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CHARTIER, Roger. Mobilidade e materialidade dos textos: traduzir nos séculos XVI e XVII. Trad. Marlon Salomon e Raquel Campos. Salvador, BA: EDUFBA, 2020

CHARTIER, Roger. . Mobilidade e materialidade dos textos: traduzir nos séculos XVI e XVIITrad. Marlon Salomon e Raquel CamposSalvador, BAEDUFBA2020

Roger ChartierCHARTIER, Roger. Mobilidade e materialidade dos textos: traduzir nos séculos XVI e XVII. Trad. Marlon Salomon e Raquel Campos. Salvador, BA: EDUFBA, 2020, historiador Francês, escreveu o livro “Mobilidade e materialidade dos textos: traduzir nos séculos XVI e XVII” o qual foi competentemente traduzido pelo professor Marlon Salomon (historiador) e pela professora Raquel Campos (historiadora) e docentes da Universidade Federal de Goiás. Traduzir Roger Chartier torna-se um desafio, uma vez que, o autor apresenta-nos uma escrita sofisticada e ao mesmo tempo complexa. No entanto, a larga convivência dos historiadores com o autor e com a École Des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, onde Chartier professorou por algumas décadas, lhes confere a competência necessária para traduzir essa obra. Um outro presente, para nós e para os tradutores, é que o livro foi publicado originalmente em língua portuguesa, sendo fruto das traduções realizadas diretamente de pesquisas documentais feitas por Chartier.

Já na introdução o autor destaca as migrações e as intervenções sofridas pelos textos por diferentes atores (escribas, censores, tradutores, editores, impressores e livreiros) durante o processo de produção bibliográfica. Desse modo, o presente livro, segundo Chartier, é fruto de 4 estudos de caso realizados por ele, a partir de uma extensa pesquisa bibliográfica e documental feita nas coleções de livros raros e manuscritos da Biblioteca da Universidade da Pensilvânia (onde ele ministra aulas atualmente). Chama atenção o fato de o autor, contente com o resultado de suas pesquisas na biblioteca, fazer uma bela homenagem aos profissionais que trabalham nas instituições bibliotecárias, ao destacar a importância da preservação do livro em seu estado físico.

Na primeira parte do livro “PUBLICAR” Chartier nos apresenta a trajetória de uma importante publicação datada de 1552 a qual denunciava a crueldade a povos indígenas nos primeiros primórdios da colonização das américas. Trata-se da publicação da “Brevíssima Relacíon de La Destruycíon de LasIndias” publicada em Sevilha pelo dominicano Bartolomeu de Las Casas. Importante destacar que essa publicação, em uma época tão distante, já compunha um rol de publicações que denunciavam ao rei as atrocidades cometidas pelos colonizadores, demonstrando a coragem de Las Casas1 1 O espanhol Bartolomeu de Las Casas, que nasceu na segunda metade do século XV, foi um cronista dominicano defensor dos índios. em colocar tal problemática em uma época em que pouco importava a vida de nativos indígenas. Mesmo nessa época, a denúncia de Las Casas surtiu efeito com a publicação das “Leyes Nuevas de Indias” em Barcelona proibindo a escravização de índios. Apesar de não eliminar completamente o regime de “encomenda” possibilitou a proteção de alguns. Entretanto, anos despois, algumas partes da lei foram revogadas por pressão de colonos e mesmo assim, Las Casas não desistiu de sua missão.

O texto de Las Casas tivera 3 traduções: a primeira em holandês em 1578, a segunda em francês em 1579 e a terceira, traduzida do francês, para o inglês em 1583 com a mesma intenção de denunciar a forma como a vida de indígenas era injustamente ceifadas durante o período de colonização espanhola. Além das três primeiras traduções, outras quatro, em diferentes momentos da história foram realizadas, completando assim as sete vidas que dão título ao capítulo. Isso demonstra como a prática da tradução contribuiu para que diferentes países pudessem ter acesso ao conteúdo do texto denunciativo de Las Casas e assim, conhecer os as atrocidades cometidas durante o período de colonização espanhola.

Entretanto, chama a atenção que, a sexta vida da tradução de Las Casas, publicada em Paris em 1697, ganha outras nuances, ganhando um traçado menos denunciativo e retirando do título palavras como “destruição, crueldades e lágrimas” (p. 47). A tradução então se transforma num ‘interessante relato de viagem” (p. 50). A sétima vida ganha múltiplas reedições durante o período de liberdade americana entre 1810 e 1820, sendo publicada em Guadalajara em 1822 e, nesse caso, ressaltando-se a importância do autor principal, Las Casas, como santo e profeta.

Capítulo 2 : REPRESENTAR - nesse capítulo a obra de reflexão é Fuente Ovejuna, comédia de Lope de Vega2 2 Dramaturgo espanhol nascido na segunda metade do século XVI , composta em 1612 e publicada em Madri em 1619. O destaque é a apreensão do gênero teatral, levando ao palco “todos os discursos, todas as práticas todas as realidades do mundo social o do passado” (p. 63). Tal obra retrata a revolta em 1476, dos habitantes da Villa de Fuente Ovejuna, em Andaluzia e descreve a violência praticada pelos habitantes contra seu senhor, o Grande Comendador da Ordem Militar de Calatrava, Fernán Gómez de Guzmán. A peça de Lope de Vega foi representada em várias cidades da Espanha, comprovando assim sua inserção e aceitação por diversas populações.

Apesar de a obra de Lope de Vega ter sido criada para representação e o próprio autor rejeitar a ideia, o mercado legal se viu tentado a imprimir e publicar as peças do autor em diversas edições, iniciando com a “publicação em 1603, em Lisboa, de um volume intitulado Seis comedias de Lope de Vega y de otros autores”. (p. 81). Após várias tentativas de Vega pela na não publicação impressa de suas comédias, ele próprio resolve imprimir seus originais a fim de diminuir a usurpação de seus escritos.

Mesmo assim, muitos imprimiam as obras sem o consentimento de Lope e muitas vezes faziam uso indevido do seu nome em outros textos, para que fossem vendidos usando a fama do autor. Outro problema eram as obras impressas sem autorização legal.

Em relação a forma de fazer teatro, Fuente Ovejuna, Lope Vega extrai sua informação da crônica de Rades y Andrada “da qual se distancia diversas vezes” (p. 96) em que a cronologia do cronista é substituída “por uma outra, propriamente dramática” (p. 96). Nesse sentido, Las Casas, mostrava a partir do teatro, a violência sofrida pelos moradores de Fuente, inclusive violência com as mulheres, justificando assim o assassinato do comendador.

Capítulo 3 TRADUZIR - o capítulo abre com uma reflexão questionadora a respeito da atividade de traduzir: literalidade do texto ou identidade interpretativa do tradutor? Talvez o primeiro tópico da parte III que se dedicou a reflexão da obra “Brevíssima relacíon de la destruycíon de las Indias” já nos traga algumas pistas, uma vez que, suas diferentes traduções demonstram as escolhas que cada um faz ou enfatiza em uma obra. Este livro, a que resenho por exemplo, representa a linguagem, as características dos tradutores e a preocupação com a acessibilidade textual.

Essa parte, no entanto, além de refletir sobre a subjetividade envolta no processo de traduzir, tendo como personagem principal o tradutor Amelot de La Houssaie, vai discutir também a questão da omissão do nome de Baltazar Gracián em suas obras traduzidas por Amelot, uma vez que, os livros desse autor são, inicialmente, publicados em nome de seu irmão Lorenzo. A justificativa, colocada tempos depois por Amelot é o fato de Baltazar ser um jesuíta e não ser prudente seu nome estar inscrito em lista de escritores profanos, uma vez que nessa época, a censura estava estabelecida. Demonstra uma série de trabalhos complexos de traduções de Gracián no decorrer dos anos, que ao final, Chartier concorda que não deveria ter sido fácil a tradução desse autor por parte de Amelot.

Capítulo 4 - ADAPTAR - Chartier inicia a parte intitulada adaptar lembrando da importância dos tradutores, durante a primeira modernidade, em fazer circular os livros por outras partes do mundo. Ressalta, também, os editores na valiosa arte de ressignificarem as obras dando outras conotações e mudanças de gênero. Assim, nessa parte da obra, Chartier se dedica à análise da tradução e das diversas adaptações sofridas pela obra “Dom Quixote” em especial a representação dela pelas marionetes de Lisboa. Interessante notar a forma como se desenvolveu o teatro de Don Quixote em solo europeu e os diferentes modos teatrais de representar a obra, seja com marionetes ou com artistas humanos.

Chama atenção o fato de no Brasil um diretor brasileiro, Job Tom Azoulay, dedicar um filme ao luso-brasileiro Antônio José da Silva, dramaturgo que em peça de teatro retrata e faz adaptações em “Dom Quixote”. Praticamente, todo capítulo retrata a contribuição de Antônio José da Silva diante das histórias das adaptações da referida obra bem como o fim trágico desse importante dramaturgo. Cabe ressaltar que as adaptações em diferentes obras, nesse caso em específico, Dom Quixote dependeu do contexto sociocultural de uma determinada região que poderia, ou não, aceitar, certas ousadias.

EPÍLOGO - chegando ao final da obra, no epílogo REESCREVER, Chartier intitula esse último tópico como “Cervantes, Menard e Borges”. Tudo isso para revisitar a escrita de D. Quixote de Cervantes a partir de um conto escrito por Borges “Pierre Menard, autor do Quixote”. Tratando-se de um conto tido como desafiador para Borges (depois de um acidente que o deixou sem fala) em que ele se desafiou para um tipo de escrita que não fazia parte dos gêneros de escrita do autor. Vencendo o desafio, Borges ressignifica Quixote dando voz a Pierre Menard sem, no entanto, descaracterizar o Quixote original. Para finalizar, Chartier dirá “... o Quixote foi e permanece sempre o mesmo desde que Cervantes imaginou a sua história, Borges e Menard procuram conjurar essas infinitas variações” (p. 209).

Conclusão - o livro não traz em si uma conclusão. No entanto, cabe a esta resenha destacar que esta obra, como tantas de Roger Chartier, nos encanta pelos ensaios analíticos de importante contribuição à leitura e a literatura mundial. Como um bom historiador cultural, Chartier mergulha nos acervos impressos da Biblioteca da Universidade da Pensilvânia e nos traz a tona toda a complexidade, mobilidade e materialidade dos textos em torno da arte de publicar, representar, traduzir, adaptar e reescrever nos séculos XVI e XVII. No entanto, Marlon Salomon e Raquel Campos tiveram a árdua e compensatória tarefa de traduzir os textos que compõem este livro e nos possibilitar, a nós brasileiros pesquisadores e pesquisadoras, atentos aos escritos de Chartier, poder contemplar e aprender, um pouco mais, acerca desse novo escrito.

  • CHARTIER, Roger. Mobilidade e materialidade dos textos: traduzir nos séculos XVI e XVII. Trad. Marlon Salomon e Raquel Campos. Salvador, BA: EDUFBA, 2020
  • 1
    O espanhol Bartolomeu de Las Casas, que nasceu na segunda metade do século XV, foi um cronista dominicano defensor dos índios.
  • 2
    Dramaturgo espanhol nascido na segunda metade do século XVI

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2021
  • Aceito
    29 Dez 2021
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