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Do ocaso à revelação: uma breve análise do quadro de arranjo e dos instrumentos de pesquisa da Divisão de Censura de Diversões Públicas à luz da Arquivologia

From twilight to reveal: a brief analysis of the arrangement and of the research instruments of Divisão de Censura de Diversões Públicas regarding Archivology

RESUMO

Este artigo apresenta uma análise do quadro de arranjo e dos instrumentos de pesquisa referentes ao fundo da Divisão de Censura de Diversões Públicas, custodiado no Arquivo Nacional. Partindo de uma revisão bibliográfica e da coleta de dados, pretendemos trabalhar as seguintes questões: a) de que modos o quadro de arranjo e os instrumentos de pesquisa orientam a busca por informações junto ao fundo DCDP? Secundariamente, como esses instrumentos de pesquisa estão integrados ao cenário arquivístico institucional e até mesmo nacional?

Palavras-chave:
Descrição arquivística; Censura; Ditadura; Arquivo Nacional

ABSTRACT

This article presents an analysis of the arrangement and the research instruments related to the fund of the Divisão de Censura de Diversões Públicas, kept in Arquivo Nacional. Based on a bibliographic review and data collection, we intend to work on these questions: a) in what ways does the arrangement framework and research instruments guide the search for information from the DCDP fund? Secondly, how these instruments guide are integrated into their institucional and evennational context?

Keywords:
Archivaldescription; Censorship; Dictatorship; Arquivo Nacional

1 Introdução

A censura foi uma função amplamente exercida pelo Estado brasileiro em seu período republicano. Inicialmente exercida pelas polícias estaduais (e, no caso do Rio de Janeiro, pela Polícia do Distrito Federal) nos primeiros anos da República, a censura ganhou um órgão específico no organograma do Estado brasileiro com a criação do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), através do Decreto 24651/34, durante a Era Vargas (1930-1945).

A centralização da atividade censória pensada pela ditadura civil-militar que se instalou após o Golpe de 1964 é fruto desse primeiro momento inaugural da ditadura varguista, lembrando que ela foi exercida mesmo durante o período democrático no intervalo entre esses regimes autoritários.A atuação da Divisão de Censura de Diversões Públicas1 1 A ela, referir-nos-emos como DCDP ao longo deste artigo a partir desse ponto. configura mais um capítulo no histórico republicano do exercício dessa função.Ela foi o órgão que atuou diretamente na censura às obras de diferentes meios artísticos e de comunicação entre 1972 e 1988, sendo também responsável pela atuação cada vez mais enfática do órgão na repressão às vozes dissonantes do regime que atuavam nos meios de comunicação massiva e artísticos (Fico, 2001FICO, C. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2001.;Kushnir, 2004KUSHNIR, B. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 88. São Paulo: Boitempo, 2004.; Lapera, 2015LAPERA, P. V. A. Entre brechas, cortes e rasuras: relações étnico-raciais e censura cinematográfica na ditadura militar. Famecos, Porto Alegre, v.22, n. 2, abr/jun 2015, p. 82-98.; Ridenti, 2000RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2000.; Simões, 1999SIMÕES, I. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: SENAC, 1999.).

O Decreto 70665/722 2 https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-70665-2-junho-1972-419313-publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em: em 27 jul. 2019. inseria a DCDP na estrutura do Departamento de Polícia Federal (DPF) no inciso I do seu artigo 2º., situando-a na sua competência de exercer a censura de diversões públicas estabelecida no art 1º. do mesmo Decreto. Ainda havia o Conselho Superior de Censura, órgão colegiado de natureza consultiva e deliberativa do Ministério da Justiça, criado pelo Decreto 64416, de 19693 3 https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-64416-28-abril-1969-405956-publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em: 28 jul. 2019. , que possuía a atribuição de julgar todos os recursos impetrados contra as decisões da diretoria da Polícia Federal que, por sua vez, apreciavam os recursos contra as decisões da chefia da DCDP.Recordamos que ela foi oficialmente extinta com a promulgação da Constituição de 1988, uma vez que o então novo texto constitucional vedava ao Estado brasileiro a prática de censurar obras artísticas e meios de comunicação massivos.

Ao longo deste artigo, apresentaremos uma discussão sobre o organograma da DCDP, sobre a própria delimitação de seu fundo perante os fundos da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, além de uma análise do quadro de arranjo do fundo DCDP e dos instrumentos de pesquisa elaborados pelo Arquivo Nacional - seção Brasília, instituição responsável pelo recolhimento da documentação permanente e pela sua custódia.

As questões que trabalhamos ao longo de nosso trabalho são: a) de que modos o quadro de arranjo e os instrumentos de pesquisa orientam a busca por informações junto ao fundo da DCDP? Secundariamente, como esses instrumentos de pesquisa estão integrados ao cenário arquivístico institucional e até mesmo nacional?Enfatizamos que nossa pesquisa foi realizada através da coleta in loco e online de fontes e documentos junto ao Arquivo Nacional - seção Brasília e de uma breve revisão bibliográfica amparada em algumas discussões atuais na Arquivologia a respeito de questões como custódia, critérios de delimitação de fundos, de elaboração de quadros de arranjo e de elementos a serem incorporados na descrição arquivística.

A coleta de fontes sobre o arquivo da DCDP vem ocorrendo em meio a uma pesquisa sobre a censura à atividade cinematográfica no Brasil, em andamento desde 2010 junto ao Arquivo Nacional. Por diversos caminhos, ao longo do Doutorado, percebemos que todos os filmes analisados se depararam em algum momento com a atividade censória e, em maior ou menor nível, tiveram sua circulação cerceada4 4 Ressaltamos que este artigo não se relaciona à tese já defendida, uma vez que se trata de um projeto de pesquisa posterior ao Doutorado. .

Embora de modo intermitente, conseguimos reunir não apenas dados a partir das fontes coletadas especificamente a respeito do cinema no Brasil nos anos 1970 e 80, como também a respeito do próprio arquivo que custodia esses documentos analisados. Enquanto critério de seleção das fontes a serem analisadas, partimos do material disponibilizado ao longo das consultas efetuadas presencialmente no Arquivo Nacional para, em seguida, acrescentarmos novas fontes à medida que foram disponibilizadas.

Como usuário, acessamos os materiais que instrumentalizam a busca por documentos junto ao arquivo da DCDP ao longo desses anos e, em 2019, incorporamos as informações disponíveis no site do Arquivo Nacional a respeito desse arquivo à nossa exposição. Por fim, em 2021, resolvemos acrescentar também os registros na base SIAN5 5 Sigla de Sistema de Informações do Arquivo Nacional. Resumidamente, a base SIAN reúne documentos de diversos fundos custodiados pelo Arquivo Nacional. Ainda, apresenta esses fundos e suas informações, tais como instituição de origem, histórico, séries, subséries, descrições qualitativas a respeito dos documentos e dos fundos. Para acessá-la, basta realizar um breve cadastro por parte do/a pesquisador/a. Link: https://sian.an.gov.br/sianex/consulta/login.asp (Acesso em 25/11/2021). do Arquivo Nacional ao escopo desta pesquisa.

2 Análise do quadro de arranjo e dos instrumentos de pesquisa da DCDP/Arquivo Nacional

Antes de avaliarmos o quadro de arranjo e os instrumentos de pesquisa da DCDP, precisamos discutir a delimitação de um fundo. A DCDP era um órgão localizado dentro da estrutura da Polícia Federal que, por sua vez, estava submetida ao Ministério da Justiça. Tal subordinação foi amparada pelo Decreto-Lei 1077/70, que dispunha, em seu artigo 2º: “Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior”6 6 Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1970-1979/decreto-lei-1077-26-janeiro-1970-355732-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 23 jul. 2019. .

Assim, a DCDP possuía uma atividade e uma competência legal definidas: exercer censura a diferentes meios atinentes às diversões públicas (teatro, cinema, música, televisão etc). Além disso, a chefia desta Divisão detinha um grau de autonomia relativo à Chefia da Polícia Federal, uma vez que suas decisões só poderiam ser contestadas por meio de recurso administrativo, que se inseria em um fluxo hierárquico definido. Por fim, possuía um organograma minimamente estável que respondia à sua estrutura e dava conta das funções e atividades que o órgão exercia.

Desse modo, a DCDP atendia aos critérios elencados por Duchein (1982-1986, p. 19) na delimitação de um fundo próprio, na medida em que o órgão possuía uma existência jurídica imposta pelo Decreto-Lei citado, executou durante sua existência atividades estáveis em torno da função censória, tinha posição definida na hierarquia administrativa do Ministério da Justiça e chefia com autonomia relativa de atuação, além de um organograma conhecido.

Considerando o fundo uma criação intelectual fruto de uma abstração, Cook discute as posições maximalistas e minimalistas na definição de um fundo. O autor analisou a importância de se delimitar os limites de um fundo (2017, p. 35-38) para a gestão dos arquivos correntes, intermediários e também os permanentes. Ainda, recordou a posição de alguns autores maximalistas (Jenkinson e seus seguidores), ao analisar que esses autores incluem todos os documentos produzidos por uma administração dentro de um todo orgânico (2017, p. 36).

A isso, Cook (2017COOK, T. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017., p. 37) contrapõe a posição dos arquivistas norte-americanos (representados por Schellenberg), que se preocuparam em criar e adotar critérios de definição de fundos para melhor administrá-los em relação ao todo documental produzido pela Administração federal do governo norte-americano.

No caso da DCDP, seu fundo foi individualizado no tratamento arquivístico elaborado pelo Arquivo Nacional em relação aos fundos dos entes administrativos aos quais o órgão se encontrava subordinado durante sua existência e atuação. Desse modo, ao se delimitar o fundo DCDP, adotou-se o critério minimalista, dissociando-o dos fundos da Polícia Federal e do Ministério da Justiça.

No caso do fundo da DCDP, a opção pelo tratamento minimalista permitiu um destaque maior tanto do seu conjunto documental quanto da atividade principal exercida por ele, sem que se perdesse de vista o fato de que ele se insere em uma estrutura maior. Tal escolha revelou-se fundamental para divulgar aos usuários (sejam eles historiadores ou não) sua importância como vestígio de uma função - censura - que sustentava o regime que o originou, jogando luz sobre os processos administrativos e os documentos produzidos por eles.

Ainda, podemos considerar que a aplicação do critério maximalista na delimitação de um fundo seria bastante problemática em se tratando dos documentos referentes à Administração pública brasileira durante a ditadura civil-militar. Além de serem notórios os relatos em torno da perda de arquivos inteiros e de eliminação arbitrária de documentos pelos agentes da ditadura na ocultação de seus crimes (Figueiredo, 2015FIGUEIREDO, L. Lugar nenhum: militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.), também recordamos que o Ministério da Justiça centralizava parte considerável do aparato repressor do regime civil-militar (Polícia Federal, Serviço Nacional de Informação - SNI, além da própria DCDP).

Desse modo, não há a garantia de que as perdas documentais ocorreram exclusivamente através da avaliação arquivística e a consequente eliminação de parte da massa documental, na medida em que a adoção do critério maximalista exige a visão completa do fluxo documental arquivos correntes, intermediários e permanentes na Administração pública (Cook, 2007, p. 36) e tal fato torna-se impossível no contexto descrito.

Sobre a custódia do arquivo da DCDP pelo Arquivo Nacional, é preciso situá-la dentro do exposto por Duranti a respeito da ligação entre ela e a autenticidade dos documentos:

declarar um documento autêntico significa dizer que ele se encontra do mesmo jeito que foi transmitido primeiramente ou colocado para preservação e que sua confiabilidade ou a veracidade relacionada àquele momento foi mantida intacta.7 7 “To declare a document authentic means to say that it is precisely as it was when first transmitted or set aside for preservation, and that its reliability, or the trustworthiness it had at that moment, has been maintained intact” (Tradução fo autor). (DURANTI, 2007DURANTI, L. Archives as a place. Archives & Social Studies: a Journal of Interdisciplinary Research, v. 1, March 2007, p. 445-466., p. 454)

Ainda, a autora relaciona a custódia dos arquivos ao processo de formação dos Estados nacionais a partir do século XVIII em razão dos valores jurídico-administrativo e histórico dos documentos (DURANTI, 2007DURANTI, L. Archives as a place. Archives & Social Studies: a Journal of Interdisciplinary Research, v. 1, March 2007, p. 445-466., p. 455-457). Desse modo, podemos localizar esses documentos em meio à relação entre a custódia estatal, a sua autenticidade e a sua necessidade de preservação, vista como fundamental para a construção do conhecimento histórico sobre eventos, sujeitos, instituições e processos no passado.

De acordo com Kushnir (2004KUSHNIR, B. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 88. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 208), o organograma da DCDP era estruturado a partir do seu Gabinete da Direção, que ocupava o topo da escala hierárquica. Dele, partiam todos os níveis inferiores, o que demonstra uma centralização interna do próprio órgão. Em um nível hierárquico inferior, há duas seções (Orientação e Coordenação e Controle) e um arquivo, além do Serviço de Censura que, por sua vez, em um nível hierárquico inferior, se desdobra em censura a cinema, a televisão e rádio, a teatro e congêneres, além das seções de expediente e de projeção.

Retomaremos a esse organograma na discussão sobre o quadro de arranjo elaborado pelo Arquivo Nacional, que reproduzimos no quadro abaixo8 8 O quadro foi elaborado de acordo com o quadro de arranjo de autoria da técnica em arquivo Camilla França publicado no Diário Oficial da União em 6 de maio de 2009 e todas as informações reproduzidas nesta tabela constam no referido quadro. Além das seções apresentadas, há 17 caixas avulsas. :

Seção Série Subsérie Administração Geral (15 caixas) Controle de documentos - termos de eliminação - CDO - 1 caixa Correspondência Oficial - COF Ofícios de comunicação e solicitação - CSO - 5 caixas Informações Sigilosas - ISI - 1 caixa Manifestações da Sociedade Civil - MSC - 6 caixas Relatórios de Atividades - RAT - 2 caixas Censura Prévia - CPR (3187 caixas) Cinema - CIN Programação Cinematográfica - PCN - 9 caixas Filmes - FIL - 862 caixas Publicações - PUB - 28 caixas Publicidade - PBL - 11 caixas Rádio - RAD Programas de Rádio - PGI - 8 caixas Programação de Emissoras de Rádio - PRI - 3 caixas Radionovelas - RDN - 66 caixas Teatro - TEA Peças teatrais - PTE - 764 caixas Programação de Teatro - 2 caixas Televisão - TVE Programas de Televisão - PGV - 96 caixas Programação de Emissoras de Televisão - PTV - 6 caixas Seriados - SER - 413 caixas Telenovelas - TLN - 158 caixas Música - MUI Letras Musicais - LMU - 736 caixas Programação de Música - PMU - 14 caixas Coordenação e Controle - CCO (89 caixas) Autorização Especial - AES - 16 caixas Direito Autoral - DAU - 5 caixas Fiscalização - FIS - 19 caixas Registros de Firmas e Publicações - RFP Empresas cinematográficas e agências de publicidade - ECA - 16 caixas Estabelecimento Comercial - ECO - 3 caixas Publicações - PUB - 30 caixas Orientação - ORI (16 caixas) Cursos - CUR - 1 caixa Normatização - NOR - 5 caixas Recursos - RER - 10 caixas Fonte: produção do autor.

É importante ressaltar que este quadro de arranjo se refere aos documentos escritos que se encontram fisicamente guardados na seção Brasília do Arquivo Nacional. Também há documentos audiovisuais do mesmo fundo da DCDP guardados no Arquivo Nacional, na seção do Rio de Janeiro, cujos itens documentais são compostos por 354 filmes cinematográficos e por 16 fitas videomagnéticas9 9 http://dibrarq.arquivonacional.gov.br/index.php/divisao-de-censura-de-diversoes-publicas-4. Acesso em: 27 jul. 2019. , porém enfatizamos que a parte referente a documentos audiovisuais do fundo da DCDP não é o objeto desta pesquisa.

Sobre os critérios a serem considerados na elaboração de um quadro de arranjo, existem o tipológico, o estrutural e o funcional. O primeiro se ateria aos tipos documentais presentes no arquivo. Por sua vez, o segundo levaria em consideração principalmente a estrutura da empresa/instituição originária do fundo. Por fim, o terceiro critério - que é o mais recomendado e utilizado no campo da Arquivologia -é pautado pelas funções e atividades exercidas por um órgão/instituição e como os documentos são relacionados a elas (BELLOTTO, 2004BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 147-160).

De acordo com Bellotto:

Se, para a fixação do fundo, do grupo ou seção e do subgrupo ou subseção, o fundamental é o órgão produtor (o “autor”), para a série ou subsérie, o que vigora são a função e o tipo documental. No que diz respeito aos documentos, é com esses elementos que ‘se reconstroem o organograma e as atividades que os originam, o que permite entender o arquivo como um todo em que cada peça está relacionada em virtude da procedência e do trâmite. Algo bem diferente de uma bem ordenada coleção de documentos, reunidos por interesse de pesquisa, por capricho ou por necessidade de ordenar peças procedentes de várias origens’ (Cortés Alonso, 1981).

Entra aqui, mais uma vez, a questão da organicidade dos documentos de arquivo. Se estes resultam de diferentes ramos das funções e das competências de um órgão público, as sequências de documentos não têm sentido fora dessa sucessão, assim como não podem estar relacionados a outros tipos de competências. A organicidade é, portanto, a ‘relação entre a individualidade do documento e o conjunto no qual ele se situa geneticamente, sendo precisamente a base da noção de fundo de arquivo’ (Guaye, 1984, v. 34, p. 15-23). Esse axioma deve estar sempre presente, quase que implacavelmente, nas tarefas de organização interna de fundos (BELLOTTO, 2004BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 152).

Bellotto avalia que o objetivo do arranjo é a “ordenação dos conjuntos documentais remanescentes das eliminações (...), obedecendo a critérios que respeitem o caráter orgânico dos conjuntos, interna e externamente” (BELLOTTO, 2004BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 136). Ao refletir sobre a ligação entre a predominância da forma administrativa no arranjo e a recuperação da informação para os usuários, a autora pondera que a importância do fundo não reside exclusivamente no conteúdo dos documentos, mas também nas relações que guardam entre eles e, principalmente, entre eles e as funções e atividades desempenhadas por um órgão (BELLOTTO, 2004, p. 139-140).

Cruzando os dados do organograma com os do quadro de arranjo, é possível verificar algumas semelhanças entre a estrutura do órgão e o modo como os documentos foram organizados. Por exemplo, o serviço de Censura Prévia e as seções de Orientação e de Coordenação e Controle presentes no organograma encontram ressonância nas seções homônimas no quadro de arranjo. Além disso, a seção Censura Prévia no quadro de arranjo reúne em suas séries algumas das divisões dentro do setor que a gerou.Isso significa que o quadro de arranjo adotou o critério estrutural em sua elaboração, ao menos parcialmente.

Entretanto, a disposição das seções no quadro de arranjo também responde às funções desempenhadas pela DCDP ao longo do seu período ativo, uma vez que cabia a ela realizar a censura prévia das diversões públicas e também exercer alguns mecanismos de controle e fiscalização e, ainda, na formação e atualização nas práticas dos censores. Assim, podemos classificar o quadro de arranjo da DCDP como estrutural-funcional, em linhas gerais, sendo o critério tipológico adotado no caso mais raramente.

Ainda sobre o quadro de arranjo da DCDP,verificamos que este se estrutura em torno de 4 seções, a saber: Administração Geral; Censura Prévia; Coordenação e Controle; e Orientação. A respeito dessa divisão em um quadro de arranjo, Bellotto prescreveu: “tanto o fundo quanto suas primeiras divisões - grupos ou seções e subgrupos ou subseções (se houver) - são, na verdade, nomes, no arquivo, aglutinações de documentos” (2004, p. 152).

Na seção Administração Geral, há um conjunto de documentos referentes às atividades administrativas da DCDP, tais como: correspondências com outros órgãos de dentro e mesmo externos à estrutura do Ministério da Justiça, cartas escritas por cidadãos apoiando ou questionando a atuação da DCDP, pedindo maior ou menor rigor na avaliação de obras, troca de informações sigilosas envolvendo obras avaliadas pela DCDP, personalidades dos diferentes campos da arte e da cultura brasileira dos anos 1960 e 70 e a atuação de funcionários do próprio órgão na repressão da ditadura contra os agentes da cultura brasileira. Também estão guardados os relatórios de atividades dos diferentes setores da DCDP desde sua implementação até sua extinção com a Constituição de 1988.

Nessa seção, duas séries foram nomeadas a partir de tipos documentais (Correspondência Oficial e Relatório de Atividades) e não a partir de funções, como no restante do quadro de arranjo da DCDP, havendo uma mistura de critérios na nomeação de séries. Em princípio isso contraria a teoria arquivística, que preconiza a adoção de um critério na nomeação de grupos de mesmo nível (seção, série, subsérie) (BELLOTTO, 2004BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 150-160)10 10 Agradecemos a/ao parecerista por essa observação, que incorporamos à nossa análise. e, em um primeiro momento, poderia dificultar a visualização por parte do usuário dos documentos elencados nessas séries.

De fato, tais séries poderiam ter sido nomeadas de outro modo para indicar com mais precisão as funções desempenhadas por esses documentos em relação à totalidade do fundo. Entretanto, recordamos que justamente essas séries foram alvos de uma descrição arquivística bastante meticulosa, a ser ainda abordada neste artigo, contornando a questão da consulta por parte do usuário externo com mais informações sobre esses conjuntos de documentos.

Por sua vez, a seção Censura Prévia constitui o “núcleo duro” da documentação do fundo DCDP, justamente por se remeter à principal atividade-fim do órgão. Nela, estão reunidas em 7 séries que se desdobram em 13 subséries os documentos referentes à censura prévia das obras de diferentes campos da cultura: música, teatro, cinema, rádio e televisão, o que certamente justifica o maior acúmulo documental ter ocorrido justamente nela (algo comprovado pelas 3187 caixas arquivadas).

À primeira vista, os nomes de algumas séries dessa seção - Cinema, Televisão, Publicidade, por exemplo - podem parecer um recorte por assunto e não funcional, na medida em que estes se confundem com temas a serem potencialmente pesquisados na documentação do fundo11 11 Agradecemos à/ao parecerista por mais essa observação feita sobre os nomes das séries e subséries. . A respeito disso, precisamos sublinhar a ligação entre a atividade de censura prévia feita pela DCDP e a função em cada caso, a saber: censura ao cinema, à televisão, à publicidade, para continuarmos nos exemplos.Na seção Coordenação e Controle, encontram-se os documentos referentes às atividades de controle no campo da cultura exercidas pela DCDP, tais como recolhimento de taxas de direitos autorais de obras dos diversos meios, registros de empresas cinematográficas e de agências publicitárias (que precisavam disso para funcionarem). Além disso, há documentos a respeito da fiscalização exercida pela DCDP no âmbito das diversões públicas, tais como autos de infração, alvarás de funcionamento, multas. Nessa seção, também é possível ter uma impressão de que assuntos foram privilegiados em detrimento de funções, sobretudo a série “Direito Autoral”. No entanto, recordamos que a série citada responde diretamente a uma atividade de controle (tal como expresso no nome da seção).

Na seção Orientação, há uma documentação acumulada referente aos cursos para os próprios funcionários da DCDP que se remetiam à atividade censória, comentários e explicações sobre a legislação aplicada pelo órgão e os recursos endereçados por particulares a ele.

Completando o fundo, ainda há dezessete caixas avulsas que incluem alguns documentos referentes a cinema, tais como Festival de Cinema de Gramado e instrumentos de busca referentes a filmes, além de outros assuntos como livros e material apreendidos. Deste modo, realizou-se a operação do arranjo em seu sentido material e intelectual, tal como preconizado por Bellotto (2004BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 139), uma vez que à organização física dos documentos no fundo e em suas seções, séries e subséries, há a correspondência com a função desses documentos no conjunto do arquivo, o que evidencia o respeito ao princípio da organicidade.

Na delimitação do fundo DCDP, observamos as consequências apontadas por Duchein:

Separa as divisões ou secções internas de um organismo que não respondam às condições requisitadas para produzir um Fundos de arquivo;

Todo organismo possuindo uma existência jurídica e um nível de competências própria produz um Fundos de arquivo, mesmo se está subordinado a outro organismo de nível mais elevado;

Os órgãos locais dependentes de um organismo central produzem Fundos de arquivos que lhes são próprios;

Por fim, parece inevitável introduzir em Arquivologia uma noção nova: aquela de hierarquia de Fundos dos organismos produtores, provocando a subordinação de certos Fundos em relação a outros (DUCHEIN, 1982-1986, p. 21).

É possível inferir que o fundo da DCDP estaria hierarquicamente submetido aos fundos da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, na medida em que aquele se constituiu em relação aos últimos. Ao avaliarmos o tratamento concedido pelo Arquivo Nacional ao fundo DCDP, constatamos algumas interrelações com os fundos da Polícia Federal e do Ministério da Justiça em alguns elementos da descrição dos itens documentais e no histórico do fundo apresentado pela instituição.

Além do quadro de arranjo, existem vários instrumentos de pesquisa referentes às subséries em que os documentos estão alocados. Por ocasião da análise desses instrumentos, reproduziremos um pequeno trecho da primeira página, pois se tratam de documentos com muitas páginas, cujas reproduções integrais tornariam nosso trabalho inviável. Sublinhamos que a consulta a esses instrumentos de pesquisa pode ser feita no site do Arquivo Nacional através do SIAN e localmente na seção Brasília do Arquivo Nacional.

A descrição como função arquivística está diretamente relacionada ao acesso por parte dos usuários. Bellotto infere que “o processo de descrição consiste na elaboração de instrumentos de pesquisa que possibilitem a identificação, o rastreamento, a localização e a utilização de dados” (2004, p. 179).

Assim sendo, os instrumentos de pesquisa serviriam aos gestores dos arquivos e aos usuários na consulta a arquivos permanentes, uma vez que estes permitiriam recuperar as informações em diferentes níveis, de acordo com os interesses de cada consulente. Bellotto apresenta a definição de instrumento de pesquisa como “obras de referência que identificam, resumem e localizam, em diferentes graus e amplitudes, os fundos, as séries documentais e/ou unidades documentais existentes em um arquivo permanente” (2004, p. 180), enfatizando seu papel na comunicação com o usuário.

Sobre a descrição, Yeo (2017, p. 142-148) recupera alguns argumentos críticos à descrição retrospectiva, isto é, à descrição realizada somente após os documentos serem considerados permanentes e recolhidos à instituição de guarda. O autor apontou a necessidade de se atrelar a descrição ao ciclo vital dos documentos através da inserção de metadados no momento de sua criação, destacando que a crítica à descrição retrospectiva ocorre porque ela “exige recursos a que os arquivistas não têm acesso; causa enormes gargalos no processamento; é incapaz de registrar importantes informações contextuais” (2017, p. 142), dentre outros.

Yeo também recordou seus defensores que, segundo ele, “identificam um papel específico para a descrição retrospectiva na averiguação da autenticidade ou no fornecimento de uma perspectiva contextual mais cuidadosa” (2017, p. 143). Em seguida, ponderou que as informações referentes à descrição podem ser inseridas ao longo do ciclo vital dos documentos (2017, p. 143).

No caso do fundo da DCDP, é possível inferir que a descrição retrospectiva se mostrou a única opção possível a ser seguida, visto que não havia o debate sobre metadados no momento da criação desses documentos nem condições tecnológicas para isso. Assim, tal exigência revela-se um anacronismo histórico na avaliação das práticas arquivísticas. E como a produção de metadados se trata de uma prática relativamente recente no âmbito da Arquivologia nos países do Primeiro Mundo e muito recente no caso brasileiro, esta irá demorar a ter alguma ressonância no tratamento de documentos considerados permanentes recolhidos a instituições de guarda.

Sobre os diferentes tipos de instrumentos de pesquisa, Bellotto (2004BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004.) apontou que estes serviriam para apresentar a instituição e os arquivos guardados por ela em diferentes níveis. Bellotto (2004, p. 180) apresenta os guias como um panorama de todos os arquivos guardados por uma instituição, enquanto os inventários e catálogos seriam mais específicos na delimitação do universo informacional descrito.

Sobre os guias, Bellotto destaca a popularidade destes perante o público, visto que adotam uma linguagem menos técnica e apresentam de modo bastante panorâmico os arquivos (2004, p. 191). Ressaltamos que não iremos nos debruçar sobre o guia de arquivos ofertado pelo Arquivo Nacional em seu website12 12 http://arquivonacional.gov.br/br/consulta-ao-acervo/instrumentos-de-pesquisa.html. Acesso em: 26 jul. 2019. , uma vez que o objetivo de apresentar os instrumentos de pesquisa neste capítulo refere-se ao aspecto qualitativo de nossa pesquisa no fundo da DCDP.

Já o inventário é definido pela autora como “o instrumento de pesquisa que descreve conjuntos documentais ou partes do fundo. É um instrumento do tipo parcial, trazendo descrição sumária e não analítica, esta, própria do catálogo” (BELLOTTO, 2004BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 197). Por sua vez, o catálogo serviria para descrever os documentos de uma ou várias séries unitariamente (2004, p. 202). A esses dois últimos tipos de instrumentos de pesquisa, dirigimos nossa análise.

Iniciamos com o instrumento de pesquisa referente à seção Administração Geral

Consistindo em um catálogo de 39 páginas que contém os itens documentais referentes a essa seção, é possível verificar que há uma descrição qualitativa em torno do tipo do documento (e, em alguns casos, a descrição é mais minuciosa quanto ao conteúdo do documento), a notação do mesmo no arquivo, a data, a caixa onde se encontra e o número de páginas que possui. Trata-se do maior nível de descrição encontrado no tratamento do fundo DCDP que não será repetido em outras séries e subséries, provavelmente em razão de ser um conjunto documental com menos itens que as séries representativas das atividades-fim do órgão.

Ainda, é possível apontar que esta série é relevante para a compreensão do fundo DCDP em sua integralidade, uma vez que reúne documentos que se ligam a outras séries e também outros documentos a respeito da relação entre o órgão, a Polícia Federal e o Ministério da Justiça, superiores hierarquicamente a ela. Desse modo, a escolha pela descrição em um nível mais detalhado mostra-se correta, pois ajuda o usuário externo na compreensão de como o fundo foi organizado e se encontra disposto.

Por sua vez, o instrumento de pesquisa da subsérie filmes, da série Cinema, apresenta somente o título de cada obra avaliada pela DCDP, o diretor, o ano em que a obra foi submetida à apreciação e a caixa guardada, não havendo nenhuma descrição qualitativa em torno do conteúdo dos processos administrativos, conforme podemos conferir abaixo:

Através desse instrumento, que também é um catálogo de 651 páginas, é possível verificar que a ordem de guarda dos processos administrativos referentes às obras cinematográficas deu-se de modo aleatório, sem respeitar nenhum tipo de critério cronológico, alfabético ou mesmo de entrada dos filmes para a avaliação da DCDP. Este padrão repete-se nos instrumentos de pesquisa - basicamente, catálogos - das subséries de peças teatrais (com 461 páginas), programas de rádio (com 2 páginas) e de letras musicais (com 455 páginas).

Uma organização bastante similar é seguida no instrumento de pesquisa da subsérie programação, um catálogo com 5 páginas, da mesma série Cinema:

Aqui, também há o número da caixa, a data do documento e uma breve descrição da sua tipologia. Apenas ressaltamos a diferença de que este instrumento segue uma ordem cronológica da produção documental, organizando os documentos entre 1978 e 1988.

No caso dos instrumentos de pesquisa referentes à série televisão, as informações são ainda mais escassas. No caso da subsérie telenovela, um catálogo com 36 páginas, reproduzimos este trecho:

Podemos verificar que há menção somente ao título, ao ano de apreciação pela DCDP e à caixa, não havendo menção a seus autores, diretores, gênero, faixa de horário nem emissora que veiculou a telenovela. E o mesmo acontece no instrumento de pesquisa referente a outros programas de TV (talk shows, seriados, programas de humor, desenhos animados, programas jornalísticos, infantis, etc.), também um catálogo com 73 páginas.

Em comum, as seções Censura Prévia, Coordenação e Controle e Orientação apresentam uma descrição com elementos bem básicos referentes aos processos administrativos de avaliação das obras submetidas à DCDP (série Censura Prévia) ou mesmo se atendo à função exercida pelas seções do órgão extinto. A título de exemplo, não há referência aos documentos contidos nesses processos, tais como pareceres, ofícios, cartas, recursos, documentos referentes ao trâmite processual, além dos materiais das obras avaliadas - roteiros, textos de peças, scripts de telenovelas, sinopses, fichas técnicas, partituras, letras de música, dentre outros13 13 É importante ressaltar que o Arquivo Nacional oferta aos usuários a possibilidade de acessar os processos administrativos do fundo DCDP - parcial ou totalmente - através de requisição, presencialmente ou por e-mail, serviço ao qual este pesquisador recorreu em algumas vezes, tendo sido atendido com a devida presteza. . Possivelmente, isso ocorreu em razão de o volume de documentos dessas séries ser muito maior, o que impediu uma descrição retrospectiva mais minuciosa.

Finalmente, aproveitamos para apresentar também a descrição do fundo DCDP disponível na base SIAN do Arquivo Nacional. O referido fundo e cada uma de suas seções possuem uma descrição geral de acordo com a norma ISAD(G), que preconiza a elaboração de campos como áreas de identificação, de contextualização, de conteúdo e de estrutura, de condições de acesso e de uso, de fontes relacionadas e de notas e de controle (Bellotto, 2004BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 182-183), dentro do seu objetivo de “estabelecer diretrizes gerais para a preparação de descrições arquivísticas, podendo ser usada juntamente com as normativas nacionais dos vários países-membros do CIA [Conselho Internacional de Arquivos]” (BELLOTTO, 2004BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 182).

Reproduzimos abaixo duas imagens extraídas da base SIAN14 14 Acesso em 27 jul. 2021. referentes à descrição do fundo DCDP, mais precisamente quanto à sua identificação e contextualização.

É possível deduzir dessa descrição a preocupação da instituição quanto à recuperação da história do fundo DCDP tanto em relação à sua função principal (censura) quanto à sua inserção na estrutura jurídico-administrativa do Estado brasileiro (órgãos a que a DCDP era subordinada, transformações anteriores à existência do órgão quanto à atividade de censura), além de outros dados referentes ao período englobado, gênero da documentação (textual) e metragem, cumprindo as normas ISAD(G) e NOBRADE quanto à descrição arquivística15 15 Em razão da extensão do artigo, não reproduzimos mais imagens extraídas da base SIAN sobre a descrição do fundo DCDP nem de suas seções. Por ocasião do acesso em 27/9/2021, foi possível verificar o preenchimento dos campos requeridos pela norma ISAD(G) quanto à descrição, sem repetições desnecessárias. Destacamos também que a parte dos documentos audiovisuais do fundo DCDP também se encontra descrita na mesma base. .

Ainda, é possível fazer considerações sobre as dificuldades operacionais de se descrever qualitativamente o fundo da DCDP, tais como a necessidade de a instituição de guarda ter um ritmo de trabalho que permita acolher e tratar vários fundos de diferentes órgãos federais, a restrição de tempo e de profissionais para a realização da descrição arquivística. Mesmo assim, os instrumentos de pesquisa mostram-se adequados à recuperação da informação custodiada pelo fundo analisado ao longo deste artigo.

3 Considerações finais

Tentamos pensar o fundo da DCDP diante dos desafios do cenário arquivístico brasileiro, visando reposicionar algumas questões teóricas da Arquivologia à luz das suas complexidades e dificuldades.

Ainda, pretendemos contribuir para um conhecimento arquivístico que incorpore as limitações materiais, históricas, estruturais, culturais e de gestão dos arquivos e dos documentos. Isto não significa abrir mão dos debates sobre melhorias nos diversos âmbitos da área, mas reconhecer que o cenário adverso representa um desafio a concepções ideais de arquivo e de tratamento documental e, simultaneamente, a possibilidade de construir outros caminhos teóricos que valorizem o enfrentamento das adversidades pelos arquivistas no seu cotidiano profissional.

Ressaltamos a necessidade de estabelecer um diálogo horizontal com o debate arquivístico de outros países. Reconhecer os ganhos desse debate implica posicionar autores, teorias e textos em realidades arquivísticas historicamente condicionadas e não como pensadores a serem acriticamente reproduzidos como portadores de uma “visão ideal” de Arquivologia.

E até que ponto reside a importância do estabelecimento de normas gerais no tratamento arquivístico? Se em alguns cenários institucionais, é difícil estabelecer uma correspondência entre essas normas e as práticas de tratamento documental, isso não pode ser negligenciado como um dado limitador da generalização pretendida. Fazer isso é penalizar ainda mais os sujeitos imersos em contextos arquivísticos cotidianamente sacrificados com cortes orçamentários, instáveis política e administrativamente e menos reconhecidos socialmente, a saber: fora dos países do Primeiro Mundo. A análise dos instrumentos de pesquisa também precisa se mostrar sensível a esses fatores e reconhecer as adaptações e os esforços feitos pelos arquivistas para disponibilizar essas informações aos usuários externos de modo mais rápido e eficaz.

Neste artigo, tivemos a intenção de analisar desses instrumentos de pesquisa criados pelo Arquivo Nacional para que o usuário externo pudesse acessar as informações contidas nos documentos custodiados pelo fundo da DCDP e também as informações sobre a própria história do fundo e de sua instituição geradora. Tal objetivo não teria sido possível sem o trabalho dos funcionários do Arquivo Nacional que, diante dos limites impostos ao fazer arquivístico, conseguiram criar esses instrumentos.

Em linhas gerais, agiram acertadamente ao delimitar o fundo da DCDP e, dentro do volume documental apresentado por ele, ao eleger a seção Administração Geral com o nível mais detalhado de descrição, pelo fato de ali estarem os documentos que evidenciam a estrutura do fundo em sua totalidade. Ainda, a adaptação na descrição da seção referente a Censura Prévia mostrou-se eficaz na recuperação das informações, na medida em que é possível localizar os processos referentes às obras musicais, cinematográficas, teatrais, televisivas etc. a partir de seus nomes.

Finalmente, precisamos reconhecer que a retomada da discussão sobre censura é sempre algo bem doloroso. Implica destacar as perdas e as baixas provocadas por um autoritarismo que impunha sua vontade de modo ilegítimo. Pelas ironias de um tempo histórico bastante conturbado, este trabalho começou com o objetivo de recuperar alguns pontos do debate sobre arquivos e censura e, a partir dele, a análise dos instrumentos de pesquisa do arquivo da DCDP, dentro do esforço de situar essa atividade censória como uma marca de origem do nosso regime republicano. Infelizmente, o autoritarismo presente durante toda a vida da nossa república (com “r” minúsculo, visto que ela historicamente representou muito poucos) - em alguns momentos de modo mais recalcado - retornou à esfera pública com tanta força que revela a atualidade de nossa empreitada.

Referências

  • BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
  • BELLOTTO, H. L. Arquivo: estudos e reflexões. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
  • COOK, T. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017.
  • DUCHEIN, M. O respeito aos fundos em Arquivística: princípios teóricos e problemas práticos. In: Rio de Janeiro, Arquivo e Administração, v.10-14, n. 2, 1982-1986.
  • DURANTI, L. Archives as a place. Archives & Social Studies: a Journal of Interdisciplinary Research, v. 1, March 2007, p. 445-466.
  • FICO, C. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
  • FIGUEIREDO, L. Lugar nenhum: militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.
  • KUSHNIR, B. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 88. São Paulo: Boitempo, 2004.
  • LAPERA, P. V. A. Entre brechas, cortes e rasuras: relações étnico-raciais e censura cinematográfica na ditadura militar. Famecos, Porto Alegre, v.22, n. 2, abr/jun 2015, p. 82-98.
  • RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2000.
  • SIMÕES, I. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: SENAC, 1999.
  • YEO, G. Debates em torno da descrição.In: EASTWOOD, T.; MACNEIL, H. Correntes atuais do pensamento arquivístico. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2018, p. 135-169.
  • 1
    A ela, referir-nos-emos como DCDP ao longo deste artigo a partir desse ponto.
  • 2
    https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-70665-2-junho-1972-419313-publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em: em 27 jul. 2019.
  • 3
    https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-64416-28-abril-1969-405956-publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em: 28 jul. 2019.
  • 4
    Ressaltamos que este artigo não se relaciona à tese já defendida, uma vez que se trata de um projeto de pesquisa posterior ao Doutorado.
  • 5
    Sigla de Sistema de Informações do Arquivo Nacional. Resumidamente, a base SIAN reúne documentos de diversos fundos custodiados pelo Arquivo Nacional. Ainda, apresenta esses fundos e suas informações, tais como instituição de origem, histórico, séries, subséries, descrições qualitativas a respeito dos documentos e dos fundos. Para acessá-la, basta realizar um breve cadastro por parte do/a pesquisador/a. Link: https://sian.an.gov.br/sianex/consulta/login.asp (Acesso em 25/11/2021).
  • 6
    Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1970-1979/decreto-lei-1077-26-janeiro-1970-355732-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 23 jul. 2019.
  • 7
    “To declare a document authentic means to say that it is precisely as it was when first transmitted or set aside for preservation, and that its reliability, or the trustworthiness it had at that moment, has been maintained intact” (Tradução fo autor).
  • 8
    O quadro foi elaborado de acordo com o quadro de arranjo de autoria da técnica em arquivo Camilla França publicado no Diário Oficial da União em 6 de maio de 2009 e todas as informações reproduzidas nesta tabela constam no referido quadro. Além das seções apresentadas, há 17 caixas avulsas.
  • 9
    http://dibrarq.arquivonacional.gov.br/index.php/divisao-de-censura-de-diversoes-publicas-4. Acesso em: 27 jul. 2019.
  • 10
    Agradecemos a/ao parecerista por essa observação, que incorporamos à nossa análise.
  • 11
    Agradecemos à/ao parecerista por mais essa observação feita sobre os nomes das séries e subséries.
  • 12
    http://arquivonacional.gov.br/br/consulta-ao-acervo/instrumentos-de-pesquisa.html. Acesso em: 26 jul. 2019.
  • 13
    É importante ressaltar que o Arquivo Nacional oferta aos usuários a possibilidade de acessar os processos administrativos do fundo DCDP - parcial ou totalmente - através de requisição, presencialmente ou por e-mail, serviço ao qual este pesquisador recorreu em algumas vezes, tendo sido atendido com a devida presteza.
  • 14
    Acesso em 27 jul. 2021.
  • 15
    Em razão da extensão do artigo, não reproduzimos mais imagens extraídas da base SIAN sobre a descrição do fundo DCDP nem de suas seções. Por ocasião do acesso em 27/9/2021, foi possível verificar o preenchimento dos campos requeridos pela norma ISAD(G) quanto à descrição, sem repetições desnecessárias. Destacamos também que a parte dos documentos audiovisuais do fundo DCDP também se encontra descrita na mesma base.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2020
  • Aceito
    25 Nov 2021
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