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Estado, sociedade e educação superior no Brasil Império: o passado presente

State, society and higher education during the Empire days in Brasil: the past present

Resumos

Constituem objeto de análise deste texto as relações entre estado, sociedade e educação superior no Brasil Império. Destaca o quanto a formação social escravocrata e a constituição de um estado oligárquico inviabilizaram a criação da universidade no país, limitando a educação superior a cursos de formação profissional, cujas características resistiram às mudanças ocorridas no país, adentraram o século XX, persistindo suas marcas até o presente.

Sociedade; Estado; Educação superior; Brasil Império


This text analyses the relations between State, Society and Higher Education during the Empire days in Brazil. It points out how much the slave system and the constitution of an oligarchic state contributed to making unfeasible the creation of universities in the country, limiting Higher Education to vocational programs, whose characteristics have withstood changes which occurred in the country, reached the XXth century, with its marks persisting until today.

Society; State; Higher Education; Empire Brazil


Estado, sociedade e educação superior no Brasil Império: o passado presente

State, society and higher education during the Empire days in Brasil: the past present

Waldemar Marques

Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Sorocaba. Sorocaba, SP, Brasil. Contato com o autor: waldemar.marques@prof.uniso.br

RESUMO

Constituem objeto de análise deste texto as relações entre estado, sociedade e educação superior no Brasil Império. Destaca o quanto a formação social escravocrata e a constituição de um estado oligárquico inviabilizaram a criação da universidade no país, limitando a educação superior a cursos de formação profissional, cujas características resistiram às mudanças ocorridas no país, adentraram o século XX, persistindo suas marcas até o presente.

Palavras-chave: Sociedade. Estado. Educação superior. Brasil Império.

ABSTRACT

This text analyses the relations between State, Society and Higher Education during the Empire days in Brazil. It points out how much the slave system and the constitution of an oligarchic state contributed to making unfeasible the creation of universities in the country, limiting Higher Education to vocational programs, whose characteristics have withstood changes which occurred in the country, reached the XXth century, with its marks persisting until today.

Key words: Society; State; Higher Education; Empire Brazil.

"O passado não está morto, ele nem mesmo é passado". Esta frase de W. Faulkner sintetiza o sentido deste artigo. Com palavras diferentes, não de forma literária, mas portando o mesmo sentido, Anísio Teixeira (2005 p. 145) nos lembra que

Temos de voltar ao exame das condições da vida colonial para chegarmos ao período de independência em condições de compreender o quanto, não só a estrutura social, mas também a educação recebida ao tempo da Colônia iria estender suas consequências pelo século XIX e retardar de um século o início do nosso despertar econômico e social.

No passado está o nascedouro dos enigmas do presente, num movimento que destaca o papel da história e do seupraticante, o historiador, num "empreendimento explicativo que leva à compreensão" (KUHN, 2011, p. 39). Portanto, este artigo traduz um esforço de compreender o que tivemos, o que não tivemos referente à educação superior no Brasil Império, e suas sombras refletidas no presente de nosso país.

O ESTADO NA VISÃO DE NORBERTO BOBBIO

O ponto de partida para tal reflexão traz para o cenário da discussão sobre educação superior a concepção de Estado na visão de Bobbio. Esta referência é importante dado o fato de que a educação, como outras dimensões que constituem a vida social, está profundamente relacionada ao exercício do poder, sendo em boa parte produto da teia de interesses e pressões sociais exercidas por diferentes grupos sobre o Estado, ou de diferentes grupos que estão nele representados e dele fazem parte.

Ao discutir as origens do Estado (BOBBIO, 2011, p. 61-76), o autor destaca que seu surgimento decorre de "razões de sobrevivência" dos grupos sociais que compõem a sociedade: o sustento e a defesa da comunidade. Assim, o estado surge em decorrência do próprio desenvolvimento social, enquanto um ente diferenciado, porém voltado para a comunidade e sua sobrevivência. Configura-se como algo especializado cujo papel está a serviço da sociedade, ainda que dela diferenciado. Numa outra visão, ainda segundo Bobbio, o Estado surge em decorrência da diferenciação social, porem como um ente a serviço de uma classe social hegemônica com a finalidade de manter tal hegemonia. É uma concepção mais próxima de um olhar marxista. Neste caso, o Estado se afigura como instrumento de dominação a serviço não da sociedade, mas de uma classe social ou estamento, em detrimento de outros agrupamentos sociais e da sociedade como um todo.

A primeira abordagem aponta na direção de constituição de uma sociedade plural, democrática; a segunda aponta na direção de uma sociedade excludente e no seu limite autoritária. Estas duas visões antitéticas de Estado constituem paradigmas de referência para se compreender o jogo que entrelaça a sociedade, o estado e a educação superior no Brasil imperial: que sociedade, que estado e que educação.

O BRASIL DO SÉCULO XIX

O início do século XIX sinaliza para o Brasil o fim de um longo período colonial de três séculos, durante o qual esteve umbilicalmente ligado a Portugal e seu domínio. Este domínio significou historicamente enorme restrição e mesmo impedimento ao surgimento e desenvolvimento de uma sociedade com estruturas econômicas políticas e sociais autônomas, próprias. A prevalência da escravidão perpassa o longo período colonial, adentra o Império como seu traço constituinte e vai se arrastar até o final do século XIX; a escravidão é, ao mesmo tempo, constituinte do império, como também seu laço de morte.

Ao se referir à sociedade brasileira do início do século XIX, Prado Jr. (1963, p. 267), clássico da historiografia brasileira, afirma que o que "caracteriza a sociedade brasileira de princípios do século XIX é a escravidão", dando destaque à

influência que exerce e no papel que desempenha em todos os setores da vida social.

Organização econômica, padrões materiais e morais, nada há que a presença do trabalho servil, quando alcança as proporções de que fomos testemunhas, deixe de atingir; e de um modo profundo, seja diretamente, seja por suas repercussões remotas.

As relações escravistas de produção estendem sua sombra sobre todas as demais dimensões da vida social, encerrando-as dentro de sua lógica: mercado interno restrito, estrutura ocupacional restrita, estigmatização do trabalho manual, baixo nível técnico das atividades produtivas, demandas por educação restritas. Enfim, o Brasil caracterizava-se como uma sociedade sem povo, conforme afirma Prado Jr. (p. 280), em alusão à obra de Couty, L'esclavage au Brésil: "O Brasil não tem povo".

A uma sociedade sem povo correspondia um Estado colonial totalitário, centralizado. A Independência pouca mudança significativa trouxe para a estrutura da sociedade brasileira. A autonomia dela resultante não nasceu de contradições que alimentassem conflitos radicais que viessem a projetar também mudanças radicais; antes, foi produto fortuito do jogo de interesses das nações hegemônicas da época que disputavam os frutos da revolução industrial. A independência se deu de forma insólita: foi feita pelos próprios colonizadores portugueses.

As estruturas jurídicas e administrativas que conformavam o Estado colonial permaneceram império adentro. Os sinais de mudança mais significativos só vieram a aparecer na metade do século XIX. Estas mudanças estão relacionadas à extinção do tráficoque resultou numa reorientação dos capitais até então voltados à lucrativa empresa de captura e transporte ultramarino de negros tornados aqui escravos. Estes capitais financeiros passaram a focar a cafeicultura e outros empreendimentos de suporte a esta atividade que emprestava novo dinamismo econômico ao país, em substituição às tradicionais atividades econômicas agrárias de exportação decadentes localizadas no nordeste brasileiro. Do ponto de vista das relações de trabalho, o encarecimento da mão de obra escrava, interrompida sua fonte de abastecimento, abria progressivamente a possibilidade e mesmo a necessidade de se buscar novas formas de solução do problema de mão de obra que não a escrava, o que de fato veio a ocorrer com a extinção de escravidão, substituída pelo trabalho assalariado, o que vem a coincidir com o auge da produção cafeicultora nos anos 80 e noventa, nos estertores do império e o advento da república.

A estrutura da sociedade brasileira a partir de então se diversifica: uma camada média de expressiva significação passa a compor os protagonismos sociais. As cidades se ampliam e com elas atividades especializadas que requeriam formação superior, como a medicina e as engenharias, ombreando em prestígio e influência com os tradicionais bacharéis em direito. A burocracia do estado brasileiro se amplia absorvendo em seus quadros novos profissionais de nível superior.

AS IDEIAS FORA DO LUGAR

Fortalece-se no decorrer do império uma camada de intelectuais cujas ideias fermentam o clima cultural e político deste período de nossa história. O intercâmbio cultural com a Europa fazia com que junto com os produtos de lá importados, importadas também fossem as ideias que passaram aqui a ser cultivadas. Cruz Costa no seu clássico Contribuição à História das Ideias no Brasil - O desenvolvimento da filosofia no Brasil e a evolução histórica nacional (1956) traz uma análise crítica aprofundada deste processo. O autor firma o ponto de vista de que (p. 22-24),

a filosofia não é mera especulação no vácuo ou simples jogo de conceitos abstratos. É trabalho sobre a experiência real e que cumpre levar a cabo sem perder esse sentido do concreto [...] Os estudiosos da filosofia interessam-se, também necessariamente, em conhecer a condição material do homem. A filosofia [...] é uma aventura humana, total...cujas raízes estão na terra [...] A filosofia encontra a verdade na sua adequação com a realidade.

O autor também chama a atenção (p. 16) para o fato de que

A inteligência brasileira formou-se pelo mesmo processo que plasmou o povo brasileiro, isto é, graças às contribuições estrangeiras [...] Escrever a história das suas ideias é, também, descrever as alternativas da imigração das ideias estrangeiras no Brasil.

Na trajetória desta inteligência nacional que vai perpassar o Império nas suas diferentes fases, destaca-se (p. 18)

a mais completa e desequilibrada admiração por tudo o que é estrangeiro – talvez uma espécie de "complexo de inferioridade" que deriva do afastamento em que se mantiveram, por muito tempo, as nossas elites em relação aos problemas concretos da terra e do povo[...]

Por conta disto, nos inícios da independência as ideias românticas se misturam à politica e o sincretismo de ideias filosóficas vem a se configurar como um "tratado de paz" no instável período que se abre com a abdicação de D. Pedro I.

É a partir dos meados do século XIX que a polifonia das novas correntes filosóficas oriundas da Europa se espalharão com força pelo Brasil (p. 139). Os representantese defensores destas novas ideias

Se já não eram filhos de senhores de engenho ou de fazendeiros de café, eram representantes e herdeiros em boa parte da burguesia de comerciantes ou de burocratas, que surgira nas aglomerações urbanas e que, nos meados do século XIX teve, graças às transformações econômicas que então se processaram, maior expressão e sentido.....Os representantes destas novas elites do século XIX são a expressão de uma nova modalidade de burguesia, que se opõe à tradicional, a que em regra era tirada da aristocracia – proprietária da terra e do instrumento mais importante do trabalho daquele tempo, o negro.

Assim, médicos, engenheiros e militares formados nas escolas superiores criadas a partir da vinda da família real formarão a base dos pensadores que adotarão e defenderão as ideias de Augusto Conte: o positivismo. Os estudos científicos estavam mais próximos à formação recebida e às suas práticas profissionais, diferentemente dos bacharéis em direito. Contudo, se de um lado, as ideias positivistas "marcam uma perspectiva nova no ambiente brasileiro" (p. 157), sua presença no desenrolar da história do Brasil imperial é igualmente marcada por contradições que ora aliam o positivismo aos movimentos de renovação em torno das ideias do abolicionismo, da república, do estado laico, ora, prisioneiro das próprias ideias, sua atuação se caracterizará mais como freio do que como impulsionador das mudanças que se faziam necessárias na sociedade brasileira. Assim, colocava-se o positivismo no Brasil numa posição contrária "ao parlamentarismo e favorável a uma política ditatorial" (p. 209). Defendia (p. 239) que

O remédio para os males do país só podia ser a república ditatorial, isto é, o governo forte de um chefe nacional que gozasse de popularidade e que fechasse o parlamento, pois a ditadura deveria apenas limitar-se a manter a ordem material, garantindo toda a liberdade espiritual e moral.

Segundo conclui Cruz Costa (1956, p. 238), "os positivistas muito pouco fizeram pelo advento da república democrática, julgada por eles como uma triste imitação do empirismo francês".

Tendo aderido à república na última hora, foram na verdade (p. 244) "os seus primeiros críticos".

Quanto à questão abolicionista, os positivistas apresentavam um projeto (p. 178) que, ao lado de propostas relevantes, contraditoriamente propunham a

Adstrição ao solo do ex-trabalhador, sob a direção dos seus res–pectivos chefes atuais. O apego à "ordem" fortalecia o receio de que a liberdade integral viesse desorganizar completamente a vida econômica nacional.

Embora a este respeito não houvesse unanimidade entre os positivistas, tal proposta sugere o quanto as ideias se descolavam da análise crítica do que ocorria no país. Como para os positivistas as mudanças deveriam ocorrer no plano moral, o fim da escravidão e reforma das estruturas fundiárias que levariam a uma democratização do acesso à terra não tinham eco. A reforma que ocorrera nos Estados Unidos nos meados do século XIX que redundou na democratização do acesso à terra e consequente formação de uma classe média rural, não fazia parte da visão dos positivistas brasileiros, alheios aos limites que estabelecia a Lei da Terra de 1850, que preservava a tradicional estrutura agrária de latifúndio.

À medida que o império avançava no tempo, o positivismo assumia no Brasil cada vez mais um caráter de seita do que movimento intelectual, onde palavras com "mestre", "discípulo", "templo da nova religião", "novo sacerdócio", "novo rio sagrado", "santo fundador" aparecem com grande nitidez. Conclui Cruz Costa (1956, p. 233) que "Todo esse cuidado pelo culto afasta os positivistas dos problemas mais vivos que agitavam então o país".

Outra corrente de pensamento de grande penetração no Brasil império foi a "germanista". Se no positivismo imperou a influência francesa, esta outra corrente de pensamento reflete a influência de pensadores alemães. Contudo, esclarece Cruz Costa (1956, p. 304) tratava-se de um "germanismo de segunda ordem" que excluía os mais notáveis pensadores alemães, tais como Kant, Hegel, Schelling, Fichte, que vieram – estes últimos – a constituir o grupo de pensadores criadores da Universidade de Berlim. No Brasil, o germanismo aqui cultivado "toma logo ares de proselitismo" e seu alheamento chega ao ponto de um dos seus notáveis representantes publicar numa cidadezinha de Sergipe, certamente povoada por analfabetos sob o domínio de poderosos senhores rurais, um jornal em língua alemã. No julgamento rigoroso de Cruz Costa (1956, p. 310), "Tal é o resultado a que chegam aqueles que creem poder isolar-se do meio em que vivem e que se alimentam de fantasias exóticas".

No interior deste grupo "germanista" surgiria, contudo, um pensador que aliaria a tradição filosófica alemã a um esforço do entendimento dos problemas do país – Silvio Romero. Segundo Cruz Costa (p. 318), para Romero, "Os sistemas de filosofia só mereciam a sua consideração crítica quando eles se aplicavam a algum problema particular".

Ainda, segundo Cruz Costa (p. 320), a filosofia era para Romero,

Apenas um método e não um feixe de fórmulas por que, essas, sim, constituem verdadeiras couraças que comprimem o espírito e impedem que se descortinem largos e sempre novos horizontes.

Contudo, Romero, não obstante a forte influência intelectual que viria a ter sobre o pensamento brasileiro, constituía mais a exceção do que a regra neste período da história do país.

Uma outra corrente de ideias de larga expressão no Brasil imperial se encerra no termo "liberalismo". Como nos casos anteriores, também aqui se trata de importação de ideias europeias. Contudo, neste caso, e diferentemente das demais correntes de pensamento aqui consideradas, o liberalismo e seus desdobramentos na prática tiveram no Brasil uma forte conotação de classe, porém às avessas do ocorrido na Europa. Se nos casos anteriores mencionados, as diferentes correntes de pensamento apresentadas tinham, no império, sua origem numa classe média fruto do desenvolvimento econômico e da diversificação da estrutura social e ocupacional, neste caso, há uma identidade entre o liberalismo e as classes superiores do país, por mais paradoxal que pareça. As palavras de Viotti da Costa (2010, p. 135-136) são muito claras a este respeito:

No Brasil, os principais adeptos do liberalismo foram homens cujos interesses se relacionavam com a economia de exportação e importação. Muitos eram proprietários de grandes extensões de terra e elevado número de escravos e ansiavam por manter as estruturas tradicionais de produção ao mesmo tempo que se libertavam do jugo de Portugal e das restrições que este impunha ao livre comércio. As estruturas sociais e econômicas que as elites brasileiras desejavam conservar significavam a sobrevivência de um sistema de clientela e patronagem e de valores que representavam a verdadeira essência do que os liberais europeus pretendiam destruir.

De fato, no evoluir dos acontecimentos no período imperial, à sombra do liberalismo se mantinha um controle sobre a autoridade do monarca; ao mesmo tempo, em resposta aos horrores da anarquia provocada pela Revolução Francesa e seus ecos na América, estabelecia-se um controle sobre aqueles (artesãos, pequenos comerciantes) para os quais a liberdade e a igualdade constituíam bandeira de luta efetiva. À questão da abolição da escravatura, contrapunha-se o risco de caos social e a desorganização da economia. Nascida do interior das grandes propriedades rurais, o clientelismo e a patronagem irão definir no decorrer do império (até nossos dias) uma forma de exercício de poder que controlaria a política e a sociedade, em franca oposição a valores republicanos. Se na Europa o liberalismo se prestou a profundas mudanças na constituição de sociedade industriais e da democracia burguesa, no Brasil imperial o liberalismo se prestou a preservar estruturas de dominação arcaicas.

Conclui Viotti da Costa (p. 136) que

Contrariamente ao que se tem sugerido às vezes, o compromisso das elites brasileiras com as ideias liberais não foi um simples gesto de imitação cultural, expressão de uma cultura colonial e periférica subordina às ideias e aos mercados europeus.

Ao contrário, aqui as ideias liberais foram "armas ideológicas" utilizadas para "alcançar metas políticas e econômicas específicas".

O fato é que, as ideias e a ação dos intelectuais brasileiros neste período, segundo é possível inferir de Cruz Costa e Viotti da Costa não vieram a constituir fatores de influência que marcassem de fato a independência política e a refundação do país. Teixeira (2005, p. 146), faz um julgamento rigoroso sobre a elite intelectual que se formara neste período. Considera ele que era "uma elite com uma educação de segunda mão".

EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL IMPÉRIO

Neste amplo terreno de contradições, foram fertilizadas as ideias sobre educação e que tiveram fortes impactos sobre o que ocorreu no Brasil a este respeito, neste período de sua história. Embora o período imperial seja considerado um prolongamento do período colonial, sem rupturas estruturais significativas, no que se refere à educação superior, ocorreu algo que pode ser qualificado como rompimento com o passado. Contudo, este rompimento não teve o significado do surgimento do novo para uma nova nação que deveria redefinir o seu caminho. Ao contrário, este rompimento com o passado colonial significou o fim da presença da universidade como instituição no Brasil. A presença da universidade no seu formato medieval jesuítico, depois no formato moderno da reforma pombalina da universidade nos finais do século XVIII, esteve sempre presente no Brasil colônia, formando suas elites políticas e religiosas. Embora a educação superior se destinasse a prover as necessidades do estado e de suas elites nele presentes, não da nação, ela fez parte da constituição da nação no período colonial.

No império a educação superior irá desempenhar as mesmas funções no período colonial; ou seja a educação superior a serviço do estado e das elites econômicas e políticas dele constituintes, não da nação. Contudo, de forma bastante distinta; em lugar da universidade, foram criadas escolas superiores isoladas, especializadas, destinadas a formar profissionais de nível superior.

O formato de escolas superiores isoladas foi o que predominou no Brasil imperial; mais como uma cópia apressada do que se julgava estar acontecendo na França, do que um projeto efetivamente pensado a partir de uma nação recém independente com tudo por reconstruir. Do pedido apresentado por comerciantes na Bahia, com aporte financeiro, na chegada da família real no início do século XIX até o final deste século no ocaso do império, quando imperador finalmente sugeriu a criação de duas universidade no Brasil, a ideia de universidade não passou de intenções. Durante o Império foram apresentados 42 projetos de criação de universidade no Brasil (TEIXEIRA, 1998, p. 90); na média, representa um projeto e meio por ano, no decorrer da existência do Império! O primeiro deles, de autoria de José Bonifácio; o último deles apresentado por Rui Barbosa. Isto leva a supor que a questão da universidade se configurava como importante para parte significativa das lideranças intelectuais e políticas do Império. Tais propostas, contudo não apresentaram a força suficiente para superar a visão predominante entre a elite brasileira sobre universidade. Teixeira faz referência a um Congresso de Educação, ocorrido quase ao final do império, em 1882, onde são apresentados argumentos contra a universidade qualificando-a como "coisa obsoleta" para um país novo, reiterando a necessidade de se manter as escolas superiores especializadas. Assim, durante o longo período do Império, apesar de inúmeras propostas apresentadas, não foi criada a universidade no Brasil.

Conforme discutido anteriormente, os fatos aconteciam como que tendo as ideias fora do lugar. Todo o grande debate sobre o papel da universidade que se travava na Europa estava ausente no meio intelectual brasileiro. Na Europa, o início do século XIX é marcado por um movimento de contestação da universidade antiga voltada à preservação da cultura clássica e identificada, segundo seus críticos, com a nobreza decadente. O desenvolvimento da pesquisa científica vinha ocorrendo até então através de sociedades científicas; o novo saber nascia e se desenvolvia fora da universidade. A nova universidade trazia como marca própria a pesquisa como sua atividade primeira, em contraposição à antiga preservadora apenas do conhecimento clássico. Era a ideia da Universidade de Humboldt: em lugar do conhecimento voltado tão só à preservação do passado, a pesquisa trazia como foco a reconstrução do conhecimento; pesquisa como atividade precípua da universidade, progressivamente tomando a forma de pesquisa empírica e experimental. Este movimento de questionamento da universidade tradicional, a partir da Alemanha se espalhou para outros países da Europa, alcançando os Estados Unidos. No Brasil, entretanto, tal debate jamais ocorreu. Ao final do Império a concepção de universidade ainda vigente era a da universidade medieval. As ideias que povoavam a elite intelectual, importadas da Europa com retoques, mas distanciadas das realidades brasileiras, não foram capazes da criar energias suficientes a ponto de gestar um projeto para a educação superior no país, que fosse além dos limites das escolas superiores isoladas e que viesse a dar conta de um movimento que se fazia necessário para a refundação do país no decorrer da maior parte do século XIX.

Desde a vinda da família real para o Brasil (1808) até a Independência, cobrindo um período relativamente curto de 14 anos, foram criadas seis escolas superiores (TEIXEIRA, 2005, p. 159):

duas Escolas de Cirurgia e Anatomia, na Bahia e no Rio de Janeiro em 1808; Academia de Guarda-Marinha, também em 1808; Academia Militar (posteriormente transformada em Escola Politécnica), em 1810; Curso de Agricultura, em 1814; Real Academia de Pintura, Escultura e Arquitetura, em 1816. Entre 1822 e 1889, da Independência à proclamação da República, cobrindo um longo período de 66 anos, foram criados apenas quatro cursos superiores: dois cursos jurídicos em São Paulo e Olinda, em 1827; a Escola de Minas e Metalurgia, em Ouro Preto, em 1832 (instalada somente 34 anos depois); Curso de Farmácia, em Ouro Preto, em 1837.

Ou seja, transcorrido quase um século, ao final do XIX, a estrutura da educação superior se resumia no Brasil a poucas unidades de ensino com a finalidade restrita de formação profissional superior, isoladas entre si. Cunha (2007, p. 90) apresenta uma série de argumentos utilizados pelos positivistas para se contrapor de modo radical à criação da universidade no Brasil: a vaga preocupação dos positivas brasileiros com a humanidade dificultava sua percepção dos problemas nacionais, e ao que parece estes enxergavam-nos através de uma lente distorcida; foi o que se deu em relação à universidade no Brasil. Quanto ao liberalismo no Brasil, enredado nas contradições de classe apontadas, também não veio a constituir uma corrente suficientemente forte para levar adiante a criação da universidade no período imperial. Em suma, não obstante as inúmeras propostas apresentadas, as últimas luzes do império se apagam sem que tivesse sido criada a universidade no Brasil.

A AUSÊNCIA DA UNIVERSIDADE NO BRASIL IMPÉRIO

As consequências da inexistência da universidade e a predominância de escolas superiores isoladas foram profundas e duradouras para o país.

A ausência dos estudos sistemáticos e pesquisa na área das humanidades e das ciências criaram um grande vácuo intelectual. Os estudos de humanidades se encerravam no ensino secundário; os estudos superiores limitavam-se àqueles poucos que conseguiam aqui alcançar uma formação nas escolas superiores isoladas, complementando posteriormente esta formação na Europa; ou ainda esta formação limitava-se ao autodidatismo. Não existia uma comunidade de intelectuais com as características que só a presença de uma instituição como a universidade permite criar. O que aqui existia não ia além da repetição do aprendido no exterior, ou adquirido através de livros importados, prescindindo totalmente da pesquisa, enquanto reelaboração e construção de saberes. No entender de Teixeira (1998, p. 94),

Recebíamos ou a cultura do passado, ou a cultura europeia. E nisto tudo o Brasil era esquecido. A classe culta brasileira refletia mais a Europa e o passado do que o próprio Brasil: estávamos muito mais inseridos na verdadeira cultura ocidental e até na antiga – latina e grega – do que na nossa própria cultura.

A presença de figuras ilustres, de comprovada competência e vigor intelectual surgidas neste período são exemplos isolados que não eliminam o fato apontado.

Sem a universidade tornava-se impossível tomar como campo de estudo e pesquisa a realidade mesma do país; tornava-se impossível a elaboração da cultura nacional. Conforme Teixeira (1998, p. 156),

Essa nova cultura nacional não se constrói só com ciências aplicadas, mas com o estudo da língua e da literatura nacional e o das ciências humanas e físicas nos campos do saber básico e acadêmico.

A existência de escolas superiores profissionais isoladas, ainda que constituís–sem centros de irradiação de cultura superior, jamais cobririam a ausência da universidade. Na ausência desta, diz ainda Teixeira (2005, p. 149), o brasileiro "perdeu qualquer oportunidade de estudos superiores de humanidades, letras ou ciências como disciplinas acadêmicas".

A ausência da universidade também privou o país da formação dos quadros docentes para o ensino secundário, cujo modelo era o Colégio Pedro II. O autodidatismo nutrido pela "tradição humanística que lhe viera da Colônia" constituía a única via possível para prover os quadros docentes do ensino secundário. Abria-se, assim, uma "lacuna entre o sistema escolar nacional e a cultura nacional" (TEIXEIRA, 2005, p. 159).

Em suma, em relação à educação, como também em relação a outras dimensões da sociedade brasileira no Império, a elite política e cultural não demonstrou estar à altura das exigências de mudanças que o fim da longa colonização criara. Dada a ausência da universidade no Brasil Império, três grandes problemas referentes à educação superior ficariam para o futuro: a formação de professores, a pesquisa, a elaboração da cultura brasileira, todos intimamente interligados.

ECOS DO PASSADO NO PRESENTE

Quais os ecos do passado sobre nosso presente? É possível falar em ecos do passado num momento histórico em que o país tornou-se uma das maiores economias do planeta, tendo se transformado em poucas décadas de uma sociedade agrária em uma sociedade urbana e industrial? Num momento histórico onde tudo se liquefaz, as sociedades e as pessoas que delas fazem parte se tornam líquidas (BAUMANN, 2009) continua a fazer sentido a afirmativa de W. Faulkner, tanto quanto a de Anísio Teixeira?

Na área da ciência política, clássicos como Sérgio Buarque de Holanda (2006) Raimundo Faoro (2001) e contemporâneos como José de Souza Martins (2011) reafirmam a persistência de formas de exercício do poder político resumidos nas palavras patrimonialismo, paternalismo e populismo, fortes impeditivos até hoje de se alcançar no país formas mais avançadas de democracia republicana.

No plano dos costumes sociais, Singer (2013) em artigo provocativamente intitulado Passado ou futuro? afirma que no Rio de Janeiro o Ministério Público abriu inquérito para investigar denúncia de que clubes estariam impedindo a entrada de babás não uniformizadas, atualizando assim cenários da sociedade escravocrata brasileira, dos "sinhozinhos" e "sinhazinhas" com suas "mucamas", representados nos quadros do pintor Debret. Segundo Singer (2013, p. A2), "A persistência do passado, projetando sombras sobre o futuro, inquieta, com razão, brasileiros do presente".

No campo da educação ainda persistem as sombras do passado? Em meados do século passado, cerca de duas décadas após a criação da USP, Florestan Fernandes (1960, p. 192-219) ao analisar o problema da educação no Brasil, por ele qualificado como "dilema", constata o divórcio entre a educação escolar e a realidade brasileira, um evidente sinal das consequências, a desafiar o tempo, da ausência da pesquisas de base que permitissem clarear os problemas que a nação inaugurada com a Independência deveria enfrentar e ultrapassar. O "dilema" refletia o olhar distante da realidade do país, atraído pelos modelos criados na Europa. Florestan atualiza, assim, o que Teixeira já constatara sobre a educaçãoconstruída no decorrer da história (da colônia ao império), ou seja a lacuna entre a escola e a cultura nacional. Segundo este autor (1960, p. 194-195), "Em conjunto, as escolas não são instituições organizadas para servir às comunidades, em interação construtiva com seus centros de interesse e de atividades".

Ao contrário, operam indistintamente "como mero fator de transmissão e de preservação da parcela da 'cultura' herdada através do complexo processo de colonização".

Segundo Florestan, a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) em 1956, no INEP, funcionando em diversas regiões do país, em articulação com as universidades, teria como objetivo cobrir a carência de estudos sobre a realidade brasileira numa articulação profícua entre educadores e cientistas sociais. Dentro deste espírito, Florestan propôs estratégias de trabalho que previam o desenvolvimento de pesquisas sistemáticas com enfoques teórico metodológicos advindos das ciências sociais, em articulação com educadores, cujo conhecimento viria a constituir as bases para as políticas educacionais e práticas educativas condizentes com as necessidades do país.

Na década de 70, a questão da pesquisa educacional no país é retomada por Gouveia, já criada a pós-graduação nas universidades brasileiras. Em retrospectiva histórica, cobrindo um período de cerca de três décadas (da criação do INEP em 1938, passando pela criação do CBPE em 1956, até a criação da pós-graduação já no governo militar), Gouveia (1971, p. 2-4) constata descontinuidades da pesquisa educacional, apontando a predominância de correntes em determinados períodos que se excluem mutuamente (psico-pedagógica nos anos 40 e 50; sócio-antropológica de 56 a 64; econômica de 65 a 70). Segundo Gouveia (1971, p. 5),

O predomínio de certa corrente durante determinado período, com prejuízo do apoio que se poderia dispensar a outros tipos de orientação, bem como a substituição em tempo relativamente curto, de uma orientação para outra, pode prejudicar o desenvolvimento da pesquisa em dois sentidos: em primeiro lugar, não se chega a colher os frutos de uma tradição de trabalho suficientemente amadurecida; em segundo lugar, não se criam as condições necessárias para a realização de projetos interdisciplinares.

Por outro lado, as condições institucionais para o desenvolvimento da pesquisa mostravam-se frágeis. Tanto no plano federal, com nos estados, o financiamento para atividades de pesquisa, bem como o pessoal existente dedicado a esta universidade, além de quantitativamente insuficiente, não apresentavam as qualificações técnico-metodológicas para este fim. Mesmo em relação às universidades, Gouveia (1971, p. 19) entendia que

em nenhuma universidade brasileira se encontram, presentemente, as condições necessárias para a realização de pesquisas que possam oferecer contribuição relevante ao desenvolvimento educacional do país.

Em consequência disto tudo, a autora conclui (p. 17):

tanto a formulação da política educacional, quanto a configuração das rotinas escolares se fazem à revelia do que acontece nas instituições de pesquisa, bem como de resultados acaso obtidos por pesquisadores isolados.

Em meados da década de 80, Goergen (1986) retoma a questão da pesquisa educacional no país. Baseando-se em autores de reconhecida competência acadêmica que abordaram o mesmo assunto, este autor chega a constatações que sugerem a persistência dos problemas apontados por Gouveia. Constata o autor (p. 8) que "ainda estamos ensaiando os primeiros passos", distantes de "uma tradição de pesquisa" formada; distantes "da organização e estruturação de uma área de saber". Não obstante os inegáveis avanços, sobretudo quanto à quantidade de pesquisas realizadas, reitera o autor (p. 9) a existência de muitas pesquisas que parecem padecer "de uma falta de relevância, tanto teórica, quanto social", além da "grande pulverização, isolamento e descontinuidade das pesquisas". Persistem ainda modismos metodológicos, tanto quanto dificuldades de comunicação dos resultados de pesquisa educacional que viesse a diminuir o fosso existente entre pesquisadores e administradores das políticas educacionais, tanto quanto dos educadores que atuam no âmbito das unidades escolares.

Avançando no tempo, nos inícios da primeira década do novo milênio, Gatti (2002) retoma o tema da pesquisa educacional no país para reiterar aspectos da questão que resistem ao tempo. Suas constatações reiteram aquelas apontadas por Gouveia, no início dos anos 70 e Goergen nos meados dos anos 80, dando os seguintes destaques: descontinuidade das pesquisas, equipes de pesquisa pouco estruturadas e com pouca tradição; persistência de temas pouco relevantes, dispersão e pouca utilização dos resultados de pesquisas tanto no âmbito das entidades responsáveis pela definição de políticas educacionais, como no âmbito das unidades educacionais.

Com relação à outra questão de notável importância, a formação de professores, cabe também perguntar: o presente reverbera ecos do passado em nosso país? Os cursos normais, destinados a formar os professorespara o ensino primário, foram criados só nos finais do século XIX, reproduzindo o mesmo quadro quanto à formação de professores para o ensino médio; ou seja não havia uma instituição formadora do professor; não havia quem formasse o formador. A ausência da universidade que as elites políticas do Império não conseguiram ou não quiseram criar iria aprofundar suas consequências à medida em que o país adentrava o século XX, inaugurando a vida republicana. Segundo informa Gatti (2010, p. 2), somente no final da 1ª República surgiram as licenciaturas destinadas a formar docentes para a educação básica, a partir dos bacharelados "nas poucas universidades então existentes".

Ao adentrar o novo milênio, Gatti traça um quadro pouco animador quanto à formação de professores. A alta evasão e a consequente baixa proporção dos que concluem os cursos de licenciatura é um dos aspectos constitutivos deste quadro delineado por Gatti (p. 3): apenas 24% concluem a licenciatura. Ou seja, de 100 matriculados, apenas cerca de 25 concluem o curso. Além disto, constata a autora, ocorreu um decréscimo da matrícula entre 2006 e 2007 nos cursos de formação de professores de disciplinas específicas, caso único em cursos de nível superior cuja matrícula é crescente. É um resultado perfeitamente previsível levando-se em conta que entre os motivos que levam à escolha do curso pouco mais da metade manifesta o desejo de ser professor, sendo significativa a proporção dos que o escolhem como um "seguro desemprego" diante da dificuldade de conseguir outra ocupação que não o magistério (p. 4 ). Agrega-se a esta constatação o fato de que grande parte dos que escolhem cursos de licenciatura provem dos estratos sócio-econômicos mais baixos da população se comparado com os demais cursos, população para a qual a convivência com a vida acadêmica torna-se mais difícil. A autora constata também (p. 5) que a escolaridade anterior dos estudantes nos cursos de licenciatura "evidencia grandes carências nos domínios de conhecimentos básicos".

Do ponto de vista do mercado de trabalho, considerando os níveis de remuneração, a situaçãodo profissional docente do ensino básico é também pouco alentadora. Com base em dados do IBGE, o jornal O Estado de São Paulo em sua edição de 20 de maio de 2012, publica matéria em editorial (OS SALÁRIOS, 2012, p. A3) onde afirma que, apesar de melhoria salarial ocorrida na última década com aumentos superiores à média dos salários nas ocupações de nível superior, "os professores da educação básica continuam com os salários mais baixos, entre os profissionais de nível superior".

Enquanto um médico recebia em média R$ 7.150 e um engenheiro R$ 6.015 por mês, o salário médio do docente na educação básica era de R$ 1.878; rendimento inferior mesmo em comparação com outras ocupações abaixo das consideradas de topo como medicina e engenharia.

Quanto à formação docente para a educação básica, Gatti (2010) apresenta resultados de pesquisa realizada por amostragem em âmbito nacional. Neste estudo aponta aspectos que sinalizam graves deficiências da formação docente para o ensino básico. Quanto à formação docente para o ensino fundamental e educação infantil constata (p. 8) que "os conteúdos específicos das disciplinas a serem ministrados em sala de aula não são objeto dos cursos de formação inicial do professor".

Outros aspectos analisados leva a autora a concluir (p. 9) que

há uma insuficiência formativa evidente para o desenvolvimento do trabalho docente, ficando comprometido o desenvolvimento de habilidades profissionais específicas para a atuação nas escolas e nas salas de aula.

Quanto às licenciaturas em Língua Portuguesa, Matemática e Ciências Biológicas, destinadas à formação docente para o ensino médio, constata que (p. 10-11): "Saberes relacionados a tecnologias de ensino estão praticamente ausentes"; amplo rol de disciplinas e "ausência de uma eixo formativo claro para a docência", indicando "fragmentação formativa"; uma "forte tradição disciplinar", mais voltada a demandas de conhecimento de áreas específicas, em detrimento de um trabalho interdisciplinar, mais voltado às "demandas gerais da escola básica".

Considerando, ainda, que os docentes da educação básica são formados predominantemente por instituições particulares de educação superior, hoje em processo de oligopolização, que progressivamente operam na bolsa de valores, é possível se avizinhar de uma conclusão de que a formação de professores para a educação básica configura um cenário preocupante, onde o magistério ocupa uma posição secundária. Gatti (2010, p. 11) alerta para a necessidade de se reverter esta quadro, pois o magistério "constitui um setor nevrálgico nas sociedades contemporâneas, uma das chaves para entender as suas transformações".

A autora conclui o estudo enfatizando que

A interação dos diferentes fatores aqui apresentados com a estrutura curricular e as condições institucionais dos cursos de formação de docentes para a educação básica nos sinaliza um cenário preocupante sobre a resultante dessa formação.

Ristoff e Bianchetti ao analisar a pós-graduação e suas interlocuções com a educação básica (2012) apresentam constatações similares às apontadas anteriormente quanto à formação de professores para a educação básica no Brasil, acrescentando aspectos de especial relevância. Destacam os autores a existência de um "histórico apartheid educacional instalado no país" (p. 805). De um lado, este quadro se configura como "um apagão educacional no ensino básico brasileiro" (p. 806), assim delineado (p. 811):

A grande carência de docentes licenciados atuantes nas disciplinas específicas de atendimento à EB, revelando que as disciplinas de EB estão em grande parte sendo ministradas por professores improvisados, professores cuja formação inicial não é de licenciatura nas disciplinas que ministram; os altos índices de evasão profissional dos professores licenciados, apesar da grande disponibilidade de postos de trabalho; a carência de licenciados em Física e Química, exigindo por parte do estado tratamento emergencial à formação de professores nestas duas áreas de conhecimento; a deficiente formação de professores nos campi de nossas universidades e IES; as persistentes contradições, incongruências e incompatibilidades entre os currículos, os projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura e a formação específica de docentes para a EB.

No plano dos resultados, o Brasil se situa no 50º lugar no ranking de qualidade da educação básica, em flagrante contraposição ao 15º lugar obtido pela pós-graduação no país, conforme declara o então Ministro da Educação Fernando Haddad (p. 804). Tais dados servem com indicadores da distância entre a pós-graduação, onde se localiza a pesquisa, e a educação básica, configurando assim o apartheid. Embora os autores sejam cuidadosos quanto a conclusões, apontam a hipótese de que nas pesquisas realizadas (p. 802)

predomina um tipo de investigação que transforma a escola, os sistemas de ensino, o corpo docente das escolas, suas práticas, etc. em 'objetos' de pesquisa. Portanto, predomina, quando voltada à escola, a pesquisa mais de ordem utilitária, sobre a EB e seus agentes e não com ou para eles.

O decréscimo das matrículas nas licenciaturas, a baixa proporção (inferior a 50%) de jovens entre 14 e 17 anos no ensino médio e a diminuição do número de concluintes no ensino médio entre os anos de 2000 e 2001 completam este quadro sombrio.

Concluem os autores que os diferentes programas e ações propostos e em desenvolvimento pelo poder público (p. 820). "são de uma timidez vexatória diante da magnitude do problema educacional que o país enfrenta".

Concluindo, as sombras do nosso passado colonial e escravista se projetam ainda no presente, o que significa que nem "tudo o que é sólido se desmancha no ar". O estado brasileiro construído à revelia da nação, muitas vezes até contra ela, foi constituindo no decorrer da história um aparato burocrático de forte conotação patrimonialista, onde as elites políticas e econômicas buscavam refúgio para manter seus interesses e privilégios. Os mecanismos de exercício e controle do poder, de apadrinhamento e barganhas urdidos nos grotões das grandes propriedades fundiárias atravessaram os séculos e constituem ainda hoje modos predominantes de exercício de poder, ainda que sinais auspiciosos de mudança possam ser percebidos. Com isto, áreas que representam necessidades de amplas maiorias da população (saúde e educação) tendem a se perpetuar num plano secundário e só saem deste plano se porventura vierem a se configurar como algo que apresente vantagens com dividendos para a manutenção do poder, seja em qualquer nível. A volta ao passado torna possível entender o quanto este passado se projeta no presente; o quanto a pesquisa educacional no país precisa avançar e o quanto ela reflete o passado; o quanto a formação de professores está distante do que é necessário para a construção de uma sociedade democrática.

Recebido: 19 jun. 2013

Aprovado: 20 ago. 2013

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2013
  • Data do Fascículo
    Nov 2013

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2013
  • Aceito
    20 Ago 2013
Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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