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Direito à saúde, discursos e práticas na construção do SUS

LIVROS

Ana Maria CanesquiI

IDepartamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Barão Geraldo. Campinas, SP, Brasil. 13.083-887. E-mail: anacanesqui@uol.com.br

L'ABbate, S. Direito à saúde, discursos e práticas na construção do SUS. São Paulo: Hucitec, 2010.

Este livro é produto da tese de doutoramento de Solange L'Abbate, defendida na área de Sociologia do curso de pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), cuja publicação, no momento de comemoração de 22 anos do Sistema Único de Saúde, é muito oportuna, revelando os posicionamentos dos diferentes segmentos e sujeitos coletivos envolvidos na implementação da política local de saúde.

Solange é socióloga, com graduação, mestrado, doutorado cursados na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, e livre-docência na área de ciências sociais aplicadas à medicina do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Está entre os pioneiros da implantação das ciências sociais e humanas no campo da Saúde Pública/ Saúde Coletiva, no Brasil.

Acumulou ampla experiência, primeiramente, como pesquisadora científica do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, e, posteriormente, desde 1985 até o momento, como docente da área de Ciências Sociais Aplicadas à Medicina do Departamento de Medicina Preventiva e Social, na Universidade Estadual de Campinas. Fez pós-doutoramento em Ciências da Educação da Universidade Paris 8-Saint Denis, e sua produção acadêmica inclui: análise das políticas de alimentação e de saúde; educação em saúde e análise institucional - este último assunto objeto de suas atuais preocupações.

Em seu livro, a autora parte do princípio constitucional do direito à saúde, que presidiu a inclusão do Sistema Único de Saúde na Constituição Brasileira, descortinando as concepções dos distintos sujeitos coletivos envolvidos na política municipal de saúde de Campinas. Preocupada, não somente com o plano discursivo, examina as trajetórias, projetos e práticas institucionais dos sujeitos coletivos selecionados, representantes de diferentes segmentos, tais como: o setor privado lucrativo (UNIMED); o setor público municipal; o movimento sindical, e o movimento popular de saúde.

Do ponto de vista metodológico, a autora coletou e examinou, com maestria e profundidade, as informações registradas nos documentos e na literatura das políticas locais e nacional de saúde e nos depoimentos daqueles representantes, tidos como sujeitos públicos, associados às diferentes entidades representativas, deles obtendo relatos orais, na forma de depoimentos ou de história de vida, nos quais se entrecruzam e interpenetram as dimensões sociais e as singulares. Ao aproximar-se de seus entrevistados, reconhece a autora que:

o informante estará revelando não apenas a sua história, a sua opinião e interpretação, mas estará revelando aspectos importantes da vida de seu grupo social mais próximo, do segmento e classe a que pertence e, no caso deste trabalho, da entidade onde desenvolveu suas atividades, e, à qual, muitas vezes, grande parte de sua vida. Ao mesmo tempo estará revelando sua forma particular de perceber todos estes processos e de atuar em relação a eles. (L'Abbate, 2010, p.33)

A apresentação da metodologia do estudo é primorosa, rigorosa, exemplar e extremamente cuidadosa, como investigação de natureza qualitativa. A combinação da abordagem fenomenológica de Schultz com a crítica de Habermans, situada na sociologia crítica, permitiu unir a teoria e prática na perspectiva emancipadora deste último autor, afastando-se, portanto, do positivismo. Permitiu, também, adentrar nas ações e nos projetos dos sujeitos, social e historicamente situados.

A análise de conteúdo temático selecionou tópicos como as concepções do direito à saúde e as opiniões avaliativas da política de saúde. Em nenhum momento, a autora abriu mão de marcar sua presença na interpretação dos inúmeros relatos, sempre comparados entre si, observando-se os aspectos consensuais, divergentes, conflitantes e contraditórios.

O livro é de leitura fácil e fluente, cuja publicação demandou trabalho de reescrita, retirando do texto original o "jeito de tese", na expressão da autora. Na introdução, discute o direto à saúde, as principais premissas e a metodologia do estudo. Cada capítulo dedica-se a um dos segmentos selecionados. No primeiro, está o setor privado, cujos projetos preservavam a presença da assistência médica privada, com forte peso nas decisões e na produção hospitalar de serviços de saúde, persistente atualmente.

A autora reconstrói a origem e expansão do sistema hospitalar campineiro, desde os hospitais filantrópicos e beneficentes do século XIX aos demais gerais e especializados, implantados a partir da década de 1920 e nas subsequentes, no contexto do desenvolvimento urbano e econômico de Campinas, como importante polo industrial.

Ora este projeto hospitalar aliou-se, no plano nacional, aos interesses presentes na Previdência Social, com participação das entidades médicas e, posteriormente, à mercantilizarão da medicina, com expressão da Unimed como cooperativa do trabalho médico.

O setor privado não abre mão do modelo da medicina hospitalar e tecnológica. Não compartilha o ideário do direito público de saúde. A autora conclui o capítulo com a expressão que resume o pensamento de seus entrevistados, no contexto da constituição do SUS: "ah, que saudades do passado", ou seja, resistiam, no momento das entrevistas, à perda da medicina previdenciária e dos benefícios usufruídos neste tipo de relação público/ privado, no modelo privatista e hospitalocêntrico.

No segundo capítulo, está o setor público de saúde, cuja constituição e desenvolvimento deram-se no embate com o setor privado. A reconstituição das mudanças da política nacional e estadual de saúde, na década de 1970, reflete-se na montagem e maior expressão do setor público municipal de saúde em Campinas, no contexto das Ações Integradas de Saúde e do Sistema Descentralizado de Saúde (SUDS), bastante expressivo, favorecendo a municipalização dos serviços de saúde.

Solange mostra a importância das diferentes forças políticas e gestões ligadas aos partidos políticos (PMDB, PT e PFL), assim como a formação e intervenção dos movimentos sociais aliados e a presença e atuação das universidades (UNICAMP e PUCAMP) na organização do setor público de saúde local. As tensões deste setor com o privado, em torno de interesses divergentes, expressavam-se, no momento pesquisado, na defesa da medicina previdenciária e na manutenção do INAMPS pelo primeiro, enquanto o setor público rumava em direção ao SUS, defendendo o direito universal à saúde como princípio fundamental da política de saúde. Estas contradições e embates refletiam-se nas dificuldades cotidianas das instituições e no trabalho dos profissionais do setor público de saúde.

O movimento sindical, abordado no terceiro capítulo, defendia a maior atuação da medicina ocupacional nas empresas e a expansão dos convênios médicos de empresas ou da cooperativa médica na prestação de assistência médica aos trabalhadores. Era muito frágil a defesa do SUS por este setor, o que ainda persiste. Representantes dos sindicatos dos bancários e dos metalúrgicos foram entrevistados, demonstrando as ambiguidades na defesa do SUS e na concepção do direito à saúde, à medida que alguns entrevistados defendiam que "cada trabalhador deve se sentir responsável por sua saúde" (L'Abbate, 2010, p.203).

O quarto capítulo aborda o Movimento Popular de Saúde, cujas origens reportam-se ao final da década de 1970, estimulado pela Igreja Católica na perspectiva da Teologia da Libertação, que fundou as Comunidades Eclesiais de Base atuantes no país. No setor saúde, estava a Medicina Comunitária, preconizando a participação popular, experiência bastante expressiva nos contextos local e em outros nacionais. O movimento popular é visto pela autora como importante mote da luta política democrática e conquista do direito à saúde e à vida. Solange reconstitui as trajetórias de cinco mulheres, ligadas àquele movimento social, nascido independente de partidos políticos, ligando-se, posteriormente, ao Partido dos Trabalhadores.

As práticas destes movimentos sociais, suas relações com o setor público de saúde, estilo de militância e de intervenção, e as mudanças da perspectiva reivindicatória para a construção de um projeto para o setor saúde foram abordadas detalhadamente, culminando o capítulo com a análise das concepções do direito à saúde, enquanto direito às condições de vida e à própria vida, como responsabilidade do Estado de oferecer serviços de saúde com qualidade técnica e no relacionamento dos profissionais com os usuários.

Na conclusão, são retomadas as características dos modos de pensar dos diferentes segmentos, enfatizando os consensos, divergências e ambiguidades, postos também em torno dos modelos assistenciais por eles defendidos, assim como nas suas práticas institucionais. Ao iniciar a redação da conclusão, disse a autora, em relação aos seus personagens: "faço um exercício para fazê-los conversar, como se estivessem numa mesa de reuniões" (L'Abbate, 2010 p.249).

O livro oferece uma rica análise dos anos iniciais da implantação do SUS em Campinas e suas particularidades, algumas delas generalizáveis a outras situações municipais nacionais. Decorridos 22 anos da implementação do SUS, ainda persistem as tensões entre os setores público e privado nas decisões e direcionamentos governamentais da política de saúde, e, particularmente, em relação ao setor público de saúde.

Se estas e outras questões já se apresentavam no início da implementação do SUS, a literatura atual aponta a expansão da cobertura - em especial da atenção básica e do pronto atendimento -, a descentralização, os conselhos de saúde, entre outros inúmeros aspectos positivos, mostrando, também, os impasses e dificuldades enfrentados pelo SUS, dentre elas: a crise de legitimidade das instituições públicas, a baixa eficácia e eficiência; a não-transformação do modelo de atenção; o descaso com os hospitais públicos; a ausência de integração entre os hospitais e os centros de especialidades (Campos, 2008).

Há indicações, também, da baixa prioridade governamental conferida ao financiamento da saúde; a fragilização do setor público; a terceirização do trabalho em saúde; a priorização dos planos de seguro saúde privado; a baixa qualidade e redirecionamento da oferta à atenção básica pelo setor público, com ínfimo estímulo à média e alta complexidades, bastante demandadas pelos usuários do SUS, entre tantos outros problemas visíveis e divulgados pelos meios de comunicação de massa, atestando o descaso e a precariedade na prestação de serviços de saúde à população SUS dependente.

Novas formas de participação social se instituíram nestes 22 anos de consolidação do SUS, mas o embrião inicial evidenciado na análise mostrou a importância da fiscalização do cidadão e de sua participação nos seus rumos. A autora compartilha com as ideias da importância das práticas sociais fundadas no direito à saúde como direito de cidadania, ancoradas na concepção "positiva" da saúde que abraça e inclui as condições de vida, trabalho, lazer e a assistência médica, quando necessária.

Recomenda-se a leitura deste livro, onde o (a) leitor (a) deparará com uma análise rigorosa e densa, situando e privilegiando os sujeitos sociais nos cenários, como protagonistas da política de saúde, sem descurar-se dos condicionantes macropolíticos que cerceiam ou favorecem suas intervenções.

  • CAMPOS, G.W. Desafios e organização do SUS: vinte anos de política pública. Cad. Saude Publica, v.24, n.10, p.2200, 2008.
  • L'ABBATE, S. Direito à saúde, discursos e práticas na construção do SUS. São Paulo: Hucitec, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2012
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