou grupos de interesses sobre os projetos e valores gerais da população. É caldo de cultivo para as sementes do ódio, da violência, da repressão, da corrosão moral, dos deslizes de comportamento, da corrupção, da criminalidade, do egoísmo extremado.

As escolas não mais estão imunes à liquefação dos valores essenciais da vida humana. A comunidade educativa convive, impotente, com a quase geral e já naturalizada situação de violência, desordem e depreciação de sua essencial razão de ser: educar, isto é, prover as bases e condições para a construção e a elevação dos imperativos da humanização que a cada um e a todos se impõem. Há uma relação clara entre esse descalabro do setor educacional e a ignominiosa remuneração salarial, que está no centro da infame desvalorização social da categoria dos professores. É esse, pouco mais, pouco menos, o quadro das condições de trabalho de educadores das escolas públicas de crianças, jovens e adultos em formação.

Para melhor entender-se as principais causas e consequências das severas condições de trabalho dos docentes e pesquisadores de instituições superiores é oportuno focar no projeto de privatização. Não basta apontar a privatização branca, bastante presente nos meios universitários, e que consiste na introjeção de um certo capitalismo acadêmico no cotidiano das instituições educativas. Formação e produtos de ensino e pesquisa se tornam mercadorias, submissas às normas e interesses da economia neoliberal vigente. Normalmente mal remunerados e desvalorizados, alguns professores e pesquisadores de universidades e outras unidades de pesquisa abdicam, pouco ou muito, de seus compromissos e responsabilidades públicos e se deixam hipnotizar pelo canto das sereias do Mercado. Isso ocorrendo, a Universidade perde muito de sua essência, crescentemente naturalizando as atividades que interessam diretamente a uma empresa.

Além da privatização branca deliberadamente imposta, num horizonte cada vez mais próximo, as hostes da privatização lutam pela mais ampla e geral dominação de tudo o que ainda resta do setor público. O itinerário é conhecido. Nesse roteiro, destaca-se a produção das debilidades e inoperâncias provocadas pelo abandono das instituições essenciais da Sociedade e a naturalização de falsas crenças da superioridade do privado sobre o público, que é outra forma de nominar a suposta supremacia do Mercado sobre o Estado democrático. Afinal, a privatização é um fenômeno geral e universal, que ultrapassa setores e limites geográficos.

Nesse contexto, não se pode deixar de pensar algumas questões de fundo com respeito à avaliação da educação superior. As avaliações se utilizam de métricas e vários tipos de instrumentos que permitem comparar instituições e áreas. São imprescindíveis a contabilização e a apresentação de dados de publicação, patentes, produtos tecnológicos, desempenho estudantil em exames de larga escala, fator de impacto e demais mecanismos basicamente objetivos dos programas nacionais e internacionais de avaliação das universidades, de sua produção e de seus autores. Tudo isso poderá ser útil para a promoção de políticas públicas e de iniciativas das instituições. O grave equívoco está no uso desses dados quase exclusivamente para o estabelecimento de rankings e como critério rígido de programação orçamentária. Apesar de méritos geralmente reconhecidos, resta perguntar se esse modelo de avaliação está atingindo a questão nuclear: a natureza, os princípios e as finalidades essenciais da educação. Aos educadores, especialmente aos envolvidos com as questões teóricas e práticas da avaliação, caberia a tarefa de levantar um conjunto de interrogações radicais interligadas. Os instrumentos de avaliação institucional da educação superior que estão sendo praticados buscam compreender de fato a relevância dos sentidos públicos da educação? As atividades de ensino e de pesquisa respondem às exigências da população, especialmente dos segmentos mais necessitados, relativamente à formação profissional e cidadã, ao desenvolvimento pessoal e socioeconômico, à justiça, à transcendência da miséria humana, à edificação da Humanidade? Questões muito difíceis e que não cabem em planilhas e estatísticas. Mas seriam muito significativas se conseguissem motivar os diálogos, as discussões e reflexões no âmbito universitário. Uma instituição educativa tem superior qualidade quando efetiva e plenamente se desempenha como um patrimônio da Sociedade e um direito dos cidadãos.

As reflexões esboçadas acima são de responsabilidade deste editor. Como tudo o que se passa no mundo das ideias, certamente nelas se contêm bastantes pontos inaceitáveis para muitos. Tudo o que é social é contraditório e polissêmico. É bom não perder essa prerrogativa. A universidade deve ser um lócus das discussões, de muito diálogo e abertura das mentes ao divergente e à pluralidade. Os dissensos difíceis frequentemente são mais enriquecedores que os consensos fáceis O discurso único é sempre repressor e não combina com os ambientes educacionais e com a democracia, de modo geral.

Uma revista acadêmica tem o dever de fomentar as reflexões, a liberdade e a pluralidade na comunidade educativa, sem nenhuma obsessão pelo consensual e pelas verdades corriqueiras e inquestionadas. Nesta nova edição da revista Avaliação, apresentam-se estudos e análises sobre questões relevantes da educação superior. Alguns dos temas tratados estão na ordem do dia das preocupações de docentes, pesquisadores e estudantes: internacionalização, formação de professores qualidade, iniciação científica, produção acadêmica, PROUNI, motivação docente, SINAES, democratização e outros. Esperamos estarmos colaborando com a importante tarefa de consolidar o campo de estudos e debates sobre educação superior no Brasil.

Novembro, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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