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Editorial

Editorial

Tudo o que hoje se faz ou se deixa de fazer na educação superior (de alguma forma, também nos níveis educacionais anteriores) tem estreita relação com as rápidas e envolventes transformações globais que atingem as sociedades e instituições de toda parte. Seja de modo bem visível ou bastante sutil e encoberto, os contextos institucionais e os mais amplamente sociais estão sendo modelados e transformados pelas determinações do neoliberalismo econômico e do neoconservadorismo político. A hegemonia neoliberal e neoconservadora tem uma presença proeminente na configuração dos novos papeis do Estado e de suas relações com as estruturas públicas, dentre as quais a educação superior. O que de mais significativo há nisso é o alinhamento, em diversos graus e intensidades, da educação superior à racionalidade mercadológica, alterando as identidades profissionais e as culturas nos campi universitários, transformando os modos de produção, os significados e usos do conhecimento e a natureza das finalidades da educação. Nesse panorama, a qualidade se expressa sobretudo pela medida da eficiência e da eficácia produtivistas, a formação se identifica com habilidades e competências – profissionais, obviamente -, a educação é vista como serviço em prol da performatividade e do fortalecimento da economia de mercado. Um dos mais importantes instrumentos de garantia do bom funcionamento dessa lógica empresarial internacionalmente imposta à educação superior está sendo uma modalidade de avaliação externa justificada centralmente como accountability, expressão insuficientemente traduzida por prestação de contas e referida à responsabilidade social dos educadores-acadêmicos. Desse quadro ideológico, fazem parte os rankings internacionais e nacionais. A relação desses instrumentos e dessas práticas bem como dos agentes públicos com as imposições da racionalidade neoliberal não se dá sem controvérsias. Apresenta aspectos, tonalidades e graus distintos que podem ser de alinhamento irrefletido, submissão ou, por outro lado, de resistência e crítica. Mas as resistências e críticas não têm impedido o avanço da privatização e da mercadorização da educação superior e da neutralização da autonomia dos profissionais mais alinhados com os princípios e valores da educação como bem público e direito social. Dado o caráter político e social das novas imposições que se fazem à educação superior e que alteram não apenas as formas organizacionais mas muito mais significativamente a natureza de suas finalidades essenciais, são fortes as tensões e contradições que vigem nos circuitos responsáveis pelas políticas públicas e nos campi universitários. A contradição de fundo consiste em referir a educação superior ao plano geral da sociedade ou ao benefício do indivíduo e das empresas privadas. A razão de ser da Universidade é contribuir para a realização das finalidades da sociedade. A razão de ser de uma empresa é a maximização de seus lucros. Essas ideias introdutórias servem de pano de fundo aos textos que vão se seguir.

1) O texto de Dilvo Ristoff mostra bem o embate na América Latina entre essas duas diferentes concepções: educação superior como bem público e imperativo estratégico para as nações - chamamento este reafirmado pela UNESCO na Conferência Regional da Educação Superior de 2008 e reiterado na Conferência Mundial da Educação Superior de 2009 (bem como o fizera em outros textos anteriores, notadamente os da Conferência Regional (1996) e Mundial (1998) - versus privatização e mercantilização, tendência atualmente em grande expansão, incentivada por Organismos multilaterais (sobretudo BM, OCDE e OMC). Analisando práticas brasileiras e de outros países da Região, Ristoff aponta avanços e entraves na Educação Superior no Continente. Se se podem reconhecer avanços nas políticas de avaliação, de inovação e de inclusão e pertinência social, também se observam organizações, ações e culturas que crescentemente se rendem aos imperativos da privatização e mercadorização, constata ele.

2) Esse panorama de passagem da autonomia universitária à heteronomia, da visão estratégica de nação para a submissão ao mercado, da transformação das formas organizacionais, das identidades acadêmicas e das finalidades da educação superior se inscreve na racionalidade e nos mandamentos neoliberais. É importante observar que a história da educação superior no Brasil é marcada pelo contínuo desinteresse do Estado brasileiro, ao longo dos tempos, em criar universidades plenas, ou seja, instituições estratégicas para o desenvolvimento da nação brasileira e a constituição de uma sociedade culta e mais igualitária. Como diz Waldemar Marques, "a formação social escravocrata e a constituição de um estado oligárquico inviabilizaram a criação da universidade no país, limitando a educação superior a cursos de formação profissional, cujas características resistiram às mudanças ocorridas no país, adentraram o século XX, persistindo suas marcas até o presente". Em outras palavras, a criação tardia da universidade no Brasil, processo em curso e ainda incompleto, deve ser posta na conta do elitismo das oligarquias.

3) As avaliações dos cursos de pós-graduação realizadas pela Capes constituem matéria de grande interesse para pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento. Nesta edição, trazemos uma análise longitudinal de um programa de mestrado acadêmico em Ciências Contábeis, em que foi utilizada a técnica de importância X desempenho. Segundo a autora, Silvana Anita Walter, os pontos mais destacados foram Corpo Discente, Teses e Dissertações, Produção Intelectual e Corpo Docente.

4) Também os exames em larga escala adquiriram um significado muito forte para sociedade brasileira e têm produzido importantes impactos na educação brasileira. Uma das suas modalidades é o Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM). Julio Sergio dos Santos e Ângelo Luiz Cortelazzo apresentam um estudo em que buscaram identificar as habilidades avaliadas nesse exame. Observaram que, de um total de 900 questões de diversas disciplinas, 35 continham algum conteúdo de biologia celular. Concluíram que "algumas dessas perguntas estavam associadas a diferentes disciplinas do ensino médio ou podiam exigir uma forte memorização de conteúdos específicos. Também foram encontradas questões que enfatizavam a resolução de problemas contextualizados, relacionados a fenômenos biológicos, mitigando, desse modo, o enfoque conteudista ou de conteúdo primado na aprendizagem no ensino médio".

5) São ainda hoje bastante notáveis as marcas do PAIUB em muitas Instituições de Educação Superior não empresariais. Mesmo que oficialmente desaparecido, neutralizado pelo Provão no governo FHC, o PAIUB criou uma cultura de avaliação não punitiva que permanece como valor para muitos educadores. Veja-se o caso apresentado por Eula Costa, Maria Teresa Bara e Telma Garcia. As autoras afirmam que os "processos avaliativos do curso de graduação em farmácia da Universidade Federal de Goiás se iniciaram a partir do Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (PAIUB)". Trata-se de uma prática de avaliação institucional que se faz com a participação de toda a comunidade de professores, estudantes, servidores técnicos e administrativos e de especialistas na área concernida. Concluem as autoras desse artigo: "As possibilidades e expectativas apontam para a incorporação de novas vivências por parte dos docentes, com práticas pedagógicas diversificadas, bem como dos estudantes, com novas relações sociais".

6) A avaliação pode conter possibilidades de emancipação e criatividade ou, ao contrário, de submissão e neutralização do poder dos educadores. Suas práticas podem favorecer os processos formativos de cidadãos e profissionais críticos e ativos, para o desenvolvimento de sociedades e instituições bem estruturadas, includentes e amplamente democráticas, ou, infelizmente, podem contribuir para a expansão de processos e culturas que estão mais identificados com as forças do mercado e enfraquecem os valores da educação como bem público e direito social. Uma das grandes dificuldades tanto teóricas quanto práticas que se apresentam a todos os concernidos pela avaliação (autoridades, gestores, acadêmicos, especialistas, "clientes" etc) consiste numa boa equação entre avaliação e regulação. Se a regulação se torna prevalente, então a avaliação tende a se caracterizar como punitiva e limitadora. Se a avaliação se faz muito brandamente, sem preocupação com efeitos regulatórios, será criticada pelo pouco impacto que terá na organização do sistema. Ana Paula de Matos Oliveira, Valdinei Costa Souza, José Vieira de Sousa e Érica P. Goulart Tavares oferecem uma boa contribuição ao tratamento dessa questão. Colheram percepções dos coordenadores acadêmicos dos cursos de licenciaturas do Distrito Federal a respeito do SINAES, tomando o cuidado metodológico de discutir um pouco a relação entre avaliação e regulação exercida pelo Estado na educação superior em âmbito mundial. Apontando aproximações e afastamentos entre as diretrizes traçadas no âmbito do SINAES e a efetivação das práticas regulatórias organizadas pelo Estado brasileiro e seus impactos no cotidiano institucional, os autores apontam de que forma os processos avaliativos se revertem em emancipação ou submissão acadêmico-administrativa nas IES estudadas.

7) Organização ou Instituição? Michel Freitag (Le Naufrage de l'Université, Éditions La Découverte, Paris, 1986, ps. 31 e segs.) já marcara bem a distinção. Universidade é instituição: a instituição se define pela natureza de sua finalidade e se remete ao plano global da sociedade. Diferentemente, a organização tem caráter instrumental; ela pertence à ordem de adaptação dos meios para atingir um fim ou objetivo particular. A instituição tem como referência a sociedade. A organização é autorreferencial. O discurso e a lógica da organização dificilmente podem adequar-se sem problemas às instituições educacionais. O texto "Tensões e contradições do conceito de organização aplicado à Universidade: O caso da criação da USP-Leste", de autoria de Sylvia Gemignani Garcia e Maria Caramez Carlotto mostra tensões, conflitos e contradições que efetivamente ocorreram no estabelecimento de um novo campus da USP, em uma área periférica da cidade de São Paulo, devidos à aplicação do conceito de organização a uma Universidade. As autoras explicam conflitos que opuseram professores e coordenadores do projeto durante a implantação desse campus (criado para promover o desenvolvimento socioeconômico local) e também tratam da influência da cultura política brasileira sobre os processos de mudança acadêmica que se desenrola em nível global.

8) O Processo de Bolonha, estreitamente alinhado às políticas da OCDE, estabelece como foco principal da educação os resultados da aprendizagem. Ou mais propriamente, das competências e habilidades, tendo em vista a visão da empregabilidade dos estudantes. Se o centro é a aprendizagem, isso deveria conceder relevância ao trabalho autônomo dos professores do ensino básico e, ao mesmo tempo, exigiria a prática da avaliação formativa dos diferentes percursos de aprendizagem. Carlos Alberto Alves Ferreira analisa, em seu texto, as práticas de avaliação das aprendizagens de futuros professores do ensino básico nos cursos de formação de professores da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Conclui que "as práticas de avaliação programadas são, sobretudo, de natureza sumativa, apesar de nalgumas unidades curriculares se encontrarem alguns elementos da prática da avaliação formativa".

9) Marco Antonio Ramires-Martinez estuda o desenvolvimento e o funcionamento do sistema de educação tecnológica no México. Afirma, como conclusão, que as Universidades Tecnológicas têm na vinculação com o setor produtivo, incipiente em alguns casos, sua única alternativa educacional.

10) Maria das Graças Martins da Silva e Tereza Christina Mertens Aguiar Veloso tratam do tema da democratização do acesso, com base em pesquisa bibliográfica e documental. Segundo as autoras, "os avanços observados transcorrem sem referência ao acesso democrático, no que esse tem de elevado, substancial, abrangente".

11) Jéssica S. Ishida, Silvio R. Stefano e Sandra Mara de Andrade pesquisaram o grau de satisfação dos estudantes e tutores nos cursos do Programa Nacional de Administração Pública da UNICENTRO e constataram que há um alto grau de satisfação dos envolvidos no programa.

12) O último artigo desta edição, de Pedro Marcos Roma de Castro, Geciane Silveira Porto e Sérgio Kannebley Júnior, trata da influência do Pós-doutorado sobre a produção científica. Algumas conclusões dos autores: "os resultados apontam diferenças e influência positiva do pós-doutorado, especialmente diante de um maior tempo transcorrido após a conclusão do doutorado. Entre os docentes com pós-doutorado realizado existe uma tendência de acréscimo, mas essa tendência não é tão forte e incisiva, mesmo após um maior tempo de titulação, diversos casos de pesquisadores com desempenhos similares são vistos, independentemente da realização ou não do pós-doutorado".

Esperamos ter trazido aos leitores, nesta 64ª edição de Avaliação, um conjunto significativo de textos, que sejam úteis à reflexão, ao aprofundamento e à ampliação dos estudos e discussões na área de educação superior. Agradecemos a todos os autores e leitores que, ao longo desses 18 anos, vêm contribuindo para a realização desta revista.

José Dias Sobrinho

editor

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2013
  • Data do Fascículo
    Nov 2013
Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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